1. O Problema
A língua-E do brasileiro contemporâneo manifesta variações em vários domínios, como seria de se esperar na visão de Labov (1972), cujo objetivo é o estudo da variabilidade inerente e a heterogeneidade sistemática na fala. Seu material de estudo é a Língua-E (externa e estensional), na nomenclatura de Chomsky (1986), investigada através de métodos quantitativos sofisticados. Para Labov, as variantes são necessariamente idênticas em referência e valor verdade, mas diferem em significado social e/ou estilístico.
Para Lavandera (1978), sociolinguista, não existe variação sintática. Para Kroch (1994), diacronista, existe variação sintática, mas esta envolve competição de gramáticas e não variação intralinguística. Numa perspectiva diacrônica, uma das formas em competição pode ser um resíduo da gramática anterior.
Tomemos como exemplo a perda do Princípio “Evite pronome”, que define uma língua de sujeito nulo (Chomsky 1981), estudado por Duarte (1993; 1995) no Português Brasileiro (PB). No século XIX, temos um exemplo típico do respeito radical a esse princípio, em que, conforme expectativa, não se encontram pronomes expressos, exceto nos casos de ênfase, contraste.
Já no exemplo (2), do século XX, temos o contrário: o que se encontra é o pronome expresso, ficando evidente que temos outra gramática. O exemplo (3) do mesmo século, por outro lado, apresenta variação pois o Princípio parece poder ser desrespeitado no início do discurso ou da sentença em contextos-chave nas línguas de sujeito nulo: encaixadas e contextos iniciais com um antecedente na mesma função na principal ou no contexto adjacente, como preferência pela realização do pronome em termos quantitativos.
- Século XIX
1. a. Ø 2ps terá o cavalo que Ø 2ps deseja. (O simpático Jeremias, de G. Tojeiro, 1918)
b. Ø 1ps já ontem comprei-lhei o hábito com que Ø i andará vestido. Assim
Ø i não estranhará. Ø i Será frade feliz. (O noviço de Martins Pena, 1845)
- Século XX
2. a. Se eu ficasse aqui eu ia querer ser a madrinha. (No coração do Brasil, de M. Falabella, 1992)
b. Você não entende meu coração porque você ‘tá sempre olhando pro céu e procurando chuva.
c. Agora ele não vai mais poder dizer as coisas que ele queria dizer. (No coração do Brasil, de M. Falabella, 1992)
-Século XX
3. a. mas ele i sentiu que Ø i era o único novo ali, recém-casado.
b. Nenhuma criança acha que Ø i /elai é burra.
Vejamos agora o lugar da variação sintática na teoria gerativa. Seu objetivo primordial tem sido sempre o estudo da Gramática Universal. Inicialmente o objetivo em Chomsky era entender o que era invariável nas línguas naturais para daí se entender o que seria comum na espécie humana. É na sintaxe que se buscam as respostas pois, como diz Chomsky (2010), a variação possível nas línguas pertence ao componente morfofonológico, isto é, ao processo de externalização da computação interna. Para Chomsky e Lasnik (1977), é possível haver regras estilísticas, mas estas ocorrem entre a Estrutura-S e a Forma Fonética (PF), pois não afetam o significado1.
Mas, a partir da teoria de Princípios e Parâmetros, a teoria formal chomskiana (Chomsky 1981) volta-se para o estudo da variação interlinguística, que está hoje também na base dos estudos de aquisição da linguagem, entendida como a seleção do valor dos parâmetros que definem uma língua no contexto. É ainda com a teoria de Princípios e Parâmetros que a linguística chomskiana volta sua atenção para a mudança sintática, entendida como mudança no valor de um ou mais parâmetros.
Enquanto o material de estudo da sociolinguística é a língua-E, o material de estudo da gramática gerativa é a gramática nuclear (core gramar), definida a partir da fixação dos parâmetros pela criança. Metodologicamente, quando trabalha com a sincronia, o linguista gerativista trabalha basicamente com juízos do falante, extraídos experimentalmente. Isto, porém, não é possível se se trabalha com a diacronia. Nesse caso, a metodologia não difere da dos sociolinguistas, e o pesquisador se baseia na língua-E do falante, registrada em documentos escritos.
O objetivo do presente artigo é investigar a variação gramatical na criança e, onde possível, na língua-I do indivíduo, expressa em sua língua-E. Esse tipo de variação é um problema para se obter na teoria chomskiana, em especial no Minimalismo, que rejeita a opcionalidade nas derivações. Para Slobin (1997), a variação sincrônica entre there’s books on the table e there are books on the table, a primeira que ele chama de normal e a segunda de prestígio ou desviante, são devidas ao que ele chama de vírus gramaticais, um mecanismo capaz de ler e afetar as formas normais, sendo externos à gramática.
Nos exemplos vistos em (3), vemos casos desse tipo de variação na fala do indivíduo brasileiro, tanto na escrita quanto na fala. Nesse estudo faremos uso de grupos de indivíduos no período de escolarização, por entendermos que estes são necessariamente bastante uniformes em competência linguística, pois estamos tratando de indivíduos da mesma geração, do mesmo nível de escolarização e provavelmente da mesma classe social.
2. O fenômeno de mudança a ser utilizado
O PB sofreu uma ruptura em seu paradigma pronominal e flexional a partir da entrada do pronome você, cuja origem vossa mercê é um NP2, com função de forma de tratamento usada para com o ouvinte. A substituição de tu por você, na maior parte do Brasil3, introduz o que Duarte (1993) chama, com base na tradição gramatical, de segunda pessoa indireta, por ela se associar à mesma flexão de terceira pessoa. Essa mudança provocou um rearranjo no paradigma pronominal e um efeito na morfologia flexional. Se a variação paramétrica é definida em termos de variação na morfologia e nas classes fechadas4, pode-se suspeitar que a substituição acima esteja na base das mudanças ocorridas no PB.
Na Tabela I abaixo podem ser vistas as mudanças nos clíticos e no paradigma dos possessivos por que está passando o PB em relação ao Português Clássico (PCL) e ao Português Europeu (PE)5:
Kato (1993) propõe que, ao lado das formas não-clíticas (ele, para ele, dele), o paradigma de clíticos do PB é constituído parcialmente de clíticos nulos para a terceira pessoa, que se superficializam como os chamados objetos nulos6.
4. a. Pegue o Snoopy e leve-o para o quintal.
b. Pega o Snoopy e Ø-leva pro quintal.
c. Pega o Snoopy e leva ele pro quintal.
Na Tabela II, de Kato, Cyrino e Correa (2009), a hipótese de Kato (1993) de que o objeto nulo tem o mesmo estatuto do clítico de terceira pessoa encontra confirmação diacrônica. A Tabela mostra que os clíticos de primeira e segunda pessoa não são afetadas pela mudança, mas que a terceira pessoa apresenta um decréscimo dramático, de 48% no fim do século XVIII para 4% em 1973. Além disso, a Tabela mostra que os pronomes fracos (Pron) ele/ela/eles/elas, que pouco apareciam no fim do século XVIII, passam a exibir 44% em 1973 em textos da mesma natureza.
Período | Cl1a | Cl2a | Cl3a | Neu- tro | Pron1a | Pron2a | Pron3a |
16th/1 | 29.0 | 29.4 | 34.8 | 6.8 | - | - | - |
16th/2 | 30.6 | 12.6 | 43.3 | 13.5 | - | - | - |
17th | 20.3 | 16.4 | 52.3 | 11.0 | - | - | - |
18th/1 | 36.5 | 19.3 | 37.8 | 6.4 | - | - | - |
18th/2 | 40.1 | 15.8 | 37.0 | 7.1 | - | - | - |
1838-4 | 32.5 | 10.7 | 51.2 | 5.1 | - | - | 0.5* |
1857 | 23.3 | 11.4 | 57.9 | 2.8 | 0.6* | - | 4.0 |
1891 | 15.9 | 12.1 | 48.1 | 2.8 | - | - | 11.1 |
1940 | 49.1 | 22.4 | 26.7 | - | 0.9* | - | 0.9* |
1960 | 51.1 | - | 16.3 | - | 2.2* | 11.9 | 18.5 |
1973 | 28.0 | 24.0 | 4.0** | - | - | - | 44.0 |
OBS: * = uma ocorrencia ** = plural Neu =neutro Pro= pronome não-oblíquo
Além disso, uma evidência de que os objetos nulos no PB correspondem no PE a clíticos acusativos de terceira pessoa está nas traduções de sentenças do escritor brasileiro Paulo Coelho para o PE:
5. a. Se hoje eu me tornasse um monstro e resolvesse matar Ø uma por uma ... PB
b. Se hoje eu me tornasse um monstro e resolvesse matá-las uma por uma ... PE
6. a. Tirou seu dinheiro do bolso e mostrou- Ø ao recém-chegado. BP
b. Tirou seu dinheiro do bolso e mostrou-o ao recém-chegado. PE
Um dos efeitos da mudança no paradigma dos clíticos está nas construções com tópico na periferia. Enquanto o PE tem Deslocamento Clítico à esquerda (Clitic Left Disolcation - CLLD), comum nas línguas românicas, o PB tem Deslocamento a Esquerda (Left Dislocation - LD), de distribuição mais generalizada nas línguas.
7. a. Este livro, ninguém o revisou ainda. PE CLLD
b. Este livro, ninguém revisou Ø / ele ainda. PB LD
8. a. Ao Manuel, telefonei-lhe ontem. PE CLLD
b. O Manuel, eu telefonei para ele ontem. PB LD
O PE recorre à LD apenas quando não há clítico disponível, como é o caso com certas preposições.
9. O Manuel, (eu) falei com ele ontem.PE PB
Essa mudança no nível morfológico foi acompanhada por uma mudança no nível sintático e no nível prosódico7. Os clíticos deixam de ter movimento longo (ex (10b) e (11)) (Pagotto 1993; Cyrino 1993) e a direção de cliticização muda da esquerda para a direita (Nunes 1993). A teoria de Nunes explica por que, no PB de hoje, temos próclise generalizada, enquanto no PE a cliticização é sempre para a esquerda, mesmo em casos em que o hospedeiro não é o verbo e onde temos aparente próclise8.
10. a. João queria [ver-te]. PE
b. [Quem te] queria ver? PE
11. a. João queria [te ver]. PB
b. Quem queria [te ver]? PB
A cliticização para a esquerda do PE condicionava o clítico a manifestar um onset consonantal, enquanto no PB a cliticização à direita não acarretava essa assimilação e daí a perda desses clíticos mesmo com onset consonantal. Na escrita, o PB mantém os clíticos nesse caso, com o onset [l], em variação com o pronome reto fraco.
PE PB escrito/ PB falado
12. a. Os meninos viram-na. 13. a. Os meninos a viram / viram ela.
b. As meninas vão ve(r)-lo. b. As meninas vão vê-lo / ver ele.
Kato (1994a) sugere que o PB começa a implementar o uso dos pronomes retos fracos ele/ela/eles/ela, na posição de objeto de verbo e de preposição, através do redobro clítico, porém com clítico nulo e o tópico à direita (Clitic Right Dislcation CLR), como se pode ver nos exemplos em (13 a. e b.). Com o clítico nulo, o que se obtém é (13c), que tem subjacente uma estrutura de redobro.
13. a. Eu te amo você. (Caetano Veloso)
b. Me põe eu em cima. (linguagem infantil)
c. Eu Ø-vi ele. (Kato 1994)
Uma outra mudança, ainda no paradigma dos clíticos, é a perda do se passivo e do se indefinido/genérico (Nunes 1991)9. No seu lugar, temos hoje um sujeito nulo à esquerda do verbo, que se seguiu à próclise generalizada no PB.
14. a. Vende-se casa. PE
b. Se vende casa. PB
c. Ø Vende casa. PB
A tabuleta de anúncio de venda de casa mostra essa variação em todo lugar10. Enquanto os clíticos nulos referenciais têm traços-phi como qualquer outro clítico, este nulo indefinido, seguindo Kato e Duarte (no prelo), será analisado como um Nome nulo, correspondente ao pronome indefinido one, no inglês, ou on, no francês.
Outra mudança nesse domínio é a concordância. Se o DP que se seguia ao verbo era plural, o verbo com ele concordava11. A mudança reanalisa o se passivo como se indefinido, ficando o verbo sempre no singular. Além disso, entra em cena também o sujeito nulo arbitrário de (15c) (Galves 1986). Da mesma época é a introdução dos Nomes nus, como vemos em (15c):
15. a. Compram-se discos usados. Compra-se discos usados. PE
b. Se compra discos usados. PB
c. [(]arb compra disco usado. PB
Entidades com referência genérica/arbitrária eram categoricamente lexicalizadas com o clítico se até a metade do século XX (cf. Vargas 2012). Atualmente a indeterminação se faz também com a categoria vazia (zero), estratégia ainda rara nas peças consultadas por Vargas (Gráfico abaixo), ou com construções pessoais, com o pronome de segunda pessoa, já plenamente gramaticalizado (vo)cê, ou ainda com a primeira pessoa plural a gente (Kato e Tarallo 1986), ambos assumindo, além da referência definida, a referência indeterminada12.
16. a. ( Põe dois ovos e bate bem. PB
b. Você põe dois ovos e bate bem. PB
c. A gente põe dois ovos e bate bem. PB
Na próxima seção, veremos como a criança e o escolar lidam com as inovações e com a gramática do século XIX ainda prescrita pela escola. Na seção 4, discutiremos como se manifesta a língua-E do falante adulto letrado com relação aos clíticos acusativos de terceira pessoa, através da qual podemos afirmar qualquer coisa sobre a língua-I do brasileiro letrado.
3. A variação sintática na criança
A hipótese que sustenta esta seção é que a criança não reassenta o valor do parâmetro até ela completar a aquisição da gramática nuclear (core gramar)13. Além disso, se aceitarmos que quem opera a mudança linguística é a criança (Lightfoot, 1991), em sua gramática nuclear ela teria apenas as formas inovadoras (o clítico nulo, ou objeto nulo, e o pronome reto), mas não teria clíticos de terceira pessoa ainda preservados na escrita institucionalizada e de baixa ocorrência na fala. A hipótese é que ela venha a adquiri-los com a escolarização.
O estudo de Correia (1991) mostra que os fósseis gramaticais, a saber os clíticos de 3a pessoa, só começam a aparecer na fala na 5a série do primeiro grau14. Além disso, as percentagens do adulto analfabeto são muito próximas daquelas das crianças em início de escolarização. Nos dois casos, o objeto nulo tem a ocorrência mais alta (68% no analfabeto e 73% na criança dos primeiros anos escolares nas narrativas orais. O percentual dos pronomes retos também é bem similar (26% no analfabeto e 24% nas crianças do 1o e do 2o graus). Temos aí a evidência de que nos dois casos temos ainda a gramática nuclear adquirida via assentamento de parâmetro e ainda não afetada por “input” via instrução. Tabela 3
Analfabeto | 1o/2o | 3o/4o | 5o/6o | 7o/8to | Universit. | |||||||
% | N | % | N | % | N | % | N | % | N | % | N | |
Objeto nulo | 68 | 26 | 73 | 62 | 76 | 63 | 72 | 67 | 72 | 72 | 65 | 19 |
Pronome reto | 26 | 10 | 24 | 21 | 9 | 7 | 18 | 17 | 21 | 21 | 7 | 2 |
DP | 5 | 2 | 3 | 3 | 15 | 12 | 8 | 7 | 7 | 7 | 14 | 4 |
Clítico | - | - | - | - | - | - | 2 | 2 | 1 | 1 | 14 | 4 |
38 | 86 | 82 | 93 | 101 | 29 |
Na escrita, a criança mostra consciência de que deve evitar o pronome reto (8%) e usa DPs anafóricos, em seu lugar (33%), enquanto o objeto nulo aparece ainda com alta frequência, mostrando que a escola não inibe seu uso. O clítico, porém, só começa a aparecer a partir da 3a série. Tabela 4
10/20 | 3o/4o | 5o/6o | 7o/8o | Universit. | ||||||
% | N | % | N | % | N | % | N | % | N | |
Objeto nulo | 59 | 23 | 64 | 21 | 48 | 33 | 52 | 29 | 10 | 2 |
Pronome reto | 8 | 3 | 6 | 2 | 14 | 10 | 11 | 6 | - | - |
DP | 33 | 13 | 18 | 6 | 13 | 9 | 5 | 3 | 5 | 1 |
Clítico | - | - | 12 | 4 | 25 | 17 | 32 | 18 | 86 | 18 |
39 | 33 | 69 | 56 | 21 |
Vejamos agora as posições em que os clíticos aparecem na escrita dos escolares no processo da escolarização. Podemos dividi-las em três tipos:
posições que se conformam com a gramática da escrita atual
posições que se conformam com a gramática nuclear
Posições que não se conformam com nenhuma delas.
No primeiro tipo, temos os casos da presença do clítico o/a, ausentes na gramática nuclear, mas que quando aparecem seguem o direcionamento da cliticização do PB -próclise --, quando o padrão do PE seria a ênclise ao verbo em (17b) e a ênclise à negação em (18b):
17. a. Ele [apegou] (3o grau)
b. [Pegou-a] PE
18. a. Ela nem [a conheciam] (3o grau)
b. Ela [nem a] conhecia PE
A ênclise segue imediatamente depois, mas ela ocorre principalmente no infinitivo, com o onset consonantal (lo/la). Embora o escolar tenha adquirido os itens lexicais da nova gramática, para usá-los terá que violar a direção de cliticização de sua gramática nuclear, ou L1.
19. a. O guarda foi buscá-lo. (5a série)
b. Ela olhava pra carteira, tentava agarrá-la. (6a série)
c. O garçon foi servi-las. (8a série)
No terceiro grupo estão as formas consideradas “erros” ou “hipercorreções”, mas que constituem posições possíveis na diacronia do português, como casos de movimento longo do clítico (ex. (20a), com próclise ao auxiliar, interpolações (ex. 20b) (movimento do clítico por cima da negação), e redobro do clítico (20c), este apenas no início da escolarização:
20. a. a tal moça a tinha pegado. (3a série) (movimento longo do clítico)
b. ...mas eu vi que ela o não conhecia. (7a série) (interpolação)
c. …para o identifica-lo.(5a série) (redobro clítico)
Isso nos leva a indagar se, apesar da aquisição dos clíticos ter sido via instrução, a GU não estaria ainda ativa uma vez que essas formas em (20) não estariam presentes no ‘input’ escolar, mas existiram em gramáticas passadas. Note-se que a produção da próclise ao verbo temático, ao contrário da ênclise, é muito mais natural e não apresenta problemas de hipercorreção, uma vez que ela é parte de nossa competência e não das normas aprendidas na escola.
Concluindo, podemos pressupor que, com exceção da variação entre o objeto nulo e o pronome reto, a variação na criança começa, em geral, com o início da escolarização com formas adquiridas em sua gramática nuclear e variantes fornecidas pela escola.
Á casos, porém, de crianças expostas a ambientes altamente letrados, com pais que regularmente leem para os filhos, sem haver instrução de regras, situação em que a criança já pode exibir variação15.
4. A variação atestada na língua-E do adulto letrado
Uma vez que a escrita institucionalizada é conservadora, mas não tem o conhecimento técnico da linguística moderna, uma pergunta que se coloca é: quanto a escola recupera das perdas conforme a gramática dos clíticos dos séculos passados? Kato, Cyrino e Correa (2009) respondem a essa questão com a Tabela 5.
Olhando apenas para clíticos e pronomes retos, verifica-se que o universitário atinge, na escrita, um desempenho similar ao falante do século XVIII, retratado por autores de peças de teatro, a saber, acima de 80% de clíticos, entre 10% e 18% de objetos nulos e ausência de pronomes retos. Na fala, porém, o nosso universitário se assemelha ao falante, não necessariamente universitário, do século XX. Além disso, o objeto nulo é usado na escrita pelo universitário, substituindo os DPs e o pronome reto, este último mais estigmatizado pela escola, por ser mais facilmente percebido.
Pode-se supor, através da língua-E falada dos nosso universitário, que a língua-I do brasileiro letrado mantém variação entre a gramática adquirida como sua gramática nuclear (objetos nulos e pronomes-retos) e a gramática aprendida via escolarização (clíticos). Mas a variação refletida na sua língua escrita revela uma superaprendizagem das normas da escrita, com presença de clíticos superior aos autores do século XVIII, e ausência de pronomes retos.
Além disso, na Tabela 6, referente à língua escrita, vê-se que a ênclise supera o percentual da próclise, embora a posição dos clíticos seja determinada pela prosódia da língua em termos de direção de cliticização.
1o/2o | 3o/4o | 5o/6o | 7o/8o | Univers. | Total | |
Próclise | - | 4 | 1 | 4 | 6 | 15 |
Ênclise | - | - | 13 | 14 | 12 | 39 |
Redobro | - | - | 3 | - | - | 3 |
Dada a frequência do uso de clíticos do nosso universitário, poderíamos nos perguntar se ele recupera a gramatica da época clássica. Ou poderíamos dizer que ele faz uso de duas gramáticas em competição, num processo de “code-switching”, (alternância de códigos). Acontece, porém, que, a recuperação da forma morfológica dos clíticos não o levou à recuperação da sintaxe desses clíticos, em particular do movimento dos clíticos à longa distância, que produz ênclise, não ao verbo temático, mas a algum outro elemento:
21. a. [Quem o] não ama..... PCL
b. João [tem-te] amado sempre. PCL
Apenas no uso dos clíticos lo/la/los/las o nosso universitário respeita a morfologia e a direção de cliticização do Português Clássico e do PE.
Outro exemplo citado por Corrêa (1997) de um aprendiz do primeiro grau, mas que é comum encontrar mesmo em adultos, em textos jornalísticos, está em (22):
22. a tal moça [ a tinha] pegado. (3a série)
Embora para nós brasileiros esse exemplo soe como pertencente ao PE, a sentença correspondente no vernáculo português seria (24). Em (22) temos cliticização à direita, mas a um verbo auxiliar o que não é da gramática do PB, enquanto no PE, em (23), a cliticização ao auxiliar é para a esquerda.
23. a tal moça [tinha-a] pegado. PE
Conclui-se, então, que na língua-I do brasileiro letrado, embora o léxico seja da gramática antiga (o/a/os/as - lo/la/los/las), a sintaxe é brasileira. Os casos mais típicos são os da ênclise com onset. Os escolares, incluindo o universitário, se utiliza dos pronomes clíticos lo/la, nos ambientes de consoante líquida, respeitando o requisito fonológico, mas desobedecendo outra vez a direção de cliticização do PB. Os ambientes de consoante nasal (levaram-no) só a escrita de letrados muito experientes consegue alcançar a sintaxe portuguesa.
5. O conceito de “code-switching” (CS)
Desde Kato (2011), venho defendendo que a aquisição da escrita no PB envolve o fenômeno de aquisição de uma segunda gramática e que o falante do PB faz uso do processo de CS entre a gramática do século XX e a gramática de séculos anteriores.
Antes de continuarmos nessa hipótese, vejamos o que os estudiosos nessa área dizem sobre esse processo. Vou começar com os estudos de Sankoff e Poplack (1981), que desenvolveram um dos maiores projetos sobre CS no Canadá na década de oitenta e depois vou utilizar um artigo meu em que analiso o fenômeno de CS entre o PB e o inglês, de um lado, e o PB e o japonês, de outro.
Definindo CS, Poplack (1980) diz o seguinte:
o CS é uma manipulação hábil de seções sobrepostas de duas (ou mais) gramáticas …
no CS são feitas inserções de segmentos maiores do que apenas uma palavra numa sentença; o CS não é um recurso apenas para inserir itens não-traduzíveis em determinada língua.
Reyes (1982) também distingue entre borrowing (empréstimo) e CS, o primeiro restrito a um só vocábulo.
Mas, estudando o fenômeno de CS em e-mails, entre PB e Inglês, em um sujeito fazendo mestrado nos Estados Unidos, Kato (1994b) observou o seguinte: ao contrário do que dizem Poplack e Reyes, seu desempenho hábil pode ocorrer tanto com um item lexical, como nos exemplos em (24), quanto com sequências maiores como em (25):
24. a. Hoje vou para Michigan again e idem tomorrow.
b. Vou para casa comer porque estou starving.
c. Ele me falou desse pupilo do Rostropovitch, named XXX.
d. A cafeteria é horrível e a comida disgusting.
25. a. e a moça confirmou duas vezes que o trem estava on time.
b. Os dois são uns amores, very caring about their students.
c. E que de certa forma to spend dois anos da minha vida aqui
vai ser um waste of time.
O que Kato mostra é que, se as línguas envolvidas são sintaticamente muito distantes, aí sim, o CS parece se restringir mais a itens isolados, como é no caso de CS entre português e japonês, mas mesmo nesses casos é possível fazer CS de segmentos longos quando o falante é um bilíngue hábil:
26. Eu não quero um emprego abunai.
eu não quero um emprego perigoso
27. A moça confirmou duas vezes que o trem estava jikan dori
a moça confirmou duas vezes que o trem estava horário de-acordo
O que parece restringir a alternância de uma língua para a outra é a congruência entre palavras e morfemas funcionais, ou mais ainda, flexionais, dentro de uma mesma predicação. Assim, no contraste abaixo, (28a) é ruim, mas (28b) é boa, porque, a primeira tem o sujeito com o artigo em português, mas o predicado aparece com a flexão em japonês. Já em (29b), que é boa, o sujeito aparece com o morfema de nominativo em japonês e a flexão do verbo em japonês.
28. a.* A vovó netá.
a vovó dormi-u
b. Vovó-ga netá.
vovó-nom dormi-u
Isso confirma a afirmação de Sankoff e Poplack de que os itens funcionais determinam a estrutura sobre a qual se faz inserções em outra língua.
Kato conclui o seu trabalho sobre CS dizendo que o processo de CS não é condicionado apenas pela sintaxe, mas também pela prosódia, embora muitas vezes ambas estejam relacionadas.
Vejamos agora se podemos dizer que o brasileiro, ao aprender os clíticos da gramática da escrita, faz um tipo de CS. Tomemos exemplos vistos em (17a) e em (19c), aqui repetidos como (29a e b):
29. a. ele [apegou]. (3a série)
b. O garçon foi [servi-las]. (8a série)
Note-se que desde o primeiro grau o aprendiz já distingue os alomorfes o/lo e que o direcionamento da cliticização é para a direita, ao verbo temático, mas à esquerda no caso do clítico com onset.
Nos exemplos seguintes, todavia, vê-se que a posição do clítico sem o onset consonantal é variável: em a. é proclítico ao verbo auxiliar (a-tinha), e em b. é proclítico à negação (o-não), enquanto em (29a) era procítico ao verbo temático (a-pegou). O que o aprendiz faz é simplesmente inverter a direção de cliticização, em relação ao PE, sem a restrição no PB de que a próclise é sempre cliticização à direita somente ao verbo temático, porque o PB perdeu o movimento longo do clítico.
30.a. *a tal moça [a tinha] pegado. (3a série) (movimento longo do clítico)
b. *...mas eu vi que ela [o não] conhecia. (7a série) (interpolação)
c. *…para o identifica-lo.(5a série) (redobro clítico)
A gramática nuclear do PB prevê que no contexto de (31a) o clítico tem que ser nulo e que o objeto, quando necessário, tem que vir como um pronome reto. Os novos clíticos o/a/os/as não conseguem respeitar a posição determinada pelo movimento longo do clítico e pela direção de cliticização.
31. a. ? a tal moça tinha [a pegado].
b. ?…para o identificar.
Para a gramática nuclear do PB, as formas possíveis seriam:
32. a. a tal moça tinha (-pegado.
b. a tal moça tinha (-pegado ela.
O que ocorre, portanto, é que, embora o aprendiz da gramática da escrita domine a morfologia dos clíticos, ele não obedece ainda à prosódia e à sintaxe, e a própria prescrição não tem uma saída pra esses casos.
Nota-se, em jornais e em escrita de universitários, que raramente se encontram as formas abaixo, embora a prescrição aconselhe cliticização ao auxiliar16, prescrição essa que viola, contudo, a direção de cliticização, que para o PB é para a direita.17
33. a. ?a tal moça tinha o pegado.
b. ?a tal moça tinha-o pegado.
Conclusões
No presente trabalho levantamos a hipótese anterior de Kato (2011), de que a aprendizagem da escrita é como a aprendizagem de L2 e que o falante letrado se comporta como um bilíngue em processo de CS, sendo a variação o resultado desse processo. A análise dos fatos aqui apresentados nos leva a manter que a aprendizagem da nova gramática é definida parcialmente em termos de assentamento de parâmetros da GU.
Se propusermos que o direcionamento da cliticização é um dos parâmetros que define uma língua, e que ele define parcialmente a posição dos clíticos, podemos dizer que a aquisição dos clíticos sem onset consonantal seguiu inicialmente o direcionamento para a direita para depois seguir a ordem prescrita, à esquerda ( ele a pegou vs ele pegou-a). Porém por volta da 5a série, ao começar a produzir o clítico com onset consonantal, voltamos a ter a posição determinada pela cliticização à esquerda ( o guarda foi buscá-la), o que mostra uma aprendizagem via instrução. Aí temos também casos de produção de redobro de clítico ( ...para o identificá-lo ), provavelmente motivada pelo conflito entre assentamento paramétrico e instrução.
A língua-I do brasileiro letrado deve ter, portanto, um bom componente da sua gramática nuclear, como na criança, que se manifesta principalmente na língua oral informal, com um processo de cliticização à esquerda ou com alternativas via pronomes retos e, principalmente, objetos nulos, como mostram estudos realizados em diferentes regiões do país (cf. Duarte e Ramos 2015). Na língua escrita, porém, o adulto letrado terá uma periferia que consiste de processos de uma gramática mais antiga, como, por exemplo, o direcionamento de cliticização à esquerda ( o garçon foi servi-las) (8 a série).
Sobre a possibilidade de CS no caso de clíticos, é difícil imaginar esse tipo de processo já que os clíticos são essencialmente palavras funcionais enquanto tanto o empréstimo quanto o CS são processos que envolvem mais as palavras substantivas.
Podemos, ainda assim, imaginar um caso, não de CS, mas um caso de doublet sintático com os clíticos no exemplo (35a), em que na mesma sentença temos os dois tipos de direcionamento. Para não ter essa competição de gramáticas deveríamos ter (34b.), que é a forma que produziríamos na fala informal ou formal
34. a. Ele [a pegou] no colo antes de [colocá-la] no berço.
b. Ele pegou ela no colo antes de colocar (ela) no berço.
Para finalizar, podemos dizer que, enquanto a morfologia e a prosódia adquiridas por seleção são automáticas e inconscientes (34b), aquela adquirida via instrução (34a) constitui uma morfofonologia “estilística” e precisa ser apreendida como a morfologia de polidez em muitas línguas como o japonês, sendo parte de um discurso monitorado.18