Acaba de ser lançada com o brilho que lhe confere sua qualidade - em abrangência e em profundidade -, a Gramática derivacional do português, um trabalho notável, agora atualizado em relação a aspectos teóricos e empíricos, renovado à luz de uma análise crítica e apoiado em base de dados alargada.
Reunido sob a batuta da Professora Graça Rio-Torto, faz-se ver, aqui, um grupo de estudiosos de morfologia portuguesa - nascido no CELGA, Centro de Estudos de Linguística geral e Aplicada, ligado à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra - altamente respaldado para a preparação da obra. Há nesse grupo um histórico de pesquisas especializadas no terreno funcional da morfologia derivacional, que abriga inúmeros trabalhos da Professora Graça Rio-Torto - um ícone dentro dessa área de investigação linguística - e de outros pesquisadores de ponta, investigações que se completam com trabalhos de grau extremamente cuidados, em geral dirigidos pela mesma coordenadora.
Já na Apresentação desta edição se oferecem os três tipos de unidades que povoarão as indicações a compor a Gramática derivacional do português: afixos, radicais e temas (mas especialmente colocando-se o foco nas relações). Também já se propõe, interessantemente, a função a ser desempenhada por esse conjunto de unidades morfolexicais que são chamadas “ao serviço das motivações léxico-conceptuais e das necessidades referenciais e discursivas dos falantes” (p. 24). Note-se, pois, para início de análise: esta é uma obra de raiz e de aprofundamento morfológico que, entretanto, cerca-se do estofo completo que dá legitimidade a qualquer estudo sobre a linguagem, que é a submissão ao governo de uma interação discursiva à qual corresponde uma coordenação cognitiva dos participantes de cada evento de troca linguística.
Já se indicam também os diferentes processos pelos quais um lexema se forma com base em outro, identificando-se, por si mesmo, como derivacional. Muito importante é a elucidação prévia da direção conferida pela obra ao processo de formação de palavras, definido em uma área em que as estruturas da linguagem se conglomeram de modo dinâmico e interativo. Em primeiro lugar, assume-se que, para a formação de palavras, convergem todos os tipos de unidades, entendendo-se que “o semantismo do todo é devedor do semantismo das partes” (p. 24), ressalvada a importante presença dos processos figurais que brotam dos sentidos não composicionais das unidades constituintes dos produtos do léxico.
O que na Apresentação se refere como uma falta de “uniformidade absoluta na profundidade de tratamento de todos os setores do léxico” (p. 25), existente na obra, constitui, na verdade, uma boa condução das diretrizes, já, para o que ela se propõe, isso que pode parecer ressalva justificadora de inconveniência, é, pelo contrário, ressalva esclarecedora de boa opção, já que nenhuma obra pode julgar conveniente - ou mesmo possível - ter igual aprofundamento em todas as matérias de que trata.
Ainda merece uma nota inicial de aplauso o fato de as análises e as lições apoiarem-se em fontes reais, e de usos diretamente pretendidos como variados, observada essa variação, ademais, sobre o mais válido suporte científico.
Afinal, na Apresentação do livro, merece relevo o fato de esta segunda edição constituir uma atualização, tanto em relação à teoria como em relação à análise empírica (com base de dados alargada), mantendo-se, entretanto, a produtiva visão multifatorial, ou polidimensional, e processualista, que permite considerar os diversos aspectos que envolvem os recursos lexicais, os diversos processos e os diversos paradigmas que se interfaceiam no funcionamento linguístico.
Tomo o próprio título do extenso primeiro capítulo desta segunda edição (de autoria de Alexandra Soares Rodrigues) - “As noções basilares sobre a morfologia e o léxico” - como tema destas primeiras considerações, já observando que se trata de uma nova angulação inicial para a obra. Fixa-se a atenção, de fato, em questões fundamentais para a “formação de palavras” (p. 35), pela via de colocar a gramática derivacional da língua em duas acepções: aquela que se liga à “gramática mental” dos falantes e aquela que se liga a uma “descrição linguística” da primeira, buscando-se uma descrição e uma explicação daquelas estruturas da linguagem que, ao mesmo tempo que são observáveis nos usos, têm de ser vistas como já concorrentes e interfaceantes no domínio mental dos falantes, para ativação “no momento de produção do discurso” (como está na p. 35).
Obviamente, as noções partem, com grande penetração, para o território das “formas” (palavra radical, tema, constituinte temático, afixo) bem como para o dos processos. E partem exatamente de sua face mais representativa, que é a prosódica: note-se a atenção inicial para a possibilidade de (até) palavras de estatuto gramatical terem, ou não, autonomia prosódica.
O território das formas tem sua contraparte relacionada com o território das noções, o que começa a ser explicitado após a conceituação de morfema, a qual se faz com o cuidado de não a deixar assentada na simples indicação de “uma ligação entre forma e significado” (p. 43). Daí se parte para especificações ligadas à “forma” dos morfemas, e o repique dessa posição tomada - praticamente uma justificativa - está na escolha por tratar inicialmente os “constituintes puramente morfológicos ou expletivos” (p. 44). Observe-se também o oferecimento, pouco depois, dos casos de “ausência de morfema”, ou “formação por conversão” (p. 46), e, mais adiante, já dentro das considerações formais, o tratamento dos “constituintes temáticos”, que são, exatamente, “unidades semanticamente vazias” (p. 57), tratamento que exige considerações de grande rigor, a que se volta entre as páginas 67 e 69. Por outro lado, verifica-se o cuidado de chamar a atenção, para a existência de constituintes de contraparte significativa: o “radical”, “que encerra a significação lexical, ou seja, conceptual” (p. 57), e, mais adiante, aqueles que são introduzidos como morfemas “com carga semântica”: “prefixos, sufixos, circunfixos e infixos” (p. 62), por isso mesmo, aí contrapostos aos “interfixos”.
A explicitação dos inúmeros “tipos de constituintes” (formais), ou seja, o conjunto das indicações ligadas à “forma” vem oferecida entre as páginas 55 e 77, em uma explicitação sempre acurada.
Uma longa subseção (1.2.3, p. 64-73) trata o que denomina “informações”, ligadas aos diversos “constituintes”, as quais se discriminam, cuidadosamente, para cada tipo de constituinte (radical; constituinte temático; afixo, nos seus diversos tipos), a partir de “categorias” (mais raramente, “subcategorias”): a lexical / sintática; a morfossintática; morfológica; a semântica (dita como: de significação conceptual). Trata-se de um expediente expositório bastante pertinente, que, com essa discriminação de categorias de “informação”, obtém expor o perigo de atribuir-se ao morfema uma simples “significação”, termo que deve ser entendido, também, como não necessariamente ligado ao conceptual.
Outra escolha de apresentação bastante feliz é a de “restrições” (1.5.3, p. 88-94), também com a indicação de diversas categorias de direcionamento (fonológicas, morfológicas, semânticas, pragmáticas, argumentais, etimológicas), uma especificação que revela um fato bastante interessante para comentário: exatamente a ausência da categoria “sintática”.
Muitas das restrições poderiam trazer justificativas construcionais, embora o custo operacional disso (em especial o alongamento das lições) talvez não justificasse a empreitada: por exemplo, se em nascimento (com o sufixo -ment-) o tema é nasci-, ou seja, é o do particípio (nascido) e não o do presente (nascemos), e em corredor (com o sufixo -dor) o tema é o do presente (corremos), e não o do particípio (corrido: *corridor), isso é facilmente atribuível à incompatibilidade semântica entre um sufixo de ação (-dor) e um tema passivo (o do particípio passado). Tipo semelhante de restrição (já agora ligada a categorias mais gramaticais) responderia pela forma nascedouro (em contraste com nascimento), que, termo ligado a futuridade, seria incompatível com o tema nasci-, de particípio passado.
As restrições semânticas, por sua vez, são mostradas como as mais suscetíveis de fluidez (como toda a semântica o é), e, a partir daí, até de descarte (extrapolando noções e lições gramaticais). Por exemplo, a lição sobre essas restrições se inicia, com toda lógica, indicando que “a combinatória entre bases e afixos pode ser impedida por razões de caráter semântico” (p. 89). Na lição, há exemplos como desmorrer, porém poderia ser exemplo, também, um verbo menos extremo, mas ainda de semântica irreversível, como desinventar. Entretanto, nosso poeta Manoel de Barros disse em seu Ensaios fotográficos: “É preciso desinventar os objetos.
O pente, por exemplo. É preciso dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia.” E o nosso Chico Buarque cantou, no seu Apesar de você: “Você que inventou a tristeza, / Ora, tenha a fineza / De desinventar.” Mesmo porque ninguém inventou a tristeza, a não ser poeticamente, e o mistério disso não se reduz a uma banal definição lexicológica ou lexicográfica, ortodoxa, como “tornar inexistente, desfazer algo que foi criado” (acepção que o popular “Dicionário informal”, facilmente encontrável em meio digital, dá, categoricamente, para o verbete desinventar.
No geral do capítulo, cabe apontar a pertinência de uma indicação já da parte inicial - e ligada a um destaque que fiz, no início deste meu texto, sobre os rumos da obra -, a indicação de que
um lexema não equivale a uma forma particular, mas a um con junto de formas, em abstrato, ou melhor, a um padrão mental que regula essas formas, que o falante usa para fazer variar cotextual mente uma unidade lexical (p. 39) (grifo meu).
E é nesse sentido que vem conduzida a apresentação de “paradigmas” (p. 94-102) que encaminha o capítulo 1 para seu final, pertinentemente dedicado aos “processos”.
A essa questão - a indicação de motivações morfolexicais a serviço das “motivações léxico-conceptuais e das necessidades referenciais e discursivas dos falantes”, p. 24) - o capítulo liga os paradigmas, o que permite, por exemplo, que se verifiquem paradigmas em cotejo ou em intersecção, no seu uso real, e assim permite que a lição chegue a “Regras de Formação de Palavras” como advindas de “uma relação com o modo como o falante opera mentalmente (com) os lexemas da sua língua”, e não como “mero artifício do linguista” (p. 97).
Os capítulos de 2 a 6 (p. 145-409) constituem o grande núcleo da descrição de formas, dentro da obra, ou seja, apresentam a “formação” de palavras em classes. Esses cinco capítulos especificam-se segundo as classes de elementos formados: nomes; adjetivos; verbos; avaliativos; advérbios em -mente. Nesse conjunto, apenas as seções relativas a deverbais, que estão nos subcapítulos 2.4 e 3.3 (de autoria de Alexandra Rodrigues) e o capítulo 4 (de autoria de Rui Pereira) têm outra autoria que não a de Graça Rio-Torto.
Os capítulos referentes à formação de substantivos e de adjetivos (capítulos 2 e 3) apresentam-se dentro de uma mesma configuração (ou seja, estabelecidos a partir da (sub)classe gramatical da palavra de origem, e de uma configuração inicial da questão das “bases”, dos “sufixos” e dos “produtos”). De um lado, fica facilmente configurado o paralelismo que existe entre essas duas subclasses “nominais”, quanto à pertinência de o ponto de partida das formações sufixadas estabelecer-se segundo as (sub)classes de origem: para os substantivos, marca-se a origem nos substantivos, nos adjetivos e nos verbos; para os adjetivos, marca-se a origem nos numerais e nos verbos (em ambos os casos com visível configuração de elevada produtividade de deverbais, ligada ao elevado número de sufixos disponíveis na língua). Entretanto, de outro lado, ficam evidentes especificidades da classe que é referencial, a classe dos substantivos: em particular a existência de uma contraparte semântica que tem de ser considerada, tarefa à qual a lição não foge, tanto em referência à classe de origem quanto em referência à subclasse dos substantivos de chegada: por exemplo, no caso da produção extremamente complexa - pela multiplicidade de sufixos disponíveis - de substantivos designadores de “indivíduos”).
A derivação de verbos (capítulo 4) tem uma exposição diferentemente configurada. Obviamente - e convenientemente -, nesse caso a condução das exposições não se faz a partir das classes de origem (ligadas ao elenco dos sufixos), como nos dois capítulos anteriores: dada a complexidade da morfologia verbal, associada à simplicidade do conjunto de sufixos verbalizadores, são as classes morfológicas dos verbos formados que constituem o cerne da lição. Assim, com toda pertinência, provê-se uma consideração das classes léxico-sintáticas e morfológicas das bases e a seguir vai-se à explicitação do tipo morfológico dos verbos produzidos: a formação heterocategorial (a dominante) e a formação isocategorial, registrando-se, em dois pequenos quadros iniciais, apenas as subclasses de origem (há verbos “deadjetivais’, “denominais” e “deverbais”, p. 302 e 303). Outra grande e feliz diferença no tratamento da formação de verbos é a inclusão dos “prefixos” (p. 308-309) e da prefixação” (4.3.3.2, 317-323), no tratamento do “processo derivacionacional” (p. 308), o que se faz com o cuidado de uma justificativa sobre a controvérsia que cerca a consideração da prefixação dentro desse processo .
Os capítulos de 7 a 9 (p. 411-553) especificam-se segundo os “processos de formação” de palavras: prefixação, composição e processos de construção não concatenativa. São autoras Graça Rio-Torto, com o cap. 7, Maria Isabel Pereira, com o 9, e ambas, com o 8. Para os dois primeiros processos o livro segue a apresentação ortodoxa das lições de morfologia, entretanto deve ser destacada a precisa ressalva oferecida no sentido de guardar-se o cuidado necessário no que diz respeito às “fronteiras entre sufixação, prefixação e composição” (p. 411).
Não apenas se vai às fronteiras entre prefixação e composição - já bem reconhecidas na tradição - mas ainda se discutem “as (dis)semelhanças entre prefixação e sufixação, em vista ao apuramento das propriedades que a prefixação partilha com a composição e as demais modalidades de afixação” (p. 411)”.
Todos conhecemos os múltiplos casos de difícil reconhecimento entre determinados segmentos que se colocam em posição prefixal, na formação de palavras, no sentido de tê-los como elementos de composição (“constituintes de compostos”, como diz a p. 411) ou como prefixos. Vem oferecido um cuidadoso exame não apenas daquilo que seria o conjunto de diferenças entre os dois grupos, mas também daquilo que constitui o conjunto de propriedades comuns a ambos, embora se deva convir que essas propriedades apontadas resumem-se ao formal, o que as faz pouco aproveitáveis para apoio da diferenciação que, em geral, tem constituído o foco da busca. Entretanto, o próprio andamento da exposição deixa escancarado que não se firma nenhum propósito de resolver determinantemente a fronteira em exame, e que se pretende oferecer indicações que, embora seguras, não são decisivas, já que dispensam critérios de um sim/não cabal para o geral dos casos. Assim é que o discurso que se apresenta assume relativizações, como se pode ver nestas amostras (com grifos meus): “comportamento tanto mais prefixal quanto...” (p. 414); “os prefixos não flexionam em número e em gênero, diferentemente de muitos constituintes de compostos" (p. 418); "os produtos prefixados (...) não são permeáveis à intervenção da marcação de gênero e de número no seu interior, pelo contrário, assim acontece: a) em algumas estruturas de composição (...)” (p. 418). Por vezes, deixam de ser explicitadas, ou mesmo reconhecidas, relativizações que na realidade existem: por exemplo, diz-se que “os prefixos não ocorrem como palavras independentes, por contraste com os membros dos compostos” (p. 417), sem que se marque - como nos casos que acabam de ser citados se marcou - que nem todos os elementos de composição assim se comportam (por exemplo: bio, geo, hemi). Em alguns casos, muito esclarecedoramente se descartam critérios que são erroneamente invocados como pertinentes por alguns estudiosos, por exemplo o que considera a possibilidade de que a alteração de configuração do elemento seria um critério de pertença à classe dos constituintes de composição, e o argumento que vem a favor disso é: “bio- e geo- não alteram a sua configuração e são aqui considerados como constituintes de composição” (p. 420). As relativizações se resolvem afinal, na indicação de prototipias, e, mais ainda, até na indicação de “quase” prototipias, o que se pode ver nesta declaração de que “os constituintes se distribuem por uma escala de maior ou menor prototipicidade” (p. 421), seguida da indicação de quatro critérios para a distinção dos “exemplares mais prototípicos dos prefixos” (grifo meu).
É muito bem pensada a exposição sobre a especificação léxico-semântica dos prefixos, a qual se faz a partir da relação de cada um deles com as bases a que se acoplam (p. 425-549).
O processo de composição é apresentado por sua propriedade de concatenação (coordenativa, subordinativa ou modificativa) de pelo menos duas unidades (radicais, temas ou palavras) de determinada categoria lexical. O composto vem definido como a associação desses elementos a classes categoriais segundo uma determinada relação gramatical que se estabelece entre os termos, observando-se, convenientemente, que esse processo resulta em produtos de grande heterogeneidade, os quais, além disso, são produtos fronteiriços a outros não resultantes de composição: produtos derivacionais e também combinações sintáticas que não chegam a constituir compostos. Novamente o terreno vem explicitado como de fronteiras permeáveis e de difícil definição, de um lado dadas as propriedades que têm em comum e as relações gramaticais internas idênticas, e, de outro lado, dado o conjunto de diferentes características que marcam as diferentes classes (p. 463).
Durante todo o capítulo explicita-se o fato de que “são de difícil definição” (p. 463) as fronteiras pelas quais alguns compostos (caminho de ferro, centro comercial) se separam das “estruturas sintáticas livres”, ou do genericamente denominado como “unidades multilexicais”, as quais se apresentam em grande diversidade: desde fontes fidedignas até bom dia e até um provérbio (p. 467).
Não se deixa, porém, de voltar a apontar que também a distinção entre elementos constitutivos de compostos e elementos prefixais “permanece uma questão de difícil solução” (p.471). Particularmente são foco de análise, quanto a essa questão, os compostos “morfológicos” (p. 476-p. 484), como cardiopatia, hidromassagem, etc., e, dentre eles, os denominados “neoclássicos”, como agricultura, biologia, etc. E novamente a atenção vai ao caso de elementos de formação que, ocupando posição prefixal, entretanto exibem comportamento que tanto os aproxima dos prefixos quanto os aproxima dos elementos que integram os compostos morfológicos. Um cuidado que deve ser ressaltado no texto é o da especificação da diversidade de classes lexicais (radicais, temas, palavras) integráveis nos compostos do português, bem como da diversidade categorial dos elementos formadores (sete classes encontráveis são registradas), e em diferentes esquemas de combinação (p. 473). Enfim, são as unidades de base, os produtos de compostos e os tipos de formações compostas explicitados em quase 17 páginas (final da p. 472 a início da p. 489).
Quanto às relações internas à composição (tanto sintáticas - dos tipos coordenativo, subordinativo ou modificativo - como temáticas), merece menção essa subcategoria relativa a “modificação” (seja de qualificação, como política-espetáculo, seja de classificação, como política fiscal, p. 493), a qual não se inclui em subordinação, já que esta última categoria apenas abriga aquelas relações de dependência que envolvem a seleção, por um elemento, de outro que venha a preencher casa argumental (seja de verbo, como em quebra-nozes, seja de substantivo, como em planeamento familiar), além de abrigar compostos de base greco-latina como antropófago e fratricida (p. 491).
Os interessantes processos de “construção não concatenativa” (com grande felicidade tratados como casos de “cruzamento vocabular”) são expostos no último capítulo. Trata-se de um conjunto especial de formações em que “não são identificáveis constituintes morfológicos encadeados linearmente” (p. 521). De fato, elas se distinguem sobremaneira dos demais casos de composição, aos quais, com razão, Ieda Alves (1990) - invocada na lição - atribui o caráter de “marginalidade”, o que o livro em exame registra, na abertura do capítulo. Assumo, especialmente, e já de início, com Margarida Basílio (2010, p. 204) - também citada (p. 530) -, que as criações lexicais por cruzamento são “intencionais”, e, a partir daí, circunscritas a certos registros discursivos.
Eu estenderia a observação, no sentido de considerar que essa não é a instanciação canônica dos “processos morfológicos” tidos como tais, bastando voltar à primeira página de apresentação desta Gramática derivacional, onde se oferece a lição primeira sobre o tema, a qual (quando se aplica ao que chama de “domínio mental” dos falantes, não ao domínio da “descrição” dos fatos de morfologia) assim equaciona a questão: para a produção dos lexemas concorrem, através de interfaces, estruturas de linguagem (citam-se a morfologia, a semântica, a fonologia e, até - embora “indiretamente” - a sintaxe) o que se abriga na lição de Jackendoff (2002, citado na p. 35) segundo a qual “a linguagem é constituída por estruturas que contactam entre si interativamente”.
Essa indicação leva a ver, inquestionavelmente, os demais processos de formação (exatamente aqueles “concatenativos”) em termos de funcionamento do sistema (a partir dos intercursos linguísticos naturais), o que não é exatamente o caso das formações que nesse ponto do capítulo se descrevem.
Veja-se que, em grande parte dessas formações que nos são apresentadas (um exemplo é pilantropia), fica despertada em nós - até - uma grande admiração por quem teria tido a “genialidade” de ser o criador daquele “cruzamento” tão sugestivo de material léxico-semântico: tenhamos ou não a autoria do “criador” da notável “criação”, já consideramos que deva ter sido um manejador privilegiado da linguagem literária, ou um humorista, ou um membro de grupo de linguagem peculiar, etc. E, em geral, não se trata de termos técnicos, nem mesmo de termos que se perceba terem surgido com qualquer destinação de objetividade. São, na verdade, termos “marcados”, e sabemos que a “marcação” não é o caminho primeiro da detecção - e da descrição - de fatos do sistema linguístico. Ou seja, no mínimo essas são “criações” atrás das quais está sugerido algum “criador”, e - novamente - isso não é o que o comum das composições vocabulares carrega. A “marcação” é algo que até podemos entender como dentro de uma regularidade de uso quando se trata de sintaxe, semântica e pragmática (e as três sempre em interdependência, para uma visão de “efeitos”), campos em que se lida com entidades da língua que só em combinação têm sua “funcionalidade” suspeitada, não no interior dos elementos (os vocábulos), os quais, individualmente e isoladamente - fora da montagem da cadeia do enunciado -, já são, de certo modo, conhecidos e reconhecidos pelo falante. O capítulo busca abranger, para expor, uma enorme variedade de possibilidades de formação desses “cruzamentos vocabulares”: a quantidade das bases; a variedade dos constituintes morfológicos e a dificuldade de seu reconhecimento, dadas as sobreposições; a perda de estrutura prosódica; e o que o texto chama de “intersecção da morfologia com a fonologia / prosódia”. O que essa quase imprevisível variedade acaba por mostrar é que não há previsão sistêmica que permita incluir essas formações em “mais um” processo morfológico de formação previsível e definível sistemicamente, o qual abrigue todos os termos a incluir. Basta dizer que, para qualquer exposição que se faça desse bloco de formações, hão de aparecer exemplos atribuíveis a um “criador: por exemplo, Mia Couto, Guimarães Rosa, Jô Soares, Chico Anísio, gíria policial, gíria de drogados, etc., um verdadeiro desvio em relação às lições canônicas sobre formação de palavras: que são todas sem “padrinho”.
Mais que isso, não necessariamente o vocábulo que se vê formado permite reconhecer um significado cruzado realmente pretendido: por exemplo, o que é que faz a base grega ánthropos em pilantropia? Trata-se, mesmo - parece - de uma “fusão” episódica, uma “fusão vocabular expressiva”, como a define Basílio (citada na p. 526): uma “fusão” que incorpora fonologicamente “dois itens lexicais envolvidos”, ou seja, uma fusão cujos formadores não são captados, no exame (aquele segundo tipo de “morfologia citado no início do capítulo), nem como bases lexicais nem como prefixos ou sufixos, mas que têm de ser invocados diretamente como “itens lexicais” que se “fundem”, o que não é previsto no sistema (e só se explica por um jogo de marcação pragmática do enunciado, o que faz Basílio invocar a existência de iconicidade na formação). Mais que isso, a extensão do “processo” para as formações que fundem nomes próprios (para os quais o texto ressalva a qualidade de “efêmeros”, o que, aliás, a maioria dos demais “cruzamentos”, em princípio, é, mesmo os mais usuais) consiste em mais uma evidência de que se trata apenas de “exercícios de projeção” de “fusões”, que, afinal, não atingem, realmente o mapa dos processos de formação de palavras em português. Observe-se que, diferentemente, o item seguinte (9.3), que trata da “truncação”, já se inicia com uma definição legitimamente constituída dentro do processamento do sistema morfológico da língua (“processo de criação vocabular...”), e se afasta, pois, para o tratamento estrito daquilo que é chamado “cruzamento vocabular” (9.2)
Estão, afinal, nesta obra, lições amplas e profundas sobre o processo derivacional na língua portuguesa, com o suporte da visão teórica desse processo, aqui autodefinida como “multifatorial” (ou “polidimensional”) e “processualista”, qualificações que eu reduzo, globalmente, e elogiosamente, a “funcional”. E, de fato, meritoriamente, é com as ocorrências vivas da língua que este trabalho cria os fatos linguísticos sobre os quais põe sua visão de análise.
Vivamente, as noções básicas dos elementos envolvidos na formação de palavras (lexema, forma de palavra, unidade lexical, e, particularmente, morfema) são oferecidas em uma cadeia na qual uma coisa puxa a outra dentro de um universo de estatuto individuai cientificamente estabelecido, o que dá fluidez à construção do arcabouço de noções que se completam na configuração do mapa conceptual em que os termos se envolvem. Chama a atenção o fato de a morfologia ser referida, de início (p. 37), exatamente pelo fato de sua presença na organização mental do usuário de uma língua natural, organização em que se encontra a constituição interna das palavras, tanto os elementos formadores (mínimos) como o processo de formação. Daí é que surge um natural encaminhamento para a compreensão de que os processos têm de ser compreendidos não apenas por referenciação a “formas” concretas (o que o termo morfologia grosseiramente poderia sugerir), mas a um conjunto de formas em abstrato, ou seja, a “um padrão mental que regula essas formas” (como está na p. 39), nas variações contextuais de uso dos falantes.
Não há, pois, nestas lições de “morfologia”, a (costumeira) perigosa subserviência à simples forma concreta dos segmentos da expressão linguística, mas uma visão que revela atenção notável às duas pontas que se casam na produção da “forma” - a abstrata e a concreta - do enunciado: ou seja, a forma mental, abstrata, sistêmica (a ser perseguida e descoberta na análise multifatorial e processualista) e a forma palpável no acesso (predominantemente prosódica), concreta, estrutural (a ser descrita na análise).
A louvar!