1. INTRODUÇÃO
A atuação profissional em bibliotecas é um desafio e, quando pensamos no contexto brasileiro, marcado por um processo histórico excludente, onde pessoas enfrentam barreiras múltiplas para acessar a cultura, a educação e a informação, esta atividade ganha contornos ainda mais complexos. Soma-se a isso a precária infraestrutura e a carência de mão-de-obra e de recursos que ainda persistem em boa parte das bibliotecas brasileiras.
Além dos desafios inerentes a qualquer biblioteca, cada tipologia de instituição possui características específicas. Nas bibliotecas públicas, é fundamental observar as políticas existentes para financiamento de produtos e serviços, bem como as regras e os limites impostos pela burocracia estatal. Nas bibliotecas universitárias, impera a necessidade de seguir as orientações da instituição e o cumprimento dos planos de ensino das disciplinas, de modo a cumprir com as exigências dos órgãos competentes, que avaliam os cursos ofertados. Nas bibliotecas escolares, é necessário se manter sempre atualizado acerca das atividades curriculares desenvolvidas em sala de aula, pelos professores, de modo a manter a biblioteca como um espaço de efetivo uso e relevância. Nas bibliotecas especializadas, as demandas por informações específicas e o refinamento das bases de dados e estratégias de busca são cruciais para satisfazer a comunidade atendida, sempre atentando-se às dinâmicas da instituição mantenedora.
No contexto brasileiro, há um tipo de biblioteca por vezes ignorada ou pouco estudada pela academia, mas bastante presente na vida de algumas comunidades, em especial, as periféricas: as bibliotecas comunitárias. Originadas das próprias comunidades, elas são, acima de tudo, espaços de sociabilidade e partilha, tendo um papel fundamental na promoção da cidadania e do acesso à informação em regiões de vulnerabilidade social. As bibliotecas comunitárias não são organizadas pelo poder público ou por instituições externas e, em geral, é a própria comunidade quem as cria e mantém. Essas bibliotecas são fruto de uma sinergia com o lugar: nelas, a comunidade é percebida como algo mais significativo do que mero contexto de trabalho.
Essas comunidades, enquanto grupos sociais, funcionam de forma orgânica com o lugar onde vivem, tendo nele não apenas um espaço, mas um território onde são travadas lutas e projetados sonhos. As bibliotecas comunitárias são criadas pela e para a comunidade onde estão inseridas. Nesse sentido, a ideia de território é um importante balizador dessas bibliotecas, sendo fundamental considerá-lo na proposição de qualquer produto ou serviço de informação. Diante disso, questionamos: como a ideia de território está presente na dinâmica das bibliotecas comunitárias brasileiras? Este artigo objetiva refletir sobre o papel do conceito de território, caracterizando-o como um elemento central na dinâmica das bibliotecas comunitárias brasileiras.
Para tanto, foi realizado um estudo exploratório-descritivo e qualitativo, operado por meio de pesquisa bibliográfica e documental, amparada em literatura especializada da área de Ciência da Informação e Biblioteconomia, bem como em documentos balizadores das bibliotecas comunitárias brasileiras. O referencial teórico é apresentado na seção 2, ao passo que a metodologia está descrita na seção 3. As seções 4 e 5 apresentam os resultados das pesquisas bibliográfica e documental, respectivamente; a seção 6 realiza uma análise transversal dos dados, comparando o que foi identificado em ambos contextos de estudo; na seção 7, as considerações finais.
2. CARACTERÍSTICAS DAS BIBLIOTECAS COMUNITÁRIAS BRASILEIRAS
A proposta desta seção é delinear as principais características das bibliotecas comunitárias, enfatizando suas especificidades em relação às demais tipologias de bibliotecas, especialmente no que se refere à forma como surgem, ao seu público, à sua gestão e quanto aos objetivos ou razões de sua existência.
Quanto ao objetivo, as bibliotecas comunitárias assemelham-se às públicas, pois ambas pretendem democratizar o acesso à informação (Machado, 2009). Contudo, diferenciam-se por sua base de manutenção: as públicas são criadas e mantidas, no Brasil, por um órgão governamental; as comunitárias surgem por iniciativa de membros de uma determinada comunidade e, em geral, é esta mesma comunidade que as mantém. Ainda que muitas vezes os recursos sejam oriundos de fontes externas à comunidade (doações de empresas, editais públicos de fomento cultural etc.), é o trabalho e a organização da comunidade que permite alcançar esses recursos financeiros, materiais e humanos indispensáveis à manutenção dos serviços.
O sentido de comunidade é central no conceito de biblioteca comunitária. Com isso, além de ser um local de leitura e cultura, essa biblioteca se caracteriza fortemente pela partilha de experiências e modos de vida. «Essa coesão confere a seus membros um sentimento de responsabilidade e comprometimento» (Alves, 2020, p. 6). Em geral, a comunidade do entorno identifica a biblioteca como “sua”: seu espaço, sua construção em colaboração e, portanto, sua responsabilidade preservar e manter.
Elas ‘brotam’ do coração das comunidades periféricas, das zonas rurais e das zonas urbanas do país, num movimento engajado de grupos organizados ou de indivíduos. Grupos ou indivíduos esses que reúnem esforços no sentido de abrir espaço público para ampliar o acesso à informação, à documentação, à leitura, ao livro, ao conhecimento e ao debate sociocultural sobre a potencialidade dessa categoria de biblioteca na condição de espaços complementares para educação (Prado & Machado, 2008, p. 4).
Para muitas comunidades, as bibliotecas são os únicos espaços públicos de cultura e conhecimento: um lugar em que se pode estudar, ler, descansar, conversar. Como dizem Laudino e Lourenço (2018, p. 3-4): «Por vezes, tornando-se o único ambiente que agrega conhecimento, e que promove ações e atividades culturais sem fins lucrativos presentes na comunidade.» Por isso, as bibliotecas comunitárias também são a expressão das necessidades culturais de uma comunidade, ou seja, os grupos sociais precisam de espaços de criação, expressão e troca cultural. Nesse aspecto, as bibliotecas também são diferenciadas, pois não têm a pretensão de “levar a cultura” à comunidade, mas de serem espaços em que a cultura local se desenvolve e se expressa. Assim, não raras vezes, as bibliotecas oferecem oficinas de práticas próprias daquela comunidade (costura, capoeira, crochê etc.), se tornam palco de artistas locais e espaço de debate de temas de interesse local.
Essa apropriação do ambiente pela comunidade também demonstra o público a quem se dirige: toda a comunidade em sua multiplicidade de gêneros, etnias e religiosidades. Por exemplo, a partir do relato de uma mediadora de leitura que descreveu uma situação na qual uma mulher procurou a biblioteca para entender a morte, após a chacina de sua família, podemos perceber a biblioteca como espaço de acolhimento, diálogo e compreensão.
Além de todos os benefícios que a leitura e a informação podem trazer para os indivíduos a partir do acesso ao conhecimento oferecido pelas bibliotecas, seja em forma de ação cultural, pela mediação de leitura ou por simplesmente disponibilizar um espaço para a discussão de temas comunitários, oficinas, empréstimo de livros, busca por informações utilitárias, entre outros, a presença desses espaços também contribuiu para o desenvolvimento local de suas comunidades (Alves, 2020. p. 15).
Em geral, as bibliotecas comunitárias no Brasil emergiram a partir da década de 1990 (Alves, 2020), servindo como resposta ao sistema capitalista que cobra pelo acesso à cultura e à informação de qualidade. Situadas, comumente, em comunidades periféricas e rurais, as bibliotecas comunitárias têm em comum a proposta da equidade no direito à informação e à cultura. Assim, se depreende uma proposta político-social de fomento à cidadania, a partir da informação e da comunicação. Muitas vezes, essas bibliotecas são o espaço da comunidade para conversar e organizar suas demandas, para compartilhar memórias e refletir sobre sua identidade, mas também de lazer e festas da tradição local. Como dizem Laudino e Lourenço (2018, p. 4): «(...) quando se fala de informação no âmbito da biblioteca, não se fala somente de livros e ao incentivo à leitura, e sim de toda uma gama de atividades que forneçam e agreguem conhecimento e cultura».
Como a legitimidade do espaço é dada pela própria comunidade, em geral a gestão é participativa. Ou seja, diferente das bibliotecas tradicionais, ligadas a órgãos governamentais ou empresas privadas, com estrutura hierarquizada e linhas de controle, as bibliotecas comunitárias costumam ter uma gestão flexível, onde a equipe tem autonomia para desenvolver seus projetos pactuados com a própria comunidade.
Pelo exposto, a definição elaborada por Machado (2009, p. 91) parece abraçar os principais aspectos delineados nesta seção:
(...) o termo biblioteca comunitária pode ser definido como: um projeto social que tem por objetivo, estabelecer-se como uma entidade autônoma, sem vínculo direto com instituições governamentais, articuladas com as instâncias públicas e privadas locais, lideradas por um grupo organizado de pessoas, com o objetivo comum de ampliar o acesso da comunidade à informação, à leitura e ao livro, com vistas a sua emancipação social.
A citação também destaca uma característica fundamental das bibliotecas comunitárias: o foco no desenvolvimento de projetos sociais com a comunidade. Não são bibliotecas em que os serviços se instauram a partir do processamento técnico do acervo, «pois na falta de recursos profissionais, prioriza-se um funcionamento orgânico que se baseia na necessidade e não em padrões» (Laudino & Lourenço, 2018, p. 4). Assim, muitas vezes as bibliotecas comunitárias criam seus próprios padrões de organização e colocam o acervo a serviço da comunidade. Os livros, discos, gibis ou quaisquer outras fontes de informação estão ali porque apoiam as ações culturais e os projetos sociais daquela comunidade.
3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Como metodologia para este trabalho, tem-se uma pesquisa básica, sem previsão de aplicação prática dos resultados, com abordagem qualitativa e objetivo exploratório-descritivo. Do ponto de vista dos procedimentos, o estudo se caracteriza como bibliográfico e documental.
A pesquisa bibliográfica consistiu na revisão da literatura relacionada ao assunto abordado, a fim de investigar a presença de estudos sobre território com foco em bibliotecas comunitárias. Para realizar a pesquisa, foram utilizadas a Base de Dados em Ciência da Informação (BRAPCI), por ser a base referência na área, no Brasil, bem como a base de dados do Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação (ENANCIB), a BENANCIB, maior evento de Ciência da Informação no Brasil. Também seria realizada uma busca nos anais do Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação (CBBD), porém a busca não apresentou resultados precisos, pois foram identificadas falhas de indexação, além de não conterem todas as edições do evento para consulta. Desse modo, optamos por não a incluir no estudo.
A busca nas bases BRAPCI e BENANCIB foi realizada entre os dias 14 e 21 de agosto de 2023, em português, com o termo “território”, sem recorte temporal e com os campos de busca livres. Os resultados quantitativos dessa etapa da pesquisa estão relacionados no Quadro 1.
Expressão de busca | Base de dados | Resultados |
"território" | BRAPCI | 282 |
"território" | BENANCIB | 18 |
Fonte: Elaborado pelos autores (2023).
Optou-se por realizar a pesquisa em todos os campos de busca, sem utilizar o operador booleano AND para refinar apenas estudos que envolvessem território e bibliotecas comunitárias (território AND bibliotecas comunitárias). Essa escolha objetivou a recuperação de todos os textos que envolvessem território na área, para então selecionar os que relacionavam o conceito às bibliotecas comunitárias. Assim, foi possível identificar em quais contextos a área utiliza ou não o conceito de território.
A partir dos resultados obtidos, foi realizado um recorte de dados para refinar quais dos resultados efetivamente tratam sobre o termo território no contexto das bibliotecas comunitárias, que é a temática principal deste artigo. Realizando esse recorte, foi possível constatar diversos resultados duplicados e até mesmo triplicados, além de vários artigos que versavam sobre outros temas. Após essa deduplicação, obtivemos resultados mais específicos, a serem analisados nas próximas seções.
Na busca pelo termo “território” houve 30 artigos duplicados; sendo assim, o resultado final foi 252 artigos recuperados. Entre esses, mais de 30 são estruturados dentro da biblioteconomia, e apenas um trata sobre bibliotecas comunitárias, os demais citam principalmente bibliotecas públicas e escolares. Já na pesquisa na BENANCIB por “território”, houve dois resultados que abrangem as bibliotecas comunitárias, um deles apresentando o termo “território de memória” para caracterizar as bibliotecas comunitárias.
Abaixo, o Quadro 2 apresenta os resultados obtidos em cada base, após o recorte e deduplicação de dados. Na coluna de resultados totais estão contabilizados os artigos recuperados, excluindo as duplicações de resultado que a busca gerou. Na última coluna, são contabilizados os resultados que interessam a este trabalho, ou seja, os artigos recuperados que tratam sobre o conceito de território em bibliotecas comunitárias.
Base pesquisada | Termo | Resultados totais | Resultados no contexto das bibliotecas comunitárias |
BRAPCI | “território” | 18 | 2 |
BENANCIB | “território” | 252 | 1 |
Fonte: Elaborado pelos autores (2023).
Com relação à pesquisa documental, esta se baseou nos documentos balizadores das bibliotecas comunitárias brasileiras publicados pela Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), bem como na análise das informações apresentadas no site da Rede. Para tanto, procedemos com uma análise das ocorrências e dos contextos de uso do termo “território” nessas publicações, sendo tal análise realizada em setembro de 2023, data na qual a Rede possuía cinco textos publicados: O Brasil que lê: bibliotecas comunitárias e resistência cultural na formação de leitores (Fernandez et al., 2018), Expedição leituras: tesouros das bibliotecas comunitárias no Brasil (Guerra; Leite; Verçosa, 2018), Coleção Entre Redes: Articulação (Guerra; Leite; Verçosa, 2019b), Coleção Entre Redes: Comunicação (Guerra; Leite; Verçosa, 2019a), Plano de Estratégias e Medidas para a Reabertura das Bibliotecas da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC, (2020)).
Com os documentos recuperados, tanto na pesquisa bibliográfica como na documental, procedeu-se à análise dos documentos, que consistiu na sua leitura técnica, objetivando identificar menções ao termo “território”, bem como os seus contextos de uso. Observou-se as abordagens que eram dadas a esse termo, bem como as conexões feitas entre ele e o conceito de biblioteca comunitária.
4. O TERRITÓRIO NA LITERATURA ESPECIALIZADA E AS BIBLIOTECAS COMUNITÁRIAS
A partir dos dados obtidos na pesquisa bibliográfica, é possível realizar uma análise do termo utilizado para a busca. Por meio dessa análise, conclui-se que o termo “território” é utilizado em alguns artigos, mesmo que pouco, para caracterizar os espaços de atuação das bibliotecas comunitárias.
Os resultados encontrados apontam para o uso deste termo em áreas afins de estudo que abrangem o conceito de território por meio de outros aspectos, como na Biblioteconomia, no contexto da biblioteca pública, além de artigos das áreas de Arquivologia e Museologia, que tratam este conceito de forma mais abrangente.
Os três artigos que serão analisados nesta seção, e que possuem relação da busca por território com as bibliotecas comunitárias, estão elencados a seguir: Território de memória: fundamento para a caracterização da biblioteca comunitária (Prado & Machado, 2008), Expressões da memória, cultura e mediação na biblioteca comunitária (Silva; Cavalcante, 2018) e A biblioteca comunitária como agente de inclusão/ integração do cidadão na sociedade da informação (Prado, 2010). Os dois primeiros foram recuperados pela base BENANCIB e o terceiro na BRAPCI.
Ao longo da pesquisa nestes três artigos foi recuperado um termo relacionado que vem ao encontro do proposto por este trabalho, citando “território de memória” como termo que caracteriza um espaço de memória definido pela comunidade em que a biblioteca comunitária se encontra. Abordando este conceito, Prado e Machado (2008, p.11) afirmam que:
(...) a biblioteca comunitária concebida como território de memória não é um espaço territorial estático onde as suas atividades se limitam exclusivamente ao atendimento do alunado do ensino fundamental e médio. Ao contrário, ela é um espaço aberto à participação democrática de todos, porque, além do livro e da leitura que se constituem nos seus principais suportes físicos e intelectuais, incorpora também outras atividades socioculturais, políticas, desportivas e/ou recreativas das comunidades usuárias.
Dessa forma, os autores ampliam o entendimento de território, defendendo que o espaço territorial de uma biblioteca comunitária não é estático, e que as atividades desempenhadas por este tipo de biblioteca possuem funções socioculturais e políticas para a sua comunidade. Os três artigos se baseiam no mesmo conceito de território de memória proposto por Prado e Machado (2008), não apresentando definições novas. Podemos destacar que o conceito aponta a biblioteca comunitária como um território de memória na comunidade em que se localiza, definindo esse espaço como um centro de cultura e memória. Prado define a função da biblioteca comunitária neste contexto de atuação do território de memória:
(...) atua como um sujeito ativo que desempenha um papel fundamental como espaço ideal de leitura, educação, organização social, cidadania, desenvolvimento sustentável, transferência da informação, linguística/dialogismo etc., e não como um organismo voltado aos interesses exclusivos de quem a dirige (Prado, 2010, p.145).
O autor também afirma que a biblioteca comunitária que atua como território de memória é um espaço aberto de participação democrática, e que os livros neste espaço são usados como um suporte informacional voltado à libertação da mente humana (Prado, 2010). Assim, percebe-se que o conceito de território de memória abrange a ideia proposta neste artigo de buscar um elemento central na dinâmica das bibliotecas comunitárias brasileiras por meio do conceito de território, e que seja capaz de conceber o viés cultural e social presente na rotina das bibliotecas comunitárias.
5. O TERRITÓRIO NOS DOCUMENTOS BALIZADORES DAS BIBLIOTECAS COMUNITÁRIAS
As bibliotecas comunitárias possuem uma série de dificuldades, que envolvem carência de mão-de-obra, condições precárias de infraestrutura e, principalmente, a falta de orçamento garantido para execução de seus projetos, pois geralmente não possuem uma mantenedora e nem se encontram sob a responsabilidade do setor público. Por vezes desamparadas, essas instituições dependem do voluntariado e do trabalho comunitário, contexto no qual a formação de redes se torna estratégica para a manutenção de suas atividades e superação dos desafios.
Nesse contexto é que surgiu, em março de 2015, a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), um movimento pela democratização do acesso ao livro, à leitura, à literatura e às bibliotecas, que compreende a leitura como direito humano e atua em diversas cidades do território brasileiro (RNBC, 2024). Focada na formação de leitores e na incidência política das redes locais de bibliotecas comunitárias, a RNBC exerce um papel importante para dar amplitude nacional à organização das bibliotecas, tendo como missão:
Contribuir para que as bibliotecas comunitárias sejam locais de referência na garantia do direito à leitura, na disseminação do conhecimento e da cultura, tomando-as reconhecidas pela sociedade civil e poder público como espaços de desenvolvimento humano (RNBC, 2024, online).
A RNBC é constituída por 11 redes locais e 115 bibliotecas comunitárias nos estados do Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, já tendo alcançado mais de 42.000 pessoas e emprestado mais de 26.000 livros, de acordo com dados de 2019 (RNBC, 2024). Articular todas essas pessoas e instituições não é uma tarefa fácil, sendo necessário empenho e organização, tendo em vista que suas ações são desenvolvidas por meio de gestão compartilhada.
Para facilitar esse processo, a Rede produziu e publicou materiais que versam sobre a riqueza de experiências e saberes das bibliotecas comunitárias, abrangendo registros produzidos por mediadores de leitura, «(...) a partir de sua vivência nas bibliotecas e em suas redes, trabalhos acadêmicos, pesquisas e outros documentos que buscam dar visibilidade e protagonismo ao trabalho realizado pelas bibliotecas comunitárias.» (RNBC, 2024, online). Esses documentos orientam a gestão das bibliotecas comunitárias, com diretrizes de atuação amparados nos princípios das bibliotecas e da Rede.
Com vistas a cumprir o objetivo deste estudo, realizamos uma análise de como a RNBC se apropria da concepção de “território” a partir dos documentos por ela produzidos. Estas produções, em um total de cinco, foram apresentadas na seção metodológica e serão analisadas a seguir com o intuito de identificar as ocorrências do termo “território” e seus contextos de uso.
No documento O Brasil que lê: bibliotecas comunitárias e resistência cultural na formação de leitores, foram identificadas 55 ocorrências. Menciona o território como espaço de formação de leitores das bibliotecas comunitárias, onde as pessoas da comunidade interagem, sendo a própria biblioteca um território restrito. O território é visto não apenas como espaço de realização das atividades desenvolvidas pelas bibliotecas, mas lugar de onde elas advêm, regiões periféricas por vezes marcadas pela exclusão da cultura letrada. Do mesmo modo, as bibliotecas comunitárias são, muitas vezes, organizadas por pessoas residentes no próprio território:
(...) os maiores responsáveis pela criação dessas bibliotecas são agentes internos e externos à comunidade, caracterizados como: coletivos de jovens, grupos de pessoas do território e movimentos sociais; entidades privadas sem fins lucrativos constituídas em associações, institutos, fundações; grupos religiosos; partidos políticos. (Fernandez et al., 2018, p. 28).
O documento também menciona que as bibliotecas comunitárias costumam estar no centro de seus territórios, muitas vezes com más condições de transporte e isoladas do restante da cidade, distantes de outros equipamentos culturais. A biblioteca, nesse cenário, tem o papel de inclusive transformar o imaginário da população sobre seu próprio território atuando na autoestima da comunidade. Além disso, não sendo lembradas pelo poder público, «(...) para sobreviver procuram estabelecer uma relação íntima com o território e com a população local» (Fernandez et al., 2018, p. 49), sendo esse vínculo responsável pelo seu enraizamento na comunidade.
No documento Expedição leituras: tesouros das bibliotecas comunitárias no Brasil, constam 25 ocorrências e o termo “território” aparece no texto em 12 dos 20 capítulos que o compõem. O termo é empregado desde o início do documento, sendo as bibliotecas muitas vezes associadas a “território”. O texto menciona a importância de políticas públicas voltadas a cada território, a aproximação da literatura e das ações das bibliotecas às experiências e demandas sociais dos moradores desses territórios, além da necessária observação das condições econômicas do país e dos territórios. A expressão “bibliotecas comunitárias em seu território” é empregada, bem como a concepção de que as bibliotecas, por si só, se caracterizam como território. Também temos o uso de “solos-território”, para se referir ao lugar onde a biblioteca tem suas “raízes”, sendo a articulação com o lugar um processo de “enraizamento”. O termo também aparece como sinônimo de terra e lugar. Em alguns trechos, o termo não é empregado para se referir ao território das bibliotecas, em específico, mas sim no sentido de descoberta de um lugar novo, entendendo que o ato de ler é como desbravar um território desconhecido. Usos metafóricos também estão presentes, como em trechos nos quais o trabalho em rede dos mediadores de leitura é comparado ao das abelhas, que executam o trabalho na colmeia de acordo com a leitura que fazem do território onde ela está instalada.
Em Coleção Entre Redes: Articulação, foram encontradas 13 menções, nas quais observou-se a necessidade de compreender a realidade de cada território. Também é mencionada a importância de planejar a sustentabilidade territorial da rede, bem como as parcerias firmadas com outros atores do território onde a biblioteca atua, de modo a enraizá-la na comunidade. Já no volume 2 da obra, Coleção Entre Redes: Comunicação, constam 17 menções, muitas delas semelhantes ao documento sobre Articulação. Além dessas, o texto menciona que as ações de comunicação da RNBC em nível nacional devem ocorrer de forma circular, retornando aos territórios locais. Abordando questões sociais, o documento cita que as bibliotecas precisam ter em conta que há sangue indígena e africano sobre o solo dos territórios onde atuam. Destaca-se que a biblioteca se enraíza no território quando as pessoas da comunidade possuem o sentimento de pertencimento. Ou seja, a biblioteca precisa pensar seu território, compreendendo-o como expressão da comunidade.
Percebe-se, nesse sentido, uma profunda veiculação da biblioteca comunitária com as memórias coletivas da comunidade onde atua, o que corrobora com a concepção de território de memória (Prado & Machado, 2008) identificada na literatura. Assim, evidencia-se a preocupação em conhecer as histórias locais dos habitantes e de seus antecessores, as lutas por direito travadas ao longo do tempo, bem como as marcas e influências dos grupos étnico-raciais presentes nesses territórios. No documento Plano de Estratégias e Medidas para a Reabertura das Bibliotecas da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias não foram identificadas ocorrências do termo “território”.
É fundamental destacar que, além dos documentos norteadores das bibliotecas comunitárias, a RNBC utiliza a ideia de “território” como um elemento fundamental na descrição das bibliotecas que a compõem. No site da Rede, consta uma aba com a descrição de cada biblioteca integrante e, junto ao logotipo e nome das bibliotecas, há algumas informações que as caracterizam, como endereço, ano de fundação, telefones, cidade e estado, instituição vinculada, etc. Além destes, são informados cinco elementos que constituem o “contexto da biblioteca”, sendo o primeiro deles o “território no qual a biblioteca está localizada”, onde é apresentada uma breve descrição do lugar, com dados demográficos, históricos, geográficos, sociais e culturais.
6. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A partir dos resultados descritos nas subseções anteriores, é possível traçar um panorama dos usos que a Ciência da Informação vem fazendo do conceito de território, para então enfocar em sua abordagem a partir das bibliotecas comunitárias.
Na área da Ciência da Informação, o conceito de território é abordado principalmente pela Arquivologia e pela Museologia em artigos da área que abrangem o conceito de território geográfico em suas instituições. Também houve resultados na área da Biblioteconomia, principalmente no contexto das bibliotecas públicas, que utilizam o conceito de território como local de atuação e na definição do seu público principal.
Com relação às apropriações que as bibliotecas comunitárias vêm fazendo das concepções de “território”, foi possível identificar tanto as abordagens a partir dos discursos acadêmicos presentes nas produções científicas, como na prática profissional, expressa pelos documentos produzidos pela RNBC.
A noção de “território” é amplamente utilizada nos documentos balizadores da RNBC, sendo também elemento em destaque na descrição das bibliotecas no site da Rede. Ou seja, na prática, as bibliotecas comunitárias brasileiras vêm sendo geridas por uma perspectiva na qual o território é um aspecto central, sendo fundamental observá-lo na proposição de ações a serem implementadas nessas instituições. Apesar disso, a pesquisa bibliográfica identificou uma baixa incidência de estudos sobre território enfocados em bibliotecas comunitárias, evidenciando que o discurso especializado ainda não se apropriou de forma relevante deste conceito para pensar esse tipo de biblioteca.
Obviamente, isso pode ser devido à possível baixa ocorrência de estudos sobre bibliotecas comunitárias de modo geral. Ainda assim, salienta-se que a área de Ciência da Informação precisa se apropriar do conceito de território nos estudos sobre essa tipologia de unidade de informação.
Nesse sentido, a título de contribuição teórica, propõe-se um conceito para território, no âmbito das bibliotecas comunitárias brasileiras, amparado na pesquisa realizada. O território é o contexto físico, sociocultural, artístico, político e estético onde as bibliotecas comunitárias brasileiras atuam, sendo reflexo das relações sociais das pessoas que o habitam, amparado nas memórias socialmente compartilhadas por elas. Todos os produtos e serviços de informação oferecidos por essas bibliotecas são provenientes das demandas dele.
Considera-se este conceito fundamental para compreender as dinâmicas desenvolvidas no âmbito das bibliotecas comunitárias brasileiras. Salienta-se que, no caso brasileiro, essas bibliotecas surgem justamente como resultado de um processo social de desigualdade social, no qual muitas comunidades ficam à margem das políticas públicas que tradicionalmente possibilitam o acesso aos bens culturais. O Brasil é um país com história única, o maior da América Latina e o único onde a língua portuguesa é o idioma oficial. Há muitas diferenças entre esse país continental e seus vizinhos, o que torna difícil propor que os resultados desse estudo sejam considerados aplicáveis a outros países. Assim, sugere-se estudos futuros que investiguem a importância deste conceito para essa modalidade de bibliotecas em outros países latino-americanos, de modo a comparar as diferentes experiências com essas bibliotecas.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atuação das bibliotecas comunitárias brasileiras não se diferencia apenas pelo público específico ou pelos produtos e serviços que oferecem, por vezes peculiares. Este tipo de biblioteca é amparado em uma outra perspectiva epistemológica: ela existe a partir da sinergia com a comunidade, em um movimento no qual suas atividades se transformam a todo momento, de acordo com os movimentos da comunidade onde está inserida. Esta postura se traduz, inclusive, em uma terminologia que lhe é própria: ao invés de inserção, por vezes se fala em enraizamento; o usuário é visto sob um prisma coletivo, como comunidade; seus serviços são pensados de forma tão orgânica que parecem não serem geridos, mas germinados; e o contexto, tão importante no planejamento das bibliotecas, é pensado como território, no sentido físico, sociocultural, artístico, político e estético.
Este estudo objetivou refletir sobre o papel do conceito de território como um elemento central na dinâmica das bibliotecas comunitárias brasileiras. Para tanto, procedeu-se com uma pesquisa bibliográfica e documental amparada nas bases de dados referenciais da área de Ciência da Informação e Biblioteconomia no Brasil, bem como nos documentos produzidos pela Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias e que servem como balizadores da gestão dessas instituições.
Como resultado, percebeu-se um amplo e arraigado uso da concepção de território para se referir às bibliotecas comunitárias, por parte dos documentos da RNBC, ao passo que tal uso ainda é discreto nas produções científicas sobre o tema. Esse descompasso pode ser reflexo da ainda ínfima produção bibliográfica sobre bibliotecas comunitárias na área, tendo em vista que essa tipologia de unidade de informação surgiu a partir dos anos 1990, e só nos últimos 20 anos é que foram publicados textos mais substanciais sobre o tema. Assim, evidencia-se que as áreas de Ciência da Informação e Biblioteconomia ainda precisam se apropriar melhor deste conceito nas produções científicas sobre as bibliotecas comunitárias brasileiras, de modo a melhor refletir as dinâmicas presentes nessas unidades de informação.
Outro aspecto que destacamos é o fato de esta pesquisa dizer respeito às bibliotecas comunitárias brasileiras, mas estima-se que seus resultados possam ser comparados com os de bibliotecas de outros países, em especial da América Latina. As bibliotecas comunitárias brasileiras são únicas, fruto de um contexto sociocultural marcado por altos índices de desigualdade social, mas também é onde a utopia se faz sempre presente, germinando em um território regado pela democracia e pelo sonho de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária, onde todas e todos tenham acesso à leitura e aos bens culturais da sociedade na qual estão inseridos.