Acolhimento em Saúde Mental para as famílias que sofrem com problemas decorrentes do uso de drogas
A questão das drogas constitui um tabu em nossa sociedade. A abordagem desse tema toca em âmbitos diversos e complexos, tal como as formas de acolhimento e tratamento possíveis, além dos seus rebatimentos na dinâmica das famílias. Dentre as inúmeras possibilidades de problematização da questão, esse trabalho está focado nos modos de cuidado dispendidos às famílias que sofrem de problemas relacionados ao uso de drogas. Pretende-se discutir, em outras palavras, como tem operado o acolhimento em saúde mental direcionado a esse público.
O isolamento social dos loucos no hospício perdurou por décadas, se institucionalizando como via privilegiada de tratamento da loucura. Entretanto, a história tem mostrado os efeitos nocivos dessa prática para as pessoas em sofrimento mental, a qual ainda perdura na atualidade. Como resposta e enfrentamento aos maus-tratos, tortura, medicalização excessiva e exclusão, frutos da hospitalização e institucionalização, usuários, familiares e profissionais de saúde se organizaram, dando origem ao movimento em várias partes do mundo conhecido como Reforma Psiquiátrica, materializando ações de fechamento de hospitais psiquiátricos e a criação de serviços substitutivos para o cuidado em saúde mental.
No Brasil, esse movimento tomou força a partir da segunda metade da década de 1970, por meio de discussões coletivas de trabalhadores de saúde mental brasileiros visando à formulação de uma atenção em saúde mental de base comunitária e psicossocial. A partir disso, mas com muitos desafios nesse percurso, a Política Nacional de Saúde Mental foi estruturada com a proposta de implantação de serviços substitutivos ao modelo manicomial, os quais compõem a atual Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A RAPS propõe um novo modelo de atenção em saúde mental, priorizando o acesso e a promoção de direitos, assim como o convívio social, que além de mais acessível, se articula com vários níveis de complexidade em saúde. O paradigma psicossocial busca, ao contrário daquilo que fundamenta o modelo manicomial, o respeito e a defesa dos direitos das pessoas, preservando sua liberdade e autonomia, e dá destaque à importância do envolvimento familiar e comunitário nos processos de cuidado e reinserção social. Segundo Dimenstein, Sales, Galvão e Severo (2010) esse modelo “visa estabelecer cuidados em saúde mental dentro de um modelo de atendimento integral que preza a permanencia dos individuos na sua comunidade, favorecendo a formação de vínculos estáveis e garantindo seus direitos de cidadãos” (p. 1210).
O cuidado às famílias de pessoas que fazem uso de drogas, portanto, é uma preocupação recente nas políticas públicas. Sabe-se que elas enfrentam inúmeros problemas que estão além do manejo dos efeitos da substância no organismo, mas principalmente, com a falta de suporte adequado às suas reais necessidades, de serviços que não funcionam de maneira integrada com outros setores das políticas públicas, vivendo, assim, em uma situação de vulnerabilização e desamparo crônico. A família termina ficando “do lado de fora” da assistência à saúde mental. Como sinalizam Rauter e Peixoto (2009), “o serviço de saúde mental desconhece sua demanda real, a qual é constituída pelos que nela não conseguem entrar” (p. 273).
Esse desconhecimento tende a enfraquecer a proposta antimanicomial que orienta a prática dos profissionais que trabalham nos serviços substitutivos e, consequentemente, fortalecer a crença de que medidas como internação, por exemplo, é a melhor alternativa para lidar com os problemas relacionados ao uso de drogas, especialmente no cenário atual de retomada de práticas conservadoras e desmonte das políticas públicas de saúde. Por exemplo, em fevereiro de 2019 o Ministério da Saúde divulgou uma nota técnica propondo novas diretrizes de políticas nacionais de saúde mental e de drogas. Em linhas gerais a nota abre precedente ara retorno de práticas terapêuticas usadas no passado como eletroconvulsoterapia, bem como sinaliza a abstinência como melhor tratamento do que a redução de danos nos casos de dependência química.
Como afirmam Rauter e Peixoto (2009), há o risco dos dispositivos de saúde mental funcionarem como uma nova expansão da psiquiatria nos espaços extramuros, agindo com métodos mais sutis de controle nas instituições de saúde, bem como da produção de uma lógica subjetiva manicomial. Nas palavras desses autores: “lógicas manicomiais atravessam invisivelmente as práticas de saúde mental no contemporâneo” (p.273).
Na RAPS, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) especializados na atenção ao uso de álcool e outras drogas (CAPS AD) constituem a porta de entrada para a assistência e cuidado. Além da assistência aos usuários de álcool e outras drogas, os CAPS trabalham com a perspectiva de cuidado integral em torno de um projeto terapêutico singular, envolvendo não só a pessoa alvo de cuidados, como todo seu contexto comunitário, incluindo a família. Estratégias como grupos focais, trabalhos comunitários, integração com outros serviços e equipamentos sociais (intersetorialidade) que integrem as famílias são utilizadas na construção dos Projetos Terapêuticos Singulares (PTS).
No entanto, muitos obstáculos de ordem política, social e, sobretudo, moral, dificultam esse processo, deixando usuários e famílias desamparadas. No auge de seu desespero gera o que Lancetti (2015) denominou de contrafissura, ou seja, as famílias buscam outras “saídas” para lidar com a questão. Atualmente, temos observado o um número elevado das Comunidades Terapêuticas, que segundo pesquisa publicada pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2017 contabilizavam 2.000 em todo Brasil, as quais têm recebido um quantitativo enorme de usuários no país inteiro e cujo tratamento está baseado em princípios manicomiais como a reclusão e a abstinência. Diante desse cenário, esse trabalho tem como objetivo discutir os modos de cuidado dispendidos às famílias que sofrem de problemas relacionados ao uso de drogas. Para tanto, utilizará como base os resultados de uma investigação realizada junto à duas famílias com características socialmente distintas, trabalho que constituiu uma pesquisa de doutorado intitulada “Dinâmicas de funcionamento familiar e uso de drogas: implicações no cuidado psicossocial.”
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo focada no universo de dois grupos familiares distintos, ambos residentes da região metropolitana do município do Natal, localizado no estado do Rio Grande do Norte, “Brasil. Na cidade onde foi realizada a pesquisa, apesar de existirem protocolos de atendimento já pactuados, a rede de saúde mental enfrenta muitos problemas, principalmente pela falta de recursos humanos, vínculos profissionais precarizados, ausência de qualificação continuada e frágeis condições de trabalho. Existe também muita resistência para a organização dos processos de trabalho no sentido do alinhamento de suas práticas com a Política de Redução de Danos e os preceitos da reforma psiquiátrica.
Nesse estudo, considerou-se como “familiares”, parentes e pessoas que residem em outros domicílios, incluindo diferentes localidades e bairros, cidades e estados, fugindo de qualquer possibilidade de afirmar um modelo de família composta apenas pelas pessoas que vivem na mesma casa. A escolha das famílias foi feita a partir da experiência profissional de uma das pesquisadoras como docente e estudante da temática em questão.
Uma delas foi identificada a partir da demanda de ajuda de uma aluna acerca dos problemas relacionados ao uso de drogas por um dos seus irmãos. Esse irmão será aqui chamado de maneira fictícia por Pedro, 34 anos a época do estudo. Pedro é membro de uma família pertencente classe média da sociedade.
A segunda família, pertencente as camadas mais pobres da sociedade, e residente num bairro da periferia da cidade, surgiu a partir da experiência de atenção da referida pesquisadora como orientadora de estágio na área. Chamaremos a família de Joana. Nesse período, Joana (29 anos à época do estudo), recebeu acompanhamento psicoterápico individualizado no serviço escola de um estabelecimento de ensino superior. Fez alguns atendimentos individuais que culminaram em um aconselhamento psicológico realizado por uma estagiária, e cujo caso, foi supervisionado academicamente pela pesquisadora. Tendo acesso às informações de Joana, em que a queixa inicial relacionava-se ao sofrimento psíquico vivenciado pela irmã mais velha devido ao uso de drogas (maconha e álcool) e pela irmã mais nova (Bia, de apenas 15 anos na época), avaliou-se pertinente convidar essa família para participar do estudo.
O processo de escolha das famílias e a seguinte contratação para o estudo, em ambos os casos, deve ser pensado cuidadosamente. É importante ressaltar que o processo de contratação foi atravessado pelo estabelecimento de uma relação de confiança. Essa ideia se respalda no que Sade, Ferraz e Rocha (2014), afirmam ao falar da confiança na pesquisa:
o que se busca na pesquisa de campo é a constituição de um plano de experiência compartilhada, em que as singularidades dos encontros que se fazem presentes no campo concorram para multiplicar as possibilidades de conexões entre sujeitos e mundos (p. 68).
Nesse sentido, a confiança esteve voltada à abertura ao plano da experiência e ao aumento da potência de agir, do que somente o resultado da formalização de um contrato ou da imposição de regras. Aspectos éticos e metodológicos estão intrinsecamente relacionados e fazem parte da processualidade do trabalho da pesquisa cartográfica. Foi explicitado aos participantes o compromisso com o anonimato, respeito e cuidado com relação aos relatos realizados e todo o processo de pesquisa e de aproximação das famílias.
Portanto, para realizar o acompanhamento das famílias participantes elegeu-se as visitas domiciliares, nas quais inicialmente fez-se uso de entrevista semiestruturada, orientada por perguntas sobre a organização do grupo familiar, as consequências do uso de drogas na família e as estratégias encontradas pelo grupo familiar para lidar com a questão. As entrevistas serviram de estratégia de contato e de aproximação inicial com seus membros e por isso foi utilizada apenas nos primeiros encontros da pesquisa. Tendo clareza das limitações da ferramenta, bem como a certeza da necessidade de imersão e aprofundamentos relativos ao trabalho de campo, agregou-se ao processo de construção de dados o uso de mais duas ferramentas importantes no trabalho de campo em pesquisa qualitativa: a observação participante e o diário de campo (Lourau, 2004).
Foi acordado com as famílias a realização de visitas domiciliares com frequência quinzenal. Os encontros com as famílias tiveram início em outubro de 2015 e perduraram até maio de 2017. Os horários dos encontros eram combinados a cada visita e de acordo com a rotina familiar, de maneira que pudessem priorizar a presença do maior número de membros das famílias dispostos a participar diretamente do processo. Foram realizados 20 encontros com a família de Joana e 25 com a família de Pedro. A finalização dos encontros deu-se a partir do momento que foram construídas informações suficientes para possibilitar as análises planejadas, bem como os encaminhamentos necessários para cada família.
Análises e discussão
Como indicado anteriormente, nosso objetivo é discutir os modos de cuidado dispendidos às famílias com problemas relacionados ao uso de drogas por um de seus membros. Nesse sentido, é possível identificar uma “contrafissura” no trânsito da família na RAPS e no CAPS AD, porém com características diversas.
Pedro, na sua primeira tentativa de ter apoio especializado para suas necessidades decorrentes do uso de drogas procurou o CAPS AD. No entanto, não se identificou com o serviço, em parte pela estigmatização do usuário de drogas e do próprio usuário do CAPS, que conota a essas pessoas um perfil marginal e que indivíduos de classes sociais economicamente mais favorecidas não se identificam. Segundo Silveira, Soares, Noto e Ronzani (2013), percepções de que todo usuário de drogas é “perigoso”, “doente”, ou possui desvio de caráter”, gera uma séria barreira de acesso dos usuários de drogas aos serviços de tratamento.
No caso de Joana, apesar de pertencer a uma família pobre, ter diagnóstico psiquiátrico e sofrer com problemas relacionados ao uso de medicação psicotrópica, não foi reconhecida como potencial usuário do CAPS no processo de triagem. O serviço lhe foi recusado, pois ela ainda preservava sua capacidade produtiva, trabalhava todos os dias e, portanto, não poderia seguir as atividades diárias oferecidas pelo CAPS. Percebe-se, então uma visão estereotipada do usuário padrão que pode frequentar o serviço: pessoa que não trabalha devido aos efeitos do uso de substâncias psicoativas que frequenta o serviço de saúde todos os dias, independente das suas características e necessidades. Ademais, observa-se uma incoerência com a proposta de desenvolver um projeto terapêutico singular, que estimula a autonomia e foca nos aspectos particulares de cada caso, o que nos leva a pensar nos resquícios de uma lógica manicomial nos serviços de saúde mental ainda nos dias de hoje.
O impacto disso é devastador nas famílias, especialmente naquelas cujas condições socioeconômicas não possibilita outro tipo de atendimento. Como relatado anteriormente, a situação da família de Joana é bem emblemática nesse sentido. Joana procurou o CAPS do seu território, localizado na zona oeste da cidade, caracterizada por ser uma região com alto índice de pobreza e vulnerabilidade social. Ao chegar ao serviço pela primeira vez foi orientada que só poderia ser atendida se estivesse acompanhada. Assim, retornou ao serviço na semana seguinte acompanhada do seu esposo. No entanto, foi informada que o serviço não estava funcionando devido a uma confraternização naquele dia. Retornou na semana seguinte, acompanhada do marido. Foi atendida pela equipe de psicólogo e assistente social, porém comunicaram que não poderia fazer acompanhamento no CAPS, pois para tanto precisaria ir ao serviço todos os dias, o que não seria possível no caso dela que trabalhava de segunda a sábado. O CAPS, então, a encaminhou para o ambulatório de saúde mental onde já recebia atendimento. Os ambulatórios de saúde mental são espaços que oferecem consultas de Psiquiatria ou Psicologia que normalmente atendem a transtornos mentais menores. Devem ter ampla articulação com a rede saúde mental como um todo e a tenção básica.
Essa situação mostra os vários esforços feitos pelos usuários e familiares em busca de cuidados, no entanto a rede falha ao não conseguir atender a essas demandas adequadamente, fortalecendo assim a situação de abandono e desconhecimento em relação a questão das drogas. Tal situação vulnerabiliza ainda mais os sujeitos e suas famílias, deixando-os à mercê de iniciativas pouco estruturadas e, consequentemente, perigosas.
É importante analisar também o tipo de intervenção disponível quando conseguem acesso à RAPS. Segundo depoimento de Joana, no ambulatório, ela apenas tinha consultas psiquiátricas que se resumiam à prescrição de medicamentos. Remédios esses que produziam efeitos danosos para a sua vida cotidiana e de sua família. Nesse sentido, cabe ressaltar o que Ferreira (2017) afirma: “no campo da saúde mental é apropriado salientar que aquilo que pode ser objeto de uma intervenção medicamentosa não é necessariamente o patológico” (p. 16).
No caso da família de Pedro observa-se uma outra questão: a não identificação com os serviços existentes na rede pública de saúde. No caso em questão, a procura de um CAPS especializado em álcool e drogas foi em outro estado, mais especificamente, na capital do Rio de Janeiro. Pedro foi levado por seu tio, em comum acordo, para realizar tratamento em um CAPS AD do Rio de Janeiro. Pedro conta da seguinte maneira “ao chegar em frente ao CAPS, vimos aquelas pessoas que frequentavam o serviço, vi aqueles caras, e pensei, eu não faço parte disso, eu não sou como eles” (sic). Pedro nem chegou a descer do carro e foi embora sem nunca retornar. Apesar dos problemas decorrentes do uso de drogas persistirem, a família nunca voltou a procurar a rede socioassistencial. As investidas para lidar com os problemas de Pedro se deram apenas através de internações em comunidades terapêuticas e consultas psicoterápicas, todas do setor privado de saúde.
Por se tratar de um tema polêmico, cercado de tabus e preconceitos, muitos sujeitos e suas famílias sentem vergonha e preferem intervenções de cunho mais privatista. A internação por longos períodos, além de ser pensada como uma solução para os variados problemas que os sujeitos possam ter com as drogas, é vista ainda como forma de escondê-los da sociedade. Isso acaba representando um alívio para a família. Segundo Bessa e Waidman (2013), as famílias alegam a necessidade da internação devido à dificuldade que encontra nos cuidados com a pessoa doente e à falta de preparo e de conhecimentos quanto ao manejo no momento da crise.
Ao questionar a família de Pedro sobre o tipo de acompanhamento recebido indicam que o mesmo se dá através de visitas mensais e contatos telefônicos, porém tudo realizado com muita restrição, com dias e horários predefinidos e sob monitoramento de algum funcionário da comunidade terapêutica por perto durante a conversa, pois o objetivo é que o interno viva uma realidade diferente da que estava imerso. Observa-se que nesse modelo não há intenção de que a família participe do tratamento. Ele ocorre de forma independente da família. Como se sua terapêutica por si só fosse suficiente, somada à vontade de mudar e abandonar as drogas pelo sujeito que as consome. Ou seja, as drogas se tratam de um problema médico e individual. Uma família que sofre e que não deseja mais passar pelos mesmos problemas, assim como não quer ver seu membro sofrendo diante do uso de drogas, resta apenas apostar de que o tratamento funcione. Ainda que se afirme a importância da família no processo de saída do interno da clínica ou CT, na prática, não se observa preocupação com a família durante o tratamento. A família, diante do desespero e da ausência de outras alternativas que se mostrem possíveis e eficazes, acaba aceitando as propostas ofertadas nessa modalidade de tratamento.
As duas famílias alvo desse estudo têm uma relação de claro distanciamento dos serviços de saúde mental, e quando há aproximação, são geradas situações problemáticas para com os mesmos. A relação com os serviços da RAPS é marcada ora por uma postura de descredito em relação aos serviços substitutivos, ora pela ausência de identificação com os mesmos, no caso da família de Pedro, ou mesmo através da tentativa fracassada de investida, no caso da família de Joana, cuja falta de acolhida de um CAPS, ou mesmo as práticas pouco articuladas com a rede, no caso do ambulatório de saúde mental, demonstram que esse é um elemento a ser considerado.
A dinâmica de cuidados para as pessoas que sofrem com problemas relacionados ao uso de drogas deveria estar ancorada em alguns princípios básicos. Um deles é a singularidade do uso da droga e seus efeitos. Cada pessoa faz um uso específico da droga, seja pelo padrão de consumo, pelo tipo da droga, ou mesmo pelos efeitos que a drogas lhes causam (Ribeiro & Carvalho, 2015). Além disso, o elemento contextual não pode ser deixado de lado na compreensão dos problemas relacionados ao uso, assim como as estratégias ligadas à rede de apoio e recursos materiais, dentre outros, que devem ser levados em consideração para operar um modelo de cuidado eficaz e respeitoso.
No entanto, o que se observou em ambos os casos, tanto na proposta da internação em comunidades terapêuticas, quanto no modelo ambulatorial é a exclusão da família do processo e a não consideração das condições singulares da vida dos sujeitos, pois há ausência de projeto terapêutico singular, gerando propostas de cuidado generalistas para as duas famílias.
Se considerarmos que a problemática das drogas é um assunto complexo e multifatorial, subentende-se que as estratégias para lidar com problemas decorrentes do seu uso devem ser diversas. O trabalho em rede, não apenas a rede formal de cuidados em saúde, mas os recursos do território de modo geral, é fundamental para o enfrentamento das situações adversas e busca de elementos potenciais construtores de vida para os sujeitos.
No entanto, o que a pesquisa mostrou a partir do acompanhamento das famílias foi o isolamento, não só dos usuários com relação ao seu contexto social, mas de alternativas de cuidado desconectadas de outros elementos importantes para consolidar o cuidado integral (projetos terapêuticos singulares, articulação com a rede, ações ligadas a inserção comunitária como cultura, arte, lazer, dentre outras). Isso se exemplifica com a história de Joana, cujos problemas decorrentes do uso de droga são vistos por parte dos serviços que a acolheram, de forma reducionista e medicalizante, sem levar em consideração questões do seu cotidiano, importantes para a busca de formas de vida mais potentes e saudáveis. Apesar das estratégias aplicadas não se darem pelo isolamento social via internação, elas desconsideravam elementos fundamentais constituintes do seu modo de vida e sua relação problemática com o uso de substâncias psicotrópicas, ou mesmo pela aflição pela situação da sua irmã mais nova ao consumir maconha e se relacionar afetivamente com um suposto traficante. No caso de Pedro, a perspectiva do isolamento é a mais clássica, pois se configura principalmente através da internação em comunidades terapêuticas, sem nenhuma relação com outros serviços da rede, tampouco a partir dos elementos concretos do seu cotidiano.
Como boa parte das substâncias psicoativas ainda criminaliza, seu consumo percorre caminhos obscuros, fazendo com que além das consequências químicas ligadas ao seu uso, o usuário de drogas ponha-se facilmente exposto a ambientes de criminalidade, vulnerabilidade e consequentemente exclusão. Isso gera consequências que ultrapassam os limites do campo da saúde e necessita de compreensão intersetorial, ampliando o entendimento dos problemas da família. A complexidade do problema diminui as possibilidades visíveis de superação de dificuldades ou mesmo de prevenção das mesmas. É interessante pensar esse aspecto levando em consideração o lugar social das famílias. As famílias de classe média e alta, apesar de terem acesso a um crédito social com mais facilidade (acesso à rede de saúde, educação, esporte, lazer, todos esses considerados pela OMS fatores de proteção aos problemas decorrentes do uso de drogas), sofre ainda assim com elementos ligados ao preconceito e exclusão, dificultando sua percepção de um panorama mais construtivo em termos de cuidado. Muitas vezes a vergonha, a culpa e até mesmo o desespero diante do risco e do desconhecimento, levam as famílias a lançar mão de atitudes extremas como internações forçadas em comunidades terapêuticas. Essas, diferentemente da maioria dos serviços públicos disponíveis para o cuidado do usuário de drogas, possuem autonomia e crédito social para operar suas estratégias, apesar da carência de aporte científico que respaldem suas práticas. Os efeitos para a família são imediatos: o alívio em não se deparar diariamente com os problemas decorrentes do uso de drogas do seu familiar, ou mesmo com a ideia de que esse, recluso, em ambiente fechado e distante do meio em que costumava se entorpecer, está seguro, sendo mantida pelo menos a sua sobrevivência. Esse elemento é suficiente para que muitas famílias, a partir dessa primeira resposta de alívio, acreditem e depositem esperança no tratamento proposto. Apesar da escassez de estudos que demonstrem que o método aplicado pelas comunidades terapêuticas seja eficiente, cada vez mais essa estratégia de cuidado vem se proliferando e adquirindo força no meio político e social. É uma resposta para aquelas famílias que se deparam diante do sofrimento e da angustia de não saber o que fazer.
Por outro lado, o desmonte observado atualmente dos serviços públicos de saúde, que estão organizados em torno de uma estratégia libertária baseada na autonomia dos usuários, fortalece ainda mais o crescimento das Comunidades Terapêuticas no país. “Não sabemos mais o que fazer, é a única alternativa ao nosso alcance. Mas até quando teremos que passar por isso? Está tudo bem enquanto ele está lá, mas quando ele sair? Vai recair de novo e de novo?!” (sic). Esse questionamento, presente em uma das falas da irmã de Pedro diante da situação de um novo internamento do irmão, demonstra que apesar da incerteza, para essa família tal alternativa parece ser a única alternativa.
A família de Pedro possui os recursos financeiros para interná-lo em comunidade terapêutica fora do estado. As visitas nesses casos eram mensais, a partir apenas o primeiro mês de internação. Além do valor mensal investido pela família no pagamento dos custos da internação, a família deve ainda prover um enxoval para que seu familiar permaneça internado, como lençóis, toalhas, roupas, e materiais de higiene e medicamentos necessários. Além disso, para realizar visitas precisa se organizar em um final de semana, para se deslocar, gastando recursos consideráveis com passagens ou combustível, além de alimentação e hospedagem. Esse custo não é viável para grande parte de famílias brasileiras, cujos membros possuem problemas decorrentes do uso de drogas. Para as famílias pobres, restam os serviços públicos de saúde, que como já ressaltado, diante da escassez e dificuldades, não consegue dar o suporte adequado aos usuários e sua família. Nesse caso, as situações de vulnerabilidade tornam-se mais evidentes e a família, por consequência, se torna ainda mais suscetível aos problemas decorrentes do uso de drogas.
Certamente não se está minimizando ou desconsiderando o sofrimento vivenciado por pessoas de classe média que sofrem com problemas decorrentes do uso de drogas. Mas, no caso de famílias pobres, esses problemas tomam proporções mais graves devido à exposição às condições adversas como adoecimentos, exclusão social, violência, dificuldades nos relacionamentos, problemas com a justiça, dentre outros. Nessas situações, esses elementos compõem o sofrimento e o medo dessas famílias, como no caso de Joana que ficava angustiada pelo fato da maconha se tratar de uma droga ilícita, e por não compreender os transtornos causados pelo uso sistemático de psicotrópicos.
Sabendo que a droga não é apenas um problema de saúde, mas que envolve outros elementos como as condições socioeconômicas, acesso ao conhecimento, cultura, lazer, trabalho, segurança pública, dentre outros, torna-se mais do que fundamental que as alternativas pensadas integrem uma gama de elementos presentes em diversos serviços da rede. A visão fragmentada da questão culmina na fragmentação dos sujeitos envolvidos, enfraquecendo as possibilidades construtivas, consequentemente despotencializando pessoas e suas famílias, que ao buscar suporte se deparam como as poucas possibilidades de construção de vias de cuidado potentes.
Lopes, Therrian-Nóbrega, Araújo, Gomes e Cavalcante (2015), em um estudo que analisou o suporte da rede de saúde mental para mulheres familiares de pessoas que usam drogas, ressaltam alguns aspectos interessantes para pensar o papel da rede nesse processo. Os referidos autores destacam que as mulheres se sentiam cansadas e perdidas diante de todos os problemas vivenciados com o uso de drogas pelos seus familiares e que assim aceitavam qualquer tipo de ajuda. Esse fato facilitava a busca por internações, como um alívio momentâneo ou mesmo como um período de descanso e distanciamento dos problemas vivenciados com o familiar:
a sensação que as perpassava é de que estavam sós nesse processo e viam, em qualquer pessoa sensível, um norte para a resolução dos problemas. Mulheres “perdidas”, cansadas de conviver com conflitos, recorrendo a tudo que pudesse aliviar e/ou minimizar seu sofrimento (p. 24-25).
Esse mesmo estudo apontou também elementos problemáticos no que diz respeito aos espaços de cuidado da rede de saúde mental,
Percebemos que, por mais que nesses espaços de cuidado de saúde mental houvesse grupos e/ou pessoas dispostas a cuidar dessas mulheres, ainda havia certa incipiência nesse cuidado. Os recursos humanos, muitas vezes, eram insuficientes diante da demanda. As práticas se apresentavam de forma institucionalizada e o conhecimento da população sobre esses serviços era, muitas vezes, entendido de forma incorreta. A população mantém certo “ranço” de que são os profissionais de saúde que devem se responsabilizar integralmente pelo cuidado relativo ao uso da droga, o que dificulta o compartilhamento da assistência (p. 25).
Considerações finais
A fragilidade do cuidado às pessoas que usam drogas no âmbito familiar pode ser compreendida a partir da análise das estruturas sociais vigentes. O tabu que circunda a temática das drogas afeta o modo como a rede de apoio se organiza. Compreendendo os problemas decorrentes do uso de drogas como uma questão social que ultrapassa o campo da saúde mental, faz-se importante tecer algumas considerações sobre a política de saúde mental e o suporte psicossocial aos usuários e familiares.
A falta de acesso gera a descrença nos serviços públicos, fazendo com que famílias apostem em outras estratégias de oferta de cuidado de usuários de drogas, ainda que retrógradas, como as internações psiquiátricas. Estas, em longo prazo, operadas pelas Comunidades Terapêuticas, excluem a família do processo terapêutico objetivando ainda mais a condição de desassistência aos familiares e suas questões relacionados aos problemas decorrentes do uso de drogas. A família na sua complexidade e dinâmicas, exige das políticas públicas um atendimento integral com base intersetorial. Seu sofrimento vai além das consequências físicas, orgânicas. Não existem soluções transformadoras e emancipatórias na ação medicalizante, tampouco na exclusão do familiar do processo de cuidado.
A resposta aos problemas das famílias poderia ser dar a partir de alguns elementos-chave: acesso à informação confiável e de qualidade, diálogo com os serviços e construção coletiva de estratégias de cuidado, o que demarcaria a real construção de projetos terapêuticos singulares. Os CAPS, como serviços substitutivos pautados nos preceitos desinstitucionalizantes da reforma psiquiátrica, em tese, seriam serviços com essa finalidade, porém as dificuldades de operar essa política fazem com que essas estratégias não tenham eficácia no cotidiano. Esse “mau funcionamento” opera na verdade a forma contemporânea de dominação “fazer viver, deixar morrer” (Foucault, 2005). Seja pela falta de qualificação e discussão especializada na temática de álcool e outras drogas pelos seus trabalhadores, pelas dificuldades estruturais da gestão da política em operar estratégias intersetoriais, ou mesmo pelas condições de trabalho que não permitem que esses profissionais vislumbrem inovações nas suas práticas: escassez de equipamentos e vínculos profissionais fragilizados, por exemplo.
Levando em consideração os desafios enfrentados pelo campo da saúde mental no Brasil nos últimos anos, sobretudo a luz do movimento de luta antimanicomial, o campo do cuidado ao usuário de drogas é um elemento que precisa ser constantemente avaliado. Apesar dos avanços das estratégias de cuidado em relação ao “louco” e sua família, o usuário de drogas ainda se encontra em condição de marginalidade, sobretudo devido à política de drogas brasileira, ainda moralista e repressora.
Sendo um tema que habita muito mais fortemente as discussões no campo da segurança pública, e ainda distante da formação dos profissionais de saúde, os elementos relativos às estratégias de cuidado encontram-se fragilizados (como a estratégia de redução de danos) e, consequentemente, vulneráveis a mecanismos repressores e excludentes como privação de liberdade e reclusão social, pois o usuário de drogas é que aquele que além de prejudicar sua própria saúde através da intoxicação com substâncias é visto como ameaça social ao bem-estar comunitário.
Esse panorama nos mostra o quanto a rede de atenção ainda é limitada no que diz respeito a um atendimento adequado às famílias que enfrentam problemas relacionados ao uso de drogas. Elas permanecem desamparadas, seja pela escassez de serviços, seja pelo tipo de estratégia adotada para lidar com a questão.