Introdução
Embora o Brasil seja o quinto maior país do mundo em população e área geográfica, situando-se como a oitava economia mais rica, 535 mil crianças ainda estão à margem do sistema educacional, cerca de um milhão e meio de adolescentes deixam de fazer a rematrícula anual e há uma evasão de, aproximadamente, 400 mil estudantes do ensino médio ao ano (World Development Indicators, 2011). Sabe-se que esta realidade, de grande relevância social, nasce da confluência de vários fatores, individuais, familiares, escolares e sociopolíticos, que vêm sendo analisados por pesquisadores (Hancer, 2012; Lopes & Teixeira, 2012; Toni & Hecaveí, 2014) e se constitui como uma grande demanda para tratamento psicológico (Kamtsios & Karagiannopoulou, 2013).
Pesquisas têm sinalizado que crianças com dificuldades de aprendizagem apresentam mais comportamentos desadaptativos (Osti & Brenelli, 2013a; 2013b). Quando tais dificuldades ocorrem na adolescência, período no qual há maior exigência de competência interpessoal, conduta governada por regras e limites, autonomia e individuação, as consequências podem ser ainda mais graves, implicando em menores oportunidades profissionais e maiores riscos de marginalização (Lopes & Teixeira, 2012). As dificuldades de aprendizagem e o consequente baixo desempenho escolar também podem levar o adolescente à reprovação, resultando em sofrimento, frustração e ao rótulo de fracasso escolar, o que pode afetar sua autoestima e autoconfiança (Lopes & Teixeira, 2012; Millones, Leeuwen, & Ghesquière, 2013). Conviver com esse rótulo tende a diminuir a motivação para estudar e aumentar o sentimento de exclusão, podendo desencadear quadros de isolamento, depressão, ansiedade (Rumberger, 2011) e abuso de álcool ou outras drogas (Gauffin, Vinnerljung, Fridell, Hesse, & Hjern, 2013; Gran & Nieto, 2013).
Do ponto de vista sistêmico, a família é um contexto fundamental no que se refere aos processos de aprendizagem, pois o envolvimento dos pais com a educação dos filhos tem sido apontado como elemento fundamental para o desempenho escolar (Batista, Mantovani, & Nascimento, 2015; Christovam & Cia, 2013; Toni & Hecaveí, 2014; Veiga et al., 2016). Tal envolvimento pode ser nomeado de suporte familiar, conceito que se refere ao ambiente que proporciona apoio emocional e material entre os indivíduos do sistema e facilita segurança, afeto, cuidados e aprendizagens. Ele envolve comunicação congruente e afetiva, regras flexíveis, mas com limites claros, liderança democrática, cooperação e estímulo à individualidade e pode ser experimentado pelo indivíduo por meio da percepção de sentir-se valorizado, compreendido, reconhecido e protegido, o que o prepara para situações de enfrentamento de dificuldades (Baptista, 2009).
Contudo, constata-se que há carência de informações dos pais acerca do suporte às necessidades desenvolvi mentais e educacionais dos filhos, o que evidencia a necessidade de um espaço, preferencialmente nas escolas, para que eles possam refletir sobre o processo de ensino-aprendizagem (Saraiva & Wagner, 2013). Contudo, são poucos os programas de intervenção voltados às famílias. Em geral, os programas de treinamento de suporte parental ou de desenvolvimento de habilidades parentais têm tido foco nos pais e não na família como um todo (Monteiro & Santos, 2013). Foram localizadas apenas algumas iniciativas nessa direção. Por exemplo, o Treinamento de Suporte Parental (TSP), desenvolvido por Andrada (2007) e fundamentado no modelo bioecológico de Bronfenbrenner, que teve suas atividades voltadas para tarefas pedagógicas que visavam facilitar aprendizagens e a aproximação entre pais e filhos. O TSP consistiu em seis encontros quinzenais com 40 famílias como participantes (21 delas do grupo experimental e 19 no grupo controle), sendo que o grupo experimental apresentou médias superiores de rendimento escolar e suporte parental. Mais recentemente, Garcia, Yunes e Almeida (2016) testaram no Brasil um programa de educação parental europeu intitulado “Crescer felizes em família”. O programa foi desenvolvido com 59 famílias que participaram de encontros semanais no período de cinco meses. Considerou-se que ele teve impacto significativo na função parental, auxiliando-os a buscar melhores soluções para a educação das crianças. Evidencia-se, portanto, a necessidade de maior investimento em estudos que desenvolvam e avaliem intervenções cujo foco seja a família e que relacionem suporte familiar e rendimento escolar (Monteiro & Santos, 2013).
Nesse sentido, o presente estudo teve o objetivo de desenvolver e avaliar uma intervenção no sistema familiar de alunos adolescentes com baixo desempenho escolar, matriculados em escolas da rede municipal de ensino fundamental de São Leopoldo/RS. As atividades propostas foram baseadas no conceito de suporte familiar, conforme entendido por Baptista (2009), e lançou-se mão de recursos expressivos como instrumentos mediadores, por serem facilitadores do insight e do despertar da imaginação, além de proporcionarem um ambiente lúdico e descontraído, importante para novas aprendizagens (Puviani, 2012).
Método
Delineamento e Participantes
Trata-se de um estudo de abordagem mista, com delineamento pré-experimental com pré e pós-teste com um grupo (Dancey & Reidy, 2013). A amostra foi selecionada por conveniência em duas escolas da rede municipal de São Leopoldo/RS. Um total de 166 famílias atendia aos critérios de inclusão: 1) adolescentes estarem matriculados e frequentando regularmente entre o quinto e o oitavo ano do ensino fundamental; 2) apresentarem baixo desempenho escolar, comprovado pelos conceitos do histórico escolar fornecido pela coordenação pedagógica da escola e 3) não terem diagnóstico de distúrbios de aprendizagem. Todas essas famílias foram convidadas, mas apenas 24 aderiram à proposta e houve um significativo índice de abandono (n = 17), justificado com esquecimentos, grande carga horária de trabalho, distância entre trabalho-escola e filhos pequenos. Assim, restaram sete famílias que completaram a intervenção e foram foco deste estudo.
As famílias participantes possuíam diferentes configurações: três famílias monoparentais (duas mães e um pai participantes); duas famílias com pais casados e filho alvo fruto da relação (duas mães e um pai participantes); uma com pais casados e filho alvo fruto de relação anterior (pai e mãe participantes), e outra com pais casados com a guarda provisória do filho alvo (mãe participante). Portanto, compuseram a amostra do estudo seis mães, três pais e sete adolescentes. As mães tinham idade média de 37,5 anos (SD = 8,89), trabalhavam oito ou mais horas diárias e tinham 2,7 filhos em média. Já os pais tinham idade média de 35 anos (SD = 9,54). A escolaridade da maioria dos familiares era ensino fundamental incompleto. O filho alvo do estudo tinha em média 13 anos (SD = 1,63). Quatro deles já haviam reprovado uma vez e dois, duas vezes, apresentando defasagem idade-série/ano.
Procedimentos Éticos e de Coleta de Dados
Este estudo faz parte de uma pesquisa maior, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unisinos (CAAE: 05621312.0.0000.5344). As escolas foram indicadas pela Secretaria Municipal de Educação, por terem solicitado auxílio frente às sucessivas reprovações de seus alunos e consentiram a realização da pesquisa por meio da Carta de Anuência. As famílias que cumpriam os critérios de inclusão foram chamadas para uma reunião e convidadas a participar da pesquisa. Na ocasião, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e responderam aos instrumentos da pesquisa, apresentados abaixo.
Instrumentos
1. Para coleta de dados com os pais: a) Questionário de Dados Sociodemográficos (adaptado de NUDIF, 2008) utilizado para coletar informações da família e de seus membros (idade, escolaridade, situação conjugal, configuração familiar, situação profissional e saúde); e b) Entrevista Semiestruturada com os Pais (adaptada de Moreira & Sigolo, 2009) utilizada para obter dados relacionados ao suporte familiar que oferecem ao filho, a percepção que possuem sobre o seu desempenho acadêmico, o apoio que lhe oferecem, como percebem sua vida escolar e social e as expectativas que possuem quanto ao seu futuro, além de investigar sobre a autonomia, proximidade, diálogo e interações entre os membros da família.
2. Para coleta de dados com os adolescentes: a) Histórico escolar acessado junto à coordenação pedagógica da escola com o objetivo de avaliar o desempenho acadêmico nos últimos dois trimestres letivos; e b) Entrevista Semiestruturada com os Adolescentes (adaptada de Moreira & Sigolo, 2009) utilizada para coletar dados sobre a percepção que o adolescente tem sobre seu desempenho acadêmico, sua vida escolar e social, sua autonomia, proximidade com a família, diálogo, interações familiares e expectativas sobre seu futuro.
3. Para a coleta de dados com os pais e os adolescentes: a) Inventário de Percepção de Suporte Familiar - IPSF (Baptista, 2009), instrumento nacional respondido separadamente pelo adolescente e cada um dos seus pais, que avalia a percepção que o indivíduo tem do suporte que recebe da família. É composto por 42 itens, respondido através de uma escala do tipo Likert de três pontos (quase nunca ou nunca, às vezes e quase sempre ou sempre), que avaliam três dimensões: afetivo-consistente (21 itens sobre expressões verbais e não verbais de afetividade, tais como empatia, comunicação e respeito a regras); adaptação familiar (13 itens sobre sentimentos e comportamentos negativos em relação à família, tais como raiva e isolamento); e autonomia familiar (oito itens que avaliam liberdade, privacidade e confiança); e b) Intervenção multifamiliar (Pozzobon, 2016), que foi realizada em quatro encontros quinzenais, com uma hora e meia de duração, durante os quais foram trabalhados os conteúdos: comunicação, expressões verbais e não verbais de afetividade, formulação de regras e limites claros, expressão adequada de sentimentos negativos em relação à família, especialmente a raiva, e incentivo à autonomia entre os membros (Baptista, 2009). O protocolo de intervenção está descrito na Tabela 1.
Procedimentos de Análise dos Dados
O Questionário de Dados Sociodemográficos foi analisado por meio de estatística descritiva, a fim de caracterizar as famílias, assim como os dados obtidos pelo IPSF e relativos ao desempenho escolar. Foram utilizadas as distribuições absolutas (n) e relativa (%), bem como as medidas de tendência central e dispersão (média e desvio padrão). Destaca-se que houve uma grande perda amostral (70,84%), o que resultou em uma amostra muito pequena, impossibilitando que testes estatísticos viessem a capturar as plausíveis mudanças no suporte familiar (Miot, 2011). Por este motivo, testes de comparação pré e pós-intervenção não foram realizados.
As entrevistas, por sua vez, foram examinadas por meio da análise temática (Braun & Clarke, 2006), que preconiza os seguintes passos: 1) transcrição, leitura e releitura de dados; 2) codificação do material; 3) identificação dos temas; 4) refinamento de temas e geração do mapa temático; 5) definição e nomeação de temas; 6) análise final. As categorias temáticas foram definidas a posteriori, contemplando temáticas derivadas das entrevistas, a saber: 1) do paciente identificado à circularidade do sistema; e 2) suporte familiar. A codificação de todo o material, assim como a identificação dos temas, foi realizada por dois juízes com formação em psicologia, tendo havido 88% de concordância entre eles.
Resultados e Discussão
Os resultados estão organizados em duas etapas, de modo a se complementarem. Inicialmente, são apresentados os dados derivados da análise temática das entrevistas realizadas com pais e adolescentes, que sinalizaram algumas mudanças importantes, tanto no comportamento dos filhos frente aos estudos, quanto no comportamento e consciência dos pais sobre suporte familiar e sua importância no desempenho escolar. Após, são discutidos os dados quantitativos.
Do paciente identificado à circularidade do sistema
As famílias encaminhadas ao programa de intervenção tinham uma mesma preocupação: um paciente identificado com baixo desempenho escolar. Antes da realização da intervenção predominava entre os pais a ideia de que este baixo desempenho estava associado a problemas exclusivos do referido paciente, tais como: falta de atenção ou de organização, preguiça de estudar ou fazer as tarefas e falta de motivação e comprometimento: “ele tem que ter a matéria pra poder estudar, né? Ele não copia e também parece que não tá nem aí!” (Mf1)1. Os pais também acreditavam que os filhos não valorizavam os estudos, pois, estavam sempre “distraídos, não estão sabendo a importância que tem o estudo. Estão sem vontade, não estão animados!” (Mf6).
Assim como os pais, a maioria dos filhos aceitava a responsabilidade pelo baixo desempenho escolar como fruto de seus comportamentos inadequados, pois acreditavam que não prestavam atenção nas aulas, conversavam muito, estudavam pouco e não entregavam as tarefas. Apenas um deles acreditava que o que influenciava no seu rendimento era “o jeito que é tratado em casa” (Ff2).
Contudo, os pais reconheciam dificuldades no relacionamento intrafamiliar, especialmente no modo como a comunicação acontecia: “acho que porque a vida foi dura comigo, sou muito sargentão! Digo: me mostra o caderno! Daí vejo aquele caderno feio, desleixado. Daí já faço drama, já choro. Então, às vezes, não sou tão equilibrada pra cobrar! ” (Mf1). Eles acreditavam que os filhos precisavam de mais cobrança para executarem suas tarefas e que isto mudaria o desempenho escolar: “meu filho é um guri inteligente, mas, às vezes, gosta de ser pressionado e as professoras não pressionam ele. Daí eu fico em cima dele, né?” (Pf2). O castigo e algumas restrições também apareceram como opção para pressionar a melhora das notas: “tirei a internet e o celular, pode ser que ajude!” (Mf6). No entanto, observou-se que tais cobranças e castigos acabavam não resultando em mudanças no comportamento. Uma das mães, inclusive, confessou a sua sensação de ineficácia: “todo dia eu chegava, olhava os cadernos e via que não adiantava! Eu já fiz muitas coisas que não adiantou!” (Mf1).
Assim como as cobranças, os conselhos também pareciam não ser efetivos: “a gente dá conselhos, fala com ele. Na hora ele aceita, mas quando vai para a aula...” (Mf5). Os pais reconheciam que o ideal seria ajudar nos temas, no entanto, a maioria deles não concluiu o ensino fundamental, sentindo-se impedidos de oferecer maior auxílio: “tenho limitações, estudei pouco. Fico meio deprimida porque não posso ajudar mais” (Mf7). Nesse sentido, pode-se inferir que os fatores transgeracionais também influenciavam a organização e motivação dos filhos para o estudo.
Após a intervenção, observaram-se mudanças nos pensamentos e atitudes tanto dos pais quanto dos filhos. Os pais passaram a entender que sua presença e apoio eram importantes para promover o maior comprometimento dos filhos, não só com os estudos, mas com a família e demais relações sociais: “mudou meu modo de falar, respeitar os familiares, professores e amigos, não brigar” (Ff3). Para os filhos, destacou-se a alegria de verificar que “minhas notas aumentaram! Estão bem melhores, o que para mim é uma conquista, porque antes tirar notas boas era um sacrifício” (Ff2). Além disso, os pais reconheceram que as causas do baixo desempenho escolar não deveriam ser atribuídas somente aos filhos: “eu comecei a ver as coisas diferente, que não era só culpa dele a questão do andamento escolar, que era minha também, que eu tinha que ajudar estando mais presente” (Mf1). Como resultado “ele amadureceu. Ele era revoltado. Hoje eu acho que ele é mais feliz!” (Mf1). Do mesmo modo, o filho também sentiu que “mudou meu comportamento na escola e em casa também, tô mais solto, mais responsável” (Ff1).
As famílias descreveram maior harmonia familiar, mais autonomia, melhor comunicação e divisão de tarefas, sendo que este benefício se estendeu a todos os membros do sistema, de modo circular: “aprendi a dividir as tarefas da casa com os outros. Antes eu achava que a responsabilidade da casa e dos filhos era só minha. Agora eles ajudam! Ficou bem mais leve” (Mf4). Nessa mesma direção, a conjugalidade foi beneficiada com a partilha de problemas, amenizando, inclusive, sentimentos de solidão, pois “agora a gente conversa mais pra se entender. Não tem mais medo! Se eu tenho um problema, eu falo pra ela, ela fala pra mim!” (Pf5). Esse desabafo do marido foi acolhido carinhosamente pela esposa, que com olhos visivelmente marejados e em tom emocionado lhe retribuiu o afeto: “este sempre foi o meu sonho, ter uma família unida, porque eu nunca tive um pai perto e meu sonho sempre foi ter o pai do meu filho presente: eu, meu marido e meu filho” (Mf5).
Suporte Familiar
Em relação ao suporte familiar, muitas mudanças foram percebidas ao longo da intervenção nas diferentes dimensões avaliadas: afetivo-consistente, adaptação e autonomia familiar. Na dimensão afetivo-consistente, por exemplo, muitos revelaram diferentes graus de dificuldades. Uma das mães pontuou que antes de participar da intervenção não tinha muito claro sua influência sobre a motivação da filha em relação aos estudos e a importância da comunicação e da troca de afeto no núcleo familiar: “Quando ela não estudava, eu não dava muita bola, entendeu? Aí eu disse: vamos mudar pra ela ver que estou me interessando, que quero ver o sucesso dela lá na frente, e ela se esforçou” (Mf7). Para a filha, esta mudança fez toda a diferença, pois a decisão de estudar foi tomada quando percebeu que poderia rodar, o que coincidiu com o aumento do suporte da família: “a mãe começou a me ajudar mais bem quando eu estava desistindo”(Ff7). Na fala da família, percebeu-se a consciência da mudança, pois descreveram que tinham: “muitas dificuldades em se comunicar uns com os outros, de se elogiar e trocar carinho” (Mf7), mas depois iniciou aquilo a que chamaram de “uma terapia muito interessante, onde aos poucos foram aprendendo a se entrosar e elogiar e a se amarem mais e serem mais companheiros uns dos outros” (Mf7).
Em outra família, um dos pais deu-se conta de que: “eu só dava dura nele, sempre! Não sabia por que ele não fazia as coisas. Agora eu entendi o porquê: porque eu acho que ele queria a presença de um de nós dois aqui, né?” (Pf2). Essas mudanças, além de apontarem uma melhora na comunicação e na expressão do afeto, transformaram sentimentos de solidão e afastamento, pois “agora meu pai tá me ajudando. Ele é presente na escola, pergunta se eu tô bem, se aconteceu alguma coisa comigo” (Ff2). A ajuda e a sensação de ter suporte familiar, afeto e cuidado, proporcionou aumento da intimidade: “para mim foi muito importante porque eu conheci mais meu filho e ele me conheceu mais também!” (Pf2). Como consequência, os filhos também melhoraram a comunicação na escola, pois antes tinham dificuldade de tirar as dúvidas com o professor: “Ele não era muito de se comunicar na sala de aula, tinha vergonha de perguntar. Agora ele está se expressando mais. Agora ele tem mais amigos” (Pf2).
A consciência sobre a necessidade de haver regras claras e limites para uma melhor convivência familiar também apareceu no momento em que os pais se sentiram apoiados: “ajudou a organizar, a ter regras, horários para brincar e para fazer os temas. Aprenderam a escutar e a ajudar mais em casa, ter mais responsabilidades” (Pf4). Ao mesmo tempo, as regras claras trouxeram maior organização: “agora é chegar em casa, lanchar, fazer os temas e só depois brincar” (Pf4). Ainda foi possível ampliar a consciência sobre o significado da palavra limite e, com isto, esclarecer a diferença entre colocar regras, exigir o cumprimento das tarefas e cometer abuso, um critério nem sempre fácil para os participantes, que relataram ter nascido em lares nos quais a violência predominava sobre o diálogo e o carinho: “agora não preciso brigar, não preciso bater, só conversar! Isto pra mim já é importante, porque eu apanhei muito na minha vida!” (Pf2).
De forma semelhante, o elogio foi incorporado ao dia a dia das famílias, resultando em sentimentos de valorização e alegria: “adorei, amei os elogios. Chorei porque a gente não está acostumada a elogiar pela correria! Escutar que a mãe é carinhosa, é linda, querida, cheirosa é de emocionar” (Mf6). Este sentimento de valorização nascido da expressão de afeto e reconhecimento foi estendido a toda família: “Aprendi a valorizar as pessoas e saber compreender e escutar, o que melhorou a comunicação com meus filhos (Mf7).
O tempo para convívio familiar, lazer, reuniões ou festas na escola ou para auxiliar nas tarefas acadêmicas foi apontado pela maioria dos pais, antes da intervenção, como uma grande dificuldade. Também foi relatado que os filhos se divertiam sozinhos: “jogam bola, vídeo game, andam de bicicleta” (Pf4); “eles assistem TV e jogam vídeo game” (Mf6). Os passeios comumente estavam relacionados a gastos financeiros, mas descobriram que poderiam simplesmente ir à praça ou jogar bola com os filhos no pátio de casa, criando modos simples de diversão, como ficar mais tempo juntos e “fazer cócegas” (Pf4), ou “jogar vareta, dominó e vídeo game” (Mf6) com os filhos. Preparar as refeições em conjunto foi apontado como um ganho importante, porque passou a agregar mais a família e, ao mesmo tempo, servia de diversão, pois escolhiam um dia da semana e “fazemos um lanche diferente” (Pf4).
A segunda dimensão do suporte familiar avaliada foi a adaptação familiar, a qual está relacionada à comunicação e à expressão da raiva, podendo ser geradora de comportamentos de isolamento ou de explosão. Antes da intervenção, alguns participantes se autodescreveram como explosivos: “pego um caderno e toco longe, e bato com o caderno nele” (Mf1)1. Mas após a intervenção passaram a relatar as mudanças de comportamento que ocorreram nessa dimensão: “agora eu tenho mais paciência; antes qualquer coisinha eu já brigava com o filho ou com minha esposa” (Pf5). Nesse sentido, o trabalho com a raiva refletiu melhora na comunicação e na expressão de sentimentos negativos: “ajudou a botar pra fora coisas que era difícil falar um com o outro, o que tava incomodando, o que chateava” (Mf5), e aprendemos a “a conversar mais e a ouvir também” (Pf4).
A autonomia, terceira dimensão do suporte familiar avaliada, apareceu como resultado da mudança nos padrões interacionais, pois antes da intervenção os pais tomavam toda a responsabilidade para si e os filhos adolescentes continuavam numa posição de dependência, impedidos de agirem de acordo com sua idade: “eu só ficava pedindo para eles fazerem as coisas pra mim” (Ff5), o que reforçava a insegurança ao invés da autonomia: “tudo eu pergunto pra mãe porque tenho medo de fazer alguma coisa errada” (Ff4). Depois da intervenção, maior responsabilidade e autonomia foram evidenciados: “a gente aprendeu que tem que ter mais responsabilidade pelos erros que comete” (Ff4). A autonomia também se expressou na iniciativa e proatividade de os adolescentes cuidarem de si e assumirem suas responsabilidades com as tarefas da escola: “me ajudou a fazer as coisas para comer. Antes eu só ficava pedindo para eles fazerem as coisas” (Ff5). Por fim, foi importante para todos a percepção de que autonomia não era indicativo de distanciamento, mas de um modo mais maduro de aproximação e convivência, sendo muito bom “saber que minha família se preocupa comigo e que assim nós vamos nos juntando mais, ficando mais unidos” (Ff2).
Em conjunto, os dados qualitativos corroboram a literatura da área que sinaliza que o suporte familiar e o envolvimento dos pais nas tarefas acadêmicas dos filhos, assim como a valorização da educação, implicam em maior interesse dos alunos nas atividades escolares (Pezzi, Marin, & Donelli, 2016). Além disso, parecem incentivar o desenvolvimento de outras características importantes do desenvolvimento, como a autonomia (Andrada, 2007; Batista et al., 2015).
De modo complementar, os dados sobre suporte familiar, obtidos a partir da aplicação do Inventário de Percepção do Suporte Familiar (Baptista, 2009), indicaram que houve um aumento nas médias obtidas pós-intervenção na maioria das dimensões avaliadas por pais e adolescentes. Portanto, acredita-se que houve ampliação do reconhecimento familiar sobre tal suporte, embora não seja possível afirmar se há diferença estatística entre os dois momentos devido à restrição do tamanho da amostra. Tabela 2
1 A letra e o número entre parênteses identificam a que grupo familiar pertence o participante que forneceu a resposta e a ordem em que foi acessado. Portanto, tem-se as seguintes identificações: Pf1 - pai da família 1; Mf1 - mãe da família 1; Ff1 - filho da família 1 e assim sucessivamente.
Constatou-se, ainda, que grande parte dos alunos avaliados apresentaram melhora no desempenho global e foram aprovados. A Tabela 3 mostra os conceitos obtidos pelos adolescentes nas disciplinas de matemática e português, revelando que houve melhora em 57% das avaliações realizadas, e manutenção em 43% delas. Os professores indicaram, em parecer descritivo, que os alunos que mantiveram o conceito apresentaram melhorias qualitativas em termos de comportamento e comunicação em sala-de-aula, e na interação com professores e colegas. Inclusive, nas situações em que o conceito obtido se manteve insuficiente, houve aprovação pelo Conselho de Classe devido ao reconhecido progresso obtido.
Conclusões
As análises realizadas sinalizaram importante mudança resultante da participação na intervenção, representada por maior diálogo entre pais e filhos, união familiar e prazer na convivência, além do desenvolvimento de comportamentos relacionados com horários, regras, limites, lazer e autonomia. Ao mesmo tempo, houve aumento significativo do comprometimento de pais e filhos com assuntos relacionados aos estudos, o que influenciou positivamente o desempenho escolar da maioria dos adolescentes ao longo do tempo de avaliação considerado.
A principal dificuldade encontrada neste estudo está relacionada à pouca adesão dos participantes. Mesmo com a colaboração das equipes diretivas das escolas, poucas famílias aceitaram o convite de participar da reunião inicial, ocasião em que se oficializou o convite à colaboração com a pesquisa. Vários fatores podem ser elencados para explicar tal fato como os relativos ao trabalho (carga horária, tempo de deslocamento), à família (filhos pequenos) e também as fortes chuvas que assolaram durante longo período a região onde o estudo foi desenvolvido, além das sucessivas greves dos professores municipais, que lutavam por melhores salários. Para amenizar tais dificuldades idealizou-se um número mínimo de encontros para intervenção (Cia, Barham, & Fontaine, 2010; Rolfsen & Martinez, 2008), e foram criadas estratégias de prevenção ao abandono, como o estabelecimento de um bom rapport, a manutenção de contato constante com as famílias por meio de telefonemas e menagens, e a oferta de alimento durante os encontros. Também foi criado um sistema de recuperação aos sábados para as famílias que não conseguiam comparecer à intervenção realizada durante a semana no turno da noite.
Apesar dos esforços, sabe-se que importantes fragilidades se mantiveram, especialmente no que diz respeito a inviabilidade de comparar os resultados pré e pós-intervenção em relação ao suporte familiar e desempenho escolar, além da não realização de estudos de seguimento para examinar se os resultados qualitativos obtidos se sustentariam ao longo do tempo, uma vez que as conquistas podem estar mais relacionadas às características específicas das famílias que aderiram, do que propriamente à intervenção da qual participaram. Portanto, sugere-se que novos estudos sejam realizados envolvendo amostras maiores com vistas a atender tais lacunas.
Contudo, apesar das limitações e dificuldades encontradas, constatou-se a importância de desenvolver intervenções no sistema familiar para auxiliar os pais a compreenderem a necessidade de sua participação no processo de ensino-aprendizagem dos filhos/as. A escola revelou-se um espaço acolhedor e adequado para o desenvolvimento de ações voltadas a atender demandas conhecidas, como as relativas ao baixo desempenho escolar (Saraiva & Wagner, 2013) e a realização de um trabalho sistêmico tornou possível vislumbrar a circularidade implícita ao fenômeno observado, além de desenvolver ações com vistas a co-construção de soluções.
A intervenção multifamiliar realizada mostrou-se uma opção adequada para o objetivo proposto neste estudo, uma vez que a relação em espelho entre os participantes despertou o sentimento de pertença e de apoio entre todos, além de uma rica troca de experiências. Além disso, o modelo mostrou-se útil para atender a uma demanda crescente, como é o caso das dificuldades escolares, que pode ser melhor atendida se houver maior articulação entre as ações de instituições e programas governamentais já existentes, pensando-se na clínica ampliada, que preconiza uma alteração nos modelos de atenção e de gestão das práticas de saúde e educação (Costa, 1994; Mencarelli, Aiello, & Vaisberg, 2012).
Ao final deste trabalho, persiste o reconhecimento de seu valor e o compromisso de envidar esforços para replicação da proposta de intervenção sistêmica multifamiliar em uma amostra mais ampla com vistas a protocoliza-la e avaliar sua efetividade. Espera-se, com este estudo, ter contribuído para mais um pequeno avanço, dos muitos que são necessários, para um maior investimento em estudos e/ou ações que beneficiem as comunidades menos favorecidas, buscando levar às famílias o conhecimento que precisam para apoiar seus filhos no desenvolvimento de suas potencialidades.
Como citar este artigo:
Pozzobon, M., Falcke, D., & Marin, A. H. (2018). Intervenção com famílias de alunos com baixo desempenho escolar.Ciencias Psicológicas,12(1), 87-96. doi: 10.22235/cp.v12i1.1599