Servicios Personalizados
Revista
Articulo
Links relacionados
Compartir
Lingüística
versión On-line ISSN 2079-312X
Lingüística vol.30 no.2 Montevideo dic. 2014
Lingüística / Vol. 30 (2), Diciembre 2014: 113-140
ISSN 1132-0214 impresa
ISSN 2079-312X en línea
INTERSUBJETIVIDADE E INTERLOCUÇÃO NAS RELAÇÕES DE CAUSALIDADE. A FUNCIONALIDADE DOS JUNTIVOS CAUSAIS NA LÍNGUA PORTUGUESA
INTERSUBJECTIVITY AND INTERLOCUTION IN CAUSAL RELATIONS. THE FUNCTIONALITY OF CAUSAL CONJUNCTIONS IN PORTUGUESE
Maria Helena de Moura Neves
Instituto Presbiteriano Mackenzie/Universidade Estadual Paulista-Araraquara
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
Este estudo contempla a expressão da causalidade na junção oracional em português, considerando, na base, o encadeamento que há entre o desempenho de saída, na sociointeração, e o gatilho cognitivo, fincado na intersubjetividade. Estabelecido que a gramática é a responsável pela organização funcional dessas relações, o estudo examina os juntivos tradicionalmente considerados “causais”, contemplando especialmente aquelas construções investidas de efeitos que extrapolam a estrita direção causa-consequência. Avaliadas propostas de formação de blocos de juntivos “causais” de comportamento semelhante, em contraste com outros, chega-se, afinal, à discussão da singularidade funcional da conjunção porque.
Palavras-chave: Interlocução e intersubjetividade; causalidade em gramática; conjunções causais.
This study approaches the expression of causality in the clause combining in Portuguese, considering, as fundamental, the thread that exists between the performance, in the socio-interaction, and cognitive trigger, based on intersubjectivity. Given that grammar is responsible for the functional organization of those relationships, the study examines the conjunctions traditionally considered as "causal", especially those constructs invested with effects that go beyond the strict direction cause-consequence. After evaluating the proposal of formation of “causal” conjunction blocks with similar behavior, in contrast with others, we arrive at the discussion of the functional uniqueness of the conjunction porque (because).
Key words: Interlocution and intersubjectivity; causality in grammar; causal conjunctions.
Hora de dormir
— Por que não posso ficar vendo televisão?
— Porque você tem de dormir.
— Por quê?
— Porque está na hora, ora essa.
— Hora essa?
— Além do mais, isso não é programa para menino.
— Por quê?
— Porque é assunto de gente grande, que você não entende.
— Estou entendendo tudo. (....)
1. Introdução
Este estudo propõe incorporar ao tratamento da expressão da causalidade na junção oracional a noção de (inter)subjetividade, que é central para a compreensão das complexas relações da coerência discursiva, e, em última instância, da complexa rede textual-discursiva, vale dizer, do texto de saída na interação. São peças de especial relevância, na discussão, os juntivos que atuam nessas relações, especialmente porque sua formação, na gramática da língua, representa uma história de provimento de elementos (mais) especificamente destinados a cada necessidade de expressão das relações de causalidade, ao mesmo tempo que evidencia diferentes categorias de acionamento de contrato intersubjetivo.
Do mesmo modo que o suporte do cognitivismo é um parceiro imprescindível na apreciação dessas relações constitutivas, as verificações dos procedimentos retóricos, responsáveis pela condução argumentativa e pela eficiência discursiva, franqueiam a apreciação dos efeitos pragmáticos, na construção textual-discursiva. Esse encadeamento entre o desempenho de saída, essencialmente engajado na sociointeração, e o gatilho cognitivo, fincado na intersubjetividade, são aqui considerados como procedimentos consistentes para a apreciação do provimento de recursos que a língua oferece para o fazer da linguagem, em diferentes momentos de sua história. Por exemplo, a gramaticalização de elementos juntivos, no sentido de suprir as necessidades de especificações mais sutis das diversas zonas de expressão adverbial, é um ponto de reflexão que muito se beneficia de incursões assim governadas.
A ampla zona das causalidades em linguagem tem uma definição bastante ampla, e, mesmo, fluida, porque vai desde uma rota direta e pronta entre “causa” e “consequência” ou “efeito” até muitas outras implicações também ditas “causais”, mas que chegam a dispensar essas noções, vistas rigidamente.
Em primeiro lugar, o desdobramento desta indicação centra-se no imbricamento das causalidades com as condicionalidades (cuja satisfação fica implicada nas relações de causa) e com as concessividades (que simplesmente dispensam as causalidades, tanto quanto as condicionalidades) (Neves 2012: 171-179). Em segundo lugar, e de modo muito especial, é evidente a multiplicidade de relações semânticas que se abrigam com o rótulo “de causa”, mesmo sem construir-se em termos de relações de consequência.
2. A gramática como organização funcional dessas relações
É exatamente nesse ponto que se justifica a necessidade de avaliar a questão gramatical (o sistema da língua) nas duas vertentes: com o olhar posto na coordenação cognitiva que regula a produção interna das sequências (coerência), regendo as relações discursivas (intersubjetividade), e também com o olhar posto nas necessidades e intercursos pessoais que permitem cumprir satisfatoriamente o contrato social interlocutivo (interação), e, afinal, cumprir a função interpessoal da linguagem (Halliday 1994), legitimando aquele contrato das mentes em coordenação.
Quanto ao tipo de relação em análise, trata-se, no ponto de partida e stricto sensu, de relações causa-consequência, extremamente condicionadas por outras relações adverbiais de conteúdo menos abstrato, por exemplo, a relação de tempo: na causalidade estrita fica implicada, em princípio, a relação temporal de subsequência ou de inclusão em um tempo que excede esse momento de inclusão. Ou seja, é previsto que a consequência se resolva dentro de uma sequencialidade temporal, como atestam estas ocorrências:
(1) Isso ocorreu porque o número total de plantas avaliadas foi fixado. (PAG-T)
(2) O nome foi trocado porque chamava atenção para a cor avermelhada dessa região do rosto. (FSP-J)
(3) Ele decidiu nada comer porque se tornava difícil associar matérias sólidas a dentes combalidos. (PRE-R)
Entretanto, como já apontei, o exame dos juntivos que se catalogam nas gramáticas como “causais” faz ver que as construções que eles estabelecem ou em que eles se envolvem são investidas de efeitos que extrapolam a estrita direção causa-consequência, e é aí que o estoque de juntivos de que a língua dispõe terá muito a dizer, quando se examina a língua em função.
Vamos já observar em conjunto a complexa zona das causalidades que se estabelece em termos amplos, complexos e de engajamento pessoal, como, por exemplo, em termos de explicação, de justificação, de legitimação, ou até de oferta de opinião, como em:
(4) Cuidado, não manche a roupa da mamãe porque ela ainda vai sair. (PRE-R)
(5) E eu me tornando importante, porque o Getúlio lançou tanto candidato que eu servia de emissário. (FSP-J)
(6) Não fará nada, porque eu vim aqui apenas para proteger-te, e não para te seduzir. (TEG-D)
(7) Não se trata de crise intelectual, ou científica, porque, felizmente, é impressionante o progresso realizado neste particular (NDE-T)
Obviamente, em cada uma dessas construções, as partes em junção terão estatutos particulares, já que operações como a de explicar, a de justificar, a de legitimar, a de opinar implicam muito mais envolvimento interpessoal (intersubjetivo) do que uma exposição de resultados, e muito mais ainda do que um relato de efeitos fisicamente ou quimicamente causados, por exemplo.
Também obviamente, para cada caso a língua disporá de elementos gramaticais de função juntiva que sejam mais específicos, e, portanto, mais fortes, à disposição do falante para escolha, se for eficiente que uma relação mais significativa seja acionada. Este será o campo mais direto a que as discussões deste estudo se dedicarão.
A língua também disporá de elementos lexicais que intensifiquem ou atenuem a força de cada juntivo, ou mesmo de elementos modificadores dos conjuntos da relação causal que se estabelece. Basta observar construções de base semelhante, mas de significações diferentes, todas com o juntivo causal porque, o mais gramaticalizado, mais usual, e, portanto, menos específico da língua portuguesa:
(8) O mal-estar aumenta ainda mais porque os gerentes desse fantástico estoque de dinheiro vêm adotando uma atitude muito mais seca em relação a quem lhes deve alguma coisa. (ME-C)
(9) O outro secundou que sim e que viesse agorinha já porque a velha Ceiuci tinha saído com as duas filhas e podiam negociar mais folgado. (MCU-R)
(10) Decerto, este fator dá ao assinante segurança, até porque um periódico de renome deve ter reputação estabelecida, o que implica tempo de vida razoável. (CIN-T)
(11) Não penses que tua força tudo possa entre os homens, nem, só porque assim o julgas. (B-Tr)
(12) Não pretendo negar essa realidade, exatamente porque acredito que existem soluções para as crises que a criaram ou que dela decorrem. (ME-O)
(13) A limpeza da gaiola é muito facilitada, inclusive porque o roedor procura primeiro os orifícios do tijolo antes de fugir para fora da gaiola. (RMT-T)
(14) O termo "paciente" não precisa, entretanto, ser abandonado, mesmo porque é universalmente utilizado. (AMB-T)
(15) Nem porque o seu formulário e assunto convém ao século X devo decidir que o mesmo documento é falso. (CB-J)
Assim, especificações por maximização, inserção, relativização, restrição, precisão, inclusão, exclusão, concessividade, minimização (e outros) dos “porquês” (das “causalidades”), como se observa nessas ocorrências (que, entretanto, dispensaram conectivos mais específicos) ajustam e reajustam, ao mesmo tempo, a coordenação cognitiva e a força dos contratos de desempenho discursivo. O que vemos, afinal, é aquele “princípio universal sistematicamente codificado no discurso”, que é a causalidade (Sanders 2005)[1], gramaticalizado em um instrumento gramatical pouco específico (porque) que se atravessa de inserções lexicais ou de outros instrumentos gramaticais determinantemente atuantes, para a mais precisa determinação das relações lógico-semânticas, bem como dos efeitos pragmáticos.
A questão, porém, é que a língua não se contenta com defender-se de suas carências apenas com reforços de inserção periférica, ela continuamente desenvolve mecanismos de preenchimento “gramatical” para as diversas necessidades construcionais, e essa é a história feliz das inúmeras “gramaticalizações” que tanto têm ocupado os linguistas ultimamente.
Neste território de junção adverbial lato sensu causal que nos ocupa neste texto, a história da língua portuguesa mostra farta messe de provimento de recursos gramaticais de expressão mais específica, especializada mesmo, e o que isso representa no concerto do sistema da língua é matéria significativa para reflexão. Para tal, é interessante que se parta do quadro geral da gramática no campo da articulação causal das orações.
3. O modo de organização das construções complexas de expressão "causal"
No português, assim como nas línguas que aqui se tomarão em cotejo, a relação causal entre orações codifica-se frequentemente em hipotaxe, com o segmento causal (a "causa", lato sensu) representado pela oração dependente, em geral posposta, mas também se codifica em parataxe, com orações sintaticamente independentes, e com a segunda oração iniciada por um juntivo que marca a relação causal pela sua ponta oposta, a dos resultados, conclusões, etc. Assim, tanto (16) como (17), que estão adiante, podem ser ditas "construções causais", do ponto de vista do estabelecimento de uma relação em que, intersubjetivamente, os parceiros da interlocução hão de automaticamente considerar o que se expressa em um dos segmentos como desencadeado pelo outro:
(16) Andava depressa porque já era tarde. (QD-R)
(17) A ação do P parece ocorrer por meio de sua concentração na planta, portanto é possível imaginar que a aplicação de P possa ter um efeito diferente em função da espécie estudada. (PAG-T)
As línguas aqui tomadas em comparação com a nossa exibem sistemas que têm grandes semelhanças com o dela, nesse particular: correspondendo a essas mesmas duas opções de expressão de causalidade entre orações (uma em cada direção), o inglês tem, por exemplo, because e thus, o alemão tem weil e dann, o francês tem parce que e donc, o italiano tem perché e dunque, e assim por diante.
Ainda na zona da expressão das causalidades, outra parametrização pode ser estabelecida na comparação com línguas congêneres, no que respeita à funcionalidade dos juntivos oracionais causais. Trata-se das múltiplas possibilidades de expressão da relação lato sensu causal em construções hipotáticas, ou seja, em construções com uma oração nuclear e uma oração hipotática marcada por um juntivo do tipo causal (de que é porque o representante por excelência, no português). A "multiplicidade" a que me refiro tem mais de um ponto de origem, e em duas direções essas origens vão ser lembradas aqui. Ambas levam à mutiplicidade de conteúdos semânticos e de efeitos pragmáticos que se apreciam nas configurações textual-discursivas, levando também à explicitação de mecanismos de análise para os usos.
Na primeira direção, mais diretamente provinda das bases cognitivistas da gramática, lembra-se aqui a proposta de Sweetser (1990), também desenvolvida em Dancygier e Sweetser (2000), que, estudando as relações condicionais (a que, evidentemente se ligam as causalidades), coloca-as em diferentes domínios discursivos: o do mundo real (em que se estabelecem relações "de conteúdo", referentes à ligação entre as ocorrências dos eventos), o epistêmico (em que se estabelecem relações de situações prováveis entre os eventos, provindas do falante) e o dos atos de fala (genericamente, as relações de natureza intercomunicativa).
Na segunda direção, esta mais diretamente provinda das bases funcionalistas da gramática, lembra-se o princípio de que a sinalização linguística da combinação de orações tem base em estratégias retóricas de produção (Hopper e Traugott 1993). Por aí se concretiza, por exemplo, a proposta que equaciona o grau de interdependência das orações segundo o cruzamento de uma combinação paratática (relação de listagem) com uma combinação hipotática (relação núcleo-satélite), no abrigo da organização retórica do discurso, pela qual se distinguem aqueles termos que realizam objetivos (mais) centrais daqueles que realizam objetivos suplementares do locutor (Matthiessen e Thompson 1988). Vige a noção de que os diversos eventos têm, inerentemente, além de diferente conteúdo, diferente importância comunicativa, e o falante lhes confere relevo, segundo seus propósitos, definidos no concerto cognitivo a que a situação de discurso se atrela.
Assim, no exame de uma construção como
(18) Acontecerá porque eu quis. (CH-R)
é legítimo dirigir a atenção para o fato de que a hierarquia que aí se verifica, embora sintaticamente configurada (em hipotaxe), entretanto, extrapola as bases rigidamente gramaticais para incorporar relações evidentemente retóricas (Mathiessen e Thompson 1988), já que um núcleo oracional se expande em outra oração que lhe confere saliência, que lhe dá “realce” (Halliday 1994). É legítimo, também, quanto a esse exemplo, dirigir a atenção para o estatuto informacional de cada um dos dois segmentos, o qual se configura na direção de informação dada para informação nova, trazida no segmento causal posposto. Na ocorrência que vem a seguir, por outro lado, a direção se inverte, no sentido de que o falante escolhe um fluxo informacional que segue a direção novo-dado, e para isso extrapõe o segmento causal, assim como o focaliza por um meio lexical (o advérbio precisamente):
(19) E, precisamente porque crescia, a felicidade de Dorinha tornava-se exigente. (PV-R)
É nesse território sintático da hipotaxe (relações em hierarquia), e seus modos de construção em português, que este estudo se concentrará.
4. O caso específico dos elementos juntivos hipotáticos de expressão "causal"
4.1 A relevância dos elementos juntivos
O estatuto informacional do segmento causal da oração complexa é o fator pragmático que governa a escolha do conectivo pelo falante, já que essa escolha se faz em dependência daquilo que ele considera que já seja parte do conhecimento dos parceiros de comunicação (a informação já “dada”) ou que ainda seja desconhecido, nessa interlocução (a informação “nova”), para que ela seja eficiente, em um discurso coerente.
Verifica-se, nos estudos, que o uso dos conectivos tem sido um ponto importante de atenção para entender o modo como os falantes categorizam a causalidade na organização textual-discursiva, e, no caso de nosso estudo, que vai mais especificamente às relações causais interoracionais, essas peças juntivas da gramática da língua são de interesse central. A própria complexidade dos conjuntos de juntivos que a gramática das diversas línguas vai compondo nesse campo revela uma busca contínua de satisfazer as especificidades dentro dessa categoria lógico-semântica, e por aí evidencia a pertinência de um olhar reflexivo sobre a sua expressão.
A determinação das relações “causais” é, em si, complexa, mesmo que se dispensem, nas discussões, as suas contrafaces, representadas pelas relações condicionais, concessivas e finais[2]. Como já explicitei aqui, a linguística cognitiva estabelece, cientificamente, domínios de uso para esse tipo de relações – o domínio do conteúdo, o epistêmico e o do ato de fala (Sweetser 1990) –, mas vai mais além, fazendo intervir o conceito de subjetividade, em oposição a objetividade (Langacker 1990; Verhagen 2005), o que, na verdade, se resolve em intersubjetividade (Finegan 1995; Verhagen 1995, 2005; Athanasiadou et al. 2006; Geeraerts e Cuyckens 2007; Traugott 1995, 2010). A linguística sistêmico-funcional, por sua vez, propõe, para a classificação de qualquer relação hipotática “de realce” (Halliday 1994), uma distinção baseada nos conceitos de “externo” (na tese, ou seja, no conteúdo do que está sendo dito) e “interno” (no argumento, ou seja, internamente à situação de comunicação) (Halliday e Hasan 1976: 239-240). A classificação mais corrente e mais popularizada, porém, vem diretamente da teoria dos atos de fala (Searle 1982), distinguindo a relação causal semântica, ou proposicional, da ilocucionária, ou pragmática. Em geral e vulgarmente, a complexidade é explicitada diretamente no campo da significação, dentro do qual se enfileiram, por exemplo, ao lado de “causa”, noções como as de motivo, razão, explicação, justificativa, já referidas.
4.2 As “conjunções causais”
Os elementos juntivos que aqui se examinam – denominados “causais” e tradicionalmente classificados como conjunções – são, em princípio, os do sistema gramatical da língua portuguesa; entretanto, como já indiquei, para esta discussão eles são vistos em cotejo com elementos que recobrem a mesma ampla zona (e possivelmente correspondentes) em outros sistemas, especificamente os de línguas indoeuropeias.
Evidentemente, o elemento particularmente representativo dessa classe é porque. Lembro, aqui, o modo de explicitação tradicional da gramática do português, que dicotomiza as orações iniciadas por porque em “subordinadas causais” e “coordenadas explicativas”. Correspondem lato sensu a esse par os pares parce que e car do francês, because e for, do inglês, weil e denn do alemão, perché e poiché do italiano.
Sabemos que as gramáticas tradicionais passam sem dificuldade sobre as conjunções subordinativas causais, e, prevendo a dificuldade de distinção, demoram-se um pouco mais nas chamadas “conjunções coordenativas explicativas”.
Sejam exemplo duas gramáticas tradicionais de longa circulação no país, Cunha (1975) e Bechara (1977). Para a primeira, as conjunções subordinativas causais são as que “iniciam orações subordinadas demonstradoras de causa” (Cunha 1975: 394), e, para a segunda (Bechara 1977: 161), as conjunções são causais “quando iniciam orações que exprimem causa,o motivo, a razão do pensamento na oração principal”. Quanto às coordenativas explicativas, são as seguintes as conceituações: para Cunha (1975: 393), as conjunções explicativas são as “que ligam duas orações, a segunda das quais justifica a ideia contida na primeira”, e para Bechara (1977: 162), as conjunções são explicativas “quando começam a oração que explica a razão de ser do que se diz na oração a que se ligam”. Em observação que vem a seguir, Bechara (1977) atribui às “explicativas” valor causal (mas coordenativo), tal como Said Ali (1966: 147): “As explicativas não passam de causais coordenativas.”[3] (Bechara 1977: 196).
Macambira (1974: 103 e 70) considera causais as chamadas “explicativas” (julgando estrutural e não semântica a diferença entre os dois grupos), e apresenta a questão com recurso às línguas que também apresentam esses pares: causais subordinativas / causais coordenativas[4]. Entre os pares invocados para a comparação com o português estão os elementos gregos hóti (porque) e gár (pois), a que correspondem , no latim, quia e nam. De minha parte (Neves 2005: 176-177), lembro que a gramática grega incipiente já classificava ambos como causais (aitiológikós, Apolônio Díscolo, Das conjunções: 501-512). Observe-se que as sýndesmoi aitiologikói gregas abrigavam, além das estritamente causais (aitiologikói propriamente ditas, ou aitiódes), as continuativas (como se), as subcontinuativas (como já que, desde que), as adjuntivas (como para que) e as efetivas (como com efeito). Assim, todo juntivo oracional indicativo de causa-efeito era genericamente chamado aitiologikós, “causal”.
4.3 A proposição de blocos em contraste
Em português, é histórico o estudo “Indicações para uma análise semântica argumentativa das conjunções ‘porque’, ‘pois’ e ‘já que’”, do linguista Carlos Vogt (Vogt, 1983), que, baseado na semântica argumentativa de Ducrot e seu grupo (citando Ducrot et al. s/d[5]), ilustra uma das primeiras incursões nesse terreno para a língua portuguesa. Esse estudo, que vai especificamente a essas conjunções pois, porque e já que, em direta correspondência com car, parce que e puisque, procura mostrar que pois e já que estão mais próximas uma da outra do que porque e já que, de tal forma que a oposição que a tradição faz entre coordenativas explicativas e subordinativas causais tem de ser questionada porque ela “encontra poucas evidências que a confirmem” (Ducrot et al. s/d: 88). O que o autor quer provar é que, do ponto de vista sintático, pois e já que estão mais próximas uma da outra do que porque e já que. Na verdade, a questão é até mais ampla, e há alguns fatos não de todo considerados nas reflexões oferecidas.
Do ponto de vista sintático – concede o autor – a oposição tradicional é corroborada, o que vem mostrado com a aplicação destes dois “critérios sintáticos”:
a) porque e já que (assim como as demais “conjunções subordinativas causais”) podem iniciar enunciado, enquanto pois exige um texto anterior;
b) porque e já que podem “combinar-se com a conjunção e, enquanto pois normalmente não o faz”. (Vogt 1983: 88-90)
Entretanto, diz o autor, se esses fatos distribucionais parecem justificar a classificação tradicional, “outros critérios conseguem apontar semelhanças importantes de funcionamento entre pois e já que em oposição a porque” (Vogt 1983: 92). São três os argumentos em favor da consideração de pois e já que como conjunções coordenativas, e de porque[6] como subordinativa:
1) Diferentemente do que ocorre com o porque, com pois e com já que não se pode responder a questão por que....?:
— Por que você ficou resfriado?
(a) *Pois eu saí sem agasalho.
ou
(b) *Já que saí sem agasalho.
2) Diferentemente do que ocorre com porque, as conjunções pois e já que não podem ser extrapostas nem postas em questão:
(a) *É pois ele comeu pouco que está doente.
ou
(b) *É já que ele saiu sem agasalho que está resfriado.
3) Diferentemente do que ocorre com porque, as conjunções pois e já que dificilmente podem ser modificadas por um advérbio:
(a) Ele comeu pouco simplesmente pois não tinha fome.
(b) Ele comeu pouco provavelmente já que não tinha fome.
Todos esses argumentos são apresentados, pois, em contraposição aos critérios sintáticos tradicionais, que apoiam a consideração de pois como coordenativa e de porque e já que como subordinativas, e que são: a exigência de um pré-texto, para pois, e a possibilidade de combinação de porque e já que com e.
Mas, na verdade, mesmo esses dois critérios que o autor invoca para corroborar a oposição tradicional precisam ser mais bem avaliados. Examinem-se as afirmações e o que proponho que seja contraposto:
1º) “Pois exige um pré-texto; porque e já que não exigem.” Indico, entretanto, que também o porque, quando “explicativo”, exige um pré-texto, assim como o pois. Assim, esse critério, na realidade, responde por uma outra oposição, a que existe entre as chamadas “explicativas” e as “causais”.
2º) “Porque e já que podem combinar-se com e; pois não pode.” Indico, entretanto, que o porque “coordenativo” funciona como o pois. Assim, esse critério, na realidade, não opõe os dois grupos indicados de conjunções, mas opõe subordinativas a coordenativas.
Ocorre, ainda, que os três critérios que seriam definitórios da conjunção “subordinativa causal”, representada pelo porque[7], são peculiaridades dessa conjunção particularmente, e ela seria a conjunção “de causa” stricto sensu. Na verdade, as outras conjunções classificadas como “causais” em português (como já que, visto que, desde que, uma vez que) comportam-se, nesses casos, do mesmo modo que pois, isto é:
a) não respondem à pergunta: por que....?;
b) não podem ser extrapostas;
c) não podem ser modificadas por advérbio.
Tudo isso significa que tais critérios, que conseguem apontar semelhanças importantes de funcionamento entre pois e já que, em oposição a porque, na verdade podem ser aplicados para provar diferenças importantes de funcionamento entre porque e todas as outras chamadas conjunções subordinativas causais, o que, obviamente, o autor não desconhece (Vogt 1983: 107). Por outro lado, as diferenças com pois não se esgotariam nessas indicações.
As propostas de Vogt (1983: 99) quanto à oposição entre porque, de um lado, e pois e já que, de outro, buscam reforço no fato de que os grupos p pois q e p já que q (em que p e q são as proposições relacionadas pelas conjunções pois e já que, respectivamente) não podem, sem romper-se semanticamente:
1) ser submetidos a negação:
(a) Pedro parou de trabalhar, pois eram seis horas.
(a’) Pedro não parou de trabalhar, pois são seis horas.
(b) Pedro irá à sua casa, já que prometeu.
(b’) Pedro não irá à sua casa, já que prometeu.
2) ser submetidos a interrogação:
(a) Pedro parou de trabalhar, pois são seis horas.
(a’) Pedro parou de trabalhar? pois são seis horas.
(b) Pedro irá à sua casa, já que ele prometeu.
(b’) Pedro irá à sua casa? já que ele prometeu.
3) submeter-se a encadeamento, isto é, transformar-se em subordinada de uma outra proposição:
(a) Ele está em casa, pois seu carro está na garagem.
(a’) Creio que ele está em casa, pois seu carro está na garagem.
(b) Pedro viajou, já que seu carro não está na garagem.
(b’) Tenho certeza de que Pedro viajou, já que seu carro não está na garagem.
4) constituir-se no escopo de um quantificador:
(a) Os turistas virão, pois está calor.
(a’) Poucos turistas virão, pois está calor.
(b) Os turistas virão, já que está calor.
(b’) Muitos turistas virão, já que está calor.
Novamente, há fatos intervenientes não considerados, como se vê, adiante, nos comentários que faço a esses quatro tópicos.
Em 1) e 2) apenas a primeira proposição é negada ou interrogada, ou seja, ocorre um fraccionamento semântico. Diferente seria o caso com a conjunção porque (sem pausa anterior):
(a’) Pedro não parou de trabalhar porque eram seis horas.
(b’) Pedro não irá à sua casa porque prometeu.
(a’) Pedro parou de trabalhar porque eram seis horas?
(b’) Pedro irá à sua casa porque prometeu?
Em 3), não são os blocos p pois q ou p já que q que se encadeiam, mas apenas, em cada caso, a proposição p, tanto que a proposição que contém a conjunção pois ou já que vem como uma espécie de justificativa para o todo Creio que...., ou o todo Tenho certeza de que..., e não para (respectivamente) ele está em casa ou para Pedro viajou, como na relação “causal” original. Diferente seria uma ocorrência com porque. Entretanto, neste caso, para que se faça a exposição, é necessário que se construam outras frases, de partida, e é o que apresento:
(a) Ele está em casa porque teve folga hoje.
(a’) Creio que ele está em casa porque teve folga hoje.
(b) Pedro viajou porque o carro ficou pronto.
(b’) Tenho certeza de que Pedro viajou porque o carro ficou pronto.[8]
Em 4), mais uma vez se rompem os blocos p pois q ou p já que q, e o quantificador incide apenas sobre p (turistas virão). Diferente seria o caso com porque, como mostro adiante:
(a’) Poucos turistas virão porque está calor.
(b’) Muitos turistas virão porque está calor.
Como se relata em Batt et al. (2014)[9], em francês há muitos estudos que postulam uma dissimetria entre car e parce que, de um lado, e puisque, de outro lado:
a) car e parce que são mais focalizados no conteúdo do discurso, enquanto puisque é mais focalizado no aspecto ilocucionário; puisque é considerada uma conjunção fortemente “subjetiva”, que mais frequentemente carrega informação dada, mas não sempre;
b) em muitos casos, a proposição p puisque q parece pressupor a verdade do segmento introduzido por puisque: este conectivo sugere que q já foi admitido ou conhecido pelo falante ou leitor, o que implica que, virtualmente, o falante ou leitor é compelido a aceitar a conclusão ou argumento “p” que segue “q”;
c) entretanto, o fato de puisque ser mais dialógico que car ou parce que não significa que esses outros conectivos não tenham uma função dialógica; a particularidade de puisque é permitir justificar um ato por referência a uma regra condicional, ou seja, é conferir a uma relação entre dois segmentos um estatuto suficiente de condicionalidade.
A obra (Batt et al. 2014: 125) lembra que esse aspecto altamente dialógico de puisque foi observado por Searle (1982: 44-45), que viu no conectivo um ato de justificativa, ligando-o ao fato de que que certas expressões são usadas para pôr a enunciação em relação com o discurso.
4.4 A singularidade funcional da conjunção porque
Voltemos a considerar estes enunciados já apresentados, agora com uma variação de análise:
(18) Acontecerá porque eu quis. (CH-R)
(
(1) Isso ocorreu porque o número total de plantas avaliadas foi fixado. (PAG-T)
(
É evidente, nesses enunciados, a relação causal entre dois eventos: x porque y. Simplificando bem a questão, poderíamos dizer que o sintagma adverbial (que, no caso, é representado por uma oração, pois é esse nível o tema do estudo) é do tipo adjunto[10], isto é, está no indicador sintagmático c-comandado pelo sintagma verbal. Aplicando-se dois dos três critérios selecionados por Quirk et al. (1974: 421-423)[11] para testar o caráter adjuntivo desse sintagma[12], tem-se:
a) um contraste entre esse sintagma adverbial e outro, por meio de uma interrogação alternativa (que apresenta o advérbio como foco de interrogação):
(18a) Acontecerá porque eu quis ou porque.....?
(18a’) Porque eu quis ou porque..... acontecerá?
(1a) Isso ocorreu porque o número total de plantas avaliadas foi fixado ou porque.....?
(1a’) Porque o número total de plantas avaliadas foi fixado ou porque..... isso ocorreu?
b) um contraste entre esse sintagma adverbial e outro por meio de uma negação alternativa:
(18b) Não acontecerá porque eu quis, mas porque....
(18b’) Não porque eu quis, mas porque..... acontecerá.
(1b) Isso não ocorreu porque o número total de plantas avaliadas foi fixado, mas porque.....
(1b’) Não porque o número total de plantas avaliadas foi fixado, mas porque..... isso ocorreu.
Outros traços sintáticos dos adjuntos que podem servir para testar o caráter adjuntivo das orações adverbiais iniciadas por porque em enunciados desse tipo (além de elas poderem ser o foco de interrogação e o foco de negação) são apontadas por Quirk et al. (1974: 427-428). Assim, por exemplo:
c) Os adjuntos podem ser o foco de advérbios restritivos/exclusivos, como só, somente:
(18c) Acontecerá só porque eu quis. (CH-R)
(18c’) Só porque eu quis acontecerá.
(1c) Isso ocorreu só porque o número total de plantas avaliadas foi fixado. (PAG-T)
(1c’) Só porque o número total de plantas avaliadas foi fixado isso ocorreu.
d) Os adjuntos podem ser o foco de advérbios inclusivos, como também (apresentando uma causa que se acresce a outras):
(18d) Acontecerá também porque eu quis. (CH-R)
(18d’) Também porque eu quis acontecerá.
(1d) Isso ocorreu também porque o número total de plantas avaliadas foi fixado. (PAG-T)
(1d’) Também porque o número total de plantas avaliadas foi fixado isso ocorreu.
e) Os adjuntos podem ser topicalizados:
(18e) Acontecerá foi porque eu quis. (CH-R)
(18e’) Foi porque eu quis que acontecerá.
(1e) Isso ocorreu foi porque o número total de plantas avaliadas foi fixado. (PAG-T)
(1e’) Foi porque o número total de plantas avaliadas foi fixado que isso ocorreu.
Essa natureza adjuntiva adverbial que se verifica nos usos de porque é particularmente responsável pelo caráter singular de seu comportamento, em relação ao dos demais conectivos adverbiais que compõem tradicionalmente o elenco de “conjunções causais”. Constitui um dado instigador sobre o comportamento de porque o fato de que, em amostra bastante extensa que coletei no banco de dados disponível no Departamento de Linguística da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Araraquara (Córpus de Araraquara), verifiquei que, entre os elementos juntivos que ocorreram sem pontuação anterior (não precedidos de ruptura prosódica representada por ponto final, reticências ou vírgula), ou seja, em adjunção formal, o elemento porque teve uma taxa de 40%, enquanto os outros tiveram, quando muito, a metade: já que e posto que atingiram 20%; desde que e uma vez que, 10%; visto que, apenas 1%.
Esse tipo de relação causal stricto sensu que foi ilustrado com o uso de porque pode ser examinado, por outro lado, como desencadeado por menos forte gatilho de intersubjetividade, se comparado com relações que indiquei como acionadoras de operações como as de explicar, de arrazoar, de justificar, de legitimar, de opinar. Em princípio, essas orações de porque construídas em uma neutra adjunção seriam menos engatadas no(s) parceiro(s) da comunicação e mais centradas no conhecimento e nas crenças do falante, do que orações adverbiais disjuntas, que Quirk et al. (1974: 507) exemplifica com uma oração de “motivo” (anteposta e separada por vírgula) introduzida por since (já que): Since we live near the sea, we enjoy a healthy climate. (Já que vivemos perto do mar, gozamos de um clima saudável.)
Na mesma linha de análises aqui apresentadas, em Quirk et al. (1974: 508, nota) está indicado que a oração com since aí exemplificada não pode ser contrastada com alguma outra em uma interrogação alternativa ou em uma negação alternativa (aliás, por isso ela é disjunta). Obviamente o autor não deixa de observar que because (porque), embora frequentemente uma conjunção de orações adverbiais do tipo conjunto, também pode ser do tipo disjunto, como em He’s drunk, because I saw him staggering. (Ele está bêbado, porque o vi cambaleando.)
Se quisermos ponderar essas diferentes cargas subjetivas ou intersubjetivas nos usos das diferentes construções linguísticas – aqui, particularmente, quanto às relações de causa oracionais –, podemos ver, claramente, na esteira de Verhagen (2005), a metafunção ideacional relacionada ao objeto de conceptualização, a metafunção interpessoal relacionada aos dois sujeitos da conceptualização coordenados entre si, e a metafunção textual relacionada à organização do discurso, ou seja, ao que é dado ou é novo no fluxo informativo.
5. Considerações finais
Este estudo considerou, na base, que o exame dos modos de expressão adverbial das diferentes relações que implicam “causalidade” pode beneficiar-se da consideração de que a coordenação cognitiva dos parceiros da elocução regula a produção interna das sequências, regendo as relações discursivas (intersubjetividade), ao mesmo tempo que os intercursos pessoais movem as solicitações de cumprimento do contrato social interlocutivo (interação).
Os gramáticos das diferentes épocas, com a sensibilidade natural de falantes nativos da língua, souberam fazer um corte significativo no conjunto dos modos e dos elementos de expressão dessas relações através dos tempos: haveria as “causais” propriamente ditas e haveria as “explicativas”, aquelas em que alguma origem “provocadora” desencadeia uma contraparte responsiva, sem que haja, porém um percurso exato de causa a consequência ou efeito, pelo menos em via direta. Mais que isso, a gramática também soube assentar, no curso de sua história, a diferença sintática que reveste esses dois blocos, arranjando um deles no compartimento da subordinação e o outro no da coordenação.
Dicotomias à parte – que não é este o momento de discussão sobre a temeridade dos engessamentos categoriais –, realmente a natureza dos dois segmentos que entram em cada uma dessas relações adverbiais “causais” atesta a formação de dois grandes blocos, não necessariamente distinguidos sob determinações absolutamente rígidas.
Falando de elementos da língua portuguesa, o que parece cientificamente decidido é que o juntivo porque tem uma posição singular no conjunto. Aqui nestas discussões, ele entrou especialmente naquele uso em que constitui o representante “não marcado” da conexão stricto sensu causal, embora ele também seja frequentemente usado na conexão tradicionalmente dita “explicativa” (o caso típico de pois).
Nesse estatuto em que foi analisado, porque pode ser visto como o elemento juntivo “causal” que menos leva o emissor a dirigir atenção especial para a presença e a individualidade do emissor (Traugott 2010), que menos leva o destinatário a esperar da mensagem um encaminhamento para inferências especiais que minimizam ou dispensam a pura causalidade dos eventos (Traugott e König 1991), portanto, que tem o menor apelo intersubjetivo e a menor relevância discursivo-argumentativa. Por isso, em estudos que testaram a oposição entre os juntivos porque e já que[13], por exemplo, viu-se que porque (contrariamente a já que) pode ser extraposto ou posto em questão (Vogt 1983: 82), e viu-se, ainda, que o grupo p porque q (contrariamente ao grupo p já que q) pode submeter-se a negação, a interrogação e a encadeamento, e também pode constituir-se no escopo de um quantificador (Vogt 1983: 99). A interpretação dada aos fatos nesses estudos não foi a mesma que segui nestas reflexões, mas as evidências falaram no sentido que defendi.
Numa outra linha de discussão, a proposta de Quirk et al. (1974: 420-531), que estuda o because inglês (porque) como juntivo de orações adverbiais do tipo “conjunto” (aquele de que trato aqui) e como juntivo de orações adverbiais do tipo “disjunto”, corrobora o encaminhamento da questão no sentido da singularidade do elemento porque.
Só agora, ao final, vou a uma indicação muito esclarecedora, mas que não foi tratada porque estende o tema para fora do que foi proposto para este texto. Cabe lembrar, de todo modo, que não sem consequências é o fato de que, entre os juntivos causais que transitam nos dois grupos, apenas o porque tem uma forma plenamente “gramaticalizada”, já absolutamente “gramatical”, sem nenhuma carga adicional de marcas que lhe possam ser dadas por elementos de base lexical como já, visto, dado, desde, uma vez (de já que, visto que, dado que, desde que, uma vez que, respectivamente). Ora, para os casos de adjunção de orações (para o caso do porque mais estritamente causal), tal fato, se não é propriamente um atestado, pelo menos é uma boa pista dessa maior neutralidade semântica desse elemento, cuja presença dispensa grandes convites para inferências, ao mesmo tempo que não revela fortes apelos de direção argumentativa, tal como os juntivos que carregam marcas adicionais de envolvimento pessoal do falante.
Referências bibliográficas
Basler, Otto. 1935. Der grosse Duden; Erster verbesserte Neudruck, Zurique, Fretz & Wasmuth A.G.
Batt, Martine et al. 2014. Dialogical history of a logical fallacy spontaneously produced during a predictive medicine consultation. Role of the causal connective Puisque in a discussion, Journal of Pragmatics 61, 120-141.
Bauer, Friedrich. 1871. Grundzüge der neuhochdeutschen Grammatik für höhere Bildungs-Anstalten, Nördlingen, Druck und Verlag der C. H. Beck’schen Buchhandlung.
Bechara, Evanildo. 1977. Moderna gramática portuguesa, 22ª ed., São Paulo, Editora Nacional.
Cunha, Celso. 1975. Gramática do português contemporâneo. 5ª ed. rev., Belo Horizonte, Bernardo Á lvares.
Dancygier, Barbara e Eve Sweetser. 2000. Constructions with if, since, and because: Causality, epistemic stance, and clause order, em E. Couper-Kuhlen e B. Kortmann (eds), Cause, condition, concession and contrast: Cognitive and discourse perspective, Berlin, Mouton de Gruyter: 111-142.
Ducrot, Oswald. 1983. Puisque: essai de description polyphonique, em Michael Herslund et al. (eds.), Analyses grammaticales du français. Etudes publiées à l’occasion du 50e anniversaire de Cari Vikner, Revue Romane, 8 spécial. 24: 166 - 185.
Ducrot, Oswald. 1984. Le dire et le dit. Paris: Editions de Minuit.
Ducrot, Oswald et al. s/d. Car, parce que, puisque. Mimeografado.
Finegan, Edward. 1995. Subjectivity and subjectivisation: an introduction, em D. Stein e S. Wright (eds), Subjectivity and subjectivization: linguistic perspectives, Cambridge, Cambridge University Press: 1-15.
Geeraerts, Dirk e Hubert Cuyckens. 2007. The Oxford handbook of Cognitive Linguistics, Oxford, Oxford University Press.
Halliday, Michael Alexander Kirkwood. 1994. An Introduction to Functional Grammar, Baltimore, Edward Arnold.
Halliday, Michael Alexander Kirkwood e Huqaiya Hasan. 1976. Cohesion in English, London, Longman.
Hopper, Paul John e Elizabeth Closs Traugott. 1993. Grammaticalization, Cambridge, Cambridge University Press.
Kiparsky, Paul e Carol Kiparsky. 1970. Fact, em M. Bierwish e K. E. Heidolph (eds.), Recent advances in Linguistics, The Hague, Mouton: 143-173.
Langacker, Ronald Wayne. 1990. Subjectification. Cognitive Linguistics, 1: 5-38.
Macambira, José Rebouças.
Matthiessen, Christian Matthias Ingemar Martin e Sandra Thompson. 1988. The structure of discourse and “subordination”, em J. Haiman e S. Thompson (eds.), Clause combining
in grammar and discourse, Amsterdam, John Benjamins: 275- 329.
Neves, Maria Helena de Moura. 2005 [1987]. A vertente grega da gramática tradicional: uma visão do pensamento grego sobre a linguagem. 2ª ed., São Paulo, Ed. UNESP.
Neves, Maria Helena de Moura. 2011 [2000]. Gramática de usos do português, 2ª ed., São Paulo, Editora Unesp.
Neves, Maria Helena de Moura.
Quirk, Randolph et al.
Said Ali, Manuel. 1966. Gramática secundária da língua portuguesa, São Paulo, Melhoramentos.
Sanders, Ted e Johannes Maria. 2005. Coherence, causality and cognitive complexity in discourse, em M. Aurnague (ed.), Proceedings of the First International Symposium on
the Exploration and Modelling of Meaning, Toulouse, Université de Toulouse-le-Mirail: 31-46.
Searle, John Rogers. 1982. Intentionality, Cambridge, Cambridge University Press.
Sweetser, Eve. 1990. From etymology to pragmatics, Cambridge, Cambridge University Press.
Traugott, Elisabeth Closs. 1995. Subjectification in grammaticalization, em D. Stein e S. Wright (eds), Subjectivity and subjectivization: linguistic perspectives, Cambridge, Cambridge University Press: 31-54.
Traugott, Elisabeth Closs. 2010. (Inter)subjectivity and (inter)subjectification: a reassessment, em K. Davidse, L. Vandelanotte e H. Cuyckens (eds.), Subjectification, intersubjectification and grammaticalization, Berlin, Walter de Gruyter: 29-71.
Traugott, Elisabeth Closs e Ekkehard König. 1991. The semantic-pragmatics of grammaticalization revisited, em E. C. Traugott e B. Heine (eds.), Approaches do grammaticalization, V. 1: Focus on theoretical and methodological issues. Amsterdã: John Benjamins: 189-218.
Traugott, Elisabeth Closs e Richard B. Dasher. 2002. Regularity in Semantic Change, Cambridge, Cambridge University Press.
Verhagen, Arie. 1995. Subjectification, syntax and communication, em D. Stein e S. Wright (eds.), Subjectivity and subjectivisation: linguistic perspectives, Cambridge, Cambridge University Press: 103-128.
Verhagen, Arie. 2005. Constructions of intersubjectivity: Discourse, syntax and cognition, Oxford, Oxford University Press.
Verhagen, Arie. 2006. On subjectivity and ‘‘long distance wh-movement’’, em A. Athanasiadou, C. Canakis e B. Cornillie (eds.), Subjectification. Various paths to subjectivity, Berlin, Mouton de Gruyter: 323-346.
Vogt, Carlos. 1983. Indicações para uma análise semântica argumentativa das conjunções ‘porque’, ‘pois’ e ‘já que’,
Fonte das ocorrências analisadas (com identificação pela sigla do título, conforme consta no banco de dados: Córpus da UNESP de Araraquara)
AMB-T Revista da Associação Médica Brasileira 43, 4, out/dez 1997, São Paulo
B-Tr A borboleta amarela. 1963. Braga, Rubem, 4ª ed., Rio de Janeiro, Sabiá.
CB-J Correio Brasiliense. 22/07/1979, Brasília.
CH-R Chagas, o cabra. 1965. Mendes, Sulema, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
CHR-R Chico Rei. 1965. Ayala, Walmir, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
CIN-T Ciência da informação 29, 1, jan/abr / 2000, Brasília.
FSP-J Folha de São Paulo. 1979, 1993. CD-ROM 1994/1995, São Paulo.
MCU-R Macunaíma - o herói sem nenhum caráter. 1965 [1928]. Andrade, Mário, Obras completas, 4ª ed., São Paulo, Martins.
ME-C Memórias do cárcere. 1954. Ramos, Graciliano, Rio de Janeiro, José Olympio.
ME-O O jogo da verdade. 1973. Médici, Emílio Garrastazu, Brasília, Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República.
NDE-T Noções de Deontologia Medica e Medicina Profissional. 1930. Favero, Flamínio, Rio de Janeiro, Pimenta e Melo.
PAG-T Pesquisa Agropecuária Brasileira 35, 03, mar 2000, Brasília
PRE-R O presidente. 1959. Veiga, Vinicius, São Paulo, Clube do Livro.
PV-R Plataforma vazia. 1962. Barreto, Benito, Belo Horizonte, Itatiaia.
QD-R Quarto de despejo. 1960. Jesus, Carolina Maria, São Paulo, Paulo de Azevedo.
RMT-T Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 31, 3, maio/jun 1998, Brasília.
TEG-D Teatro de Figueiredo. 1964. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
[1] Estudando os diversos juntivos causais em holandês, o autor conclui que a subjetividade explica o significado e o uso desses conectivos (Original: “However, it seems clear that Subjectivity explains the meaning and use of Dutch causal connectives [...] Causality is a universal principle, which is systematically encoded in discourse.” (Sanders 2005: 38)).
[2] Tenho trabalhado sempre fazendo esses interfaceamentos. Cito apenas Neves (2012).
[3] Também aloco entre as causais as orações chamadas “explicativas”, que conceituo segundo o domínio em que atuam, vale dizer, segundo o nível dos segmentos que elas ligam (Ver Neves 2011 [2000]: 817-818).
[4] Macambira (1974: 70) nega, porém, a existência de um porque coordenativo em português, e citando Basler (1935) - que diz que as orações unidas por conjunções coordenativas causais podem geralmente apresentar-se sob a forma de orações subordinadas -, exemplifica, em paralelismo com o alemão (Ich muss gehen, denn ich habe Eile = Ich muss gehen, weil ich Eile habe; correspondendo a Eu devo ir, pois tenho pressa = Eu devo ir porque tenho pressa). O que me parece é que esse sinal de “igual” não avalia devidamente a diferença de uso da vírgula nas duas línguas: antes de weil, em alemão, ela vem como sinal estrutural da própria oração subordinada, ela vem antes de porque; em português, pelo contrário, vem como sinal indicativo de pausa, de ruptura, por isso mesmo sinal, nesse caso, marca de coordenação, não de subordinação causal, pois o adjunto adverbial causal proposto é geralmente enunciado sem pausa após seu núcleo. Esse problema se evidencia também mais adiante, quando Macambira (1974: 70), fala de “distinção estrutural” entre pois e porque usados após vírgula. Devo observar que esse mesmo exemplo alemão de Basler (1935), e com as mesmas considerações, para o alemão, está em Bauer (1871: 78).
[5] Vogt refere-se a um texto ainda inédito, citado como “mimeografado”, e essa é a referência bibliográfica que aqui se transcreve.
[6] O autor deixa de lado o porque explicativo, isto é, o que equivale a pois, e que tem sido classificado como coordenativo.
[7] Lembrem-se os três critérios: (a) não poder responder a questão por que....?; b) não poder ser extraposta nem posta em questão; c) não poder ser modificada por um advérbio.
[8] É importante observar que os predicados encaixadores que estão nesses exemplos são não factivos, ou seja, a pressuposição de verdade do complemento não vale para a frase como um todo. Ver Kiparsky e Kiparsky 1970.
[9] O apoio de base é o “Lambda-1 Group,
[10] Assuma-se a especificação dos advérbios em adjuntos, disjuntos e conjuntivos apresentada em Quirk et al. 1974: 271-274; 420-531.
[11] Deixo de aplicar o primeiro dos critérios apresentados nessa obra (“Se um advérbio não pode aparecer no início de uma oração declarativa negativa”, p. 421) porque as condições de colocação do sintagma adverbial são muito diferentes em inglês e em português, e, para o tratamento, seriam necessárias muitas observações adicionais que não cabem neste trabalho. Aliás, os autores ressalvam que o critério número 1 não se aplica a sintagmas adverbiais oracionais (Quirk et al. 1974: 422-423, nota a).
[12] Esse caráter adjuntivo é que explica por que os grupos x porque y, como aponta Vogt (1983), podem, sem romper-se semanticamente: a) ser submetidos a negação; b) ser questionados; c) tornar-se em bloco a subordinada de outra oração; d) constituir o escopo de um quantificador (Vogt 1983: 103-107).
[13] Na verdade, Vogt (1983) opõe a porque não apenas já que, mas ainda pois, que, entretanto, não cabe na comparação feita neste momento, já que a discussão não girou em torno do porque “explicativo”.