Introdução
O Brasil vive os últimos anos do bônus demográfico de juventude e tem atualmente pouco mais de 50 milhões de jovens, isto é, indivíduos entre 15 e 29 anos de idade que representam cerca de 1/4 da população do país. Segundo projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ibge), esse número deverá começar a declinar a partir de 2025, chegando a menos de 35 milhões de jovens no ano de 2050. O maior e mais urgente desafio que esse bônus juvenil coloca é a necessidade de se qualificar melhor os jovens brasileiros, pois serão eles que irão sustentar os próximos ciclos de desenvolvimento em um país que caminha para um processo acelerado de envelhecimento populacional. Isso numa sociedade marcada por uma histórica desigualdade no que se refere ao acesso a direitos sociais, situação que afeta, particularmente, a juventude. Logo, educação e trabalho são questões centrais e a ampliação e a melhoria na oferta de ambos constam entre as principais demandas dos jovens brasileiros nos últimos anos.
Em 2005, no primeiro governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010), teve início um importante ciclo de políticas públicas de juventude no país, a partir da promulgação da Lei n.º 11.129, de 30 de junho de 2005, que estabeleceu as bases para uma maior articulação das ações voltadas para os jovens, principalmente a partir da instituição da Secretaria Nacional de Juventude (snj), vinculada diretamente à Secretaria Geral da Presidência da República (sgpr). Seu lugar de destaque na estrutura de governo sinalizava esforços de estruturação de uma política nacional de juventude, que começou a se materializar com a criação de diversos programas e políticas públicas que buscavam ter na participação da juventude o eixo estruturante de seu desenho e de sua implementação, possibilitando que os jovens pudessem usufruir, de forma mais integral, de seus direitos, inclusive do direito à participação.
Nesse sentido, foi fundamental a criação, também pela mesma lei, do Conselho Nacional de Juventude (Conjuve), como órgão que congregasse representantes de distintos segmentos da juventude organizada e propiciasse a ampliação de sua participação, tanto na formulação quanto no monitoramento das políticas de juventude. O objetivo era incidir sobre a efetividade de tais políticas, aumentando a presença dos jovens nos processos decisórios e construindo regras de participação que se transformassem em políticas de Estado. Tal orientação política buscava superar o paradigma que vê o jovem como “beneficiário” das políticas públicas para passar a vê-lo como “sujeito de direitos” (Decreto n.º 5.490 de 2005).
Foi nesse contexto que surgiram as Conferências Nacionais de Políticas Públicas de Juventude (cnppj), ocorridas em 2008, 2011 e 2015, que se transformaram em um espaço privilegiado para o encaminhamento de demandas dos jovens brasileiros, sobretudo daqueles com maior engajamento político. Embora tenham sido realizadas em conjunturas distintas, por delegados eleitos em anos diferentes e com metodologias dessemelhantes e, nesse sentido, não podem ser pensadas como representativas do conjunto da juventude brasileira, as demandas presentes nas três edições das cnppj apontam um acúmulo político que vinha sendo construído, principalmente, pelos jovens militantes que, por sua vez, tiveram sua atuação potencializada com a sua participação efetiva em programas nacionais com foco na juventude. Isso contribuiu para a formação de um grupo bastante qualificado de jovens gestores especializados em políticas de juventude, que foram se formando à medida que esse campo governamental se expandia. O adensamento do campo das Políticas Públicas de Juventude (ppj) se deu, também, por meio da construção de marcos regulatórios, principalmente o Estatuto da Juventude, de 2013. Portanto, nas cnppj estavam presentes os principais atores que compunham o campo das políticas de juventude, reunindo entidades e atores do governo e da sociedade civil, tendo o Conjuve à frente do processo de mobilização que reuniu, em Brasília, a cada edição, cerca de 3.000 jovens de todo o país.
Este artigo acompanha as demandas relativas à educação e ao trabalho nas três edições das cnppj: 2008, 2011 e 2015. Ao percorrer essas demandas, visa pensar as mudanças ocorridas em um ciclo marcado pelo aparecimento de novas identidades juvenis na arena política e pela incorporação de pautas que não são usualmente pensadas como sendo “de” juventude, como a questão do “trabalho decente”, que foi uma “bandeira” importante dos jovens militantes de distintos coletivos. Ao se percorrer esse ciclo de políticas, fica clara a dificuldade que representa o equilíbrio das agendas de direitos, pois avanços conseguidos no campo educacional não se traduziram em melhores empregos para os jovens, mesmo em uma conjuntura de crescimento econômico.
Por fim, o texto reflete sobre o conceito de ruptura e sua diferença com a descontinuidade que sempre caracterizou o campo das políticas públicas no país. Em 2016, um sumário golpe parlamentar-jurídico-midiático derrubou a Presidenta Dilma Rousseff (2011-2014 e 2015-2016) e iniciou um período de retrocessos políticos que atingiram, fortemente, a juventude. De imediato, foram “congelados” investimentos em educação por 20 anos e se aboliram as regras e garantias trabalhistas conquistadas desde a década de 1940 e, por fim, atingindo diretamente a juventude engajada, o Conjuve teve seu papel político esvaziado. Desde o golpe, o país vive o que Dos Santos (2017) bem definiu como um “regime constitucional não democrático”, tendência que se propaga no atual ciclo expansivo do capitalismo financeiro que vem desestabilizando governos de esquerda no continente latino-americano. Essa ruptura no arranjo político do Governo Federal acarretou o fim de inúmeros programas e políticas públicas, em estágios diferentes e com resultados distintos, mas que na última década vinham garantindo uma expansão de direitos dos jovens brasileiros. Frente a esse quadro, é importante se conhecer o que “anda na cabeça, anda nas bocas”1 de jovens brasileiros engajados, revisitando as demandas sobre educação e trabalho nesse ciclo compreendido entre 2008 e 2015.
Juventude, educação e trabalho no Brasil: avanços e permanencias
No Brasil, a desregulamentação e a insegurança dos vínculos formais com o mundo do trabalho foram marcas fundamentais do desenvolvimento capitalista, que desde sua origem se construiu não sobre a estabilidade do trabalho, mas sobre a sua precariedade, econômica, social e política2. Por isso, ao se tratar da relação entre juventude, educação e trabalho constata-se que a condição de ser exclusivamente estudante é bastante nova para os jovens pertencentes às camadas populares. Os números que medem os processos educativos experimentados pelos jovens mais pobres demonstram que políticas de correção de fluxo3 promoveram avanços nos indicadores de educação, porém essas melhoras não se têm traduzido na ampliação das oportunidades de trabalho. Assim, apesar do acesso recente a patamares mais amplos de escolarização, permanecem as dificuldades para a penetração dos jovens mais pobres no mundo do trabalho.4 Logo, para esses jovens, a grande novidade recente trazida pela convivência entre os mundos do trabalho e da escola se deu, principalmente, a partir da ampliação do acesso à escola, mas em um arranjo perverso, onde os ganhos de escolaridade ocorrem em um período de extrema fragilização do mundo do trabalho, não se constituindo, propriamente, em um avanço.
Quando se observa o ensino médio, percebe-se que o ingresso dos jovens pobres foi se dando em um ritmo muito lento até a década de 1990, aumentando, exponencialmente, a partir de maiores investimentos, como efeito indireto da instituição do fundef5, que buscou a universalização do acesso de crianças e adolescentes ao ensino fundamental. Porém, a lógica praticada foi acelerar os processos de escolarização sem, necessariamente, criar uma infraestrutura adequada à rede pública que, assim, foi se deteriorando a olhos vistos (Peregrino, 2010). As principais consequências desse processo foram a massificação dos sistemas de ensino, gerando um aumento da demanda por escolarização média, em salas lotadas e escolas deterioradas. Por isso, Algebaile (2009) classifica essa conturbada massificação como uma “expansão para menos”, dizendo, com isso, que a escola se universaliza, mas perdendo qualidade.
Ainda assim, dados comparados nos mostram importantes avanços nos processos de escolarização de jovens no país. Os dados de frequência escolar líquida6 mostram a diminuição das desigualdades nos últimos 10 anos, indicando que, mesmo políticas de limitada eficácia, como aquelas voltadas para a correção do fluxo escolar, têm conseguindo diminuir desigualdades antigas e arraigadas7. Comparando o período 2001- 2011, pode-se perceber que a frequência escolar líquida cresce, para jovens de 15 a 17 anos, em todas as regiões do país, tendo tido aumento mais expressivo nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Quando tomamos os quintos de renda como referência, percebemos que a ampliação da taxa de frequência líquida foi, significativamente, mais expressiva nos três primeiros quintos de renda, exatamente os mais pobres (Peregrino, 2014).
Quando se recorta a distribuição dos estudantes de 18 a 24 anos por nível de ensino e a partir da cor/raça, marcador fundamental de desigualdade no Brasil, notamos avanços significativos no período 2001-2011, como mostra a Tabela 1. Em 2001, a maioria dos estudantes negros (pretos ou pardos) dessa faixa etária (18-24 anos) cursava o ensino fundamental ou médio, estando o menor percentual no ensino superior. Em 2011, essa população encontra-se, predominantemente, no ensino médio e no superior, estando o menor percentual no ensino fundamental. Isso indica deslocamentos importantes de posições, como mostra o quadro abaixo.
No discurso político brasileiro utilizado pelos militantes das lutas antirracistas, as categorias preto e pardo se condensam na categoria/identidade política de negro, que é também a forma como é considerado pelo campo das políticas de ações afirmativas. No entanto, mesmo depois dos avanços nos patamares escolares atingidos, não é possível negligenciar o fato de que os 65,7% de brancos que frequentavam a educação superior, em 2011, ainda constituem um percentual muito superior aos 35,8% de pretos e pardos neste mesmo nível de ensino, desigualdade que se acentua quando se observam as carreiras onde esses estudantes negros têm ingressado, majoritariamente as de menor prestígio social, sendo a sua presença ainda rarefeita em cursos mais elitizados, como, por exemplo, Medicina e Direito.
Se os dados referentes às políticas de educação são relativamente animadores, a análise tende a ser mais complexa quando se cruzam as condições de estudante e trabalhador. No período 2005-2015, o país vive mudanças nos processos e nas trajetórias de transição da juventude para a vida adulta, que redefinem as combinações entre estudo e trabalho. A primeira, e mais importante delas, é a redução no mercado de trabalho de jovens de 15 a 17 anos. Isso caracteriza uma situação inédita, sobretudo para os jovens das camadas populares, que estão podendo experimentar a condição de serem exclusivamente estudantes, sendo esta circunstância vivida, principalmente, pelas jovens mulheres.
No entanto, quando se observam as coortes que reúnem os jovens entre 18 e 29 anos, o que mais chama a atenção é o fim abrupto da moratória juvenil, isto é, da condição de exclusivamente estudante. Conforme se avança na faixa etária da juventude há uma perda de centralidade da escola e um aumento de entradas e saídas do sistema escolar e do mercado de trabalho, como marca da atual condição juvenil. Em 2014, mais de 60% dos jovens homens de 17 anos só estudavam, porém aos 19 anos menos de 40% deles só estudam e depois dos 25 anos apenas cerca de 20% dos jovens homens são exclusivamente estudantes, mantendo-se nesse patamar até os 29 anos. Na trajetória das jovens mulheres, nesta mesma faixa etária (18 a 29 anos), a moratória juvenil é um pouco maior. Aos 17 anos mais de 70% das jovens mulheres somente estudam, declinando para pouco menos de 50% aos 19 anos e a apenas 30% a partir dos 25 anos.
Em síntese, uma das características das mudanças pelas quais vem passando a faixa etária de 15 a 17 anos é que se tínhamos um equilíbrio percentual entre trabalho e escola, hoje temos uma situação de absoluto predomínio da presença da escola sobre o trabalho nas vidas deste conjunto de jovens. Se levarmos em conta que, a partir dos 18 anos, a predominância do trabalho sobre a escola é a realidade para a imensa maioria dos jovens brasileiros, veremos que o aumento discreto da representação da escola nesta faixa etária não foi suficiente para justificar a queda significativa da representação do trabalho nesta faixa da juventude. Provavelmente, o que estamos vendo é um aumento das dificuldades de penetração dos jovens extremamente pobres no mercado de trabalho. Assim, permanecem as dificuldades para a penetração dos jovens mais pobres no mundo do trabalho, apesar do acesso a patamares mais amplos de escolarização.
Historicamente, o processo de transição para a vida adulta dos jovens brasileiros foi realizado com base no trabalho, muito mais do que na escola. O trabalho permitia, ao mesmo tempo, o consumo e a expressão dessa condição juvenil. Mas foi o trabalho de novo tipo, a partir de 1990, surgido com o crescimento do setor de serviços, que permitiu que os jovens consumissem e expressassem a condição social recém adquirida. Assim, a escola se expande, tornando a relação entre escola e trabalho ainda mais complexa. Quando ficam claros os limites da ascensão social através do sistema escolar para a maioria, uma ambigüidade se configura, pois em contraste com a manutenção da crença na escola como instituição central para um futuro promissor, o dia a dia nela, o presente, o cotidiano realiza-se em meio à ausência de sentido e precariedade. Isso é especialmente verdadeiro para aqueles jovens que não encontram espaço de socialização fora do ambiente escolar. Isso mostra que, nessas condições, o sentido para a escolarização é constituído de fora da escola, sendo o trabalho uma das instituições que mais lhe fornece significado. Neste sentido, corroborando a perspectiva de Sposito (2003), torna-se mais visível que “trabalho também produz juventude”.
Portanto, pensar as mudanças nos processos e fluxos de escolarização tem sido essencial para se ler as demandas de jovens engajados em relação à educação e ao mundo trabalho. Isso porque, interessa saber de que modo a incidência de políticas públicas específicas para a juventude produziu deslocamentos e ampliou o “campo de possibilidades” (Velho, 2003) de muitos segmentos juvenis que, até então, tinham horizontes sociais mais restritos, tanto do ponto de vista de uma jornada educacional ampliada, com remota possibilidade de se chegar à universidade, quanto do ponto de vista da vivência de um mundo do trabalho com maior segurança. Assim, temos hoje uma geração de jovens muito mais escolarizados do que seus pais, mas que enfrentam um mundo do trabalho precário e fragmentado. As demandas juvenis aqui analisadas, no âmbito das três Conferências Nacionais de Juventude, refletem essas ambigüidades e são um convite para se pensar os desafios experimentados pelos jovens contemporâneos.
A seguir, o breve perfil dos participantes ajuda a qualificar o debate a respeito das demandas juvenis sobre educação e trabalho, que são objeto deste artigo, pois mostra que os jovens que participaram dessas Conferências expressavam demandas de segmentos específicos da juventude brasileira. Nesse sentido, vocalizavam questões que mobilizavam aqueles que, de algum modo, já tinham certo grau de engajamento político.
Perfil dos participantes das Conferências Nacionais de Políticas Públicas de Juventude (cnppj)
A decisão de se realizar Conferências Nacionais de juventude foi a proposta encaminhada pelo Conjuve para materializar o ideal de gestão participativa, construído, em 2005, à época da implementação de uma política nacional de juventude. Por isso, cada Conferência era precedida de um processo de mobilização que acontecia ao longo dos meses que a antecediam e tinha alcance nacional. Em primeiro lugar, com a realização de conferências municipais, elegendo representantes (delegados) para a etapa estadual, que, por sua vez, elegia delegados para a conferência nacional. A eleição dos delegados era uma parte muito importante do processo, uma vez que eram os responsáveis pelo encaminhamento e pela defesa das demandas do movimento social, coletivo ou comunidade que representavam. Grande parte deles vinha de experiências anteriores de engajamento político, porém de caráter mais local ou regional e, portanto, muitos estavam debutando no cenário nacional. Nesse período analisado, a grande novidade foi a ampliação das identidades juvenis em cena, pois, tradicionalmente, ser jovem era sinônimo de ser estudante e as políticas públicas de juventude concentravam-se em questões da educação, geralmente voltadas para aqueles que podiam estudar e com baixa percepção das exclusões produzidas pelo sistema educacional brasileiro.
Em suas lutas por reconhecimento, a juventude brasileira diversificou essa pauta de reivindicações, principalmente a partir da afirmação de novas identidades políticas, como os jovens negros, quilombolas8, de terreiro9, assentados10, glbt (gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros), convivendo com os movimentos já veteranos na cena política, como o movimento estudantil, tanto universitário quanto secundarista, grupos religiosos, jovens de partidos políticos, da capoeira11, do funk12 e do hip hop. Este diálogo a partir da diversidade é um dado novo no cenário recente, que nenhuma geração precedente vivenciou tão intensamente. Como ponto em comum em meio à diversidade, estava o fato de o governo ser o interlocutor primordial para o qual essa rede jovem se voltava em busca de recursos e de marcos legais de regulação de direitos.
A cada Conferência Nacional, foi aplicado um survey que, conforme se pode observar pela Tabela 2, apresentou variação considerável no número de respondentes. Para este artigo, recortou-se elementos do perfil socioeconômico, assim como questões ligadas à identidade e à escolaridade, que ajudem a compreender a extração social dos participantes, qualificando as demandas de educação e trabalho aqui analisadas.
Sexo dos participantes
A presença feminina cresceu consideravelmente ao longo das três edições das cnppj. Outro dado relevante é dos que se autodeclaram transgêneros. Os percentuais encontrados na 1ª e na 3ª cnppj, ainda que muito discretos, evidenciam a maior participação de delegados que se declararam nesta categoria (Gráfico 1).
O avanço da participação feminina segue tendência observada nos movimentos sociais de juventude em geral, nos quais a presença das mulheres é cada vez maior e mais visível, inclusive nas posições de liderança. Essa característica fica bem marcada na 3ª cnppj, quando se alcança uma quase equivalência da participação entre sexos.
Faixa etária dos participantes
De forma geral, a distribuição etária dos participantes apresentou oscilações (Gráfico 2). No entanto, em todas elas, a maioria dos participantes encontra-se na faixa etária dos 19 a 25 anos, que alcançou 54,4% na 3ª edição. A predominância de jovens de 19 a 25 anos coincide com a faixa etária de maior frequência de jovens no país. Outro aspecto que chama a atenção é a redução significativa do percentual de participantes com 30 anos ou mais de idade. Os jovens de 15 a 18 anos eram 11,7% na 1ª cnppj, passaram a 17,6% na 2ª, mas recuaram novamente para 12,1% na 3ª cnppj. Por fim, os jovens de 26 a 29 anos, mesmo com oscilações (21,4%, 23,2% e 20,7%, respectivamente), mantiveram proporções estáveis de participação.
Cor/raça dos participantes
Os autodeclarados brancos passaram de 45,5% para 34,9% e, por fim, para 26,6% ao longo das três edições das cnppj (Gráfico 3). Os pardos estiveram representados em 11,3%, 32,6%, e 27,4%, respectivamente. Houve um aumento considerável da participação desse grupo entre a primeira e a última edição das cnppj. Os pretos, por outro lado, ainda que tenham caído de 33,1% para 23,2%, chegaram a 38,6% na ultima edição. Desta forma, a 3ª cnppj se configura como a única em que o percentual de participantes que se autodeclararam negros (pretos/pardos) é muito maior do que daqueles que se autodeclararam brancos. Em síntese, os participantes vão se tornando mais negros (pretos e pardos) conforme as edições das Conferências se sucedem neste ciclo de políticas.
Orientação sexual dos participantes
Ainda que os que se autodeclaram heterossexuais sejam sempre a maioria, pode-se perceber que sua proporção vem se reduzindo consideravelmente quando se observam as três edições das cnppj (89,5%, 83,1% e 68,3%, respectivamente) (Gráfico 4). Tendência inversa é encontrada entre os que se declaram homossexuais (4,4%, 6,1% e 13,8%, respectivamente), já que sua participação proporcional entre a 1ª e a 3ª edições conferência quase triplicou. O aumento é ainda mais perceptível entre os que se declaram bissexuais na 1ª, 2ª e 3ª edições (2,4%, 2,6% e 13,2%, respectivamente), pois a proporção de sua participação se mostrou cinco vezes maior.
Escolaridade dos Participantes
A maioria dos participantes é composta de estudantes que atingiram o ensino superior (Gráfico 5) . Os participantes com nível fundamental foram sendo discretamente reduzidos, enquanto os com nível médio de escolaridade tiveram um aumento significativo, de quase dez pontos percentuais, passando de 26,8% para 36,9% e 35,0%, respectivamente.
Assim, a amostra de jovens presentes nas três edições das cnppj não condiz com a escolaridade média dos jovens brasileiros, pois aqui percebe-se uma sobrerrepresentação dos que estão no ensino superior. Enquanto no país temos cerca de 34% de jovens de 18 a 24 anos matriculados em universidades, nossa amostra apresenta cerca de 60% de universitários nas três edições. Há, ainda, uma ligeira ampliação daqueles que estão cursando o ensino médio.
Em síntese, este breve perfil mostra que houve mudanças importantes na composição dos participantes ao longo desses oito anos analisados. Percebe-se uma tendência à feminização e ao enegrecimento em um contexto de manutenção do alto nível de escolaridade entre os participantes. Sobre tais dados, pode-se considerar duas hipóteses: uma é de que a composição dos participantes segue a dinâmica presente nos movimentos sociais desse período e, nesse sentido o aumento do número de mulheres e de negros ao longo das três conferências seria expressão do próprio crescimento desses movimentos identitários. Por outro lado, dada a novidade que representou um evento da dimensão assumida pelas conferências nacionais, o crescimento da presença desses segmentos expressaria uma maior adesão e reconhecimento desses sujeitos em relação a esse espaço ampliado de debate recém-conquistado. Porém, as duas hipóteses não são excludentes e pode-se pensar tanto que as conferências expressavam as forças sociais presentes quanto que este espaço passou a ser reconhecido como legítimo por movimentos juvenis.
Assim, o perfil mostra que se o conjunto dos participantes não representa a juventude brasileira, seu desenho vai se tornando mais feminino, mais negro e mais popular. Tal perfil representa, por outro lado, o de jovens presentes no processo recente de expansão da universidade brasileira.
Demandas de educação e trabalho nas cnppj
Naturalmente, as cnppj foram sempre influenciadas pelos contextos políticos, econômicos e sociais diversos em que aconteceram, assim como estiveram submetidas a lógicas diferentes de organização e de representatividade. Ao longo do ciclo 2008-2015, as diferenças vivenciadas na conjuntura política marcaram cada uma delas. Nesse sentido, os lemas adotados em cada cnppj trazem elementos que nos ajudam a entender essas distintas conjunturas.
A 1ª cnppj, realizada no segundo governo do Presidente Lula, apenas três anos após a criação da Secretaria Nacional de Juventude, teve como tema “Levante sua Bandeira”, que expressava o caráter inaugural da proposta de se buscar fazer política em sintonia com as demandas de grupos ou temas setoriais. Por isso, a sua marca é a quantidade, variedade e diversidade de propostas apresentadas.
A 2ª cnppj ocorreu em 2011, já no primeiro governo da Presidenta Dilma Rousseff, e teve como lema a “Conquistar direitos, desenvolver o Brasil!”. Nesse período, os jovens engajados vivenciavam o auge do ciclo de políticas de juventude, especialmente os jovens com o perfil semelhante aos que estavam nas cnppj, pois já se sentiam os efeitos das políticas universitárias iniciadas com Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), que tinha entre seus principais objetivos ampliar o acesso e a permanência na educação superior de jovens mais pobres que, historicamente, não chegavam a esse nível de ensino, menos ainda, em instituições públicas de qualidade. De fato, as mudanças no perfil dos estudantes das universidades públicas brasileiras foram notáveis, principalmente se considerando o critério cor/raça. Essa democratização avançaria, ainda mais, com a promulgação de Lei de Cotas Raciais, em 201213.
A 3ª cnppj foi realizada em dezembro de 2015, em meio a uma conjuntura política extremamente conturbada, pois o processo de impeachment já estava em curso e resultaria no afastamento da Presidenta Dilma em maio de 2016. Por isso, foi a menos produtiva das conferências, em termos do encaminhamento de novas demandas, pois se vivia uma ruptura democrática e os participantes sabiam que o importante naquele momento era garantir os direitos conquistados.
Demandas de Educação nas cnppj
Elegemos seis categorias de análise: 1) Financiamento; 2) Expansão e Permanência; 3) Diversidade; 4) Democratização; 5) Escola e Trabalho; 6) outros, item que reúne demandas diversas que ainda não tomaram forma definida (Tabela 3).
A 1ª cnppj foi a que apresentou um conjunto maior e mais variado de demandas. Apresentou, também, um conjunto pouco específico e mais fragmentado de propostas no tema da educação. No eixo financiamento, reivindica o aumento geral de recursos para a área. Aponta a necessidade de trabalho e renda para o jovem do campo, reivindica um sistema de reserva de vagas nas universidades públicas e bolsas de estudos para a juventude negra cursar as universidades. Expressa, ainda, a necessidade de democracia na educação de forma geral, com destaque para a universidade, principalmente na gestão das instituições de ensino e nos mecanismos de avaliação. Demonstram preocupação com a relação entre trabalho e escola, buscando a ampliação das condições de formação, qualificação profissional e orientação para a escolha de carreira ainda na escola, assim como a experimentação da profissão escolhida, através da regulamentação da Lei do Estágio.
Na 2ª cnppj, o tema da educação se apresenta sob a forma de propostas muito mais concisas, organizadas por eixos mais claros, divididos em seis proposições (Tabela 4). Nelas, os eixos da expansão e permanência e o eixo da diversidade são predominantes. No primeiro, a reivindicação básica é ampliar e interiorizar as vagas em universidades públicas e em cursos técnicos, tecnológicos e profissionalizantes. Quando trata das universidades, articula a expansão aos investimentos em infraestrutura e à manutenção das políticas de ação afirmativa e de auxílio à permanência de jovens pobres. No caso da expansão dos cursos técnicos e tecnológicos, visa sua articulação a um sistema nacional de educação. No eixo da diversidade, as propostas pedem integração entre as políticas de diversidade no âmbito da educação, contextualização da educação para o campo e para as comunidades tradicionais. As duas outras propostas articulam os eixos democracia e relação escola-trabalho. Elas reivindicam ampliar, interiorizar, integrar e democratizar a formação para o trabalho. Buscam instituir a participação popular nos conselhos gestores das instituições educacionais, com vistas à ampliação e ao aprimoramento do controle social sobre as instituições públicas.
Na 3ª cnppj há a repetição e consolidação de reivindicações iniciadas de maneira mais difusa na 1ª cnppj, amadurecidas e apresentadas de modo mais sólido na 2ª cnppj e reapresentadas na 3ª cnppj (Tabela 5). . Novamente, se reivindica ampliar e interiorizar o ensino superior, através da ampliação da Política Nacional de Assistência Estudantil. Novamente, as particularidades da educação no campo ganharam visibilidade pela reivindicação de financiamento para programas próprios e reestruturação do atendimento tendo em vista suas singularidades (Sem Terra, Agricultura familiar, Assentados da reforma agrária, Ribeirinhos etc.).
São sugeridas mudanças na matriz curricular, na formação de professores, na democratização e humanização das escolas, incluindo debates sobre gênero, igualdade, justiça social e liberdade. Ampliar a carga horária de Filosofia, Sociologia e História. Finalmente, retorna, muito mais detalhado do que na 1ª cnppj, o eixo do financiamento. A proposta reivindica 10% do pib para a Educação (destinação de 50% do Fundo Social e 75% dos Royalties do Petróleo) com vistas à efetivação do Plano Nacional de Educação.
Demandas de Trabalho nas cnppj
Na 1ª cnppj, as propostas relativas ao trabalho foram marcadas pela diversidade e pela amplitude das demandas (Tabela 6) . Forte ênfase na garantia de direitos já existentes, propostas que apontavam para a necessidade de construção de políticas e programas que garantissem a inserção do jovem no mercado de trabalho, condições específicas de trabalho para jovens e, em especial, para jovens que enfrentavam condições culturais, físicas e regionais particulares. Merece destaque um conjunto de propostas que apontava para uma maior autonomia no campo econômico, como o incentivo a mecanismos não convencionais e mais solidários de produção. Finalmente, entre os suportes para o trabalho, aparecem demandas diversas, tais como creches para filhos de trabalhadores, uma política de divulgação de oportunidades de trabalho e renda, incentivo aos empregadores para a liberação de tempo garantindo assim que jovens trabalhadores possam concluir sua escolarização.
A 2ª cnppj se caracterizou pela concentração de demandas em apenas dois eixos: os que tratam da garantia de direitos já estabelecidos e os que tratam da ampliação/ conquista de novos direitos no trabalho (Tabela 7). Avança ao qualificar as propostas, ancorando-as em leis, resoluções e convenções já existentes, em especial em acordos já assinados ou em negociação junto à Organização Internacional do Trabalho (oit). O conteúdo das propostas demonstra, porém, que o leque de demandas presente na 1ª cnppj não foi reduzido na segunda edição. Por um lado, reivindica-se a garantia de licença para estudos e qualificação profissional, por outro, busca-se a redução da jornada de trabalho visando garantir as condições para o exercício das demais dimensões da juventude, combate à discriminação, visa a paridade salarial para jovens homens e mulheres e melhores condições de trabalho. Este esforço fica claro na proposta que sintetiza o debate: “Construir e implementar um plano nacional de promoção do trabalho decente para a juventude, com indicadores e metas, tendo como base a Agenda Nacional do Trabalho Decente para a Juventude”
A 3ª cnppj se realizou no final de 2015, já em circunstâncias políticas bastante adversas, o que acabou por marcar, fortemente, o tom de suas propostas, uma vez que ocorreu em meio ao processo levaria a um golpe de Estado no país. A forma de redação das propostas concentra-se em demandas já presentes nas duas outras conferências, tais como uma política para a garantia do primeiro emprego, a redução da jornada de trabalho de 44 para 40 horas semanais, a ampliação e a divulgação de oportunidades de emprego e renda por parte do Ministério do Trabalho (Tabela 8). Naquele momento, havia a urgência em legitimar as políticas e programas de qualificação, formação e acesso ao trabalho já existentes.
É importante destacar que o Plano Nacional do Trabalho Decente para a Juventude14 manteve-se como referência importante em torno do qual transitaram reivindicações de direitos e garantias presentes desde a 1ª cnppj. A novidade da 3ª cnppj é a ampliação do tema da diversidade. Cresce, significativamente, a expressão de demandas que buscam atender conjuntos de jovens que vivem, de maneira mais ou menos permanente, em condições específicas de trabalho, como os jovens em situação de privação de liberdade e os jovens do campo.
Conquistas, retrocessos e perspectivas das políticas de juventude no país
Nesse período analisado, a maior intensidade do processo democrático funcionou como um espaço de aprendizagem para boa parte da juventude engajada, que aprimorou sua formação ao acompanhar mais de perto a construção das políticas voltadas para a juventude. Naturalmente, essa apropriação era influenciada pelas forças políticas que tinham maior hegemonia no campo a cada momento, bem como pelo acompanhamento da agenda política governamental que, em grande medida, elegia eixos prioritários de ação, em consonância com as diretrizes e alianças políticas em curso. Mas de certa forma, as políticas públicas também estavam “criando” juventudes à medida que davam visibilidade a certas vulnerabilidades, que se transformavam em identidades políticas na cena pública e, portanto, alvo de maior atenção das ações governamentais.
Um elemento fundamental a ser considerado, refere-se às especificidades dos campos de educação e trabalho. Em relação à educação, os dados e diagnósticos são abundantes e a intervenção nos sistemas educativos está à cargo do Estado, o que facilitava tanto a identificação de problemas a serem priorizados quanto as respostas dos demais agentes que, em grande medida, guardam certa dependência, sobretudo orçamentária, em relação ao governo federal. O mesmo não ocorre com o trabalho, pois o chamado “mercado” é homogeneizado por interesses privados que, por mais que dependam de transferências e subsídios estatais, funcionam movidos por interesses próprios, fortemente ligados à expansão das taxas de lucro. Portanto, não respondem tão imediatamente às demandas do governo federal.
Em 2005, o conceito de “inclusão” era a grande meta das políticas de juventude, mas a crescente participação dos jovens nos processos deliberativos foi promovendo sua crítica e seu alargamento, colocando os conceitos de “autonomia” e “emancipação” no centro dos debates. É nessa chave de leitura que se entende a ênfase na defesa do trabalho decente e nas políticas de inclusão educacional, defendidas pela juventude engajada. No horizonte, coloca-se a necessidade de superação do modelo vigente de fragilização da educação e do trabalho.
A dinâmica de aproximação entre Estado e Sociedade Civil comporta avanços e retrocessos, mas o desafio desse período era avançar na democratização das políticas públicas nos resultados, mas também nos seus processos de implementação. Era importante responder às necessidades distributivas, porém envolvendo os sujeitos nos processos de tomada de decisões. Por isso, as demandas juvenis apresentadas nas três edições das cnppj ajudam a situar esse ciclo de políticas públicas de juventude dentro de um período rico da vida política brasileira, principalmente no que se refere à conquista de marcos regulatórios de direitos juvenis, com a promulgação do Estatuto da Juventude, Lei n.º 12.852, de 5 de agosto de 2013, que contém onze eixos de direitos, dentre eles o direito à educação e ao trabalho. Nesse sentido, o Estatuto da Juventude tem a marca geracional dos coletivos jovens que conseguiram se nomear na cena pública nesse período.
Porém, ninguém imaginava a dimensão do retrocesso que o golpe de Estado promoveu em termos de ataques a direitos conquistados. Como bem definiu Chalhoub (2016), essa rearticulação das elites com o capital internacional representa também “a força do passado”. Por isso, a ruptura política havida em 2016 difere da tradicional descontinuidade que marca o campo das ppj no país, principalmente porque interrompe uma trajetória de conquistas progressivas de direitos e busca um retorno para lógicas meritocráticas ditadas pelo mercado. No entanto, essa década de avanços formou muitos quadros jovens políticos qualificados, o que não se apaga facilmente, e os jovens brasileiros têm demonstrado, nas redes e nas ruas, que não aceitam tais retrocessos.