A finalidade deste artigo é demonstrar a maneira como o processo de medicalização, especialmente aquele que incide sobre a vida de crianças e adolescentes no ambiente escolar, é apreendido e divulgado no meio acadêmico. Serão utilizados os resultados de dois estudos bibliográficos, um referente ao triênio 2010-2012 (Gomes & Simoni-Castro, 2017) e outro ao período 2013-2015. Ambos pretenderam verificarse a maneira como o fenômeno da medicalização escolar foi referido, em periódicos acadêmicos de Psicologia e Educação, se caracteriza por concepções e práticas críticas, ou acríticas. A segunda pesquisa, equivalente ao triênio 2013-2015, exibe resultados de estudos de iniciação científica efetivado pelas autoras deste artigo, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP - processo número 2016/11909-8.
A medicalização pode ser compreendida como um fenômeno de deslocamento de questões concernentes ao cotidiano para o campo médico e, mais precisamente, biológico, produzindo o apagamento do contexto histórico e cultural, ao passo que promove o uso de justificativas individuais e orgânicas para o entendimento de problemas. Quando aplicado ao campo educacional, observa-se a tendência de explicar problemas escolares, tal como a não-aprendizagem e o não-comportamento, como sendo originários de patologias inerentes ao sujeito, gerando demandas clínicas de intervenção, sustentadas pelo modelo científico biomédico (Angelucci & Souza, 2010; Bianchi & Faraone, 2015; Meira, 2011). Essa dificuldade é acompanhada pela ausência de embasamento crítico por parte de profissionais e estabelecimentos das áreas da psicologia, da saúde, da educação e da assistência social, no recebimento de tais demandas, que adotam teorias e práticas que reiteram uma ideologia patologizante e excludente que, geralmente, se encerram na atribuição de diagnósticos de algum transtorno de aprendizagem e/ou de comportamento às crianças e adolescentes.
A crítica que sustentaremos neste trabalho, portanto, pode ser entendida como a adoção de uma postura teórico-filosófica e prática comprometida com a transformação social. O alcance deste objetivo é algo complexo e pode ser expresso de diversas formas, porém, neste artigo, para efetivar a análise nas áreas da Educação e da Psicologia, destaca-se a particularidade que a Psicologia Histórico-Cultural possui como ferramenta já desenvolvida para este fim. Meira (2003) apresenta alguns aspectos que todo pensamento que se pretende crítico deve contemplar:
Reflexão e método que apreendam o movimento das contradições dos fenômenos como fatos sociais concretos, sínteses de múltiplas determinações (...); Crítica do conhecimento que possa apontar para o caráter ideológico da ciência. (...) Denúncia da degradação, da alienação e da heteronomia humana nas condições postas pelo capitalismo. (...) Possibilidade de ser utilizado como instrumento no processo de transformação social, já que, além de desvelar a realidade, permite apontar as possibilidades de transcendência (p. 16).
Dessa forma, adotar um posicionamento crítico com relação à medicalização, à luz da Psicologia Histórico-Cultural, é denunciar uma ciência comprometida com determinada ideologia e classe social, que culpabiliza crianças e adolescentes por seus problemas escolares, especialmente as advindas de comunidades mais pobres. Patto (1991) evidenciou esse pensamento com o apoio da Teoria da Carência Cultural que, chegando ao Brasil na segunda metade do século XX, postulava que o bom ou mau desempenho escolar poderia ser justificado pelo nível socioeconômico da criança. Tal compreensão dos processos de aprendizagem e de desenvolvimento humano permite avançar da aparência em direção à essência dos fenômenos, pois se entende que a escola, inserida na sociedade capitalista, também irá produzir e reproduzir ações de discriminação e de opressão, bem como suas contradições.
Uma abordagem crítica deve se esforçar para obter um entendimento dialético dos fenômenos, o estudo das coisas buscando seu processo histórico, ou seja, sua raiz, sua gênese, rompendo com conceitos imediatistas e individualizantes e entendendo que não há desinteresse ideológico por trás dos conhecimentos e práticas (Patto, 1984). Ao afirmar o fator histórico e material como decisivo para a compreensão do fenômeno humano, reconhece o peso ideológico da ciência.
Concepções críticas em relação à psicologia e à educação, bem como às interfaces possíveis entre ambas, começaram a ser anunciadas no final dos anos 70 e início da década de 1980. Desde então, estudiosos da área (Patto, 1984, 1991, 2000; Meira, 2000, 2003, 2012a, 2012b; Souza, 2010) têm se dedicado a caracterizar esse tipo de análise.
Apesar disso, compreende-se que as teorias sócio-históricas não são as únicas que se colocam como críticas no fazer científico. Por isso, um dos objetivos deste trabalho ao fazer uso desta ferramenta de pesquisa, foi evidenciar quais são as metodologias utilizadas para se debruçar sobre o fenômeno da medicalização, como elas operam na conceptualização dos problemas escolares e quais são seus objetivos ao os escolherem como objeto de pesquisa - estariam apenas reforçando uma lógica patologizante, disciplinatória, produtora e consumidora de padrões, ou contribuindo para romper com ela (Eidt & Tuleski, 2010; Meira, 2012a)? O contexto social atual se pauta em uma visão de mundo que responsabiliza o indivíduo por seus sucessos e fracassos, enaltecendo o mérito pessoal e abrindo espaço para a “crença na liberdade individual” (Patto, 1991, p. 20). Não é à toa o alto índice de encaminhamentos e de crianças e adolescentes diagnosticados com transtornos de aprendizagem e/ou de comportamento.
Alguns dos transtornos que mais geram encaminhamentos são o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), a dislexia, a disgrafia e o Transtorno Desafiante de Oposição (TOD). Eles são sustentados, conceitualmente, por manuais como o sistema Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), instituído pela Organização Mundial de Saúde (OMS), e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), organizado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), que trazem uma coleção de definições e estatísticas referentes a doenças e transtornos. Esses materiais compilam diferentes estados de saúde, em definições padronizadas, e são referências principalmente para médicas/médicos, psiquiatras e psicólogas/psicólogos de todo o mundo, que endossam o descontrole a partir do qual o processo de patologização da vida vem se manifestando na vida de crianças e adolescentes.
As teorias sócio-históricas, ao invés de buscarem a compreensão da “natureza humana”, entendem a “condição humana”, em sua materialidade e historicidade (Constantino, Eloy, Quadrini, & Macedo, 2007). A Psicologia Histórico-Cultural se fundamenta na concepção materialista, histórica e dialética e, assim, busca questionar as teses naturalistas e desconstruir o pilar que sustenta ereduz a dimensão humana às suas funções orgânicas. Ela propõe que a unidade entre os substratos internos (subjetivos) e externos (objetivos) da condição humana, se dá de maneira dialética, não oposta, o que significa que o sujeito é um ser ativo, social e histórico em seu processo de desenvolvimento.
Para essa teoria psicológica a formação do psiquismo humano não se restringe ao amadurecimento das estruturas orgânicas (Eidt & Tuleski, 2010). Em sua dinâmica há a apropriação de produções históricas humanas, que medeiam a promoção da aprendizagem e do desenvolvimento, o que equivale a dizer que funções como a atenção e o controle voluntário do comportamento (muito exigidas nas escolas) são muito mais do que processos que dependem, tão somente, da maturação biológica natural, uma vez que, para se desenvolver, requerem a apropriação e objetivação dos signos culturais; mediações fornecidas pelas inter-relações a partir do contato com outros seres humanos. Assim, para que ocorram os processos de aprendizagem e desenvolvimento, e a superação das funções psicológicas naturais em direção às unções psicológicas culturais, é fundamental a apropriação das produções culturais humanas, mediada pela educação escolar (Martins, 2011).
Em vista disso, objetivamos identificar, perante a análise bibliográfica de estudos divididos em dois triênios, sob quais aspectos o processo de medicalização tem sido referido no meio acadêmico, mais especificamente em periódicos com qualificação A (1 e 2) e B (1), publicados entre os anos de 2010 e 2015, registrados na plataforma CAPES, nas grandes áreas da Psicologia e da Educação. Pretendeu-se mostrar se há diferenças no teor das explicações e análises da temática medicalização entre as áreas definidas, a partir de uma investigação de como os autores operam a fundamentação dos estudos. Em outras palavras, qual o aporte teórico e metodológico utilizado, bem como os procedimentos teórico-práticos indicados para explicar e tratar o fenômeno estudado. Questiona-se o fenômeno da medicalização da educação, para refletir sobre os processos de constituição de nossa existência e colocar em pauta a discussão sobre o fazer científico em nossa sociedade, que papel ele vem ocupando e os mecanismos de poder que o organizam.
O estudo contribuiu com a construção de uma referência capaz de colaborar na compreensão dessa problemática, por meio da apresentação dos dados quantitativos e qualitativos produzidos. Almeja-se que eles possam se sustentar como materiais de apoio, tanto para orientar pesquisadores na produção de novos estudos, que aprofundem a visão crítica relacionada à medicalização, à educação e à psicologia, quanto para preparar profissionais das áreas da educação e da saúde, no debate e no desenvolvimento de fundamentos críticos acerca da noção de saúde e doença.
Procedimentos metodológicos
Esta pesquisa de teor quanti-qualitativo empregou a revisão bibliográfica como procedimento para a produção e análise dos dados. O conjunto de publicações utilizado para comparação de dados foi dividido em dois triênios e, ambos, seguiram os mesmos procedimentos. Partiu-se da identificação dos periódicos - de Educação e de Psicologia - qualificados como A1, A2 e B1 e inscritos na plataforma da fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior (CAPES). Cada uma das pesquisas com seu triênio de referência - (2010-2012) e (2013-2015).
A parte quantitativa da pesquisa consistiu, primeiramente, na seleção e organização dos periódicos e, posteriormente, na busca dos artigos, primeiramente orientada pela divisão anual e seguida de listagem dos periódicos das áreas selecionadas disponíveis na plataforma CAPES, que tiveram suas edições online abertas.
Na sequência foi realizada a leitura dos títulos dos artigos, selecionando aqueles que indicavam se tratar da temática da medicalização de crianças e adolescentes em ambiente escolar. Feito isso, partiu-se para a leitura dos resumos dos mesmos, tendo em vista a eliminação daqueles que, eventualmente, fugiam ao escopo da pesquisa.
É importante pontuar que, na revisão referente ao triênio 2010-2012 foi utilizado, como critério de seleção e inclusão, artigos publicados em língua portuguesa e espanhola, enquanto que, no triênio 2013-2015 apenas foram consideradas as publicações em português brasileiro.
No que se refere à parte qualitativa da pesquisa, o passo seguinte à leitura dos resumos foi a leitura integral e criteriosa dos artigos, procedendo com o descarte daqueles que fugiam à temática estabelecida. Foi realizado fichamento dos artigos remanescentes, com identificação dos argumentos e aspectos coincidentes que perpassavam os textos, utilizados para verificação da criticidade dos mesmos. Para tanto foi elaborado um instrumento de análise, que se respaldou em três categorias principais:
Conceptualização e definição dos problemas/transtornos/distúrbios
Por meio dessa categoria, buscou-se identificar o aporte utilizado pelos autores para a definição de seu objeto de estudo, tendo como foco os transtornos de aprendizagem/comportamento (dislexia, discalculia, TDAH, etc.), o que nomeamos de medicalização escolar e/ou seus desdobramentos. Para tanto, construímos cinco subcategorias:
1 - Artigos que definem e/ou problematizam os transtornos de aprendizagem/comportamento com base em protocolo listados que definem modelos típicos de comportamento (DSM, CID-10, APA, etc.).
2 - Artigos que se embasam numa concepção orgânica dos transtornos de aprendizagem/comportamento, atribuindo uma origem biológica, neuronal.
3 - Artigos que partem de uma compreensão histórico-social dos transtornos de aprendizagem/comportamento.
4 - Artigos que não definem nem conceitualizam os termos utilizados (transtornos de aprendizagem/comportamento).
5 - Artigos que não esclarecem, na definição, a origem/causa do “problema” - transtornos de aprendizagem/comportamento - estudado.
Questão metodológica
Por meio da qual se procurou entender o tipo de pesquisa desenvolvida e qual/quais procedimento(s) metodológico(s) foram utilizados para alcançar o(s) objetivo(s) proposto(s), subdividida em cinco categorias:
1. Revisão bibliográfica/estado da arte.
2. Pesquisa de campo/comparação entre grupos.
3. Utilização de testes, avaliações, questionários e escalas padronizadas (nacional e/ou internacionalmente) e/ou outros instrumentos psicométricos.
4. Relato de prática/experiência e estudo de caso.
5. Entrevistas/questionários não padronizados (as).
Modos de intervenção
Por meio da qual se almejou entender qual foi a solução proposta ou os modos de enfrentamento encontrados pelo estudo, dividida em seis subcategorias:
1. Intervenção no âmbito institucional - pedagógico, familiar, ONG, etc.
2. Intervenção individual - medicamentosa.
3. Intervenção individual - pedagógica, psicológica, psicoterapêutica e/ou psicopedagógica.
4. Não propõe intervenção.
5. Propõe a revisão e superação dos discursos e práticas medicalizantes como modo de enfrentamento.
6. Propõe mais rigorosidade nos critérios de um diagnóstico, bem como conhecimento adequado dos transtornos pelos profissionais envolvidos.
Além desses critérios de análise, após a leitura de cada artigo, foi efetivado um parecer para indicação do atributo Crítico (C), ou Não Crítico (NC). Depois de os artigos terem sidos analisados, foi realizada a planificação dos dados obtidos, dispondo-os estatisticamente, cujos resultados são apresentados a seguir.
Resultados e discussão
Não foi calculada distinção entre as duas grandes áreas escolhidas (Educação e Psicologia) pelo fato de que muitos periódicos estavam cadastrados em ambas as categorias na plataforma da CAPES e não se considerou conveniente eleger, pessoalmente, a classificação de cada revista, uma vez que as grandes áreas do conhecimento dialogam entre si - ademais alguns periódicos possuíam as duas como escopo.
Após todas as etapas de filtragem, a revisão bibliográfica proposta para o triênio 2010-2012 comportou a identificação de sessenta e um artigos (Gomes & Simoni-Castro, 2017), enquanto que o triênio 2013-2015 findou na compilação de oitenta e três artigos. A fim de otimizar a análise dos dados, ao longo do texto, o primeiro triênio será referido como T1 e o segundo como T2.
Os dados obtidos mostram que, dentro do primeiro triênio, apenas quinze dos sessenta e um artigos (24,59%) puderam ser considerados críticos (Gomes & Simoni-Castro, 2017), ao passo que, no segundo triênio, quarenta foram os artigos considerados críticos (48,19%) no que tange à patologização dos processos vivenciados em contexto escolar.
Ainda com relação às publicações críticas, no que diz respeito à primeira categoria de análise - Conceptualização e Definição dos Problemas/Transtornos/Distúrbios -, temos que a maior parte dos artigos não se prendia às definições de manuais, baseadas em concepções individualizantes ou orgânicas, mas adotavam uma compreensão histórica, cultural e social dos processos de subjetivação dos seres humanos, estando em 60% do conjunto T1 (nove artigos), dentre os quais mais da metade (quatro artigos) fizeram uso do aporte teórico-metodológico da Psicologia Histórico-Cultural; no conjunto T2 essa categoria equivaleu a 57,5% (vinte e três) dos artigos. Da mesma forma, em ambos os casos, a segunda forma mais utilizada para se referir aos transtornos, foi justamente a abstenção ou ausência de explanação de definições dos problemas de aprendizagem e/ou de comportamento. No T1 este escore foi de 53,33% (oito artigos), enquanto no T2 foi de 42,5% (dezessete artigos), dado que permitiu observar que, dessa maneira, promoviam um debate mais amplo sobre os problemas escolares.
Outro aspecto a destacar, é que nenhum dos artigos considerados críticos apostou em definições padronizadas, como as contidas nas edições do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM) e a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), ou em qualquer concepção orgânica dos transtornos.
Com relação ao segundo critério de análise - Questão Metodológica -, o procedimento mais utilizado foi a revisão bibliográfica/estado da arte, estando presente em 40% (seis) das publicações de T1, e em 45% (dezoito) dos artigos de T2.
O último elemento a ser analisado da série de artigos críticos - Modos de Intervenção - equivale aos recursos e procedimentos de intervenção propostos, cujos resultados expressam maior complexidade do que as categorias anteriores. Observou-se que, dentro dos estudos críticos, houve abundância de propostas de revisão e superação dos discursos e práticas medicalizantes, atingindo 70% (vinte e oito) artigos no grupo T2. No grupo T1, apesar de as autoras não informarem a quantidade exata de publicações que propuseram o rompimento com conceitos e terminologias que rotulam e excluem, foi possível perceber que estes também fizeram maioria dentro do conjunto de publicações críticas analisadas (Gomes & Simoni-Castro, 2017, p. 22). Ainda com relação ao grupo T2, 12,5% (cinco) de seus artigos críticos não propuseram intervenção, e a mesma quantidade o fizeram no âmbito institucional, o que significa que muitas propostas se voltaram para ações focalizadas nas dinâmicas pedagógicas e familiares ou sugeriram que mais estudos na temática fossem realizados.
Em contraponto, 75,41% (quarenta e seis artigos) do conjunto analisado em T1 e 51,19% (quarenta e três artigos) em T2 não foram considerados críticos, o que equivale à parte de estudos que se valem de definições normalizadas dos transtornos de comportamento/aprendizagem, não questionando a atribuição de diagnósticos, conspirando a favor de ideias individualizantes e organicistas.
Não foi à toa o elevado número de textos que se basearam em conceptualizações padronizadas, por manuais, dos problemas de aprendizagem e/ou comportamento - 30,43% (quatorze artigos) em T1, sendo o TDAH o transtorno mais referido; 39,53% (dezessete) em T2 -, ou que partiram de definições de cunho biológico, atribuindo justificativas orgânico-neuronais aos problemas em discussão - 32,55% (quatorze artigos) em T2. Houve forte tendência de justificativa dos problemas escolares em razão das dinâmicas familiares, o apelo a traços de personalidade ou questões emocionais, a habilidades perceptivo-motoras e às disfunções orgânicas no geral.
A metodologia comumente utilizada para a efetivação destas pesquisas foi ouso de testes, avaliações, questionários e escalas padronizadas em consonância com estudos de comparação entre grupos - 17,39% (três artigos) em T1; 32,5% (quatorze artigos) em T2 -; seguida das pesquisas que apenas usaram avaliações padronizadas em T2 (25,6%) e antecedida por estudos que apenas utilizaram testes padronizados em T1 (28,26%). Com relação a estes dados, não podemos deixar de concordar com os apontamentos de Gomes e Simoni-Castro (2017), quando problematizam o fato de, na comparação entre grupos, ser comum haver discriminação antes de serem realizados os experimentos, entre estudantes bem-sucedidos e os “fracassados”, sendo que a comprovação de tal diferença vem com o resultado do teste aplicado posteriormente. Nos casos de sucesso escolar, por sua vez, geralmente o mérito é atribuído à instituição escolar e todas/todos implicadas/implicados na educação do estudante, o que evidencia a contradição da lógica patologizante.
Pensando nos modos de intervenção dos artigos categorizados como não críticos, temos, dentro do grupo T2, que sua maioria não propunha qualquer intervenção (34,8%, equivalente a quinze artigos) com base nas discussões e exposição dos dados nos textos, enquanto que 32,55% sugeriam intervenções relativas ao âmbito institucional, ou seja, alguma mudança em políticas públicas, em medidas escolares/didático-pedagógicas ou na dinâmica familiar.
É importante atentarmos para os dados identificados, para que se possa refletir acerca dos discursos e práticas que permeiam os saberes científicos da atualidade. Nota-se que, nos artigos não críticos não há questionamento acerca dos diagnósticos atribuídos às crianças ou mesmo da estrutura social medicalizante que os ampara. Prevalece a tendência à descontextualização dos indivíduos e imposição de um saber médico na vida das pessoas, reduzindo seus problemas a questões bioquímicas e orgânicas.
Um fator considerado inesperado foi o de, no triênio 2013-2015, nenhuma das publicações ter sugerido a intervenção medicamentosa. É comum que o fenômeno da medicalização seja acompanhado pelo da medicação, que consiste no apelo a fármacos para o alívio de mal-estares intrínsecos ao ser humano, sob a alegação de uma ação terapêutica mais rápida e eficiente (Rosa & Winograd, 2011; Galindo, Lemos, Lee, & Rodrigues, 2014).
Também foram elencados dados com relação ao repertório de artigos críticos respeitando a divisão dos periódicos por qualis (A1, A2 e B1), porém tal diferença não foi considerada significativa ao se levar em conta o contraste esperado entre a quantidade de publicações para cada qualificação - houve maior número de publicações das qualificações mais baixas.
A diferença do teor crítico apontada ao longo dos anos pode ser uma evidência de que posicionamentos críticos estão se fortalecendo no meio acadêmico, rompendo com visões liberais e preconceituosas sobre o que se entende por saúde-doença. Contamos com 48,19% de artigos críticos publicados (triênio 2013-2015), o que nos faz supor que há um segmento social que luta pela aceitação e entendimento das diferenças e que acredita em uma psicologia e educação escolar com respeito às singularidades. Constatar esse superávit de estudos críticos com o passar dos anos, dentro do contexto acadêmico, potencializa a luta por um sistema de ensino efetivamente democrático.
Considerações finais
Como se pôde observar, não é raro vermos estudos voltados para o entendimento dos sujeitos à luz de abordagens - da psicologia, da educação e da saúde - que delimitam as potencialidades existentes em crianças e adolescentes, que se encontram carimbadas pelo fracasso e pela exclusão escolar, utilizando materiais e métodos que quantificam os processos de subjetivação e de aprendizagem.
Assim como identificado na revisão feita entre 2010-2012 (Gomes & Simoni-Castro, 2017), no segundo triênio (T2), as publicações que se valeram de concepções individualizantes ou orgânicas, principalmente as propostas por protocolos e manuais, não foram consideradas críticas. Da mesma forma, a maneira como as pesquisas foram conduzidas, ou seja, suas metodologias, também dizem muito sobre o olhar que lançam para os objetos que se propõem a estudar.
No caso específico desta análise, o objeto é a medicalização escolar de crianças e adolescentes. Quando se trata de pesquisas nas ciências humanas, não podemos esquecer da particularidade de seu objeto: não estamos dando voz a ele, pois ele já é falante (Amorim, 2002). Portanto, exige-se cuidado especial para não (re)produzir silenciamentos. Os resultados advindos do estado da arte proposto neste trabalho evidenciam que, hegemonicamente, ainda são produzidos muitos silêncios na comunidade científica, o que se deve às concepções, metodologias e intervenções que elas utilizam e defendem.
Não à toa, dentre os artigos não críticos, a metodologia mais escolhida para efetivação das pesquisas tenha sido o uso de testes, avaliações, questionários e escalas padronizadas. Filice (2011) ressalta o quanto a crença no mérito pessoal apaga o entrecruzamento de fatores que atravessam a vivência escolar. Fato mais agravante ainda é o quanto ela desautoriza que crianças e jovens negros e LGBTs tenham uma relação de ensino-aprendizagem de qualidade. A autora evidencia que essa população sequer permanece nas escolas e consegue se inserir no mundo globalizado como cidadãos de direitos. Dessa forma, questiona a dinâmica escolar no âmbito do uso indiscriminado de testes de desempenho, uma vez que não aferem o acesso a meios culturais, o pertencimento étnico-racial, questões sobre orientação sexual e identidade de gênero, situação socioeconômica e condições familiares - que, quando são levadas em consideração, acabam por ser mais um fator de exclusão, do que de inclusão - e, afinal, de identificação com o currículo escolar.
Por sua vez, os estudos críticos, em sua maioria, partem de compreensões históricas e culturais dos processos de desenvolvimento humano, o que equivale a romper com definições padronizadas que apoiam formas de ser e de se comportar em crianças e adolescentes como processos naturais. Em suas metodologias, o que mais se observa é o uso de revisão bibliográfica/estado da arte. No que tange a essa metodologia, quando utilizada de forma crítica, mais do que uma simples leitura de catálogos, permite decodificar os demais discursos que estão por trás do enunciado. Isso implica a recusa de uma verdade absoluta, para se olhar para as relações que atravessam determinada produção (Amorim, 2002; Ferreira, 2002). Assim como apresentado neste estudo, o estado da arte deve se propor a reconhecer os caminhos percorridos pela produção de saber e a quem esses saberes favorecem ou desfavorecem (Angelucci, Kalmus, Paparelli, & Patto, 2004).
Estes estudos também sugerem, como proposta de intervenção, a superação de práticas e discursos patologizantes. Com isso, reconhecem que, mesmo que as escolas possam operar eficazmente como dispositivos de exclusão, elas primeiramente devem possuir o papel de superar essa marginalidade. Como afirma Duarte (2010, p. 48): “(...) é necessário superar a educação escolar em suas formas burguesas sem negar a importância da transmissão, pela escola, dos conhecimentos mais desenvolvidos que já tenham sido produzidos pela humanidade”. Cabe à escola, portanto, enriquecer o repertório dos sujeitos, ao mesmo tempo em que ela se coloca a serviço da socialização do conhecimento e da superação das desigualdades.
A aprendizagem e o desenvolvimento devem ser entendidos como processos, logo, não consistem em ideias acabadas, cuja pretensão é chegar a um fim, mas sempre se refazer e se reconstruir. A compreensão da complexidade da dinâmica escolar e dos processos de ensino e de aprendizagem que nela ocorrem permitem analisar o fenômeno da medicalização como histórico, cultural e socialmente determinado, não negando os problemas estruturais da realidade escolar brasileira - que devem ser superados (Meira, 2011; Souza, 2010).
Sublinhamos, aqui, nosso repúdio à atual conjuntura política brasileira, cujo Estado detém estratégias legalistas para favorecer a burguesia, exaurindo-se da responsabilidade de ofertar uma educação de qualidade à população como um todo (Filice, 2011). Em um país cujo Ministro da Educação emite o contrassenso de que as universidades devem ficar reservadas às “elites” (Redação, 2019), além do radical desmonte que a educação pública vem sofrendo, a ciência e, mais especificamente, a Psicologia e a Educação, têm a função de se posicionarem a favor dos direitos humanos e das maiorias oprimidas, na luta contra a medicalização, o racismo, as LGBT fobias, o machismo, o extermínio dos povos originários e as demais formas de censura e opressão, o que inclui a efetivação de pesquisas que reclamem para si uma função social.
Por isso defendemos que é política a luta por perspectivas críticas para a superação de discursos que silenciam problemas sociais. Reafirmamos que a vertente escolhida para nos debruçar sobre a medicalização da educação - Psicologia Histórico-Cultural - não pode ser pensada e empregada de outra forma que não a de historicizar os processos e fenômenos humanos, de modo a provocar o debate para a superação do panorama político-econômico atual, cenário no qual impera a comercialização da vida.
É preciso repensar a qualidade e o alcance de nossas produções científicas e a quem elas estão servindo. Ainda que os dados mostrem um crescimento na quantidade de publicações críticas, um dado não tão otimista mostra considerável diminuição no teor crítico dos manuscritos ao longo de cada ano do segundo triênio: dos artigos veiculados em 2013, 57,5% eram críticos, em 2014 50% e, em 2015, apenas 42,5%. Chamamos atenção para este fato, uma vez que a quantidade de publicações relativas ao assunto, em 2015, praticamente dobrou com relação aos anos anteriores (40, 24 e 20 artigos, respectivamente).
Por isso, é incessante a busca que a comunidade científica deve fazer parase desprender de seu espaço consagrado ao alcance das elites intelectuais, para que se aconchegue em lugares aonde são necessárias, e que possam auxiliar na transformação da realidade de famílias, profissionais e estudantes que são atingidas/atingidos por essa tendência patologizante, sendo forçadas/forçados a seguir um roteiro que lhes diz como agir, como aprender, como brincar, como viver.
Em vias de finalizar, esperamos ter contribuído com reflexões a propósito do quanto os periódicos que circulam no meio acadêmico ajudam na construção do imaginário acerca da medicalização, bem como para se pensar como abordagens da Psicologia e da Educação configuram o entendimento de seus objetos de estudos, além de destacar quais delas colaboram para a dissimulação de processos que produzem o fracasso e a exclusão escolar. Para além das possíveis contribuições técnicas deste estudo, persistimos no argumento de que é necessário fomentar um trabalho intelectual crítico que assegure rupturas epistemológicas com antigos paradigmas, os quais ainda permanecem simplificando e individualizando as demandas produzidas no interior da escola. Para tanto, se faz necessário articular elementos teóricos a uma prática consciente, com vistas à superação dos diferentes processos de patologização da vida, reinventando nossa relação para com a compreensão do que é ser humano.