Introdução
Os Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias constituem um padrão de uso desadaptativo, incluindo prejuízos em diferentes áreas da vida do sujeito (American Psychiatric Association (APA), 2014). Pessoas que são acometidas por tais transtornos apresentam maiores prejuízos cognitivos e comportamentais quando comparados a não usuários, sendo que tais dificuldades ficam mais evidentes em habilidades de autorregulação e autocontrole (Czermainski, 2016).
Déficits relacionados ao controle inibitório de usuários de cocaína e crack foram identificados em uma revisão sistemática da literatura, que aponta níveis elevados de impulsividade, contribuindo para que essa população experimente insuficiência na autorregulação e autocontrole (Czermainski, Willhelm, Santos, Pachado & Almeida, 2017). Especificamente em usuários de crack, as disfunções nas habilidades anteriormente citadas que agem como funções executivas, dificultam o processamento cognitivo no planejamento e na execução de metas. Tal alteração ocorre na mesma região pré-frontal onde ocorrem conexões neuronais que moderam o autocontrole, dificultando ainda mais esta habilidade em dependentes químicos (Hess, Silva & Almeida, 2017).
Em mulheres usuárias de crack, o autocontrole da agressividade em situações aversivas é especialmente relevante, tendo em vista que prejuízos nessa habilidade dificultam as interações sociais e podem levar ao isolamento social (Caballo, 2003). O autocontrole da agressividade a situações aversivas é definido por Del Prette e Del Prette (2001) como um tipo de habilidade social na qual a expressão de desagrado ou raiva é desempenhada de maneira socialmente competente, evitando problemas futuros nas interações sociais.
Diferentes fatores podem dificultar o autocontrole da agressividade: o uso de substâncias estimulantes como o crack, os contextos de interação, as situações relacionadas ao uso de drogas e as comorbidades psiquiátricas, conforme será exposto a seguir. A literatura aponta que a busca por recompensas imediatas e a impulsividade, característicos do uso do crack, podem dificultar este autocontrole (Bungay, Johnson, Varcoe, & Boyd, 2010). O aumento dos comportamentos impulsivos e a diminuição das funções executivas (controle dos comportamentos impulsivos) foram identificados em mulheres usuárias de crack, quando comparadas com o grupo controle, conforme um estudo brasileiro com 98 mulheres (Hess, Menezes & Almeida, 2017). Por sua vez, dificuldades no autocontrole da agressividade também podem contribuir com o uso de drogas, sendo a droga utilizada como uma maneira desadaptativa de lidar com as situações interpessoais (Caballo, 2003). Conforme um estudo de casos múltiplos com três mulheres usuárias de crack, identificou-se que as dificuldades no autocontrole da agressividade ocorreram desde a infância, não sendo um fator exclusivo do uso de drogas. O contexto familiar cuja manifestação da raiva ocorre de maneira desadaptativa, pode contribuir para tais dificuldades (Limberger & Andretta, 2017).
A literatura também aponta que situações relacionadas ao uso de drogas, como o tráfico, relacionam-se com dificuldades no autocontrole da agressividade. Baixos níveis de autocontrole associaram-se com o uso de drogas e infrações relacionadas ao uso, conforme um estudo realizado em Israel com 60 mulheres apenadas, divididas em grupos conforme o tipo de crime cometido (crimes violentos, por fraude e relacionado a drogas) (Shechory, Perry, & Addad, 2011). No referido estudo, identificou-se que quanto maiores foram os níveis de autocontrole, menores foram as taxas de agressividade. Além disso, as mulheres que apresentavam menores níveis de autocontrole pertenciam ao grupo de participantes que cometeram ato infracional por crime relacionado a droga, além de maior uso relatado de drogas. Em outro estudo, usuários que possuíam maiores dificuldades nas habilidades sociais também foram os que mais se envolveram em crimes, como assaltos e furtos (Horta et al., 2016). Nesse sentido, compreende-se que a violência cotidiana nos contextos de uso (Bungay, Johnson, Varcoe, & Boyd, 2010) dificulta o desempenho de um repertório socialmente habilidoso traduzido por déficits importantes do autocontrole da agressividade.
Por sua vez, os contextos de interação que não se relacionam com o uso de drogas podem promover um repertório socialmente habilidoso, incluindo o autocontrole da agressividade, tendo em vista que o desenvolvimento das habilidades sociais ocorre a partir das experiências de aprendizagem ao longo da vida, em contextos familiares, escolares, de trabalho, etc. (Argyle, Bryant, & Trower, 1974; Caballo, 2003). Nessa perspectiva, usuários de crack apresentaram habilidades sociais elevadas quando possuíam significativo apoio social, conforme um estudo brasileiro com 519 usuários de crack (Horta et al., 2016).
Comorbidades psiquiátricas, como transtornos de personalidade também podem dificultar o autocontrole da agressividade, havendo prejuízos no funcionamento interpessoal (APA, 2014). Por sua vez, a depressão e transtornos de ansiedade também podem dificultar o desempenho de habilidades sociais como um todo, por suas características (tristeza, excesso de preocupações, etc) serem concorrentes com um repertório socialmente habilidoso (Caballo, 2003), e em alguns casos, os sintomas depressivos manifestarem-se a partir de comportamentos agressivos (Hebenstreit, Deprince & Chu, 2014; You & Lim, 2015; Yavuzer, Albayrak & Kılıçarslan, 2016).
Considerando a impulsividade relacionada ao uso de crack (Hess, Menezes, & Almeida, 2017), a presença de prejuízos no autocontrole da agressividade em usuários de crack (Almeida, Flores & Scheffer, 2013; Czermainski, Willhelm, Santos, Pachado & Almeida, 2017) e a carência de estudos específicos com mulheres usuárias de crack (Limberger, Nascimento, Schneider, & Andretta, 2015), há necessidade de evidências que expliquem quais fatores contribuem para as dificuldades no autocontrole da agressividade de mulheres usuárias de crack, a fim de promover o avanço na área e maior atenção dos profissionais da saúde e das políticas públicas (Limberger, Schneider, & Andretta, 2015). Sendo assim, objetiva-se identificar o valor preditivo de comorbidades psiquiátricas, contextos de interação e situações relacionadas ao uso de drogas no autocontrole da agressividade de usuárias de crack.
Materiais e Método
Delineamento
Trata-se de um estudo quantitativo, transversal e de alcance explicativo (Sampieri, Collado, & Lucio, 2013).
Participantes
Participaram deste estudo 62 mulheres em internação hospitalar, pelo sistema de saúde pública do Brasil, denominado Sistema Único de Saúde (SUS), para desintoxicação devido ao uso do crack. O cálculo amostral foi realizado a partir do software estatístico STATS 2.0, com nível desejado de confiança de 80%.
Foram adotados os seguintes critérios de inclusão: mulheres com idade entre 18 e 59 anos, com os critérios diagnósticos do DSM-5 (APA, 2014) para Transtorno Relacionado ao Uso de Crack, abstinentes há pelo menos sete dias, entre o sétimo e o décimo quinto dia de internação hospitalar. A escolha por tal período de tempo deu-se a fim de delimitar o tempo de tratamento (Kopetz et al., 2014). O uso simultâneo de outras drogas poderia ocorrer, desde que o crack fosse a droga que motivou a procura pela internação.
Por sua vez, os critérios de exclusão foram: apresentar síndrome psicótica (verificada através do Mini International Neuropsychiatric Interview) e possuir prejuízos cognitivos (verificado através dos subtestes vocabulário e cubos do Screening Cognitivo do WAIS-III), instrumentos que serão descritos a seguir. Ressalta-se que a abstinência foi avaliada a partir do autorrelato, além de considerar o regime fechado da internação hospitalar.
As etapas da seleção das participantes podem ser observadas no Fluxograma 1.
As 62 participantes, em sua maioria solteiras (62.9%; n=39), possuíam ensino fundamental incompleto (50%; n=31) e média de idade de 33,45 anos (DP=8.14). Antes da internação, 51.6% (n=32) das mulheres trabalhavam. Quanto a região, a maioria era proveniente de hospitais da região metropolitana (83.87%; n=52) e 16.13% (n=10) de hospitais da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul - Brasil.
Instrumentos
Questionário de Dados Sociodemográficos e sobre o Uso de Drogas
Desenvolvido pelo grupo de pesquisa “Intervenções Cognitivo Comportamentais: Estudo e Pesquisa”, o referido questionário objetivou avaliar dados sociodemográficos, familiares e características relacionadas ao uso de drogas (tipo de droga, se possui familiares e/ou amigos que tenham ou tiveram problemas associados ao uso de drogas, infrações relacionadas ao uso de drogas, entre outros), além dos critérios do DSM-5 (APA, 2014) para diagnóstico de Transtorno por Uso de Substâncias.
Mini International Neuropsychiatric Interview (MINI)
Desenvolvida por Sheehan et al. (1998) e validada para o Brasil por Amorim (2000), a entrevista possui índices Kappa satisfatórios, demonstrando confiabilidade nas categorias diagnósticas (0.86 a 1) e para Transtornos Psicóticos (0.62 a 0.95) (Amorim, 2000). Trata-se de uma entrevista clínica padronizada breve, compatível com os critérios diagnósticos do DSM-IV-TR (APA, 2002). A entrevista foi utilizada para avaliar a presença de síndrome psicótica e comorbidades, tais como: Episódio Depressivo Maior, Distimia, Episódio (Hipo)Maníaco, Transtorno de Pânico, Agorafobia, Fobia Social, Transtorno Obsessivo-Compulsivo, Transtorno de Estresse Pós-Traumático, Síndrome Psicótica, Anorexia Nervosa, Bulimia Nervosa e Transtorno de Ansiedade Generalizada, além do risco de suicídio.
Structured Clinical Interview for DSM Disorders (SCID-II)
Trata-se de uma entrevista semi-estruturada, utilizada em estudos observacionais e clínicos, que objetiva identificar diagnósticos de acordo com o DSM-IV-TR (APA, 2002). Como se trata de uma entrevista extensa, utilizou-se parte da entrevista, ou seja, as questões correspondentes aos seguintes Transtornos de Personalidade: histriônico, narcisista, borderline e antissocial.
Screening Cognitivo do WAIS-III
Desenvolvido por Wechsler (1997) e adaptado e padronizado para o Brasil por Nascimento (2004), trata-se de um teste de uso exclusivo dos psicólogos. O subteste vocabulário (α=0.92) avalia a compreensão verbal e o subteste cubos (α=0.83) avalia a organização perceptual. A correção dos subtestes foi realizada por dois juízes independentes. Não houve a necessidade de um terceiro juiz ser acionado, pois houve consenso entre os juízes. A partir da subtração do escore ponderado de vocabulário, para o escore ponderado de cubos, a diferença de três pontos ou mais indicou prejuízo cognitivo, conforme aponta Cunha (1993), Feldens, Silva e Oliveira (2011). O prejuízo cognitivo configurou-se como critério de exclusão.
Inventário de Habilidades Sociais (IHS-Del-Prette)
Desenvolvido por Del Prette e Del Prette (2001), trata-se de um teste de uso exclusivo dos psicólogos que caracteriza as habilidades sociais em diferentes situações: trabalho, escola, família e cotidiano. O inventário é composto por 38 itens, em escala do tipo likert, com cinco pontos, que variam de “nunca” a “raramente” e “sempre” ou “quase sempre”. Possui alfa de Cronbach de 0,75 e estabildade teste- reteste (r=0.90; p=0.001). A análise fatorial revelou uma estrutura de cinco fatores que reúnem habilidades sociais de: 1) enfrentamento/autoafirmação com risco; 2) autoafirmação de afeto positivo; 3) conversação e desenvoltura social; 4) autoexposição a desconhecidos e situações novas e 5) autocontrole da agressividade. Os resultados foram apurados de forma simplificada, com base na média simples dos valores obtidos, interpretando-os a partir da posição, em termos de percentis, em relação ao seu subgrupo de referência do mesmo sexo. Desta forma, valores situados no percentil 50 indicaram posição mediana, valores acima de 75% indicaram altos fatores em habilidades sociais e valores abaixo de 25% indicam déficits no repertório de habilidades sociais (Del Prette & Del Prette, 2001).
Procedimentos
Este estudo faz parte de uma pesquisa maior, intitulada: “Habilidades sociais, perfil clínico e cognitivo de mulheres usuárias de crack em internação em hospitais gerais”, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNISINOS, sob parecer 012/2015. Os hospitais com leitos de internação para tratamento devido ao uso de drogas foram escolhidos por conveniência, localizados na região metropolitana e noroeste do estado do Rio Grande do Sul (Brasil).
Mediante Carta de Anuência de cada hospital, as participantes foram convidadas a participar da pesquisa, sendo explicados os objetivos da pesquisa e a voluntariedade no estudo, assegurando o sigilo dos dados e o anonimato. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE foi lido com a participante e, mediante a concordância em participar do estudo, foi assinado em duas vias (uma via com a participante e outra via com a pesquisadora).
A coleta de dados transcorreu em um período de seis meses e foi realizada por seis integrantes do grupo de pesquisa, com treinamento específico para cada instrumento, conforme respectivas orientações de cada manual, além de supervisão semanal com a pesquisadora. Os instrumentos foram aplicados de maneira individual nos hospitais, em salas que permitissem a privacidade. Realizou-se um encontro com cada participante, de aproximadamente duas horas, para aplicação dos instrumentos. Nas situações em que os instrumentos não foram concluídos em um encontro, um segundo encontro foi realizado.
Análise de Dados
Os dados foram analisados no programa estatístico Statistical Package for Social Sciences - SPSS, versão 20.0. A análise descritiva contemplou frequências, porcentagem, média, mediana e desvio padrão da amostra. O estudo da distribuição de dados foi realizada a partir da análise de Kolmogorov-Smirnov. As médias de habilidades sociais entre os diferentes grupos (mulheres que trabalhavam e não trabalhavam antes da internação; mulheres com presença e ausência de comorbidades psiquiátricas, como o Episódio Depressivo Maior; mulheres com e sem envolvimento com o tráfico de drogas), foi realizada a partir do Teste t-Student, para variáveis com distribuição aproximadamente normal e Teste de Mann Whitney, para variáveis assimétricas. As variáveis que apresentaram diferenças estatisticamente significativas nos respectivos testes foram incluídas na análise de regressão múltipla (método Stepwise), tendo a finalidade de identificar os valores preditivos das variáveis no autocontrole da agressividade. Para critérios de decisão estatística, adotou-se o nível de significância de 5% (p ≤ 0.05).
Resultados
Inicialmente, realizou-se a avaliação do repertório geral das habilidades sociais de mulheres usuárias de crack em tratamento. Especificamente no que diz respeito ao autocontrole da agressividade, foco desse estudo, identificou-se que 38.7% (n=24) das participantes apresentou déficit, 19.4% (n=12) teve repertório abaixo da média, 11.3% (n=7) apresentou repertório médio e 30.6% (n=19) teve repertório bastante elaborado.
Posteriormente, ao comparar as características sociodemográficas, clínicas e relacionadas ao uso de drogas na pontuação do autocontrole da agressividade, identificou-se menores escores no autocontrole da agressividade em mulheres com as seguintes características: que não trabalhavam antes da internação, possuíam envolvimento com o tráfico de drogas para sustentar o uso, possuíam Episódio Depressivo Maior e possuíam Transtorno de Personalidade, conforme pode ser observado na Tabela 1.
As variáveis que apresentaram diferenças estatisticamente significativas na Tabela 1 foram submetidas em uma análise de regressão múltipla (método Stepwise), que identificou que o envolvimento com o tráfico de drogas e o Episódio Depressivo Maior mostraram-se preditores dos baixos escores no autocontrole da agressividade, conforme pode ser observado na Tabela 2. Tal procedimento forneceu um coeficiente de variância explicada (R2) de 0.193, o que determina que as variáveis independentes selecionadas explicaram 19.3% dos baixos escores no autocontrole da agressividade. As variáveis “possuir transtorno de personalidade” e “trabalhar antes da internação” não foram estatisticamente significativas, ou seja, não forneceram um poder explicativo para o autocontrole da agressividade nas participantes deste estudo.
Discussão
A partir do objetivo proposto, identificaram-se características das participantes que apresentaram menores escores no autocontrole da agressividade (não trabalhar antes da internação, envolver-se com o tráfico de drogas para sustentar o uso, apresentar Episódio Depressivo Maior e Transtorno de Personalidade). A partir de tais características, apenas duas apresentaram um valor explicativo dos baixos escores no autocontrole da agressividade: o envolvimento com o tráfico de drogas e o Episódio Depressivo Maior, conforme será discutido a seguir.
O envolvimento com o tráfico de drogas e com a rede criminal são violações que se relacionam com características comportamentais impulsivas e agressivas (Almeida et. al, 2014). O Transtorno da Personalidade Antissocial, por exemplo, é uma psicopatologia que apresenta controle deficitário da impulsividade e do autocontrole da agressividade (APA, 2014) e está intimamente relacionada ao déficit no autocontrole da agressividade e consequente transgressão de normas sociais. Conforme um estudo realizado na Suécia, com 1052 abusadores de substâncias, o Transtorno da Personalidade Antissocial e uso de drogas estimulantes foram preditores do comportamento criminoso, incluindo o tráfico de drogas (Fridell, Hesse, Jæger, & Kühlhorn, 2008).
No contexto brasileiro, um estudo realizado em uma unidade da Fundação de Assistência Socioeducativa da região metropolitana de Porto Alegre (RS), com 83 jovens do sexo masculino, identificou resultados semelhantes (Davoglio & Gauer, 2011). O consumo de substâncias psicoativas se correlacionou positivamente com as infrações pelas quais os jovens estavam cumprindo medidas socioeducativas, entre elas o tráfico de drogas, que atuou como catalisador da violência e correspondeu a 6% dos crimes cometidos por esses adolescentes. Ainda nesse contexto, Guimarães, Santos, Freitas e Araujo (2008) encontraram a presença de antecedentes criminais (40% da amostra pesquisada) em usuários de crack internados na Unidade de Desintoxicação do Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre (RS).
Diante dos dados apresentados, compreende-se que além de características comportamentais típicas de infratores (como déficit da impulsividade e do autocontrole da agressividade), o próprio uso de drogas colabora para o envolvimento criminal. Além disso, ao inserir-se no tráfico de drogas, as mulheres usuárias se expõem a riscos e violências que dificultam o autocontrole da agressividade, carecendo de contextos promotores de habilidades sociais (Limberger & Andretta, 2017).
Além do envolvimento com o tráfico de drogas, o episódio depressivo maior também apresentou impacto nos baixos escores do autocontrole da agressividade, atuando como fator preditivo. Tal dado corrobora a perspectiva de Caballo (2003), que refere que a depressão dificulta a prática das habilidades sociais. Segrin (2000) também sinaliza que pessoas deprimidas podem avaliar de maneira distorcida as suas habilidades sociais em instrumentos de autorrelato, julgando-se menos socialmente competentes do que realmente são.
Ainda nesse contexto, a relação entre uso de drogas, habilidades sociais e depressão também foi investigada em um estudo brasileiro com 179 estudantes de enfermagem, em sua maioria mulheres (88.6%). Os dados evidenciaram que estudantes que utilizavam drogas lícitas ou ilícitas, possuíam maior probabilidade de apresentar sintomas depressivos, que aumentavam a probabilidade do uso de drogas (Botti, Monteiro, Benjamim, & Queiroz, 2016). Por sua vez, quando as habilidades sociais são desenvolvidas de maneira satisfatória, e isso inclui o aperfeiçoamento do autocontrole da agressividade, os sintomas depressivos tendem a diminuir, ao modificar o comportamento do sujeito e contribuir no relacionamento interpessoal, conforme aponta uma revisão sistemática da literatura (Campos, Del Prette & Del Prette, 2014).
Considerando que os sintomas depressivos podem influenciar negativamente os relacionamentos interpessoais (Feitosa, 2014), intervenções como o Treinamento em Habilidades Sociais podem contribuir no tratamento com pacientes deprimidos. As habilidades praticadas no treinamento podem ser incorporadas no repertório social dos participantes, mantendo relações sociais mais satisfatórias e aumentando a sensação de domínio e prazer, contribuindo na redução dos sintomas depressivos (Andretta, Limberger, & Schneider, 2016).
As demais características investigadas (não trabalhar antes da internação e possuir transtorno de personalidade) apresentaram menores escores no autocontrole da agressividade, entretanto não possuem valor explicativo. Compreende-se que o contexto do trabalho tem um papel no desenvolvimento do autocontrole da agressividade e que por sua vez outras características podem estar envolvidas no grupo de mulheres que não trabalhava antes da internação, como o grau de severidade do tipo de Transtorno por Uso de Crack (leve, moderado ou grave).
Considerando que nesse estudo foram avaliados apenas quatro transtornos de personalidade para uma população de 62 mulheres, a ampliação da amostra e avaliação dos demais transtornos potencializaria outras possibilidades de análises. Os dados desse estudo também necessitam ser analisados com cautela, pois se trata de uma população específica da região noroeste e metropolitana do estado do Rio Grande do Sul/ Brasil, não possibilitando generalizações para o país. Também se acredita que é relevante investigar os fatores preditivos dos demais fatores de habilidades sociais, como o enfrentamento com risco; autoafirmação na expressão de afeto positivo; conversação e desenvoltura social e autoexposição a desconhecidos e situações novas. A investigação na área das habilidades sociais necessita de avanços no campo de mulheres usuárias de crack, a fim de que tal fenômeno seja compreendido e que sejam desenvolvidas intervenções empiricamente baseadas em evidências.
Conclusões
O autocontrole da agressividade se constitui como uma habilidade fundamental tanto no tratamento como na reabilitação psicossocial de mulheres usuárias de crack, pois o manejo da agressividade de maneira assertiva contribui para relacionamentos interpessoais satisfatórios e diminuição de problemas futuros. A partir deste estudo, identificou-se que o envolvimento com o tráfico de drogas e a depressão foram preditores dos baixos escores no autocontrole da agressividade. Desta forma, compreende-se que os profissionais da saúde e pesquisadores podem estar mais atentos para tais características no tratamento de mulheres usuárias de crack. A partir disso, a união de fatores (mudança no estilo de vida, sem exposição a riscos como o tráfico, tratamento adequado para a depressão integrado ao Treinamento em Habilidades Sociais e especificamente ao aperfeiçoamento do autocontrole da agressividade) poderá contribuir para o desenvolvimento de um repertório de habilidades sociais com resultados eficazes, diminuindo fatores de risco ao uso de drogas.
Como contribuição específica deste estudo, observa-se um aprofundamento sobre uma habilidade social específica, o autocontrole da agressividade. Percebe-se que os estudos das habilidades sociais, por se tratarem de um conjunto de comportamentos, devem considerar as especificidades das classes de habilidades sociais, identificando suas repercussões na vida dos indivíduos cujo repertório possui prejuízos.
Compreende-se que o fenômeno do uso de crack em mulheres é complexo, havendo a necessidade de novos estudos que compreendam outros aspectos, como fatores que contribuem para a motivação e permanência no tratamento, formas de acesso ao tratamento mais efetivas, entre outros. Além disso, sugere-se que futuros estudos avaliem os efeitos do Treinamento em Habilidades Sociais com mulheres usuárias de crack.