Considerações iniciais
A Terapia Assistida por Animais (taa) é um tipo de zooterapia que pode ser considerada uma manifestação sociocultural interespecífica e contemporânea, característica de um ambiente dado, cujo objetivo é controlar a saúde humana. A principal característica da técnica é a cooperação entre duas ou mais espécies vivas em interação, no desenvolvimento de ações dirigidas a sujeitos considerados doentes, dentro de instituições como casas geriátricas, escolas especiais, hospitais ou consultórios (médico, psicológico, de fisioterapia, dentre outros). A zooterapia, como também a denominamos aqui, de modo geral, nos permite englobar em uma mesma categoria intervenções com diferentes animais, diferentes doenças e pacientes. Mesmo que cada caso tenha suas especificidades, as diferentes formas de zooterapia mostram que o manejo do animal está relacionado ao papel que ele executa enquanto co-terapeuta, suas características intrínsecas e ao ambiente institucional - geralmente biomédico.
No espaço deste artigo tentamos colocar em perspectiva algumas ações que os humanos mobilizam para controlar o animal com o intuito de minimizar ações animais ou humanas que são indesejáveis dentro do contexto, porque remetem à noção de risco. Ao controlar os riscos associados à presença de um animal vivo e em interação com um ou mais pacientes ou usuários, podemos vislumbrar com mais clareza o processo da sessão terapêutica e a riqueza da relação entre humanos e animais ali presente. O comportamento do animal pertinente ao ambiente é conexo à administração de riscos quando da presença de animais vivos interagindo com pessoas, a princípio, estranhas a ele.
O risco enquanto categoria êmica, dentro desse contexto, diz respeito à sensação de responsabilidade que sente o terapeuta, enquanto tutor do animal, em garantir a integridade moral e física de todos os participantes da terapia. Esse risco diz respeito às diferentes ações que o animal, em sua imanência, pode desempenhar, como atacar, fazer as necessidades fisiológicas dentro do ambiente, transmitir doenças, bicar, rosnar, morder, chutar, voar, fugir etc. Mas também diz respeito à proteção do animal, para que ele não seja incomodado ou machucado pelos humanos ou por outros animais que possam estar presentes no espaço.
Uma questão antropológica que está por trás deste estudo é pensar sobre a existência de diferentes formas de vida (humanos e animais aqui) coexistindo no mesmo ambiente, uma vez que são organizados com base em sistemas de regras que governam as relações entre esses seres (Pitrou, 2014; 2016). Propomos pensar a colaboração entre espécies a partir do modo como os agentes interagem formando configurações agentivas que podem ser observadas a partir da sequência de ações que os humanos elaboram. A noção de risco nos mostra que a configuração agentiva relativa a ele se estabelece a partir de ações que visam controlar a sociabilidade dos animais, através do uso de objetos, de intervenções cirúrgicas, aplicação de remédios e imunizantes e também através da higienização. Embora os animais que elencamos aqui sejam, não por acaso, animais que vivem muito perto do homem, geralmente dentro da família, como o cão, o pássaro e o coelho, seguindo a noção de risco, contemplamos algumas especificidades que oferecem nuances específicas ao animal e a relação que ele desenvolve com os humanos.
A proposta aqui desenvolvida considera o espaço institucional de cuidado no contexto ocidental como ambiente. O espaço onde as atividades com animais são desenvolvidas é importante porque, de acordo com o ambiente, os animais serão manejados de diferentes formas, haja vista a terapia assistida por cavalos - que acontece em centros equestres ou haras; e a terapia assistida por cães, pássaros, coelhos, porcos-da-índia, que se passa dentro de salas ou quartos de instituições. Dos animais, apontaremos o que de seu fenótipo pode nos levar à noção de risco e como suas características emocionais agenciam os humanos.
O trabalho de campo permitiu observar o desenvolvimento de tais sessões em ambientes como casas geriátricas, Centros de Atenção Psicossocial (caps) e unidades hospitalares como psiquiatria, geriatria e pediatria. Essa pesquisa corresponde a trabalho de campo realizado entre 2012 e 2015, com observação participante nesses espaços citados e junto aos terapeutas de zooterapia, observando as sessões terapêuticas, acompanhando os profissionais em suas rotinas que envolviam esse trabalho e descrevendo as ações presentes na atividade. Dentre as Associações de zooterapia acompanhadas, destacamos a Associação Pet Terapia, de Porto Alegre; Associação Pêlo Próximo e Associação Animallis, no Rio de Janeiro; a Associação tac - Terapia com Cães, em São Paulo; e Associação 4 Pattes Tendresse Mediation Animale e Syrius Mediation Canine, na França. Junto aos profissionais zooterapeutas, que correspondem a cada uma das associações, visitamos os lugares onde eles faziam os atendimentos. As sessões de zooterapia foram acompanhadas, então, em oito casas geriátricas, uma escola especial e dois hospitais (ala psiquiátrica e ala pediátrica).
Em uma sessão de terapia, no interior de uma casa geriátrica, por exemplo, o profissional humano pode colocar um balde com grandes letras no interior de uma roda de pessoas com mal de Alzheimer e solicitar que um cão se dirija até o balde, onde ele pegará com a boca uma das letras e a levará até um dos idosos que, por sua vez, deverá dizer um nome próprio que inicia com a letra escolhida pelo animal. Esse animal foi treinado para desempenhar essa ação, ou melhor, participar dessa atividade desempenhando determinadas ações, com o fim específico de trabalhar como mediador ou co-terapeuta. O termo mediador é aqui êmico, pois, na França, onde esta cena foi observada, a terapia assistida por animais se chama médiation animale. Nesse caso a terapeuta humana é psicóloga e fez uma especialização em Mediação Animal para trabalhar junto a cães da raça Cocker Spaniel, coelhos e porcos da índia, na região de Paris.
O trabalho do profissional estará intimamente atrelado às ações dos pacientes e do animal, as intervenções do terapeuta dependem da agência do paciente e do animal, embora a sequência de uma sessão de terapia dependa da agência de todos os sujeitos presentes no ambiente, afetando-se entre si. Tanto o paciente que recusa a se relacionar com o animal quanto aquele que o toma nos braços estão sendo agenciados pelo animal afetivamente, sensorialmente, motoramente.
Na primeira parte do artigo pondera-se acerca do contexto onde a taa acontece e onde o controle do risco parece ter um papel determinante, pois traz à tona esse campo interdisciplinar que é o trabalho com animais e o campo da saúde. Na segunda parte do artigo aponta-se alguns riscos e o modo como esses riscos delineiam o animal e as ações que o homem elenca para controlá-lo. Um conjunto de ações para controlar riscos pode ser reunido dentro do processo de socialização do animal, na noção de higienização do processo e no modo como os terapeutas tentam captar a intencionalidade animal. Em vez de nos perguntarmos o porquê de os animais fazerem determinadas coisas, essa atividade nos convidou a colocar em evidência o manejo desses animais a partir das ações que são trocadas entre os animais e os humanos, com intuito de dialogar com um conjunto de saberes e técnicas de manejo que definem a cultura, mostrando a riqueza das sociabilidades interespecíficas e questionando o tipo de manejo que se direciona a animais que vivem muito perto do homem.
O ambiente onde a técnica se desenvolve
Animais contribuindo para um processo de recuperação da saúde humana têm registros pontuais, como na cidade de Geel, na Bélgica, em que pacientes foram tratados por pássaros (Matuszek, 2010; Grandgeorge e Hausberger, 2011); ou no final do século xviii, quando pássaros, gaivotas, falcões e coelhos foram usados em terapias para ajudar pessoas dementes no York Retreat, na Grão-Bretanha (Fine, 2010; Serpell, 2010); ou ainda, na metade do século xix, a Fundação Bethel, em Bielefeld, na Alemanha, desenvolveu programas que incluíam atividades com cães, gatos e pássaros, em um centro equestre, inicialmente para tratar pessoas que sofriam de epilepsia e mais tarde pra diversos tipos de doenças mentais (Grandgeorge e Hausberger, 2011). Não sabemos detalhes acerca da técnica, sabemos apenas que ela estava relacionada a alguns animais específicos e que os pacientes sofriam de alguma doença mental, quando citado. Mais tarde, em 1919, o St. Elizabeth’s Hospital, em Washington, autorizou a companhia de animais como parte dos cuidados oferecidos a pacientes psiquiátricos, com o objetivo de “humanizar” o tratamento de saúde voltado para os marinheiros vítimas de traumas advindos de sua participação na I Guerra Mundial (Chandler, 2005), o que se repetiu com os enfermos da Força Aérea americana, no ano de 1942, quando animais foram incluídos em programas de reabilitação, através de tarefas realizadas na granja do hospital (Chandler, 2005).
No Brasil, a psiquiatra Nise da Silveira, no âmbito do seu vasto e sensível trabalho sobre esquizofrenia, incluiu animais como co-terapeutas no Hospital Psiquiátrico Pedro ii, no Rio de Janeiro (Silveira, 1998), afirmando que no processo terapêutico o animal poderia tornar-se um ponto de referência afetivo estável na vida do paciente esquizofrênico. No final da década de 1980, aparecem trabalhos acadêmicos e serviços de terapia com animais. Um trabalho de referência para esse período é a tese de Hannelore Fuchs (1987), na qual é tematizada a relação entre humanos e cães, no contexto doméstico, a partir de sua experiência enquanto médica veterinária. Fuchs aponta que os animais têm uma relação diádica com seus donos e triangular a partir do momento que as coisas se passam no consultório. Ela foi pioneira no campo da zooterapia ao desenvolver o projeto Pet Smiles em São Paulo, um dos primeiros programas de zooterapia que atuava em hospitais públicos (Santos e Silva, 2016).
Assim, o ambiente, na forma como observou-se a zooterapia, apresenta determinantes para o manejo desse animal que deverá atender a determinadas exigências comportamentais e sanitárias. Uma casa geriátrica ou um caps são espaços onde prevalece uma lógica medicalizada, pois a maioria dos moradores padece de alguma doença que necessita acompanhamento diário para seu controle. Nas equipes é comum a presença de médico, enfermeiro, psicólogo, assistente social, fisioterapeuta, educador físico e zooterapeuta (na grande maioria profissionais da área da saúde, como psicólogos).
A forma de entrada da zooterapia nos hospitais ou instituições de saúde tem se dado através de associações apoiadas no selo de Organização Não-Governamental. Na prática, os hospitais aceitam que essas atividades sejam desenvolvidas, apoiados na ideia globalizada de humanização na saúde e no princípio da integralidade que permeia as diretrizes do Sistema Único de Saúde (sus). Embora a maioria dos estados brasileiros tenha, hoje, um projeto de lei para a zooterapia tramitando em suas Assembleias, a discussão de inconstitucionalidade deriva não dos efeitos da terapia, mas das questões especificamente relativas ao risco de se trabalhar com animais. Vemos, portanto, que o problema de integrar o terapeuta animal a uma divisão do trabalho entre humanos e não-humanos requer o estudo das normas internas relativas à compreensão do trabalho na prática, visto que o que está em jogo são relações entre ocupantes de posições sociais, entre personagens que dão sentido à prática, cuja ação (agência) de um animal é aceita como a chave para a eficácia terapêutica.
No contexto hospitalar, por exemplo, os critérios de higienização concernentes ao animal respeitarão a espacialidade imposta pela separação entre áreas de risco, de contaminação, o estado do paciente e as possíveis zoonoses. Contudo, as atividades assistidas por animais em ambiente hospitalar, asilar, escolar ou na clínica são vastas, indo desde a simples presença do animal no ambiente até o desenvolvimento de jogos (por exemplo o terapeuta humano joga uma bola que o animal busca e entrega ao paciente) ou o contato corpo a corpo (por exemplo quando o paciente pega o animal nos braços ou quando o animal salta sobre o paciente).
Em seu estado atual, esta prática, que cada vez mais se torna uma técnica bem estruturada, passa por um processo de regulamentação em diferentes níveis como a introdução desta especialização profissional em conselhos profissionais - como o Conselho de Psicologia (crp). Nesse cenário, as atividades assistidas por animais, enquanto terapia, configuram um cenário que tem sido marcado por regras e exigências em construção, frequentemente relacionadas ao risco que representa a participação de um animal dentro de instituições específicas e em direção a grupos como idosos e crianças em geral, pessoas com mal de Alzheimer, autismo e doenças mentais.
Processo de modelação do animal terapeuta a partir da percepção do risco
A percepção do risco nesse contexto está relacionada ao paciente, ao animal e ao terapeuta humano. O terapeuta humano é o responsável por gerenciar as eventuais descontinuidades que possam aparecer na relação. Em nosso campo de pesquisa, os animais que trabalhavam na zooterapia eram diversos, mas havia uma prevalência importante de cães, coelhos e pássaros, com quem os procedimentos estabelecidos eram negociados. Referente a atuação desses três animais, principalmente, identificamos que as ações que servem para controlar o risco presente na atividade são de naturezas diferenciadas: métodos de socialização que têm o intuito de modelar o comportamento animal; métodos de higienização para manter a assepsia do processo e; métodos de percepção do estado do animal .
Um tipo de risco é a lesão de um paciente. Exemplos de como o paciente pode se sentir lesado pela relação com o animal incluem: um coelho pode arranhar ou morder o paciente; um cão grande pode derrubar um idoso ou uma criança, enquanto corre para pegar uma bola; um idoso pode ser bicado por um passarinho e ter a frágil pele machucada. Animais de terapia são treinados e selecionados quanto ao temperamento adequado, portanto, ferir um paciente provavelmente seria inadvertido, embora ainda seja uma possibilidade.
Outro risco é que o paciente possa se apegar ao animal de terapia e, portanto, os problemas de luto e perda podem ter que ser resolvidos após o término dos serviços. Ainda, deve-se considerar que um paciente pode ser alérgico ou ter medo do animal da terapia, exigindo do terapeuta humano frequentes visitas ao veterinário para obter uma avaliação cuidadosa acerca do estado de saúde do animal. Alguns usuários que tiveram pouco ou nenhum contato com animais podem preferir não estar perto de animais. Em nosso campo de pesquisa, em uma das casas geriátricas que visitamos em Porto Alegre, havia duas senhoras a quem os animais não agradavam. Elas expunham todo o tipo de questionamento sobre o lugar do animal como terapeuta, oferecendo a ocasião para que o terapeuta humano pudesse abordar certos riscos como mordidas e ataques de cães.
Certo dia, acompanhando uma sessão de zooterapia nessa Casa Geriátrica, que se localiza no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, eu questiono Mariane, uma das senhora que não gostava de “bichos”, sobre o motivo pelo qual ela não apreciava os animais, ao que ela me responde: “uma vez eu fui mordida por um cachorro na rua; ele não era grande, mas depois disso eu tenho medo”. Em resposta, a terapeuta intervém junto ao grupo de idosos que participavam da sessão e desenvolve mais o assunto: “quem já foi mordido por um animal?”. Alguns participantes elevam o braço confirmando a experiência. Ao mesmo tempo uma das senhoras comenta que todos os animais são bons. A terapeuta novamente intervém junto ao coletivo: “mas todos os animais são bons?”. Algumas senhoras afirmam que nem todos os animais são bons porque alguns são selvagens. A isso, a terapeuta questiona: “mas ser selvagem é ruim? Será que isso não é natural dos animais, inclusive dos homens?” (Registro de campo, 14 de agosto de 2013).
Nessa breve passagem de campo, ao mobilizar a reflexão sobre o significado da ação, isto é, ao deslocar a ação de atacar e morder advinda de um terapeuta animal, a terapeuta pretende problematizar a percepção do risco, desfazendo a noção de que “nem todos os animais são bons alguns são selvagens”, como se o selvagem fosse aquilo que o animal faz de negativo em direção ao homem. A terapeuta, assim como os manuais de zooterapia, mostra que a ideia de risco percebida pelos usuários é para ela demonstração de desconforto por parte do animal e, portanto, imperícia dos humanos para compreender sua forma de se exprimir.
Para o animal, o risco está em grande parte relacionado à ameaça que vem dos usuários e do próprio terapeuta. Quanto mais frágil for o animal, por exemplo, um pássaro ou um cachorro pequeno, maior o risco de ferimentos ao ser derrubado ou atingido por um humano. Um animal de terapia também pode sofrer estresse associado ao excesso de manejo com excessivas demandas como banhos, procedimentos veterinários e performatividade de atividades treinadas (Rocha, 2015).
Dito isso, vemos que o controle do risco na atividade da terapia consiste em exercer uma ação sobre o processo de socialização do animal a fim de o controlar e o influenciar favoravelmente em nível comportamental e biológico, levando em conta sua imanência animal - suas características físicas e temperamento. A sociabilidade do animal terapeuta vai sendo construída paulatinamente desde a mais tenra idade, dentro de um quadro de ações chamado socialização do animal, termo referido por nossos interlocutores e presente no material bibliográfico. Dentre outras coisas, dirigir a socialização precoce do filhote escolhido para ser terapeuta animal tem o objetivo de desenvolver, no animal, a habilidade de interagir fisicamente com indivíduos estranhos (que, à medida que as sessões vão se repetindo no mesmo espaço, passam a ser pessoas conhecidas), no interior de instituições de saúde, com profissionais que passam por todos os lados, máquinas e cheiros específicos. A presença dessa habilidade é uma característica da terapia assistida por animais, especificamente.
Não deixa de haver nesse contexto uma relação entre um processo vital do animal: a socialização; e um processo técnico: aquilo que o homem faz para controlar. Para Perig Pitrou (2011), os fenômenos sociais podem ser abordados identificando-se configurações agentivas que colocam em relação processos relativos à produção e controle da vida de não-humanos e ações que os humanos exercem para influenciar esses processos. Essa relação leva em conta, pois, a forma como o homem intervém em processos vitais que se desenvolvem em não-humanos; e a agência não humana em ação nesses processos (Pitrou, 2011, 2014). Para tanto, nos diz Pitrou (2014), esses seres devem ter habilidades que possam ser conhecidas e descritas dentro de momentos ou espaços determinados. A noção de processo, inspirada na abordagem de Georges Canguilhem (1992/1951), nos diz que a existência de regras nos processos ligados ao ser vivo não são decorrentes de individualidades biológicas que se adéquam ou se afastam das normas, mas, ao contrário, é a individualidade biológica enquanto potência de criação de novas formas que produz o processo de sua normatividade (Neves, Porcaro e Curvo, 2017, p. 627).
A noção de processo vital cunhada por Pitrou (2014) relaciona-se a processos biológicos, mas também a todo processo considerado importante para que o ser venha a ser um agente, seja ele um objeto, um animal ou um micróbio. Seguindo a tendência de uma antropologia contemporânea, entendemos o ser vivo como um organismo-pessoa (Ingold, 2000, 2007), um ser que vai se tornando um ator social, um sujeito se desenvolvendo desde sua interação com o mundo em que ele habita.
As ações que os humanos desempenham para adequar o animal ao trabalho na terapia, tendo a noção de risco como estruturante, visam acostumar o animal a determinada interação que inclui o contato com diferentes humanos. Essa demanda não é frequente para a maioria dos animais domésticos ou não-terapeutas, ou ela aparece com outras nuances. Embora seja de bom-senso, em todos os casos que os animais não ataquem pessoas estranhas, habitualmente, a sociabilidade do animal terapeuta é diferente, pois, contrariamente, não colocamos nossos animais de estimação, de forma sistemática, em uma sala com mais de uma dezena de pessoas onde ele deve aceitar o toque e a manipulação da maioria delas; também não é costumeiro treinar os animais de estimação para que eles participem de jogos ou atividades em que, por exemplo, um grupo de pessoas introduz um arco em torno de um cão que fica sentado sobre uma mesa deixando-se ser envolto por uma dezena de objetos, como observamos em uma sessão de zooterapia, em 2015, no hospital psiquiátrico de Rouen, na França.
Na medida em que a zooterapia vai ganhando espaço e diferentes profissionais passam a usar animais como mediadores da ação, as regras vão sendo determinadas a partir das habilidades dos animais, definindo, ao passo que vão sendo fixadas, aquilo que ele deve desempenhar durante o trabalho, configurando, assim, a atividade em técnica. Mostrar-se dócil e interagir de forma direta, por vezes corpo a corpo com o paciente, estão entre elas. Essa ação que o animal deve fazer coloca diante dos humanos o risco de que o animal se manifeste contrário ao comando. No que tange aos cães, por exemplo, recai sobre eles a interdição de atacar, latir, rosnar para os pacientes, mas pode ser a eles permitido esse tipo de ação em direção a outros animais, eventualmente. Um coelho sobre os joelhos, por exemplo, pode arranhar a pele fina de um idoso ou, sob estresse, pode morder e chutar com as patas traseiras. Um pássaro assustado, além de vocalizar freneticamente, pode voar em direção a uma abertura ou janela e ferir-se ao se chocar no vidro, ele pode também bicar fortemente a pessoa mais próxima ou mesmo esconder-se numa ação que remete ao medo e insatisfação. Conforme destacou uma de nossas interlocutoras, zooterapeuta e coordenadora de uma associação de terapia assistida por animais, no Rio de Janeiro: “qualquer uma destas atitudes do animal poderia acabar com a relação terapêutica”.
Em todo o caso, a socialização, no que tange ao adestramento dos animais, vê como fundamental afastar a possibilidade de reações violentas do animal dirigidas ao humano.
O quadro acima se baseia no trabalho de campo realizado e nos permite observar de maneira geral as ações que partem dos animais e a maneira pela qual esses animais são entrelaçados no processo terapêutico. Se tomarmos as ações do homem que visam controlá-los, vemos que a noção de risco mobiliza ações que incidem diretamente no corpo do animal. Todos os terapeutas acompanhados faziam uso de sinais com as mãos, verbais ou sonoros, mas apenas o interlocutor da Associação Syrius, enquanto um educador canino (éducateur canin) que se tornou zooterapeuta, não necessitava de guia para conduzir os animais durante a sessão. A ação exercida sobre o corpo do animal foi identificada por Andrés Georges Haudricourt (1962), acerca do modo como o homem agia sobre a natureza em duas situações diferentes: o cultivo de inhame na Oceania e a criação de ovelhas numa região do Mediterrâneo, cujas categorias de ações atribuídas foram respectivamente indireta negativa e direta positiva. Em seu estudo, o modo pastoral de domesticação de ovelhas apresentava ações diretas, isto é, um manejo através do contato direto e permanente do homem com o ser domesticado, que fazia com que o pastor tivesse que acompanhar o rebanho continuamente, exercendo sobre os animais contatos físicos com a mão, com um bastão ou através da ajuda de um cão (Haudricourt, 1962, p. 42). Além disso, a ação do pastor sobre as ovelhas era constantemente imposta, o que Haudricourt justificou ao apontar que a domesticação destes animais os havia realocado em regiões planas, diferentemente de seu habitat natural que são as montanhas rochosas, deixando-os suscetíveis aos predadores. A ação será direta quando existir condução do animal, e positiva quando o criador orienta o caminho e a rotina a ser seguida pelo animal em favor da atividade. Para Haudricourt, essa ação estaria representada na técnica constitutiva da criação de ovelhas e em domínios sociais distintos como os jardins a la francesa (Ferret, 2012, p. 116).
Outras ações presentes no quadro 1 usadas para conter o risco modificam além do comportamento, o corpo do animal: corte de unhas, do pelo, castração. Além destas ações serem diretas, como propôs Haudricourt, elas são o que Carole Ferret (2012) identificou como ação deletéria em seu estudo sobre a criação de cavalos entre os yakoute da Sibéria. Ferret baseia-se no quadro de ações desenvolvido por Haudricourt, ampliando-o para categorias que contemplam outros tipos de ações, argumentando que a ação exercida sobre um ser vivo não se exprime exclusivamente na ideia de fazer algo sobre o corpo do animal, mas, também em termos de “fazer fazer” (Ferret, 2006, p. 22; 2012, p. 125), abrindo aqui um diálogo interespecífico menos assimétrico que o de Haudricourt.
Se seguirmos, ainda, Ferret em sua categorização de ações, veremos que a castração dos animais terapeutas se encaixa na noção de transformação deletéria; transformação porque modifica o corpo do animal, deletéria porque retira uma parte do seu corpo, mutilando-o. A castração atende o objetivo de mudar o comportamento do animal para que ele se torne menos agitado, evitando inclusive os períodos de cio. Contudo, a castração é uma ação ambígua, porque impede a reprodução daquele animal que tem um bom temperamento para a zooterapia, sendo, portanto, também, uma ação contrária, pois ao agir sobre o animal o homem recebe em contrapartida outra ação, não-desejada.
Um quadro de ações amplo foi categorizado em outro trabalho (Teixeira, 2019), porém nos é relevante retomar aqui as ações que são colocadas em serviço para garantir a segurança (do paciente e do animal) ou minimizar os riscos da prática. Podemos vislumbrar, nesse caso, um processo de modelação do animal que tem como tendência o uso de ações diretas-internas-intervencionistas (Haudricourt, 1962; Ferret, 2012) como a vacinação, as desverminoses; ações intervencionistas-deletérias como a castração; ações deletérias como o corte de asas, unhas ou pelo; e ações diretas-intervencionistas como o uso de peiteira ou guia.
Os métodos de higienização visam evitar a transferência de micróbios entre o animal e o paciente, mas também servem para modificar a estética dos animais e seus hábitos mais animalescos (como não urinar em qualquer lugar). Referem-se também aos sinais de alergia ou transmissão de zoonoses. No Brasil, é consenso que o animal deva obter um certificado veterinário de vacinas e doenças atestando que ele está livre de pulgas, carrapatos, raiva, leishmaniose ou leptospirose, a ser apresentado ao setor de controle de zoonoses dos hospitais, se a terapia acontecer em ambiente hospitalar ou para os diretores de instituições para o caso de Casas Geriátricas etc. Esse procedimento não é frequente em animais de companhia que não trabalhem na zooterapia; mesmo que eles devam passar por processo de imunização por vacina, não se costuma carregar consigo, enquanto tutor de um pet, certificados sanitários. Algumas instituições consideram, inclusive, que todos os projetos devam ter médicos veterinários como responsáveis técnicos. Essa demanda aparece, frequentemente, como uma barreira ao desenvolvimento da terapia com animais porque alguns animais necessitam de atendimento especializado, como no caso de aves e coelhos, tornando os custos e a acessibilidade a tal certificado inviáveis aos profissionais. Esse conjunto de demandas por assepsia característico de instituições de saúde foi levantado por Rekha Murthy et al. (2015), apontando para uma incompatibilidade referida por diretores de hospitais, acerca da presença de um animal nos espaços biomédicos e as regras sanitárias.
Esse princípio da assepsia a partir da higienização do corpo do animal exerce também uma função simbólica antropomórfica, mas não seria uma desanimalização, uma vez que os profissionais e pacientes os percebem como animais dotados de personalidade, de intencionalidade, que se impõem durante a sessão, conforme pude observar. Assim, ações que denotam fuga ou esquiva serão interpretadas como demonstrações de irritação ou medo, remetendo a uma dimensão subjetiva do animal: ele não deseja participar da atividade ou porque não aprecia o ambiente, ou porque está doente etc.
Os sinais dos animais são de diversos níveis de comunicação, como os sons emitidos, as expressões faciais, a postura física, determinadas ações como deitar, fugir, esconder-se ou lamber os lábios insistentemente indicam que ele está estressado. Nesta perspectiva, a negligência ou a imperícia em reconhecer os sinais dos animais são os principais motivos pelos quais os animais podem estar submetidos a elevados níveis de estresse (Rocha, 2015; Odendaal, 1999).
Os sinais também dizem respeito ao estado psicológico do animal, como: bem/ mal, feliz/triste. O estudo de Johannes Stefanus Joubert Odendaal (1999) concluiu que para a maioria dos animais de terapia pesquisados por ele apresentavam, após o trabalho, aumento de endorfina, ocitocina, prolactina, ácido fenilacético, diminuição do cortisol e da pressão sanguínea (p. 278), por outro lado, os resultados apontaram que a ação de lamber os lábios em cães apresentava, ao mesmo tempo, aumento de cortisol, reforçando a relação entre a ação e o estado geral do animal. Em nossa experiência acompanhando a terapia assistida por animais, os terapeutas mantinham-se atentos a estes sinais, como foi o caso do papagaio Oliva, então com 3 meses de idade que, chegando ao local de trabalho, uma casa geriátrica em Porto Alegre, negava-se a interagir com as pessoas, evitando contato físico quando a terapeuta, com braço estendido e o pássaro pousado sobre seus dedos, oferecia-o ao paciente. O gesto do terapeuta convidava Oliva a caminhar em direção ao paciente e subir, pelo braço, até seu ombro (ação treinada e desejada pelo terapeuta humano), mas, contrariamente, Oliva não se movia ou voltava em direção ao terapeuta. Além disso, Oliva estava muito agitado, tentando voar para todos os lados. Nesse dia, voltamos à casa da terapeuta para escolher um outro animal, desta vez a calopsita Ozzy que, já experiente na terapia, permitiu o desenvolvimento da sessão (Diário de campo, 28 de dezembro de 2012).
O controle do risco através dos sinais emitidos pelos animais também indica quando o animal se presta para trabalhar como terapeuta ou, ainda, se ele, por sua própria vontade, aceita o trabalho de terapeuta e nos indica o tipo de relação estabelecida entre os termos. Ora, se o animal se faz compreender acerca de seu desejo ou pendor para esse trabalho ou se a sessão terapêutica termina quando ele demonstra sinais de cansaço, não seria plausível assumirmos que aqui há somente uma relação de dominação e exploração. A relação entre o animal e o terapeuta apresenta certa simetria, porque o humano tem no animal uma referência agentiva total (no sentido maussiano), tentando, entre ações de contenção e sensibilização, dialogar através dos sinais emitidos pelos animais. Isso vai ampliando e definindo a capacidade comunicacional e interacional de todos os participantes do processo.
Essa capacidade de apreender signos e emiti-los em conjunto com operações apresentam o animal como um sujeito ativo que, através de suas avaliações, se desenvolve no mundo através de relações vitais e, portanto, sociais. Essas premissas guiam as instruções que são destinadas aos zooterapeutas, no sentido de respeitar o repertório operacional do animal e de cada espécie em particular. Como destaca Manuel Heredia (sobre a etologia de Uexküll) (2011) “já não nos encontramos com forças físicas abstratas, senão com signos concretos (sons, odores, cores, qualidades, etc.), já não descrevemos relação entre seres vivos como competência e luta, mas associações entre viventes” (p. 74). Johan von Uexküll (1934, p. 21) afirma que os animais não possuem a mesma relação que o homem com seus objetos, mas eles são sujeitos ativos, espontâneos, que exprimem ações independentes. Muitas das ações independentes da qual fala Uexküll são vistas como indicadoras de risco ou ameaças à integridade dos participantes da sessão, no caso da terapia com animais.
Da modelação à confiança
Na relação estabelecida entre os pacientes e o animal da zooterapia, observamos que a coisa trocada entre eles diz respeito a “algo” que o animal oferece ao doente (amor, carinho, bem estar ou ganhos físicos e fisiológicos), mas não sua identidade; os animais da zooterapia, em relação aos pacientes, são terapeutas e não espelhos que definem uma identidade social, como os animais da cinofilia e seu handler, por exemplo (Teixeira, 2016). Com isso, entre paciente e animal, posto que é o animal que oferece algo a um paciente que se encontra em déficit com sua integridade física e mental, podemos pensar no dom como um esquema relacional (Descola, 2005) que compõe esta técnica de trabalho, oferecendo não uma simetria, mas uma assimetria positiva. Os atos de doação, de dar, ou se dar a outro, de se ocupar do outro, de protegê-lo, de produzir cuidado para o outro, ou de se colocar à sua disposição são ações correntemente associadas ao trabalho de cuidadores ou profissionais da saúde, e na taa essa é uma das relações que estruturam o sistema.
O processo de socialização trabalhado no desenvolvimento do animal terapêutico e a habilidade de interagir com diversas pessoas parece ser vista pelos pacientes como esse dom que envia à confiança de que aquele animal é dócil. O que para os pacientes é definido como dom, para os terapeutas humanos é explicado pelo fato de que o animal gosta de participar da terapia, que a interação com pessoas lhe é prazerosa. Isso nos remete a um questionamento feito por Jocelyne Porcher (2015) acerca dos animais criados em rebanhos para fins comerciais, como o gado, e a relação de exploração que tem sido reconhecida como hegemônica. Porcher defende a tese de que a domesticação em nosso contexto ocidental é mais um processo cooperativo de inserção do animal na sociedade humana através do trabalho (Porcher, 2015). Assim, para os terapeutas, os animais que trabalham seriam particularmente dispostos a interagir com humanos; além de compartilharem como os pacientes a ideia de que o animal trabalha sem incorrer no erro de tomar as pessoas que recebem a terapia como deficientes sociais.
Apesar das ações de controle do risco garantirem um processo agentivo apoiado na interação do animal, na sua composição biológica e na sua capacidade comunicativa, os interlocutores zooterapeutas desta pesquisa referiam ser imperioso para a profissão conhecer o animal na sua integralidade. Os terapeutas referiram que uma relação de confiança era necessária para trabalhar com animais; alguns, como a psicóloga da Associação Pet-Terapia e o psicólogo da Associação Animallis, afirmaram que viviam com os animais terapeutas porque a confiança somente poderia ser adquirida através da partilha da vida, hábitos e sentimentos.
Para Tim Ingold (1994, 1998), o sistema de relações entre homens e animais baseado na confiança teria como pressuposto o sistema de confiança entre os humanos, e este esquema seria transferido para a natureza; esse tipo de relação teria sido transformado pouco a pouco em uma relação de dominação. Especificamente em atividades de trabalho que incluem animais, diz Porcher (2015, citando Marx), o animal terá, assim como os humanos, uma parte de exploração e de alienação, mas também e, sobretudo, uma perspectiva de emancipação. Na zooterapia, a cooperação entre as partes mostra uma espécie de resgate desta relação homem-animal calcada no registro de confiança, mesmo que essa confiança seja construída dentro de processos agentivos que, como abordamos aqui, são compostos por ações na sua maioria diretas e internas ao corpo do animal, o que garante certa coerção. Os atributos como ferocidade, periculosidade, participatividade, docilidade são vinculados às construções identitárias do animal terapeuta, guardando, com isso, sua animalidade.
O trabalho de campo nos permite apontar que a noção de risco se conecta também a uma falta de conhecimento “simbólico” pelo contexto, no sentido de que quanto menos o terapeuta humano conhece o animal, mais ações diretas ele deverá mobilizar para controlá-lo, o que frequentemente resulta da ausência de formação específica e soma-se à percepção de outros profissionais que apontam os perigos que representa o trabalho com um animal. Embora a maioria dos interlocutores desta pesquisa compartilhem da crença de que os animais são detentores de sentimentos e dignos de respeito, mostram que a utilização dos animais para a recuperação da saúde humana aponta para uma vertente antropocêntrica no controle de algumas ações; todavia, essa sensibilidade sobre suas necessidades e suas capacidades é ampliada, não questionando sua capacidade de interação com os humanos, mas afirmando as potencialidades de um ser-sujeito dentro de seu mundo particular.
Os sinais dos animais, embora sejam definições estandardizadas pelo homem, são baseados em estudos calcados em achados etológicos, dentro de um quadro comportamental característico de cada espécie e dentro daquilo que a percepção humana é capaz de identificar (uma vez que sabemos de todas as limitações humanas em apreender a comunicação animal). O que podemos afirmar sobre a zooterapia é que a representação do animal, neste contexto, não parece ser aquela antropomorfizada ideia de ter um “filhinho”, nem o animal parece ser visto como um parente, nem como um humano, mas como um animal singular, para usar o termo de Dominique Lestel (2004).
Finalmente, pode-se perceber que a sessão terapêutica da zooterapia se estrutura através de representações sobre o animal e sobre a capacidade comunicativa deste, uma vez que o terapeuta humano se apoiará no produto da comunicação entre o animal e o paciente. Esses animais são sujeitos de experiência, seres dotados de intencionalidade e emocionalidade, muito mais do que objetos da percepção e uso humano. As implicações subjetivas nos humanos da ação dos animais nos permitem dialogar acerca da diversidade com que a subjetividade existe no reino animal e a maneira como essa subjetividade, de cada espécie, difere para os outros (humanos). Isso é pensar em diferentes formas de como os seres se engajam no mundo, considerando que ambos, humanos e animais, têm potenciais mundos a compartilhar.