Introdução
A Constituição Federal estabeleceu, no artigo 145, parr. 1º, o princípio da capacidade contributiva como linha mestra orientadora de todo o sistema tributário brasileiro. Trata-se de princípio manifestador dos ideais de justiça e igualdade na instituição e arrecadação de tributos, pois determina que os particulares somente devem contribuir para com a receita do Estado na proporção dos seus haveres.
No entanto, para que o Fisco consiga conferir efetividade a este mandamento constitucional, faz-se necessário identificar os elementos presuntivos da riqueza ostentada por cada contribuinte. Para este desiderato, o Código Tributário Nacional previu a possibilidade de instituição de obrigações acessórias como meio para assegurar o cumprimento da obrigação principal e dar operacionalidade à atividade de arrecadação e fiscalização dos tributos.
Contudo, ao passo que esta espécie de obrigação confere maior possibilidade de as Administrações Tributárias identificarem as capacidades contributivas dos sujeitos passivos e, com isso, atenderem ao primado da isonomia na arrecadação tributária, acabam por tornar o sistema tributário mais complexo e com um elevado custo de conformidade, caminhando na direção oposta ao novo paradigma almejado para a relação entre Fisco e contribuintes, que agora deve estar orientada por ações mais transparentes e eficientes, construindo-se uma cultura de confiança mútua entre as partes.
Ainda que se reconheça a importância da repressão fiscal, essa nova perspectiva permite ações mais variadas pelos sujeitos ativos, que passam a se preocupar também em construir uma relação de maior cooperação e confiança com os particulares, repercutindo na elevação espontânea da conformidade tributária por intermédio de um significativo aumento da moral tributária.
Portanto, considerando-se que a relação entre Fisco e contribuinte está em constante evolução, cujo novo paradigma está pautado na influência que as Administrações Tributárias poderão exercer sobre a moral tributária e a conformidade fiscal, pretende-se, com este trabalho, analisar se as normas tributárias paulistas atendem ao novo padrão e, concomitantemente, são aptas à concretização dos princípios constitucionais tributários.
A natureza jurídica das obrigações acessórias
O primeiro fundamento de validade das obrigações acessórias é o artigo 113 do Código Tributário Nacional, in verbis:
Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória. (...) parr. 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. parr. 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.
O segundo, a norma geral e abstrata que instituir o tributo a elas vinculado. Data vênia, enganam-se aqueles que fundamentam a previsão de sua existência no artigo 145, parr. 1º, da Constituição Federal, pois a instituição de uma obrigação acessória não deve estar somente circunscrita à identificação do patrimônio, dos rendimentos e das atividades econômicas do contribuinte. Sua função é auxiliar as Administrações Tributárias em seu core business, qual seja a arrecadação e a fiscalização tributária em seu sentido lato. Desta forma, o Código Tributário Nacional considera-as como verdadeiras obrigações, cujo objeto é a previsão de prestações positivas ou negativas instituídas no interesse da arrecadação ou fiscalização tributária.
Alguns autores incluem o termo “tolerar” como apto à instituição de obrigações acessórias. É o caso de Hugo de Brito Machado, para quem:
Já na obrigação acessória as prestações positivas a que alude o Código compreendem um fazer, um não fazer, ou um tolerar, como, por exemplo, (a) emitir uma nota fiscal, escriturar um livro, inscrever-se no cadastro de contribuintes (fazer); (b) não receber mercadorias desacompanhadas da documentação legalmente exigida (não fazer); e (c) admitir o exame de livros e documentos pelo fiscal (tolerar)(Machado, 2008).
Neste mesmo sentido estão as opiniões de Leandro Paulsen, que defende que a “obrigação acessória é obrigação de fazer em sentido amplo (fazer, não fazer, tolerar), no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos”(Paulsen, 2017) e José Maria Lago Monteiro, o qual afirma que “hemos definido las prestaciones formales como aquellas que son objeto de deberes de hacer, no hacer o soportar inherentes a la gestión de los tributos”(Lago Monteiro, 1998).
Muitos autores criticam o termo “obrigação acessória” pelo fato de nem sempre estar vinculada a uma obrigação principal e por não se tratar de obrigação propriamente dita, já que ausentes de um conteúdo dimensível economicamente:
Tais relações são conhecidas pela designação imprecisa de obrigações acessórias, nome impróprio, uma vez que não apresentam o elemento caracterizador dos laços obrigacionais, inexistindo nelas prestação passível de transformação em termos pecuniários(Carvalho, 2016).
Além disso, afirmam que, por não serem transitórias (p. ex. manter livros fiscais), não estariam incluídas no conceito de obrigação propriamente dita, de forma que o sujeito ativo poderia exigir novamente as informações sempre que julgasse conveniente, conforme advoga Alcides Jorge Costa: “ao lado da falta de patrimonialidade, aponta-se a não transitoriedade dessas obrigações acessórias como sinal de não serem obrigações propriamente ditas”(Costa, 1993).
São adeptos desta tese os autores Paulo de Barros Carvalho(Carvalho,2016), Aires Fernandino Barreto(Barreto, 2009), Roque Antonio Carraza (Carrazza, 2010), Sacha Calmon Navarro Coelho(Coêlho, 2009), Geraldo Ataliba(Ataliba, 1978), José Eduardo Soares de Melo(Melo, 2005), Ricardo Lobo Torres(Torres, 2010) e Caio Augusto Takano(Takano, 2017).Em resumo, tais estudiosos propugnam pela atecnia do Código Tributário Nacional em classificar as “obrigações acessórias” como instituto de natureza obrigacional. Defendem tratar-se de deveres formais ou instrumentais, de natureza meramente administrativa.
Outros, contudo, apesar de concordarem que as obrigações acessórias carecem de um aspecto patrimonial próprio das obrigações civilísticas, entendem tratar-se de conceito jurídico-positivo próprio criado pelo CTN:
Como se vê, essa crítica não sustenta a invalidade das normas que, no CTN, disciplinam as obrigações acessórias. Limita-se a increpá-las de tecnicamente incorretas. E, para fundamentar essa increpação, socorre-se das doutrinas jurídicas, sobretudo civilísticas. Não de uma análise internormativa, ou seja, das relações entre essas normas gerais de Direito Tributário e as normas constitucionais que, enquanto tais, lhe são supraordenadas. Dito noutras palavras: não pretende a crítica sustentar a invalidade das normas sobre obrigações tributárias acessórias insertas no CTN. Tão só restringe-se a censurar-lhes a alegada impropriedade técnica. Essa ponderação não deve passar despercebida. Porque é a confusão entre essas propostas doutrinárias de aperfeiçoamento técnico (política jurídica) e o plano das proposições sobre a validade das próprias normas (ciência jurídica) que, nesse particular, contamina toda a construção crítica edificada em torno do CTN(Borges).
A autora Misabel Derzi, em profícuo estudo, concorda com o posicionamento de Souto Maior Borges e aduz que, sendo a obrigação instituto jurídico criado pelo direito positivo, pode a lei tributária outorgar-lhes atributos específicos e essenciais:
Estamos diante de deveres jurídicos (principais ou acessórios), sem dúvida, e isso é essencial a todas as obrigações, que correspondem a deveres, no plano lógico. São deveres qualificados de obrigacionais pelo CTN, que poderia fazê-lo, sendo uma categoria de Direito positivo. Como toda obrigação, no sentido material positivo, configura também um dever, no plano lógico-jurídico, deduz que o legislador, ao referir-se à obrigação, afasta a idéia de meras condutas facultativas, nas quais haveria certa dose de discricionariedade para o sujeito(Baleeiro).
Compartilham deste entendimento os autores: Rubens Gomes de Sousa(Sousa, 1982), Rui Barbosa Nogueira(Nogueirae Nogueira, 1977),Paulo Roberto Cabral Nogueira(Nogueira e Nogueira, 1977), Regina Helena Costa (Costa, 2009)e Aliomar Baleeiro(Baleeiro, 2002).
Além destes dois posicionamentos, há uma terceira corrente que refuta a ausência de patrimonialidade nas obrigações acessórias. Para estes autores, o custo de conformidade necessário para o adimplemento das obrigações acessórias seria o aspecto economicamente apreciável da patrimonialidade:
A legislação tributária, como forma de diminuir os gastos com a máquina arrecadatória, a cada dia tem conferido mais e maiores atribuições relativas à perquirição do quantum debeatur aos contribuintes. E daí advém mais um fundamento de ordem pragmática pela patrimonialidade dessas espécies de obrigação tributária. Os gastos que o fisco não realiza ao delegar tais atividades ao contribuinte, obviamente, a este são repassados. A pragmática é rica em exemplos: os contribuintes hoje se desdobram no intuito de dar cumprimento às obrigações tributárias acessórias. As grandes empresas têm número considerável de empregados (estrutura de pessoal) lotados em boa parte de seus espaços (estrutura física) única e exclusivamente para o cumprimento das obrigações tributárias acessórias. Uma burocratização destemperada na atividade de quantificação e pagamento dos deveres que incumbem aos contribuintes (obrigações acessórias)(Borges, 2005).
Também podem ser incluídos como aderentes a esta tese os seguintes doutrinadores: Fábio Fanucchi(Fanucchi, 1975), Arnaldo Borges(Borges, 1978) e Ives Gandra da Silva Martins (Martins, 1983).
Conceito do direito privado, a obrigação é conceituada pela doutrina civilista como sendo uma relação jurídica pessoal e transitória de natureza econômica, existente entre um sujeito ativo, denominado credor, e outro sujeito passivo, o devedor, pela qual este fica vinculado àquele, em seu proveito, no cumprimento, espontâneo ou coativo, de uma prestação patrimonial, seja positiva ou negativa, garantida pelo patrimônio da parte inadimplente: “em sentido estrito, ‘obrigação’ é a relação jurídica entre duas (ou mais) pessoas, de que decorre a uma delas, ao debitor, ou a algumas, poder ser exigida, pela outra, creditor, ou outras, prestação”(Miranda, 1984)
Na versão clássica, para Washington de Barros Monteiro(Monteiro, 2003), a obrigação pode ser enunciada como:
(...) a relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimônio.
Deste modo, de acordo com esta construção, pode-se elencar os elementos constitutivos da obrigação, como sendo:
(I) elementos subjetivos: o credor (sujeito ativo) e o devedor (sujeito passivo);
(II) elemento objetivo imediato: a prestação;
(III) elemento imaterial, virtual ou espiritual: o vínculo existente entre as partes.
No ramo público do Direito Tributário, apesar do conceito de obrigação ser muito parecido ao do Direito Privado, existem diversas obrigações de cunho burocrático, sem qualquer conteúdo economicamente apreciável. Isso se torna possível pela faculdade que possui o Direito Tributário de alterar a definição, conteúdo e alcance dos conceitos de Direito privado que não sejam utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias, conforme se depreende da leitura atenta dos artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional(1), in verbis:
Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários. Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
Não obstante os respeitadíssimos argumentos utilizados pelos ilustres autores, adeptos das outras correntes, será utilizado, neste trabalho, o posicionamento daqueles que consideram as obrigações acessórias como um conceito jurídico-positivo próprio criado pelo CTN, pois compartilha-se do entendimento de Pontes de Miranda, para quem a patrimonialidade não é pressuposto da obrigação, como os são a licitude, a possibilidade e a determinação:
Obrigação e patrimonialidade - Longe vai o tempo em que se não atendia ao interesse sòmente moral da prestação, em que se dizia que a prestação tinha de ser patrimonial. O que se deve pode não ter qualquer valor material, como se A obtém de B que o acompanhe ao teatro por ser B de alta família. Nem o interesse é patrimonial, nem a prestação é de valor patrimonial, nem há ilicitude na promessa. Diz-se que é preciso ser suscetível de valoração econômica o que se presta (...) (...) No art. 1.174 do Código Civil italiano, diz-se que a prestação que é objeto da obrigação deve ser suscetível de valoração econômica e deve corresponder a interesse do credor, ainda que não seja patrimonial (“La prestazione che forma oggetto dell’obligazione deve essere suscettible di valutazione econômica e deve corrispondere ad um interesse, anche non patrimoniale, del creditore”). Só se aludia à não-patrimonialidade do interesse; exigiu-se a valorabilidade econômica da prestação. Para o legislador italiano, o que, não sendo fungível, não pode ser prestado em pecúnia, não é objeto de obrigação. (...) No sistema jurídico brasileiro, não se pode introduzir a regra jurídica italiana. Se a prestação é lícita, não se pode dizer que não há obrigação (= não se irradiou) se a prestação não é suscetível de valoração(Miranda, 1984)(...).
Neste mesmo sentido estão os ensinamentos de José Souto Maior Borges, cujo trecho transcrito abaixo bem representa a idéia de que a “obrigação” não está restringida apenas ao ramo do Direito Civil:
Como a obrigação não é categoria lógico-jurídica, mas jurídico-positiva, construção de direito posto, é ao direito positivo que incumbe definir os requisitos necessários à identificação de um dever jurídico qualquer como sendo um dever obrigacional. Significa dizer: a obrigação é definida, em todos os seus contornos, pelo direito positivo. Simplesmente, não há atributos “essenciais” da obrigação - e que assim o fossem, porque vinculantes para o direito positivo. Ao contrário, atributos da obrigação são os que estiverem contemplados em norma construída como obrigacional. Antecipando as consequências: a patrimonialidade será ou não um requisito da obrigação, conforme esteja pressuposta ou não em norma de direito obrigacional. Não será próprio, então, sustentar-se, já sob esse prisma inicial, que, ou se está diante de uma categoria patrimonial, ou de obrigação não se tratará(Borges, 2015)
Orlando Gomes (Gomes, 2004) por sua vez, sustenta que, necessariamente, o objeto da obrigação deve ser suscetível de avaliação econômica, no entanto, o interesse do credor pode não revestir-se de conteúdo patrimonial.
Os argumentos apresentados acima reforçam a tese de que, apesar da obrigação acessória não ser suscetível de avaliação pecuniária, consubstancia-se em uma prestação obrigacional.
A hipótese de incidência das obrigações acessórias e os limites à sua imposição
Os fatos passíveis de serem previstos no antecedente das normas de incidência de obrigações acessórias devem atender aos ditames previstos no artigo 115 do Código Tributário Nacional, o qual reverbera que o “fato gerador da obrigação acessória é qualquer situação que, na forma da legislação aplicável, impõe a prática ou a abstenção de ato que não configure obrigação principal”.
Portanto, pode-se concluir que as hipóteses de incidência das normas que preveêm obrigações acessórias podem ser dadas por exclusão. Todas aquelas obrigações que não estiverem vinculadas a uma obrigação principal serão fatos previstos nos antecedentes das normas tributárias como aptos ao surgimento de uma determinada obrigação acessória. Neste sentido está o posicionamento de Luciano Amaro, para quem:
O conceito de fato gerador da obrigação acessória é dado por exclusão: toda situação que dê origem a um dever que não tenha por objeto uma prestação pecuniária (tributo ou penalidade), por exemplo, a situação que faz surgir o dever de escriturar livros, de emitir notas fiscais, etc., ou seja, se o ato que a legislação impõe, à vista de certa situação, não é recolher uma quantia em dinheiro, ou se a lei impõe uma omissão, trata-se de fato gerador de obrigação acessória(Amaro, 2006).
Em sentido contrário a esta opinião está o entendimento do autor Caio Augusto Takano, o qual, apesar de entender possível a construção de hipóteses normativas para qualquer norma jurídica, propugna pela tese de que a relação de sujeição aos “deveres instrumentais” nunca se extingue, podendo a Administração demandar novas prestações sempre que assim entender conveniente e oportuno. Enfatiza a dificuldade de se identificar o fato gerador dos “deveres instrumentais” negativos, como, por exemplo, o encargo de sujeitar-se à fiscalização do IRPJ. Para o autor, os critérios materiais e pessoais, neste caso, confundir-se-iam. Nesta mesma senda estão os ensinamentos de Luís Eduardo Schoueri e Sacha Calmon Navarro Coêlho:
Por ora, vale notar que causa espécie cogitar de um ‘fato gerador’ na ‘obrigação acessória’. É certo que muitas vezes a legislação, de fato, preverá uma hipótese abstrata que, uma vez concretizada, dará azo à ‘obrigação acessória’: a entrega de uma declaração de ajuste anual, no Imposto de Renda, é um exemplo. Entretanto, como se viu anteriormente, boa parte dos deveres instrumentais são contínuos. A menos que se considere cada solicitação da autoridade fiscal (norma individual e concreta) um ‘fato gerador’, não fará sentido o dispositivo do artigo 115 acima(Schoueri, 2019). Vimos que as chamadas obrigações acessórias não possuem ‘fato gerador’; decorrem de prescrições legislativas imperativas: ‘emita notas fiscais’, ‘declare rendas e bens’, etc. A impropriedade redacional é sem par. Diz-se o fato gerador da obrigação acessória é ‘qualquer situação’ que, na forma da ‘legislação aplicável’, impõe a ‘prática ou abstenção de ato’. Outra maneira de prescrever deveres de fazer e não fazer por força de lei, cabe apenas reafirmar que a legislação a que se refere o artigo somente pode ser coleção de leis em sentido formal e material(Coêlho, 1997).
Data máxima vênia, os entendimentos exposados acima não levam em consideração a premissa de não ser possível a existência de um dever jurídico sem o seu correspondente “fato gerador”. Direito e dever são lados opostos de uma mesma moeda e decorrentes da incidência de determinada norma jurídica, cuja ocorrência opera-se na concretização do evento previsto hipoteticamente em seu antecedente. Assim, não é possível alegar a existência de uma obrigação jurídica sem que haja a incidência de uma norma e, consequentemente, sem a ocorrência de um fato imponível.
Assim, mesmo nos casos das obrigações negativas, é possível construir uma hipótese de incidência para o surgimento de determinada obrigação acessória. Sem a ocorrência do evento, a obrigação acessória abstratamente prevista não pode ser exigível. E, uma vez satisfeita, não seria permitido ao sujeito ativo reclamá-la novamente, tampouco constituir o crédito tributário decorrente do seu inadimplemento.
No exemplo citado pelo eminente Caio Takano, a hipótese de incidência da obrigação de sujeitar-se à fiscalização do IRPJ poderia ser esquematizada da seguinte forma (Tabela 1):
Favoráveis à tese da necessidade de ocorrência de fatos geradores como ensejadores das obrigações acessórias, estão as opiniões de Hugo de Brito Machado e Luciano Amaro, para os quais:
Mesmo, porém, que se ponha em causa o dever de utilizar um certo formulário, descrito em ato de autoridade, melhor seria dizer que a obrigação, em situações como essa, decorre da lei, pois nesta é que está o fundamento com base no qual a autoridade pode exigir tal ou qual formulário, cujo formato tenha ficado a sua discrição. E, obviamente, também nessas situações, o nascimento do dever de alguém cumprir tal obrigação instrumental surgirá, concretamente, quando ocorrer o respectivo fato gerador(Amaro, 2006). Diferentemente do que ocorre com o fato gerador da obrigação principal, seja essa consubstanciada no tributo ou na penalidade pecuniária, o fato gerador da obrigação tributária acessória não há de ser necessariamente um tipo fechado. Não se exige que a legislação tributária descreva, em cada caso, a situação cuja ocorrência faz nascer o dever de fazer, de não fazer ou de tolerar, objeto da obrigação tributária acessória. Tal situação decorre de um ou de vários dispositivos da legislação, pode ser uma situação específica ou não, duradoura ou instantânea, sem que se encontra na norma descritora da hipótese cuja concretização faz nascer a obrigação acessória uma descrição precisa de todos os seus elementos, muitos dos quais podem resultar implícitos ou determinados por intuição(Machado, 2003).
No entanto, a instituição de obrigações acessórias deve respeitar limitações de ordem espacial, pessoal, temporal e material. No primeiro caso, somente poderão ser exigidas dentro dos limites territoriais do sujeito ativo. Para que o ente tributante consiga obter informações de sujeito estabelecido fora dos seus limites territoriais, será necessário utilizar o artigo 199 do CTN (permuta de informações fiscais), in verbis:
Art. 199. A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestar-se-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio. Parágrafo único. A Fazenda Pública da União, na forma estabelecida em tratados, acordos ou convênios, poderá permutar informações com Estados estrangeiros no interesse da arrecadação e da fiscalização de tributos.
Enfático na defesa de uma restrição à imposição de obrigações acessórias relacionadas à sujeitos estabelecidos fora dos lindes espaciais do sujeito ativo é o autor Caio Takano, para quem:
Se, em relação à obrigação tributária, a territorialidade delimita a soberania fiscal de um Estado, de modo a restringir seu poder de tributar a fatos que guardem um elemento de conexão com o seu território (territorialidade material), no tocante aos deveres instrumentais, estes somente poderão ser impostos dentro de suas fronteiras, uma vez que o Estado não tem jurisdição fora delas (territorialidade formal) e, portanto, não poderá exercer seu império além de seus limites territoriais, sob pena de afrontar a soberania de outro Estado(Takano, 2017).
Quanto ao limite pessoal, o artigo 122 do CTN dispõe que o sujeito passivo da obrigação acessória é a pessoa obrigada às prestações que constituam o seu objeto. Desta forma, somente devem suportá-las quem possua vínculo direto ou indireto com a obrigação principal e que a informação requisitada seja relevante à arrecadação ou fiscalização deste tributo.
Para o Superior Tribunal de Justiça, o fato de determinado sujeito não ser cadastrado no ente tributante e, portanto, não ser contribuinte do imposto objeto da verificação fiscal caracteriza a inexistência do “interesse para a arrecadação”, constante do artigo 113, parr.2º, do CTN, mesmo que estabelecido dentro dos limites territoriais do sujeito ativo. Este posicionamento pode ser constatado na análise do Resp n.º 539.084-SP, no qual fora negado ao Fisco Municipal de São Paulo o direito de exigir a exibição de livros de empresa não cadastrada, por entender que não era contribuinte do ISSQN, conforme ementa abaixo:
Tributário. Imposto sobre serviços de qualquer natureza - ISSQN. Empresa não contribuinte. Obrigatoriedade de exibição dos livros comerciais. Inexistência. Art. 113, parr. 2º, do CTN. I - A discussão dos autos cinge-se à necessidade, ou não, de a empresa recorrida, pelo fato de não ser contribuinte do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISSQN, ainda assim ser obrigada a exibir seus livros fiscais ao Município de São Paulo. II - Restou incontroverso o fato de que a empresa Recorrida não recolhe ISSQN aos cofres do Município de São Paulo. III - Nesse contexto, verifica-se que, mesmo que haja o Poder Estatal, ex vi legis, de impor o cumprimento de certas obrigações acessórias, a Administração Tributária deve seguir o parâmetro fixado no parr. 2º do art. 113 do CTN, isto é, a exigibilidade dessas obrigações deve necessariamente decorrer do interesse na arrecadação. IV - In casu, não se verifica o aludido interesse, porquanto a própria Municipalidade reconhece que a Recorrida não consta do Cadastro de Contribuintes do ISSQN. V - Mesmo que o ordenamento jurídico tributário considere certo grau de independência entre a obrigação principal e a acessória, notadamente quanto ao cumprimento desta última, não há como se admitir o funcionamento da máquina estatal, nos casos em que não há interesse direto na arrecadação tributária. VI - Se inexiste tributo a ser recolhido, não há motivo/interesse para se impor uma obrigação acessória, exatamente porque não haverá prestação posterior correspondente. Exatamente por isso, o legislador incluiu no aludido parr. 2º do art. 113 do CTN a expressão“no interesse da arrecadação”. VII - Recurso Especial improvido(2). (STJ - Resp: 539084 SP 2003/0086670-3, Relator: Ministro Francisco Falcão, Data de Julgamento: 18/10/2005, T1 - Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 19/12/2005 p. 214RDDT vol. 126 p. 181)
Data máxima vênia, não obstante o ente municipal não poder criar obrigação tributária autônoma, a exibição dos documentos está respaldada no artigo 195 do CTN. O interesse relacionado à arrecadação ou fiscalização tributária, neste caso, está caracterizado por eventual conflito de competência entre os entes municipal (ISSQN) e estadual (ICMS). O vínculo indireto da empresa com eventual obrigação tributária municipal é motivo suficiente para que o ente que se sinta prejudicado possa exigir as informações econômico fiscais de sujeito estabelecido dentro do seu território, mesmo que não cadastrado em seu cadastro mobiliário. Como se trata de interesses contrapostos entre os entes tributantes, a mútua colaboração disposta pelo artigo 199 do CTN não é medida eficaz, posto ser contrária, neste caso, aos interesses do Estado.
No que se refere ao limite temporal, Caio Takano aponta para a necessidade de atendimento de duas coordenadas de tempo, quais sejam: como primeiro limite, o período de vigência da lei que instituiu o tributo vinculado à obrigação acessória; e, como segundo limite, o prazo prescricional disposto pelo parágrafo único do artigo 195 do Código Tributário Nacional, apesar da sua duvidosa constitucionalidade, tendo em vista ofender ao primado da segurança jurídica, posto as hipóteses de suspensão e interrupção da prescrição dificultarem ao contribuinte estabelecer o termo ad quem para a guarda dos documentos fiscais.
Por fim, o limite material está relacionado à acepção e alcance semântico dado ao termo “no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos”. Para Paulo de Barros Carvalho, bastaria a geração de qualquer benefício à atividade exercida pela Administração Tributária para que a instituição de obrigação acessória estivesse justificada:
Logo, existe, sim, um limite à liberdade e instituir liames impositivos de um fazer ou não fazer. E esse limite está enunciado, de modo expresso, no art. 113, parr.2º, do CTN, ao referir as prestações positivas e negativas como imposições previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. Se o dever instrumental não produz qualquer benefício para a Administração Tributária, inexiste motivo que autorize a sua exigência (Carvalho, 2014)
Caio Takano discorda, pois entende que nem sempre os interesses da Administração Tributária coincidirão com os interesses da arrecadação ou fiscalização tributária, tratando-se o dispositivo “no interesse da arrecadação ou da fiscalização de tributos” de verdadeira garantia contra o arbítrio do Fisco, sendo um limite intransponível à atuação das Administrações Tributárias. Sua tese não merece qualquer reparo. São suas as palavras abaixo:
Tal posição parace confundir o interesse da Administração Tributária com o “interesse da arrecadação ou da fiscalização de tributos” que, como se sustentou acima, não são identicos. Aquele até pode compor o último em muitos casos, todavia, nem sempre ambos convergirão. A mera constatação de um benefício (facilitação do conhecimento ou controle do cumprimento de uma obrigação tributária) não justifica a imposição de deveres instrumentais. Entendimento contrário significaria consentir que quem dirá, ao final, se a exigência de um dever instrumental é legítimo é a própria Administração Tributária, e não a lei, bastando que ela simplesmente identifique naquela imposição um benefício para si. Dentro dessa linha de pensamento, constatando-se tal benefício, nem mesmo o próprio Poder Judiciário poderia afastar aquela exigência, pois estaria em conformidade com o conteúdo normativo (atribuído por essa corrente, diga-se) do art. 113, parr.2º, do CTN(Takano, 2017).
Neste sentido, as isenções e imunidades não devem afastar o cumprimento das obrigações acessórias, pois é por meio das informações prestadas pelos particulares que a fiscalização tributária consegue assegurar a aplicação destas limitações ao poder de tributar. Assim, constata-se que a atribuição para instituição de obrigações acessórias está relacionada somente com as normas que delimitam positivamente a competência tributária.
Indo além, Schoueri defende, acertadamente, que somente se justifica a instituição de obrigações acessórias quando for imprescindível para assegurar o cumprimento da obrigação tributária principal ou para garantir a inexistência de tributo exigível:
O que sustentamos, em síntese, é que a chamada “obrigação acessória” não é algo sujeito ao juízo de conveniência da administração: o CTN dispõe sobre seus limites, quando se refere ao interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. Esse interesse, por sua vez, é algo que pode ser controlado, inclusive por meio do Poder Judiciário. Assim, por exemplo, quando se constata que a Administração Pública impõe ao particular que forneça informações de que a própria Administração já dispõe (muitas vezes fornecidas pelo mesmo particular, em oportunidade anterior), então fica patente a falta de interesse, que evidencia o descabimento da exigência(Schoueri, 2019).
Partindo das premissas expostas acima, a Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo instituiu o projeto Eliminação da GIA com o objetivo de eliminar a necessidade da entrega mensal de duas declarações similares: a Guia de Informação e Apuração do ICMS (GIA) e a Escrituração Fiscal Digital (EFD). Ao final, somente esta última permanecerá obrigatória no Estado de São Paulo, posto as informações prestadas na GIA serem um espelho daquelas constantes dos Livros de Apuração da EFD, ou seja, não são imprescindíveis à Administração Tributária, que já as contém.
Princípios constitucionais relacionados às obrigações acessórias
1.Praticabilidade
O princípio jurídico da praticabilidade possibilita o adequado cumprimento das normas tributárias, de maneira exequível e eficiente, por meio da simplificação e padronização do sistema tributário. Hans Arndt conceitua a praticabilidade como “el conjunto de medios y técnicas utilisables con el objetivo de hacer simple y viable la ejecución de las leyes”(Arndt, 2003).
Para a autora Regina Helena Costa, o princípio em questão está fundamentado em outro de maior abrangência, qual seja o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular:
Assim sendo, pensamos seja o princípio da praticabilidade tributária desdobramento ou derivação de princípio maior, considerado essencial ao direito público: o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, também conhecido por princípio da finalidade pública ou interesse coletivo(Costa, 2007).
Misabel Derzi, por sua vez, fundamenta o princípio da praticabilidade tributária no estado de necessidade administrativo, caracterizado pela acentuada desproporção entre a incumbência legalmente atribuída à Administração Tributária para a execução efiscalizaçãoda aplicação das normas tributárias e a capacidade e os meios disponíveis aos órgãos fazendários para prestar o serviço(Derzi, 1988).
Por este motivo, defende a utilização de presunções ex lege na constituição das obrigações tributárias, apesar de minimizar o problema com a generalização dos “lançamentos” por declaração e por homologação pelas Administrações Tributárias. Para esta autora, “a praticabilidade é um princípio geral e difuso, que não encontra formulação escrita nem no ordenamento jurídico alemão, nem no nacional. Mas está implícito, sem dúvida, por detrás das normas constitucionais”(Derzi, 1988). Em palestra sintetizada na Revista de Direito Tributário nº 47, a autora aprofunda seu posicionamento por meio das seguintes palavras:
Finalmente, um outro princípio fundamental no direito constitucional é o da praticabilidade. Onde está este princípio? Na Constituição. A praticabilidade não está expressamente em nenhum artigo da Constituição, mas está em todos, porque nada do que dissemos aqui teria sentido se as leis não fossem viáveis, exeqüíveis, executáveis e não fossem efetivamente concretizadas na realidade; portanto, a praticabilidade tem uma profunda relação com a efetividade das normas constitucionais. Praticabilidade é um nome amplo, genérico, e significa apenas um nome para designar todos os meios, todas as técnicas usadas para possibilitar a execução e a aplicação das leis. Sem execução e sem aplicação, as leis não tem sentido; elas são feitas para serem obedecidas. Por isso a praticabilidade é um princípio constitucional básico, fundamental, embora implícito, deve ser lido em todos os artigos onde a Constituição fala em legalidade(Derzi, 1989).
A parcela(Costa, 2007) da doutrina que classifica a praticabilidade como princípio geral e difuso dentro do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro utiliza os seguintes argumentos:
(I) o princípio possui elevado grau de generalidade e abstração, irradiando seus efeitos sobre múltiplas normas; e
(II) contempla valor considerado fundamental para a sociedade, qual seja, a viabilização da adequada execução do ordenamento jurídico, no campo tributário.
O jurista português José Casalta Nabais(Nabais, 1998) também é adepto da tese justificadora do plano constitucional do princípio da praticabilidade, conforme se depreende da leitura do trecho abaixo:
(...) sempre que tais dificuldades sejam reais e importantes, há justificação constitucional para lançar mão das técnicas de simplificação, designadamente da tipificação, já que o legislador está constrangido a generalizar ou estandardizar a fim de tornar a disciplina jurídico-fiscal praticável, sendo-lhe, por conseguinte, permitido escolher, por razões de praticabilidade, bases forfaitaires, em vez dum critério ancorado na realidade da situação individual, satisfazendo-se assim com uma justiça tipificada.
No entanto, como princípio jurídico que é, deve ser ponderado à luz de outros princípios constitucionais, mormente o da capacidade contributiva, na caso dos impostos, e da retributividade, no caso das taxas, os quais constituem-se como verdadeiros limitadores da aplicação de presunções e ficções jurídicas no Direito Tributário.
Para Caio Takano (Takano, 2017), o princípio em questão representa a forma de promover a igualdade geral entre contribuintes, por meio da execução mais simples e viável da legislação, ainda que minimize os efeitos dos princípios da igualdade e capacidade contributiva. Aumenta o grau de cumprimento possível, criando condições para que todos contribuam. Portanto, promove a igualdade geral entre os contribuintes, desde que respeitados os seus direitos fundamentais.
César García Novoa(Novoa, 2006), no mesmo sentido, entende a praticabilidade administrativa como um conjunto de meios e técnicas utilizáveis com o objetivo de fazer simples e viável a execução das leis. A simplificação e a praticabilidade redundam em benefício de uma efetiva aplicação do sistema tributário que garante a generalidade da incidência da norma tributária.
2. Eficiência
O princípio da eficiência orienta as atividades realizadas pela Administração Pública no sentido de alcançar sempre os melhores resultados, com o menor custo possível e utilizando-se os meios que se encontram à sua disposição.
Desta forma, aplicando-se os efeitos de tal princípio sobre o Direito Tributário, constata-se que as obrigações acessórias impostas aos contribuintes não lhes devem ser excessivamente penosas, de modo a estimular o seu cumprimento espontâneo e permitir uma melhor fiscalização.
Ives GandraMartins (Martins, 2006) defende que a eficiência é princípio jurídico do direito administrativo, introduzido pela Emenda Constitucional n.º 19/1998. Contudo, crê que sempre foi um princípio implícito, decorrente do princípio da moralidade pública. Classifica os aspectos do princípio da eficiência em três espécies, a saber:
(I) capacidade dispenditiva do Estado, caracterizada pela correta utilização dos tributos arrecadados;
(II) justiça da tributação e geração de desenvolvimento econômico e social, identificadas pela detecção da capacidade contributiva e dos fomentos e estímulos para o progresso social; e
(III) combate à sonegação para a inibição da concorrência desleal
No entanto, este autor enumera os limites materiais que devem ser respeitados quando da simplificação e praticabilidade do sistema, quais sejam os princípios do não-confisco, da isonomia e da proporcionalidade. Critica a “política de arrecadação” (eficiência arrecadatória) efetuada no país ao invés de uma “política tributária” (eficiência tributária) para o desenvolvimento nacional. Desta forma, defende que a eficiência deve ser completa para ser válida: eficiência do Estado tanto na política tributária impositiva como na dispenditiva.
De forma original, José Eduardo Soares de Melo(Melo, 2006) fundamenta o princípio da eficiência no inciso LXXVIII do artigo 5º da CF/88: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Entende que é princípio implícito e dirigido a todos os Poderes.
De outra banda, o jurista Humberto Ávila(Ávila, 2005)entende que a eficiência administrativa não é princípio jurídico pois não estabelece objeto algum de realização, mas modo de realização de outros objetos. É metanorma ou norma de 2º grau. Calibra o exercício do poder tributário e condiciona o grau de realização dos princípios tributários atribuídos pela regra de competência. Desta forma, a eficiência administrativa não justifica a criação de ficções/presunções, a menos que seja utilizada para realizar de modo eficiente princípios contidos nas regras de competências tributárias. James Alm(Alm, 1996) afirma que o princípio da eficiência é a minimização da interferência da tributação sobre as decisões econômicas.
3.Livre Iniciativa e Livre Concorrência
O custo de conformidade decorrente da instituição de obrigações acessórias não pode influenciar negativamente a livre concorrência do mercado, tampouco ensejar a restrição de liberdades constitucionalmente garantidas aos contribuintes, como a livre iniciativa e a liberdade do exercício de profissão. Não pode o Estado criar meios que privilegiem uns em detrimento de outros.
O artigo 170 da Constituição Federal dispõe que a ordem econômica brasileira deve ter como fundamentação a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, conforme os ditames da justiça social, e observados alguns princípios, entre eles o da livre concorrência.
José Afonso da Silva define o substrato constitucional do princípio da livre concorrência da seguinte forma:
A livre concorrência está configurada no art. 170, IV, como um dos princípios da ordem econômica. Ele é uma manifestação da liberdade de iniciativa e, para garanti-la, a Constituição estatui que a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Os dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo. Visam tutelar o sistema de mercado e, especialmente, proteger a livre concorrência contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista(Silva, 1998).
Para Isabel Vaz, o princípio constitucional da livre concorrência preconiza a equidade nas oportunidades dispensadas aos agentes do mercado, impedindo a concentração do poder econômico em um ou poucos privilegiados, de forma que seja equilibrada a disputa entre os grandes e pequenos agentes econômicos:
Não se trata de uma concorrência livre de qualquer condicionamento jurídico e cujos excessos foram descritos sucintamente linhas atrás. Trata-se de uma concorrência que o legislador pretende livrar de quaisquer práticas levadas a feito ou intentadas pelos agentes econômicos e suscetíveis de constituir abuso da liberdade de iniciativa, tal como consagrada na Carta Política.(...) Na nova constituição brasileira não se busca apenas a repressão às formas abusivas do poder econômico: pretende-se atingir um modelo eficiente de concorrência, compatível com as “impurezas” e as “imperfeições” do mercado, mediante a utilização, se necessário das regras jurídicas e das instituições para aquele fim criadas. Tais regras e instituições devem ser capazes de prevenir, apurar e reprimir quaisquer formas consideradas abusivas do poder econômico e podem ser classificadas como instrumentos de preservação do princípio da livre concorrência. No contexto das normas constitucionais onde se insere, a livre concorrência funciona também como uma das diretrizes que se impõe a todos quantos se dedicam ao exercício das atividades econômicas, ao lado da “defesa do consumidor”, da “função social da propriedade” e da “defesa do meio ambiente(Vaz, 1993).
Quanto ao princípio da livre iniciativa, esclarecem Pereira e Carneiro que:
O princípio da livre iniciativa pode perfeitamente ser compreendido em conformidade com o direito à liberdade, previsto no artigo 5º da Constituição Federal, na medida em que permite ao empresário ingressar no mercado para exercer atividade econômica, considerando ainda a permanência do mesmo (Pereira e Carneiro, 2015).
A doutrina de Marlon Tomazette ressalta que a Constituição Federal alçou o princípio da livre iniciativa aos fundamentos da República Federativa do Brasil, in verbis:
Um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é a livre iniciativa (art.1º,IV, daConstituição Federal), pelo qual deve-se garantir aos indivíduos o acesso às atividades e o seu exercício. Tal princípio tem uma função social, ele não é absoluto e deve compatibilizar com outros princípios constitucionais, sobretudo os princípios da função social da propriedade e da livre concorrência. Assim, o princípio da livre iniciativa não representa uma liberdade econômica absoluta; o Estado pode limitar a liberdade empresarial, respeitando os princípios da legalidade, igualdade e proporcionalidade, ponderando os valores da livre iniciativa e da livre concorrência(Tomazette, 2013).
Assim, os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência são verdadeiros limites à criação de obrigações acessórias desproporcionais ao interesse da arrecadação ou fiscalização tributária, ou seja, os atos impositivos (soberanos) do Estado devem ser imparciais diante dos concorrentes. A exarcebação, tanto no volume quanto na complexidade, de prestações impostas ao sujeito passivo enseja evidente desrespeito ao princípio da neutralidade fiscal do Estado.
No entanto, a sua instituição no interesse da fiscalização tributária tem como finalidade coibir a evasão fiscal, sendo, portanto, um efetivo e importante instrumento em favor da livre concorrência, enquanto condição da livre iniciativa, já que a evasão fiscal é uma prática efetivamente anticoncorrencial.
Por outro lado, a simplificação do sistema tributário também favorece a livre concorrência, pois permite o cumprimento das obrigações tributárias por todos. Tércio Sampaio defende que a imposição de obrigações acessórias deve atender ao princípio da neutralidade estatal, em face desta concorrência:
Ora, por fim e em conclusão, é que se tem de admitir, nesse quadro, que a imposição de obrigações tributárias acessórias, para ser enquadrada como medida abstrata e, em termos de neutralidade concorrencial, como legítima, deve ter uma repercussão equânime entre os concorrentes, podendo constituir, para uns, um ônus maior, mas resultante de sua capacidade competitiva de fato. Ou, mesmo que ela traga um fator discriminante, esse fator deve encontrar na própria situação do mercado atingido sua razão de ser (por exemplo, obrigação genérica para todo um grupo, mas não para todos os grupos econômicos, ou, mesmo dentro de um grupo, obrigação para todos os agentes, mas isenção para alguns, incapacitados de assumir o ônus(Junior, 2005).
Como exemplo, pode-se citar a Lei Complementar n.º 1.320, de 06 de abril de 2018, que instituiu, no Estado de São Paulo, o Programa de Estímulo à Conformidade Tributária - Nos Conformes que, dentre outras finalidades, estabelece a análise de riscos como forma de classificação dos contribuintes paulistas.
A pirâmide de risco conta com 6 classes, entre A+ e E, que indicam a classificação dos contribuintes do ICMS em ordem decrescente de conformidade, levando-se em conta todos os seus estabelecimentos em conjunto. Desta forma, permite-se que a Administração Tributária consiga oferecer o tratamento fiscal adequado a cada perfil de contribuinte.
Os critérios previstos para a classificação estão contidos no artigo 5º da LC 1.320/18, in verbis:
Artigo 5º -Para implementação do Programa “Nos Conformes”, com base nos princípios, diretrizes e ações previstos nesta lei complementar, os contribuintes do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS serão classificados de ofício, pela Secretaria da Fazenda, nas categorias “A+”, “A”, “B”, “C”, “D”, “E” e “NC” (Não Classificado), sendo esta classificação competência privativa e indelegável dos Agentes Fiscais de Rendas, com base nos seguintes critérios: I -obrigações pecuniárias tributárias vencidas e não pagas relativas ao ICMS; II -aderência entre escrituração ou declaração e os documentos fiscais emitidos ou recebidos pelo contribuinte; e III -perfil dos fornecedores do contribuinte, conforme enquadramento nas mesmas categorias e pelos mesmos critérios de classificação previstos nesta lei complementar. parr. 1º -Para cada critério, os contribuintes serão classificados nas categorias previstas no “caput” deste artigo, em ordem decrescente de conformidade, considerados todos os seus estabelecimentos em conjunto, observadas a forma e as condições estabelecidas em regulamento.
Ou seja, para a classificação dos contribuintes paulistas nas classes de E até A+, estão previstos os critérios de adimplemento das obrigações acessórias e principais, além da classificação dos fornecedores. Neste último critério, utilizou-se uma análise sistêmica do risco envolvido em toda a cadeia de consumo, de forma que a classificação de determinado contribuinte reverbera sobre a classificação do seu cliente, conforme se depreende da leitura do artigo 9º:
Artigo 9º -A classificação pelo critério de perfil de fornecedores do contribuinte considerará o percentual de entradas de mercadorias e serviços tributados pelo ICMS, nos estabelecimentos do contribuinte, provenientes de fornecedores classificados nas categorias “A+”, “A”, “B”, “C” e “D”. parr. 1º -Será classificado na categoria “A+” o contribuinte com no mínimo 70% (setenta por cento) do valor total de suas entradas provenientes de fornecedores classificados nas categorias “A+” ou “A”, e no máximo 5% (cinco por cento) na categoria “D”. parr. 2º -Será classificado na categoria “D” o contribuinte com menos de 40% (quarenta por cento) do valor total de suas entradas provenientes de fornecedores classificados nas categorias “A+”, “A” ou “B”, ou mais de 30% (trinta por cento) na categoria “D”. parr. 3º -A classificação nas demais categorias ocorrerá no intervalo entre as categorias “A+” e “D”. parr. 4º -O fornecedor enquadrado na categoria “NC” (Não Classificado) não será considerado para efeito da classificação prevista no “caput” deste artigo, salvo se houver concentração relevante de fornecedores nessa categoria em relação ao mesmo contribuinte, na forma e condições estabelecidas em regulamento.
Neste ponto, constatou-se que o critério da classificação dos fornecedores poderia ofender o princípio da livre concorrência, além de resvalar no limite espacial da imposição de obrigações acessórias, já que os contribuintes paulistas que adquirissem grande quantidade de mercadorias provenientes de operações interestaduais poderiam ser prejudicados, na medida em que os fornecedores situados nas outras unidades federadas não estariam classificados (categoria NC).
A previsão constante do artigo 10, que prevê a imposição do dever de transmissão das informações econômico-fiscais a contribuintes estabelecidos fora das divisas do Estado de São Paulo, também esbarra no limite espacial da imposição de obrigações acessórias, além de criar espécie de sanção política para aqueles que não aderirem ao procedimento paulista:
Artigo 10 -A Secretaria da Fazenda poderá estabelecer procedimento próprio para cadastramento de contribuintes do ICMS estabelecidos em outras unidades federadas que forneçam mercadorias e serviços a contribuintes estabelecidos no Estado de São Paulo, para transmissão eletrônica de informações fiscais. parr. 1º -A transmissão de informações será providenciada diretamente pelo próprio fornecedor ou por meio de convênio celebrado entre a Secretaria da Fazenda e o órgão responsável pela administração tributária da unidade federada de origem. parr. 2º -As informações transmitidas serão utilizadas exclusivamente para a classificação do fornecedor em uma das categorias referidas no artigo 5º. parr. 3º -No caso de falta de transmissão de informações do fornecedor, será adotada automaticamente a classificação na categoria “D”.
Portanto, na medida em que a legislação tributária passa a influenciar as decisões comerciais dos agentes privados, ofendendo os primados constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, distancia-se da neutralidade fiscal desejada e cria obrigações desproporcionais ao interesse da arrecadação ou fiscalização tributária.
Corroborando o explanado até o momento, faz-se mister a citação do artigo 2º do Decreto n.º 64.453, de 06 de setembro de 2019, que regulamenta a classificação dos contribuintes dentro do Programa de Estímulo à Conformidade Tributária - Nos Conformes:
Art. 2º Os contribuintes enquadrados no Regime Periódico de Apuração (RPA) serão classificados de ofício, pela Secretaria da Fazenda e Planejamento, nas categorias “A+”, “A”, “B”, “C”, “D”, “E” e “NC” (Não Classificado) com base nos seguintes critérios: I - obrigações pecuniárias tributárias vencidas e não pagas relativas ao ICMS; e II - aderência entre escrituração ou declarações e os documentos fiscais emitidos pelo contribuinte ou a ele destinados.
Desta forma, reconheceu-se que o critério de classificação dos fornecedores poderia ensejar uma interferência no mercado consumidor paulista, de forma a privilegiar as operações internas em detrimento das interestaduais. Por este motivo, o Decreto n.º 64.453/19 previu apenas o adimplemento das obrigações acessórias e principais como critérios a serem utilizados na classificação dos contribuintes paulistas.
O novo paradigma das administrações tributárias
As Administrações Tributárias, em um passado não muito distante, baseavam suas atividades em um paradigma coercitivo, de repreensão àqueles que não observassem as obrigações que lhes eram impostas. O objeto primordial era garantir o cumprimento da legislação tributária e maximizar a arrecadação. Assim, pensava-se que a razão fundamental que conduzia os particulares a cumprirem com suas obrigações tributárias era o receio de sofrerem as medidas punitivas derivadas do Poder de Império do Estado(Allingham e Sandmo, 1972).
O modelo tradicional de evasão fiscal era fundamentado, principalmente, na economia do crime e na maximização dos interesses particulares, cuja decisão pela inobservância da legislação tributária era tratada como um juízo racional baseado na poderação entre as probabilidades de a evasão ser bem sucedida e as medidas punitivas previstas para o ilícito detectado.
Sob este pensamento, todos os investimentos das Administrações Tributárias eram voltados para a melhoria dos instrumentos de persecução fiscal, uma vez que se acreditava que o aumento do enforcement fiscal ocasionaria o aumento proporcional da conformidade tributária(Muehlbacher,Kirchlere Schwarzenberger, 2011).
No entanto, constatou-se que o aumento da repreensão fiscal e a aplicação de punições muito severas contribuiam para a corrupção estatal e para a desmoralização das instituições públicas, ao invés de aumentar a arrecadação tributária.
Atualmente, o tema da moral tributária e da conformidade fiscal têm recebido grande destaque e exercido muita influência sobre os estudos do novo papel exercido pelas Administrações Tributárias modernas. Sob este novo prisma, as Administrações Tributárias mais eficientes tendem a, cada vez mais, pautar suas ações sobre relações de confiança e transparência com os contribuintes, nas quais o cumprimento voluntário das obrigações tributários é incentivado.
O pesquisador James Alm(Alm, 2007), através de investigações empíricas, comprova que a conformidade tributária não pode ser explicada, somente, por fatores econômicos, pois identificou elevados índices de cumprimento das normas tributárias em países que utilizam poucos instrumentos de coerção estatal. Estas mesmas pesquisas demonstraram que há um grande número de contribuintes que cumprem com suas obrigações tributárias independentemente da análise financeira decorrente do binômio de detecção e castigo.
Diante desses resultados, Alm(Alme Togler, 2004) entende haver uma moral tributária que influenciaria os sujeitos passivos nas suas decisões de cumprir voluntariamente, ou não, com as obrigações impostas pelas normas tributárias. Para o autor, o comportamento dos contribuintes seria mais fortemente influenciado por valores sociais, tais como como o de justiça, confiança e reciprocidade.
Apesar dos estudos no Brasil a respeito da moral tributária serem ainda incipientes, o jurista Klaus Tipke(Tipke, 2002)já muito avançou sobre o tema. Segundo ele, a moral tributária dos contribuintes pode ser elevada em decorrência dos seguintes fatores:
(I) a melhora do ambiente que envolve o adimplemento das obrigações tributárias, ou seja, a simplificação do sistema tributário e a facilidade para o cumprimento das obrigações tributárias; (II) a percepção de que a receita arrecadada pelos tributos está sendo bem empregada e distribuída de forma representativa e equânime; (III) a compreensão da existência de uma elevada moral tributária na Administração Tributária; (IV) a constatação de um comportamento ético por parte das autoridades tributárias; (V) a sensação de justiça fiscal, garantida mediante a igualdade perante a lei, que no Direito Tributário seria a repartição igualitária da carga tributária e o respeito ao princípio da capacidade contributiva; (VI) a existência de leis justas, fundamentadas em um conjunto de valores, princípios e regras constitucionais
Desta forma, o modelo de atuação das Administrações Tributárias deve considerar, também, os fatores não econômicos que influênciam o comportamento dos contribuintes e, consequentemente, elevam a confomidade tributária.
Não obstante os recursos coercitivos disponíveis ao Fisco serem importantes instrumentos para o combate da evasão fiscal, sua utilização não deve ser desmesurada, sob o risco de o Estado incidir no que Acemoglu (Acemoglu, Johnson e Robinson, 2001) chamou de extrativismo fiscal: quando a sociedade e a economia são submetidas a um ciclo vicioso e autista no qual a força da lei é utilizada como único instrumento de arrecadação de tributos. Neste sistema, não se paga tributo para exercer o direito sobre a prestação de serviços públicos, mas sim porque a Constituição autoriza, a lei prescreve e o Auto de Infração determina.
O pesquisador Richar Bird(Bird, 2010) expõe que nem todos os problemas enfrentados pelas Administrações Tributárias podem ser resolvidos pelo poder coercitivo estatal. Por meio dos seus estudos, demonstra que há muitas vantagens quando se deixa o paradigma do crime, no qual o contribuinte é visto sempre como um potencial defraudador da norma tributária, e passa-se a utilizar o paradigma do serviço, no qual o contribuinte é visto, a princípio, como um cliente dos serviços prestados pelas Administração Tributárias.
A criação de uma relação mais cooperativa e menos coercitiva, calcada na confiança mútua e no respeito à capacidade contributiva dos sujeitos passivos, como mola propulsora da moral tributária, passa a ser a missão das Administrações Tributárias eficientes. Parte-se do pressuposto de que o cumprimento voluntário das obrigações tributárias pode ser elevado quando a função arrecadatória do Estado é exercida de forma mais cooperativa, eficiente, simples e transparente.
Assim, o Estado deve sempre buscar criar um ambiente de negócios que favoreça a criação e o fortalecimento de novas empresas. Para isso, a simplificação e praticabilidade do sistema tributário, com a diminuição da quantidade e da complexidade das obrigações acessórias, é medida que se impõe para a elevação do cumprimento das obrigações tributárias pelos contribuintes.
Para tanto, estas novas demandas exigem uma atuação administrativa mais voltada para a análise dos riscos, de forma que os contribuintes possam ser segmentados em classes distintas, de acordo com o comportamento demonstrado ao Fisco, de forma que as ações perpetradas pelas Administrações Tributárias, sejam elas coercitivas ou cooperativas, ostentem maior respeito às características individuais de cada contribuinte.
Além do constante aperfeiçoamento da legislação tributária e da tentativa continuada de redução dos custos de conformidade, as Administrações Tributárias também devem fazer uso intensivo da tecnologia de informação, como meio para simplificar as obrigações tributárias, reduzir o custo para o cumprimento dessas obrigações e obter dados mais precisos sobre a análise do comportamento dos contribuintes. Essa análise permitirá a adequação das ações do fisco às necessidades ou comportamento dos contribuintes, permitindo, inclusive, ações preventivas.
As normas tributárias paulistas e a concretização dos princípios constitucionais tributários
O grande dilema das Administrações Tributárias, na atualidade, é adequar as atividades exercidas com o novo paradigma de relacionamento exigido entre o Fisco e os sujeitos passivos. No entanto, para a concretização deste desiderato, os princípios constitucionais relacionados com atividade de arrecadação e fiscalização tributária devem ser compatibilizados, a fim de que todos os valores almejados pelo constituinte sejam respeitados, na medida do possível.
Enquanto que um sistema tributário justo demanda análise das caracterísiticas individuais de cada contribuinte para a identificação de sua capacidade contributiva, a excessiva quantidade de obrigações acessórias instituídas para este fim pode desencadear a complexidade demasiada do sistema e gerar altos custos de conformidade, ocasionado ofensa à isonomia tributária e à eficiência arrecadatória.
De acordo com o Cedric Sandford(Sandford, 1995) o custo de conformidade pode ser classificado em quatro espécies:
(I) a extinção da obrigação tributária;
(II) os custos de conformidade à tributação (custos contábeis internos e externos, incluindo o tempo e dinheiro gastos para cumprir com as obrigações tributárias, como a contratação de contadores, aquisição de softwares, conservação de documentos, treinamentos e capacitação para atualização em matéria tributária e outros);
(III) os custos administrativos, ou o orçamento da Administração Tributária, que é financiado por toda a sociedade; e
(IV) os custos econômicos (basicamente, a distorção do mercado).
Uma Administração Tributária eficiente procura transparentar e reduzir os custos administrativos e de conformidade à tributação (impostos sobre os contribuintes) ao determinar suas linhas de atuação. Os custos de conformidade são, em geral, superiores ao custo administrativo, mas nem sempre isso é claro para a sociedade.
A minimização dos custos de cumprimento também é fator relevante para a redução da brecha fiscal. Um sistema complexo e caro para ser adimplido gera estímulo ao descumprimento. O custo de cumprimento da norma tributária representa recursos que deveriam ser atribuídos à atividade produtiva, mas são deslocados para financiar um complexo e ineficiente sistema tributário.
O conflito geradona aplicaçãodos princípios jurídicos contrapostos deve ser solucionadopela ponderação dos direitos fundamentais envolvidos, sejam eles individuais (capacidade contributiva, isonomia) ou coletivos (dever fundamental de pagar tributos, justiça tributária), com vistas a otimizar o sistema tributário como um todo.
No Estado de São Paulo, foram editadas diversas alterações normativas com a finalidade de direcionar as atividades arrecadatórias e fiscalizatórias ao novo padrão de Administração Tributária. Na esteria destas mudanças, foi introduzido, em 22 de dezembro de 2009, o artigo 72 na Lei 6.374/89, cujo parr. 2º dispõe:
Artigo 72 -A administração tributária tem por atribuição fazer cumprir a legislação relativa aos tributos de competência estadual, devendo adotar, na sua consecução, procedimentos que estimulem o atendimento voluntário da obrigação legal, reduzam a inadimplência e reprimam a sonegação, tais como a educação fiscal, a orientação de contribuintes, a divulgação da legislação tributária, a fiscalização e a aplicação de penalidades.(...) parr. 2º- Em observância aos princípios da eficiência administrativa e da razoabilidade, o Auto de Infração e Imposição de Multas pode deixar de ser lavrado nos termos de disciplina estabelecida pela Secretaria da Fazenda.
Sob o fundamento de validade acima e tendo em vista os princípios da eficiência administrativa e da razoabilidade, previstos no artigo 111 da Constituição do Estado de São Paulo, foi editada, em 07 de novembro de 2014, a Portaria CAT 115, a qual, em seu artigo 10, dispõe sobre as hipóteses em que o AIIM poderá deixar de ser lavrado pela autoridade tributária. Eis os seus termos:
Art. 10.Mediante análise e decisão da Comissão de Controle de Qualidade e em obediência aos princípios da eficiência administrativa e razoabilidade, o AIIM poderá deixar de ser lavrado quando, cumulativamente: I - a infração não implicar falta ou atraso no recolhimento do imposto; II - não existirem indícios de dolo, fraude ou simulação; III - ficar constatado que a infração não trouxe prejuízos à fiscalização, assim entendida qualquer ação ou omissão que: a) implique embaraço, atraso ou dificuldade à ação fiscal, inclusive o descumprimento a notificação fiscal específica; b) prejudique o controle fiscal sobre as operações ou prestações; c) prejudique a utilização das informações dos bancos de dados da Secretaria da Fazenda; IV - o contribuinte não for reincidente, assim considerado aquele que, em relação a qualquer dos seus estabelecimentos, nos últimos cinco anos, nãotiver sido autuado pela prática da mesma infração ou notificado nos termos do item 2 do parr. 4º; V - o contribuinte não possuir débitos, inscritos ou não em dívida ativa, ou, caso possua, estiverem com exigibilidade suspensa, observado o disposto no item 2 do parr. 2º. parr. 1º Sempre que presentes os pressupostos de não lavratura do AIIM, independentemente do valor do crédito tributário, a proposta será submetida à respectiva Comissão de Controle de Qualidade. parr. 2º A Comissão de Controle de Qualidade: 1 - verificará o atendimento do disposto nos incisos I a V do "caput"; 2 - em relação ao inciso V, determinará a notificação do contribuinte para, no prazo de 10 (dez) dias, regularizar ou garantir seus débitos, salvo se houver risco de decadência do crédito tributário. (...) parr. 4º Caso a Comissão de Controle de Qualidade decida pela não lavratura, o contribuinte infrator deverá ser notificado, preferencialmente via Domicílio Eletrônico do Contribuinte - DEC: 1 - a adotar as providências necessárias à regularização pretérita da infração, caso seja possível e indispensável, em prazo compatível, sob pena de lavratura do AIIM; 2 - ao cumprimento, a partir da data da cientificação, das obrigações tributárias pertinentes em conformidade com a legislação, sob pena de impedimento de nova aplicação do disposto neste artigo.
Neste contexto, os ideais de justiça tributária e de colaboração no cumprimento da legislação tributária, inseridos pelo artigo 72 da Lei n.º 6.374/89 e pelo artigo 10 da Portaria CAT 115/14, vão ao encontro do novo paradigma de serviço assumido pelas Administrações Tributárias modernas. Desta forma, compete ao gestor público facilitar o cumprimento das obrigações acessórias e colaborar com aqueles contribuintes que tenham descumprido algum dever normativo, mas que não o tenham feito com propósitos suspeitos, tampouco tenham ocasionado qualquer desfalque ao erário.
A alternativa prevista pelo parr. 4º do artigo 10 da Portaria CAT 115/14, que se consustancia na possibilidade de efetuar uma notificação prévia ao infrator para que sejam oportunizadas as providências necessárias à regularização da infração detectada, ao reverso de ser aplicado o competente AIIM, exerce enorme influência sobre a moral tributária dos contribuintes e, consequentemente, sobre a conformidade tributária, além de contribuir para um ambiente mais transparente e eficiente.Favorece, também, o surgimento de uma nova cultura organizacional, pautada sobretudo na confiança mútua entre as partes. Seu fundamento de validade é o artigo 88, parr. 4º, da Lei nº 6.374/89, in verbis:
parr. 4º - A critério da Secretaria da Fazenda, o contribuinte poderá ser comunicado sobre divergências ou inconsistências identificadas entre as informações por ele prestadas ao fisco no exercício regular de sua atividade, hipótese em que ficará a salvo das penalidades previstas no artigo 85 desta lei, desde que sane a irregularidade no prazo indicado na comunicação.
Neste cenário, a Administração Tributária paulista passa a analisar o sujeito passivo de forma mais individualizada, com o objetivo de melhor analisar seus atributos, bem como as repercussões que sua prática antijurídica causou na arrecadação paulista e no controle da fiscalização tributária, de forma que o contribuinte deixa de ser tratado aprioristicamente como um infrator, passando a ser considerado, em princípio, como um cliente dos serviços prestados pela Administração Tributária de SP.
Sobre este novo enfoque, a Administração Tributária paulista passa a adotar uma postura mais facilitadora e cooperativa com o sujeito passivo, constituída por uma relação menos coercitiva, com maior respeito às suas capacidades contributivas e às suas necessidades, desde que atendidos os pressupostos da Portaria CAT 115/14, na qual a aplicação de penalidades passa a ser medida excepcional, a depender dos efetivos danos causados pela conduta ilícita, que deverá, agora, estar sempre balizada pelos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
Além desta hipótese normativa, que permite a não constituição do crédito tributário quando atendidas certas condições, consta também da legislação paulista a previsão constante do artigo 92 da Lei 6.374/89, a qual permite que as multas punitivas já constituídas possam ser reduzidas ou relevadas pelos órgãos julgadores, desde que correlacionadas ao descumprimento de obrigação acessória, somente, e desvinculadas dos defeitos jurídicos de dolo fraude ou simulação, in verbis:
Artigo 92 -Salvo disposição em contrário, as multas aplicadas nos termos do artigo 85 podem ser reduzidas ou relevadas pelos órgãos julgadores administrativos, desde que as infrações tenham sido praticadas sem dolo, fraude ou simulação e não impliquem falta de pagamento do imposto. (...) parr. 3º- Para efeitos deste artigo, serão, também, examinados o porte econômico e os antecedentes fiscais do contribuinte.
Assim como a Portaria CAT 115/14, o parr.3º do artigo 92 também determina que as características pessoais do contribuinte sejam levadas em consideração para a incidência da norma. Sobreleva, desta maneira, os ideiais de justiça e isonomia na aplicação da lei tributária, sempre com vistas à identificação cas capacidades contributivas dos sujeitos passivos.
Na contínua busca de facilitar o cumprimento das obrigações tributárias pelos contribuintes paulistas e atender ao princípio da praticabilidade tributária, foi editada, em 06 de abril de 2018, a já famigerada Lei Complementar nº 1.320, a qual intituiu o Programa de Estímulo à Conformidade Tributária - “Nos Conformes”. Nele, foram estabelecidas regras de conformidade tributária e definidas novas formas de relacionamento entre Fisco e administrados.
Sua edição está fundamentada em diversos princípios, tais como o da praticabilidade, eficiência e livre concorrência, bem como está em consonância com a nova postura exigida das Administrações Tributárias, que agora devem incentivar o cumprimento espontâneo das obrigações tributárias por meio da elevação da moral tributária dos contribuintes.
Para este fim, estão previstas diversas diretrizes no sentido de reduzir os custos de conformidade, simplificar o sistema tributário paulista eas obrigações acessórias, bem como simplificar as formas de apuração e adimplemento do imposto por meio da utilização de tecnologias da informação:
Artigo 1º -Esta lei complementar cria condições para a construção contínua e crescente de um ambiente de confiança recíproca entre os contribuintes e a Administração Tributária, mediante a implementação de medidas concretas inspiradas nos seguintes princípios: I -simplificação do sistema tributário estadual; (...)V -concorrência leal entre os agentes econômicos. Parágrafo único -Os princípios estabelecidos no “caput” deste artigo deverão orientar todas as políticas, as ações e os programas que venham a ser adotados pela Administração Tributária. Artigo 2º -Para implementar os princípios estabelecidos no artigo 1º desta lei complementar, fica instituído, no âmbito da Secretaria da Fazenda, o Programa de Estímulo à Conformidade Tributária - “Nos Conformes”, compreendendo as seguintes diretrizes e ações: I -facilitar e incentivar a autorregularização e a conformidade fiscal; II -reduzir os custos de conformidade para os contribuintes; III -aperfeiçoar a comunicação entre os contribuintes e a Administração Tributária; IV -simplificar a legislação tributária e melhorar a qualidade da tributação promovendo, entre outras ações: (...) Artigo 4º -O contribuinte poderá ser convidado a participar de ações e projetos desenvolvidos pela Secretaria da Fazenda, em conjunto com instituições de ensino ou centros de pesquisa públicos ou privados, na forma estabelecida em regulamento. parr. 1º -As iniciativas abrangidas pelo disposto no “caput” deste artigo terão por escopo precípuo a solução de problemas relativos à tributação, notadamente: 1 -a simplificação de obrigações acessórias; 2 -a simplificação das formas de apuração e pagamento de tributos; 3 -a implementação de medidas de estímulo à conformidade tributária, com o uso de inovações tecnológicas;(...)
Outra inovação da Lei foi a previsão da hipótese de autorregularização dispensadas aos contribuintes que ostentarem baixos riscos de desconformidade fiscal. A partir da Análise Informatizada de Dados - AID, consistente no cruzamento eletrônico de informações fiscais realizado pela Administração Tributária, o contribuinte terá a oportunidade de autoregularizar-se antes de qualquer procedimento de fiscalização. Além disso, está prevista a Análise Fiscal Prévia - AFP, que consiste na análise da escrita fiscal dos contribuintes com vistas à identificação e comunicação de eventuais desconformidades tributárias, oportunidade na qual o contribuinte poderá saneá-las sem a aplicação das penalidades punitivas:
Artigo 14 -A Secretaria da Fazenda incentivará os contribuintes do ICMS a se autorregularizarem por meio dos seguintes procedimentos, sem prejuízo de outras formas previstas na legislação: I -Análise Informatizada de Dados - AID, consistente no cruzamento eletrônico de informações fiscais realizado pela Administração Tributária; II -Análise Fiscal Prévia - AFP, consistente na realização de trabalhos analíticos ou de campo por Agente Fiscal de Rendas, sem objetivo de lavratura de auto de infração e imposição de multa. parr. 1º -A critério da Secretaria da Fazenda, o contribuinte poderá ser notificado sobre a constatação de indício de irregularidade, hipótese em que ficará a salvo das penalidades previstas no artigo 85 da Lei nº 6.374, de 1º de março de 1989, desde que sane a irregularidade no prazo indicado na notificação. (...) parr. 7º -Os contribuintes classificados nos grupos “A+” e “A” poderão pleitear a Análise Fiscal Prévia, cabendo ao regulamento definir condições, alcance e prazos para a realização dos trabalhos.
Institui, também, a análise de riscos como forma de classificaçãodos contribuintes paulistas de acordo com seus comportamentos tributários, propiciando um papel mais estratégico e com maior agregação de valor à Administração Tributáriapaulista. Com isso, busca-se a redução da assimetria de informações existentes no mercado, que só favorecem a concorrência desleal de quem não cumpre suas obrigações tributárias contra aqueles que integralmente as cumprem.
Conforme já explicitado no subitem 4.3, o intuito da Lei é estratificar, em ordem decrescente de conformidade, os contribuintes paulistas em uma pirâmide de risco, cujas classes vão da A+ até a E, de forma que possam ser oferecidos os tratamentos tributários adequados às diferentes categorias de contribuintes.
De acordo com a classificação atribuída, o contribuinte fará jus a diversas contrapartidas previstas na Lei Complementar, sempre com o intuito de fomentar a autorregularização tributária e atrair a descida dos sujeitos passivos para a base piramidal, por meio de uma grande pressão exercida sobre o seu topo, hipótese na qual a Administração Tributária estará autorizada a utilizar toda a força da lei para coibir as práticas indesejadas.
Conclusão
Constata-se que as recentes alterações das normas que regem o sistema tributário do Estado de São Paulo estão em perfeita harmonia com os novos padrões de relacionamento entre Fisco e contribuintes, nos quais se prioriza uma conduta mais colaborativa e menos coercitiva. O objetivo principal passa a ser o aumento do índice de cumprimento espontâneo das obrigações tributárias por meio da elevação da moral tributária dos contribuintes.
Além disso, depreende-se a existência de um equilíbrio entre a identificação das capacidades contributivas dos sujeitos passivos e a praticabilidade desejada das obrigações acessórias. Por meio da instituição da análise de riscos, a Administração Tributária paulista passará a conseguir identificar as características individuais dos particulares e, com isso, aplicar a legislação tributária de forma mais adequada e proporcional ao caso em concreto.
O uso intensivo das tecnologias de informação permitirá à Administração Tributária paulista simplificar e, por que não, extinguir diversas obrigações acessórias, sem qualquer prejuízo à atividade arrecadatória ou fiscalizatória.
As normas constitucionais e, mais ainda, as infralegais, devem respeito aos ideais de justiça e moral cristalizados pelos valores preestabelecidos pela sociedade, devendo ser interpretadas levando em conta a máxima normatividade extraída dos princípios da capacidade contributiva, praticabilidade, eficiência e livre concorrência.
Desta forma, conclui-se que andou bem o legislador paulista ao prever uma relação tributária mais assistencialista, transparente e respeitosa às capacidades contributivas dos sujeitos passivos, cujas atividades de arrecadação e fiscalização passam a ser realizadas de forma mais eficiente e direcionadas às reaisnecessidadesdos contribuintes, buscando-se transparentar as relações jurídico-tributárias e reduzir os custos de conformidade fiscal