Introdução
O presente estudo diz respeito ao contexto de um Estado do Nordeste brasileiro, o Rio Grande do Norte, no qual a formação em psicologia vem sendo tecida e investigada há mais de três décadas. A pesquisa mapeou as ênfases curriculares adotadas nos Cursos de Psicologia do estado e discutiu a concentração de estudos e impactos na formação e profissionalização dos formados. O Estado é singular no que se refere à sua localização, em uma das regiões brasileiras de maior carência de recursos urbanos, se comparada com a região mais desenvolvida, a Sudeste. Trata-se de um Estado de pequeno porte, mesmo assim, desde a implantação de seu primeiro curso de psicologia na década de 1970, vem sendo estudado no seu caráter formativo e nos resultados dessa formação para a atuação dos psicólogos formados. O referido Curso, embora localizado numa região das mais pobres do país, tem sido avaliado pelos órgãos de regulação do Ministério da Educação e Cultura com a pontuação máxima. O desempenho dos alunos também tem resultados de excelência nas provas do ENADE - Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes. Nas quatro avaliações teve avaliação máxima. Nesse estudo a proposição é de olhar a formação que vem sendo ofertada em todo o Estado.
O Curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), até o ano de 1997, foi a única instância formadora de psicólogos no Estado, ou seja, mais de 20 anos. Em 1997, Yamamoto, Siqueira e Oliveira realizaram uma pesquisa que caracterizava a formação acadêmica e o exercício da profissão no Estado.
A atuação profissional que se delineava na investigação de Yamamoto et al (1997) referia que os interesses dos docentes daquele curso direcionavam a atuação profissional dos que se formavam psicólogos. Identificou ainda que, em termos de atuação, mais de 65% dos psicólogos do Estado atuavam na área da saúde, ficando um reduzido percentual entre as áreas do trabalho, educação e social. Um cenário em que a formação privilegiava intervenções pautadas em um modelo de atuação que focava o indivíduo, quase nunca considerado como parte de um contexto mais amplo.
A referida pesquisa já completou duas décadas, e de lá para cá o modo de formar psicólogos passou por debates significativos. No plano nacional, a psicologia está revisando suas diretrizes gerais de formação. O documento legal mais importante nesse sentido são as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs - Resolução nº 08 de 07 de maio de 2004), instituídas desde 2004 (Seixas, 2014), com alterações no ano de 2011 e sofrendo nova revisão em 2018. Desde as Diretrizes de 2004 os cursos que formam psicólogos devem eleger ênfases que concentram estudos em alguns domínios da psicologia.
Para nortear a discussão sobre a formação em Psicologia, a pesquisa adota alguns fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural. Uma teoria que teve seu berço na União Soviética das primeiras décadas do século XX e que tem como seus representantes mais expressivos: Lev Semyonovich Vigotski (1896-1934), Alexis Nikolaevich Leontiev (1903-1979) e Alexander Romanoich Luria (1902-1977).
Nos primórdios da sistematização dos conhecimentos da Psicologia Histórico-Cultural, Vigotski (1931) dedicou-se a discutir o que vinha sendo praticado em Psicologia até então. Propôs uma Psicologia que toma o materialismo histórico-dialético como base filosófica, possibilitando à essa ciência fazer uma leitura da realidade considerando as bases materiais de sua constituição, a historicidade e a vinculação e interdependência dos fenômenos, considerando a totalidade.
A historicidade do desenvolvimento humano é um dos grandes legados da Psicologia Histórico-Cultural, e tanto Vigotski (1931), quando discute a gênese das funções psicológicas superiores, quanto Leontiev (2004), ao explicar o desenvolvimento do psiquismo, consideram essa processualidade. Discordam das Psicologias deterministas quando supõem que as pessoas já nascem humanizadas. Leontiev (2004) dirá: “o que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana” (Leontiev, 2004, p. 285). Ou seja, trata-se de uma aquisição que supõe apropriação dos bens culturais produzidos no decorrer da história.
Esse pressuposto da Psicologia histórico-cultural em relação à formação do gênero humano precisa ser considerado em um estudo que discute como está acontecendo a formação em Psicologia.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa exploratória e explicativa. Exploratória porque ainda não se fez nenhum estudo no Estado do RN englobando a totalidade dos cursos existentes. E explicativa porque, em consonância com o aporte da Psicologia Histórico-Cultural além de uma descrição dos dados, o pesquisador busca resgatar a historicidade presente na tessitura dos acontecimentos.
Em relação aos procedimentos foi do tipo documental, com dados coletados na página do Ministério da Educação e Cultura e da Secretaria de Educação Superior a fim de consultar os cursos de Psicologia autorizados a funcionar no RN. Da consulta, foram obtidos o registro de 10 cursos em funcionamento. Portanto, o universo da pesquisa foi composto pela totalidade das IES que formam psicólogos. A coleta de dados foi via internet, na página de cada IES. E já que esse estudo é um recorte de uma pesquisa maior sobre a formação em psicologia escolar, cumpre assinalar que foi submetido e aprovada pelo comitê de ética com o certificado de apresentação para apreciação ética nº 79092317.6.0000.5537.
Em relação a abordagem dos dados caracterizou-se como um estudo qualitativo. Como discutem Kripka, Scheller e Bonotto (2015) nas pesquisas qualitativas busca-se construir uma compreensão dos dados na qual o processo é mais importante do que o produto. Também são apresentados dados quantitativos, como forma de acesso a realidade da temática investigada.
Resultados e Discussão
Os dados revelam que, somente na última década, houve uma ampliação da formação numa ordem de 150%, pois até 2007 somente quatro instituições formavam psicólogos no Estado. Hoje já são 10, e apenas duas estão na esfera pública, em consonância com os dados nacionais.
A UFRN iniciou a formação em 1976 e no ano de 2015, atendendo a recomendação de interiorização do ensino público, criou o Curso de Psicologia na Faculdade de Ciências da Saúde na Região do Trairi. O segundo curso, no Estado, foi criado pela Universidade Potiguar em 1997, e hoje integra a rede Laureate International Universities. Seguem-se os dois outros cursos que também já formaram turma: Centro Universitário do Rio Grande do Norte (2004) e Centro Universitário de Formação de Executivos (2006). Os outros seis, incluindo o da UFRN - FACISA (2015) iniciaram suas atividades na última década: Centro Universitário Maurício de Nassau - UNINASSAU (2012), Faculdade Evolução Alto Oeste Potiguar - FACEP (2013), Universidade Potiguar - UNP - Mossoró (2014), Faculdade Estácio do Rio Grande do Norte - FATERN (2014) e Faculdade Diocesana de Mossoró (2016).
No Brasil, os governos federais dos presidentes Luís Inácio Lula da Silva (2003-2013) e Dilma Rousseff (2010-2016) promoveram incentivos que alavancaram o acesso ao ensino superior, pelo setor privado e púbico (Chaves, 2010). Como visto nos dados de crescimento dos cursos de psicologia do RN, o aumento principalmente na rede privada, é uma resposta às políticas dos referidos governos. Além disso, explicita uma contradição: se por um lado aparece o mérito do alargamento do acesso, por outro lado, evidencia o ensino superior como mercadoria rentável para as instituições que foram beneficiadas por esses programas.
Ainda em consonância com o exposto, ao investigar sobre a expansão e privatização do ensino superior, Chaves (2010) chamou a atenção sobre a formação de oligopólios no país. Trata-se de empresas nacionais e internacionais que compraram e fundiram Instituições de Ensino Superior. Muitas delas foram, e continuam sendo beneficiadas com as verbas do governo federal através do PROUNI (Programa Universidade Para Todos) e do FIES (Fundo de Financiamento Estudantil), programas que subsidiam financeiramente a inserção de muitos estudantes em IES privadas.
No nível nacional, estudos de Lisboa e Soares (2009) apontam que a grande maioria dos cursos em psicologia no Brasil são de instituições privadas e do interior dos Estados, o que reflete uma interiorização marcante nos últimos anos. O estudo mais recente de Seixas (2014) corrobora com os dados anteriormente colocados, o de que em sua maioria os psicólogos do Brasil são formados em instituições privadas (83,3%). Em nível internacional, se tomarmos o exemplo da Argentina, dos cursos de psicologia investigados no ano de 2014, pode-se verificar a existência de um total de 70 cursos. Desses, mais de 80% estão na rede privada e somente 17% estão no sistema público. Chama a atenção também que 53 desses cursos (5 públicos e 48 de privadas) são posteriores a 1990. (Klappenbach, 2015). Naquele país os psicólogos formados duplicaram seu número em pouco mais de quinze anos. (García, 2009).
As ênfases de formação dos cursos no RN, revelam que dos 10 cursos, 7 (sete) deles priorizam a clínica como ênfase formativa, sendo a saúde a segunda mais sinalizada. Os processos sócio-institucionais aparecem em três e os processos educativos aparecem em dois cursos. Tal quantitativo confirma o que historicamente já fora identificado, ou seja: a formação para atuar na área clínica continua sendo priorizada nos cursos que formam psicólogos. Desnuda-se ainda atual o questionamento levantado no Brasil na década de 1980: a quem nós psicólogos servimos de fato?
Entre os cursos que entraram em funcionamento na última década, todos trouxeram a clínica como ênfase de formação. A concentração de estudos nesse campo aponta uma tendência de atuação, ainda, distante da vida de uma maioria da população que se mantém em condições desiguais de existência, e não tem como acessar os serviços da psicologia, nem mesmo no âmbito público.
Esse estudo defende que a formação precisa promover estudos referentes aos fundamentos das concepções filosóficas, históricas e sociológicas que explicam a realidade. Sem alguns desses conteúdos, que permitem fazer uma leitura ampla, não se dá conta de desvelar as causas do sofrimento psíquico. Portanto, independente das ênfases adotadas, a formação em Psicologia deve garantir a apropriação de conhecimentos que ajudem a questionar as circunstâncias que fazem emergir os problemas humanos.
Apropriado o pensamento de Shuare (2016) que, ao prefaciar uma reedição de seu livro: “A Psicologia soviética: meu olhar”, sinaliza que o tema da formação, neste século, é de grande importância devido às transformações ocorridas na vida e atividade humana no final do século passado. Embora fizesse referência à Psicologia soviética, algumas dessas transformações afetam todos os contextos nos quais o capitalismo tem contribuído para acentuar o fosso entre ricos e pobres. A formação em psicologia vem sendo organizada e processada em uma base material e em condições concretas que a determinam. Assim, as demandas de mercado a consolidam como formação que, ainda, não consegue produzir enfrentamentos por meio de intervenções que se oponham e transgridam a ordem que produz e sustenta os problemas concretos da maioria da população.
A priorização das ênfases, também, aponta para uma configuração em termos de exercício profissional. Conforme apresentado na sistematização dos dados, algumas IES também priorizam as práticas sócio institucionais e educacionais que, em termos de intervenções no Brasil esboçam um movimento de maiores possibilidades de favorecer os processos de apropriação da cultura e humanização, aproximação com o sofrimento de uma parcela da população que vive em situação de alta vulnerabilidade social e que articula movimentos comunitários e sociais de superação dessa realidade que acentua as desigualdades.
Considerações Finais
Finalmente, a história da psicologia no RN revela que as IES, embora tenham esboçado um movimento considerável em termos de expansão, permanecem com uma formação em processo de comprometimento com a realidade social da população. As ênfases que estão postas como possibilidade de concentração de estudos podem permitir uma formação ampla, que ultrapasse as áreas tradicionais de atuação, mas as competências e habilidades ensinadas em cada ênfase, contraditoriamente, podem solidificar modelos de atuação centrados na perspectiva individual e desvinculada de historicidade.
A obrigatoriedade de escolha de uma ênfase, na qual concentrará estudos, pode se tornar uma armadilha, pois mantendo essa carga horária, que obriga os alunos a uma dedicação quase exclusiva, os cursos de psicologia poderão encaminhá-los ao desenvolvimento das competências e habilidades previstas à ênfase escolhida, e deixar à margem desse ensino a apropriação dos conteúdos necessários a uma compreensão mais ampla dos processos de humanização. A formação, portanto, necessita priorizar conteúdos que possibilitem os acadêmicos a compreender o homem concreto, síntese das relações sociais. Um homem datado, histórico, que reflete, ao mesmo tempo em que produz, as condições de desumanização presente na sociedade de classes. A dimensão política, portanto, não pode ser esquecida.
Essas provocações chegam em um momento bastante oportuno, visto que as DCNs, orientadoras da formação, estão sendo revisadas e, após a aprovação, os cursos terão que também promover esse movimento de revisão. Novas proposições poderão surgir e, quem sabe, a ampliação das possibilidades de ensino. No entanto, a despeito do que possa ser orientado pelas novas DCNs, é pertinente que os cursos tenham clareza das opções políticas que são feitas ao se eleger uma ou outra ênfase de formação.
Esta pesquisa não tem a pretensão de esgotar as discussões neste sentido. E embora seja um estudo local, oferece uma visão de como está acontecendo a formação do psicólogo no Brasil. Ainda tem-se muito a avançar, contudo, trouxe contribuições pertinentes em relação a necessidade de maiores articulações entre as opções definidas em nossos projetos pedagógicos de curso e a realidade concreta, objetiva da população.