A família é a primeira e mais importante instituição da qual um indivíduo participa. A partir da qualidade da relação entre pais e filhos, as crianças aprenderão estratégias para a interação com o outro, as quais, por sua vez, influenciarão os relacionamentos e comportamentos futuros (Amici et al., 2022; Wang, 2022). Por outro lado, a baixa qualidade nas interações familiares pode contribuir para o desenvolvimento de problemas emocionais e comportamentais nos filhos (Amici et al., 2022; Faltýnková et al., 2020).
Algumas características familiares estão ligadas a variações de sintomas de humor. Por exemplo, Teodoro et al. (2010), em estudo com 234 estudantes de oito a 14 anos, apontaram que altos níveis de conflito e baixos níveis de afetividade na família estão relacionados à depressão nos filhos. O conflito foi definido como sentimentos negativos que geram estresse e/ou agressividade na família. Já a afetividade foi caracterizada como uma gama de emoções positivas presentes nos relacionamentos interpessoais. Diante dessas dimensões, podem ser considerados quatro grupos de famílias: alta afetividade e baixo conflito (tipo I); afetividade e conflito altos (tipo II); afetividade e conflito baixos (tipo III); baixa afetividade e alto conflito (tipo IV).
Outras pesquisas já foram realizadas considerando as dimensões conflito e/ou afetividade familiares (Hess et al., 2013; McCauley et al., 2019; Weymouth et al., 2019). McCauley et al. (2019) acompanharam 768 adolescentes do 6º ao 7º ano e suas famílias, e encontraram um efeito negativo do conflito interparental sobre a percepção de ameaça pelos filhos. Em estudo com 139 adolescentes de 11 a 16 anos e seus pais, Hess et al. (2013) encontraram correlações positivas entre a percepção de conflito familiar pelo adolescente e a manifestação de sintomas internalizantes um ano depois.
Os problemas emocionais e comportamentais (PEC) foram caracterizados por Achenbach (1991) como padrões sintomáticos que podem ser divididos entre dois grupos: internalizantes e externalizantes. Estes estão associados a uma desordem na autorregulação do comportamento, enquanto aqueles estão relacionados a uma desordem emocional ou no humor (Kovacs & Devlin, 1998). Alguns exemplos de sintomas internalizantes são a ansiedade/depressão, a reatividade emocional e as queixas somáticas. Entre os sintomas externalizantes, estão os comportamentos agressivos e de quebrar regras, por exemplo (Achenbach et al., 2017).
Em geral, estudos que investigam PEC em crianças e adolescentes apontam para uma diferença entre sexo e idade em que os problemas começam a aparecer (Rocha, 2012). Meninas tendem a apresentar mais problemas internalizantes quando comparadas aos meninos, que manifestam mais os externalizantes (Rescorla et al., 2007; Rocha, 2012). Além disso, os adolescentes mais velhos tendem a apresentar mais PEC do que os mais novos (Booth et al., 2019; Rocha, 2012).
Uma forma de intervenção com os PEC na infância e adolescência é pela Terapia Cognitivo-Comportamental, cujo modelo sugere que todos os transtornos psicológicos possuem como fator comum a presença de cognições disfuncionais. Tais cognições são uma forma distorcida com que o indivíduo interpreta os eventos vividos. Podem ser desenvolvidas desde a infância, a partir de experiências pessoais, da identificação com pessoas significativas e da percepção acerca da atitude dessas pessoas (Beck, 2013). Nesse sentido, pode-se dizer que o ambiente de criação pode facilitar ou inibir o surgimento de certos tipos de cognições.
Estudos desenvolvidos em outros países analisaram as cognições dos filhos, verificando o efeito de mediação desta variável na relação entre a família e os PEC (Shi et al., 2017; Throuvala et al., 2019). Entretanto, uma limitação é que esses estudos exploravam aspectos específicos das cognições e/ou dos PEC. Por exemplo, Shi et al. (2017) avaliaram especificamente o desfecho de vício na internet de 3.289 estudantes de dez a 18 anos, encontrando uma mediação da solidão e da cognição sobre si mesmo no efeito que o funcionamento familiar possuía sobre esse problema.
Em relação às pesquisas no Brasil, um estudo de revisão identificou artigos publicados entre 2008 e 2019 que exploravam as associações entre a família e as cognições disfuncionais dos adolescentes (Lara et al., 2021). Dos 13 estudos encontrados, sete avaliavam a relação direta entre as duas variáveis e cinco tratavam do papel mediador das cognições na relação entre a família e os PEC dos filhos. Porém, entre os estudos, nenhum era brasileiro.
Diante disso, este estudo visou preencher as lacunas nacionais e as limitações internacionais, explorando as cognições e os PEC de maneira mais extensa, abordando uma gama mais ampla de problemas e considerando as cognições disfuncionais como um todo, não as restringindo a um aspecto específico. Além disso, foram analisados simultaneamente os três aspectos -família, cognições disfuncionais e PEC-, visto que são de crescente importância nos estudos dentro da área da saúde e demonstram estar associados.
O objetivo principal foi investigar as relações entre a percepção de conflito e afetividade familiares, as cognições disfuncionais e os PEC de adolescentes. Neste estudo, o termo cognições disfuncionais será composto pelos três níveis do modelo de Beck (2013), compreendendo os pensamentos, as atitudes e as crenças disfuncionais. O segundo objetivo foi verificar se as cognições disfuncionais possuíam papel mediador entre as relações familiares e os PEC. O estudo se propôs, ainda, a investigar se existiam diferenças entre os participantes de acordo com o sexo.
Foram testadas as seguintes hipóteses: 1. Participantes do sexo masculino apresentam mais problemas externalizantes, enquanto os do sexo feminino apresentam mais problemas internalizantes; 2. Adolescentes que avaliam suas famílias como tipo IV (maior conflito/menor afetividade) possuem cognições mais negativas e mais PEC, e se diferem significativamente dos adolescentes que avaliam suas famílias como tipo I (menor conflito/maior afetividade); 3. Percepções de conflito e de afetividade familiares são preditoras de cognições disfuncionais e de PEC, enquanto cognições disfuncionais são preditoras de PEC; 4. As cognições disfuncionais medeiam parcialmente a relação entre as percepções de conflito e de afetividade familiares e os PEC.
Método
Participantes
Participaram do estudo 371 adolescentes matriculados em escolas públicas (n = 299; 80,6 %) e privadas da capital Belo Horizonte, na região sudeste do Brasil, e duas cidades da região metropolitana. O grupo foi composto por 216 meninas (58,2 %) e 155 meninos (41,8 %) com idades entre 11 e 16 anos (M = 12,51; DP = 1,23).
Instrumentos
Relações Familiares
Familiograma (Teodoro et al., 2010). Este instrumento de autorrelato objetiva avaliar percepções de conflito e afetividade familiares entre diferentes díades. Cada díade é avaliada por 22 adjetivos respondidos em escala Likert de cinco pontos (de jeito nenhum até completamente). A pontuação pode variar entre 11 e 55 por construto, com maiores escores indicando maiores percepções de conflito e afetividade. O Familiograma permite classificar as famílias em quatro tipos, que se diferenciam na combinação de intensidades de afetividade e conflito (vide Introdução). Teodoro et al. (2010) aplicaram o Familiograma em 234 jovens com idades entre oito e 14 anos, encontrando, via análise fatorial exploratória (AFE), uma estrutura bifatorial. Também foram verificados índices de consistência interna (alfas de Cronbach) entre 0,87 e 0,97 (bons a excelentes; Zanon & Filho, 2015). No presente estudo foram avaliadas as percepções dos participantes nas díades filho(a)-mãe, filho(a)-pai e mãe-pai, tendo sido encontrados alfas de Cronbach excelentes (0,90 < α > 0,93) (Zanon & Filho, 2015).
Problemas emocionais e comportamentais
Youth Self-Report (YSR; Achenbach & Rescorla, 2001). Inventário de autoavaliação para jovens de 11 a 18 anos que faz parte do Sistema de Avaliação Empiricamente Baseado (Achenbach, 1991; Achenbach & Rescorla, 2001). Divide-se em duas seções: competência social/funcionamento adaptativo (com 20 itens respondidos de forma parcialmente aberta) e problemas de funcionamento (118 itens respondidos em escala de três pontos - falso, mais ou menos verdadeiro, bastante verdadeiro). As respostas aos itens fornecem resultados em oito escalas de problemas: Ansiedade/Depressão, Isolamento/Depressão, Queixas Somáticas, Problemas Sociais, Problemas de Pensamento, Problemas de Atenção, Comportamento de Quebrar Regras e Comportamento Agressivo. Estas, por sua vez, são agrupadas em três índices gerais: Escala de Internalização (três primeiras escalas), Escala de Externalização (duas últimas escalas) e Escala Total de Problemas Emocionais/Comportamentais (engloba todos os itens de problemas do inventário). No presente estudo, foi utilizada a versão do YSR adaptada para amostra brasileira (Bordin et al., 2013; Rocha, 2012), para a qual Rocha (2012) encontrou evidências de validade baseadas na estrutura interna, via análise fatorial confirmatória (AFC), e nas correlações das escalas entre si. As respostas dos participantes foram computadas pelo software ADM, utilizando-se nas análises os escores brutos nas oito escalas.
Inventário de Depressão Infantil (CDI; Kovacs, 1992). O CDI investiga a intensidade dos sintomas afetivos, cognitivos e comportamentais de depressão em jovens de sete a 17 anos. Possui 27 itens com três opções de resposta (pontuadas com zero, um ou dois pontos), com escores mais altos indicando maior intensidade dos sintomas. O CDI pode ser aplicado individualmente ou em grupo, sendo preenchido pelo próprio participante. No estudo de Gouveia et al. (1995), o inventário apresentou estrutura unifatorial e consistência interna de 0,81. No presente estudo o alfa de Cronbach foi de 0,85, considerado bom (Zanon & Filho, 2015), assim como no de adaptação.
Cognições disfuncionais
Inventário da Tríade Cognitiva para Crianças e Adolescentes (ITC-CA; Kaslow et al., 1992). Esse instrumento de autorrelato investiga visões positiva e negativa relacionadas à tríade cognitiva (visões de self, mundo e futuro) de jovens entre nove e 14 anos. Os respondentes devem indicar se as sentenças de cada um dos 36 itens descrevem ou não seus pensamentos no momento da aplicação, por meio de uma escala de três pontos (sim, talvez e não). O inventário original (Kaslow et al., 1992) apresentou índices de consistência interna aceitáveis a excelentes nos três fatores da tríade (0,70 < α > 0,90). No artigo de adaptação (Teodoro et al., 2015), a estrutura mais adequada foi a de seis fatores, que separa as tríades cognitivas positiva e negativa. Os alfas de Cronbach encontrados para os seis fatores neste estudo e no de adaptação variaram de 0,60 a 0,75. Os autores da adaptação pontuam que a estrutura com seis fatores e a consequente redução no número de itens por fator possa explicar os alfas reduzidos.
Escala de Pensamentos Automáticos para Crianças e Adolescentes (EPA; Schniering & Rapee, 2002). Essa escala de autorrelato investiga a frequência com que crianças e adolescentes entre nove e 16 anos apresentam pensamentos automáticos relacionados a sintomas internalizantes e externalizantes. É composta por 40 itens respondidos por escala Likert de cinco pontos (nunca até todo o tempo). A escala original (Schniering & Rapee, 2002) divide-se em quatro fatores (ameaça social, ameaça física, hostilidade e fracasso pessoal), estrutura também encontrada na adaptação para o Brasil. Tanto no estudo de adaptação (Teodoro et al., 2013) quanto neste, foram encontrados alfas de Cronbach excelentes para a escala total (α > 0,90) e bons a excelentes para os fatores (0,80 a 0,90) (Zanon & Filho, 2015).
Escala de Atitudes Disfuncionais para Crianças e Adolescentes (DAS-C; D’Alessandro & Burton, 2006). Esse instrumento de autorrelato destina-se à avaliação de atitudes disfuncionais em jovens entre nove e 16 anos. É composto por 22 itens respondidos em escala de seis pontos (discordo fortemente até concordo fortemente). A escala original (D’Alessandro & Burton, 2006) apresentou estrutura unifatorial, com índices adequados de consistência interna e estabilidade temporal. Na versão adaptada por Ohno et al. (2018) foi encontrada, via AFE e AFC, uma estrutura trifatorial (Aprovação Social, Autodesempenho e Amor e Autocobrança e Necessidade de aprovação), com alfas de Cronbach aceitáveis a excelentes (Zanon & Filho, 2015) no presente estudo e no de adaptação (0,70 < α > 0,90).
Procedimentos éticos e de pesquisa
O presente estudo é um recorte do projeto de pesquisa aprovado previamente pelo comitê de ética (CAAE 0041.0.390.000-09) e conduzido entre os anos de 2010 e 2013, que visou investigar a interação entre relações familiares, PEC e vulnerabilidade cognitiva, além de adaptar instrumentos de avaliação de cognições para o contexto brasileiro. As escolas foram selecionadas por conveniência. Todos os alunos foram convidados, mas participaram apenas aqueles que foram devidamente autorizados pelos responsáveis (via assinatura do TCLE). Os participantes responderam os instrumentos, coletivamente, com o apoio dos pesquisadores caso tivessem alguma dúvida. A coleta ocorreu em três dias consecutivos, com duração média de 50 minutos por dia.
Análise dos dados
A análise dos dados foi realizada por meio de estatísticas paramétricas, pelo programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS) 23.0. As associações foram analisadas por Correlação de Pearson e as comparações entre grupos, pelo Teste t de Student para Amostras Independentes e pela Análise de Variância Unidirecional (ANOVA one-way, post-hoc de Bonferroni). Os efeitos foram explorados por Regressão Linear Simples e a hipótese de mediação foi testada por análises de Regressão Múltipla, pelo macro Process, conforme sugerido por Hayes (2013).
Foram considerados estatisticamente significativos os resultados que apresentaram p valores inferiores a 0,05. O d de Cohen foi utilizado na verificação do tamanho do efeito das diferenças no Teste t e na ANOVA, sendo considerados: 0,2 a 0,4 pequeno; 0,5 a 0,7 médio; maior que 0,8 grande (Cohen, 1988). Na interpretação dos coeficientes de correlação foram utilizados como referência os critérios de Cohen (1988): pequena: 0,1 a 0,29; moderada: 0,3 a 0,49; grande > 0,5.
Como variável independente, foram criados grupos de acordo com a percepção de família dos participantes. Em primeiro lugar, foi calculada a média entre as díades filho(a)-mãe, filho(a)-pai e mãe-pai, separadamente, para a percepção de conflito e de afetividade familiares. O escore final foi utilizado em análises de correlação e de regressão. Em seguida, foram calculadas as medianas dos escores de percepção de conflito e de afetividade, que foram utilizadas como ponto de corte para a divisão em grupos com os tipos de família.
Visando empreender análises relacionando níveis de conflito familiar, cognições disfuncionais e PEC foram realizadas categorizações partindo dos escores de percepção de conflito. Assim, esta variável foi separada em três categorias: baixo conflito - percentil 0 a 25; médio conflito - percentil 25 a 75; alto conflito - percentil 75 a 100.
Os escores de cognições disfuncionais, por sua vez, foram criados a partir da soma entre as médias dos resultados dos participantes nos instrumentos ITC-CA, EPA e DAS-C. Primeiramente, foi calculado o escore Z e criada uma média total para os quatro fatores da EPA. Para os seis fatores do ITC-CA, foram criados: 1) um escore positivo invertido (a partir da média entre os escores de self, mundo e futuro positivos codificados inversamente, para que escores mais elevados refletissem menos cognições positivas) e outro negativo (a partir da média entre os escores de self, mundo e futuro negativos); 2) uma média total a partir dos escores positivo invertido e negativo. Em relação à DAS-C, mesmo possuindo estrutura trifatorial, foi utilizado neste estudo um escore geral. Por fim, a partir das médias calculadas para cada instrumento, foi criada uma média total de cognições disfuncionais. A criação desse escore geral é fundamentada teoricamente pelo modelo de Beck (2013) e empiricamente pela intercorreleção entre os escores dos instrumentos.
Os escores de PEC foram obtidos dos instrumentos CDI e YSR. Este fornece um escore bruto para cada um dos oito problemas individualmente, enquanto aquele fornece informações sobre os sintomas depressivos. Optou-se por não criar um escore geral único entre os dois instrumentos, como foi feito com as cognições disfuncionais, para que fosse possível obter uma visão mais ampla e detalhada dos problemas.
Resultados
Diferenças entre sexos
Para verificar diferenças relacionadas ao sexo dos participantes (hipótese 1), foram conduzidas análises de comparação entre grupos. Apenas duas diferenças com significância estatística foram encontradas, na intensidade dos sintomas depressivos (t = -2,95; gl = 368; meninos: M = 7,95; DP = 5,57; meninas: M = 9,89; DP = 6,68) e dos problemas de atenção (t = -2,75; gl = 355,2; meninos: M = 54,82; DP = 6,39; meninas: M = 57,04; DP = 8,85), em que as meninas apresentaram maiores escores. Porém, os tamanhos de efeito foram pequenos (d de Cohen de 0,32 para sintomas depressivos e de 0,29 para problemas de atenção).
Associações entre relações familiares, cognições disfuncionais e PEC
Os resultados das análises de correlação apresentaram significância estatística (0,001 < p > 0,05), sendo os coeficientes positivos entre conflito, cognições disfuncionais e PEC, e negativos entre afetividade e as mesmas variáveis. Correlações moderadas (0,30 < r > 0,43) e positivas foram encontradas entre conflito familiar e as demais variáveis (exceto queixas somáticas r = 0,25; p < 0,01), enquanto a afetividade correlacionou-se negativamente, mas com magnitude pequena, com todas as variáveis (exceto conflito: r = 0,57; p < 0,01). Correlações positivas moderadas a altas foram verificadas entre as cognições disfuncionais e os PEC (0,38 < r > 0,68; p < 0,01). Entre os próprios PEC, todas as associações foram positivas (p < 0,01), com magnitudes variando entre 0,25 (pequena) para queixas somáticas e comportamento de quebrar regras e 0,69 (grande) para ansiedade/depressão e problemas sociais, o que mostra que os problemas não são totalmente independentes entre si.
Diferença entre tipos de família
A partir da classificação dos escores em conflito e afetividade em baixo (< Percentil 50) e alto (≥ Percentil 50), os participantes foram agrupados nos quatro tipos de família: tipo I (n = 130; 35,0 %), tipo II (n = 59; 15,9 %); tipo III (n = 57; 15,4 %) e tipo IV (n = 125; 33,7 %). Visando testar se adolescentes que avaliaram suas famílias como sendo do tipo IV (maior conflito/menor afetividade) apresentariam mais cognições disfuncionais e PEC, enquanto aqueles que as avaliaram como sendo do tipo I (menor conflito/maior afetividade) apresentariam menos (hipótese 2), foram conduzidas análises de variância unidirecional, sendo a variável independente (VI) o tipo de família e as variáveis dependentes (VD) as cognições disfuncionais e cada um dos PEC. Todos os resultados foram significativos (p ≤ 0,001), tendo todas as diferenças apresentado tamanho de efeito médio (0,50 < d > 0,70), exceto isolamento/depressão, queixas somáticas e problemas de pensamento, com tamanhos de efeito pequenos (d < 0,5) (tabela 1).
Além dos resultados hipotetizados sobre as diferenças entre os tipos de família I e IV, também foram observadas outras diferenças com significância estatística. Aquelas com tamanho de efeito médio ou grande (d ≥ 0,5) serão apresentadas a seguir. Quando os grupos com alta afetividade (I e II) foram comparados, aquele em que o conflito era baixo (tipo I) apresentou resultados significativamente menores em algumas variáveis, sendo médios os tamanhos de efeito para cognições disfuncionais, sintomas depressivos, ansiedade/depressão, queixas somáticas, problemas sociais, problemas de atenção e comportamentos de quebrar regras e agressivo. Nas comparações entre os grupos com baixa afetividade (III e IV), também o grupo com baixo conflito (tipo III) apresentou menores médias em algumas variáveis, sendo que as diferenças tiveram tamanhos de efeito grande para cognições disfuncionais e médios para sintomas depressivos, isolamento/depressão, problemas sociais, comportamento de quebrar regras e comportamento agressivo. Cabe destacar que não foram encontradas diferenças significativas entre os pares de grupos nos quais não há variação do conflito (I e III; II e IV).
Tendo em vista os resultados com as diferenças entre tipos de família, além das correlações moderadas entre a percepção de conflito familiar e as cognições disfuncionais e os PEC, optou-se por explorar o conflito mais profundamente. Foram conduzidas, então, análises para verificar se as cognições e os PEC variavam entre diferentes níveis de percepção de conflito familiar (baixo, médio e alto). As estatísticas descritivas (médias e desvios-padrão), inferenciais (ANOVAs) e tamanhos de efeito (d de Cohen) podem ser vistos na tabela 2. Também serão apresentadas a seguir apenas as diferenças mais importantes (com tamanhos de efeito grandes ou médios).
Nos resultados com as cognições, a ANOVA foi significativa (F(2,368) = 27,511, p < 0,001) e o post-hoc de Bonferroni revelou que as cognições disfuncionais variam significativamente entre os três grupos de conflito (baixo < médio < alto). Tamanhos de efeito grande e médio foram encontrados nas comparações entre os grupos baixo e alto, e entre os grupos médio e alto conflito, respectivamente. A ANOVA também foi significativa em todas as comparações conduzidas com os PEC (baixo < médio < alto). Destacam-se aqui as diferenças com tamanhos de efeito grandes entre os grupos baixo e alto conflito em sintomas depressivos, ansiedade/depressão, problemas sociais, problemas de atenção, comportamentos de quebrar regras e agressivo. Entre os mesmos grupos os tamanhos de efeito foram médios em isolamento/depressão, queixas somáticas e problemas de pensamento. Também foram encontradas diferenças com tamanho de efeito médio nas comparações entre os grupos médio e alto conflito para sintomas depressivos, problemas sociais e de pensamento e comportamentos de quebrar regras e agressivo.
Nota: Tipos de família no Familiograma: I: alta afetividade e baixo conflito; II: alta afetividade e alto conflito; III: baixa afetividade e baixo conflito; IV: baixa afetividade e alto conflito. SD: Sintomas Depressivos (CDI); A/D: Ansiedade/Depressão; I/D: Isolamento/Depressão; QS: Queixas Somáticas; PS: Problemas Sociais; PP: Problemas de Pensamento; PA: Problemas de Atenção; CQR: Comportamento de Quebrar Regras; CA: Comportamento Agressivo.
Nota. Baixo conflito (P<25); médio conflito (25≤P≥75); alto conflito (P>75). SD: Sintomas Depressivos (CDI); A/D: Ansiedade/Depressão; I/D: Isolamento/Depressão; QS: Queixas Somáticas; PS: Problemas Sociais; PP: Problemas de Pensamento; PA: Problemas de Atenção; CQR: Comportamento de Quebrar Regras; CA: Comportamento Agressivo.
Efeito das relações familiares sobre as cognições disfuncionais e os PEC
Com o objetivo de testar as percepções de conflito e afetividade familiares como preditoras de cognições disfuncionais e PEC, e as cognições disfuncionais como preditoras de PEC (hipótese 3), foram conduzidas análises de Regressão Linear pelo método Stepwise. Os resultados encontram-se na tabela 3.
Inicialmente, buscando verificar a predição do conflito e da afetividade sobre as cognições disfuncionais, foram conduzidas duas análises. A primeira, incluiu a percepção de conflito como VI e as cognições disfuncionais como VD. Foi encontrado um modelo de regressão significativo (F(1,369) = 85,437; p < 0,001) e a percepção de conflito foi responsável por 19 % (R2 ajustado) da variação nas cognições, com um (beta) significativo ( = 0,434; p < 0,001). Na segunda análise, que teve a percepção de afetividade como VI, também foi encontrado um modelo de regressão significativo (F(1,369) = 22,202; p < 0,001) e esta variável foi responsável por 5 % (R2 ajustado) da variação nas cognições, com um significativo ( = -0,238; p < 0,001).
Para verificar as percepções de conflito e de afetividade familiares e as cognições disfuncionais como preditoras de PEC, foram conduzidas novas análises de regressão e todos os resultados apresentaram significância estatística, sendo p < 0,001 para o conflito e as cognições e p < 0,05 para a afetividade. Em todos os casos, o poder de predição das cognições sobre os PEC foi maior do que o da percepção de conflito que, por sua vez, foi maior do que o da percepção de afetividade.
Com o objetivo de testar o modelo de mediação das cognições disfuncionais na relação entre a percepção de conflito e afetividade familiares e os PEC (hipótese 4), foram conduzidas análises de Regressão Múltipla. Para o conflito, o coeficiente de regressão da relação entre esta variável e as cognições disfuncionais foi de 0,05 (p < 0,001) na análise com os sintomas depressivos e de 0,06 (p < 0,001) nas análises com os demais PEC. Na relação entre as cognições disfuncionais e os PEC também todos os resultados foram significativos (p < 0,001), com os coeficientes de regressão variando entre 1,53 para comportamento de quebrar regras e 7,08 para ansiedade/depressão. Por fim, na relação entre o conflito e os PEC, foram significativos os resultados de sintomas depressivos (p < 0,001), problemas sociais (p < 0,05), problemas de atenção, comportamentos de quebrar regras e agressivo (p < 0,001), com os coeficientes de regressão variando entre 0,11 e 0,29. Não alcançaram significância estatística as análises com ansiedade/depressão, isolamento/depressão, queixas sociais e problemas de pensamento.
Por sua vez, nas análises com a afetividade, todos os resultados dos coeficientes de regressão da relação entre esta variável e as cognições disfuncionais foram de -0,02 (p < 0,001). Na relação entre as cognições disfuncionais e os PEC, todos os resultados foram significativos (p < 0,001), com os coeficientes de regressão variando entre 1,94 para o comportamento de quebrar regras e 7,15 para a ansiedade/depressão. Finalmente, na relação entre a afetividade e os PEC, foram significativos apenas os resultados das análises com sintomas depressivos, comportamento de quebrar regras e comportamento agressivo, com coeficientes de regressão de -0,10 (p < 0,001), -0,06 e -0,09 (p < 0,05), respectivamente.
Nota. O resultado é significativo no nível 0,05. SD: Sintomas Depressivos (CDI); A/D: Ansiedade/Depressão; I/D: Isolamento/Depressão; QS: Queixas Somáticas; PS: Problemas Sociais; PP: Problemas de Pensamento; PA: Problemas de Atenção; CQR: Comportamento de Quebrar Regras; CA: Comportamento Agressivo.
Em síntese, os resultados apontam um efeito indireto da afetividade apenas sobre os sintomas depressivos, o comportamento de quebrar regras e o comportamento agressivo, e do conflito sobre estas mesmas variáveis, além dos problemas sociais e dos problemas de atenção, ambos tendo as cognições disfuncionais como mediadores parciais. O modelo de mediação será melhor explorado na seção da discussão.
Discussão
Este estudo buscou investigar as interações entre as relações familiares, as cognições disfuncionais e os PEC de adolescentes. Foram encontradas associações significativas entre todas as variáveis, sendo a percepção de afetividade familiar a que apresentou os menores coeficientes e as cognições disfuncionais, os maiores. Em relação ao conflito, os resultados mostraram associações positivas e moderadas com as cognições disfuncionais, e positivas e fracas a moderadas com os PEC. Em parte, esses resultados estão de acordo com outro estudo realizado a partir do Familiograma, em que o conflito apresentou maiores índices de correlação com sintomas internalizantes do que a afetividade (Hess et al., 2013). Além disso, segundo Beck (2013), as cognições disfuncionais são comuns aos PEC, justificando as correlações em maior magnitude entre essas duas variáveis.
Quanto à comparação entre os sexos, contrariamente ao esperado (hipótese 1), não houve diferença significativa entre meninos e meninas, com exceção dos sintomas depressivos e dos problemas de atenção, nos quais as meninas tiveram escores mais elevados. A literatura aponta que meninos costumam apresentar mais problemas externalizantes, enquanto meninas apresentam mais internalizantes (Rescorla et al., 2007; Rocha, 2012). Um estudo realizado com base no YSR, porém, encontrou um nível semelhante de psicopatologias internalizantes e externalizantes em adolescentes mais velhos entre os sexos masculino e feminino (Zubeidat et al., 2018), o que corrobora com os achados do presente artigo.
Uma explicação para a semelhança entre os resultados de meninos e meninas diz respeito à faixa etária dos participantes, pois alguns problemas somente se consolidam na adolescência. Por exemplo, segundo Rocha (2012), adolescentes com idade superior a 15 anos tendem a apresentar mais PEC do que os mais novos. Além disso, Booth et al. (2019) encontraram um padrão que refletia uma piora no humor (com aumento da depressão e da ruminação) e um aumento nos comportamentos impulsivos no decorrer da adolescência. Ademais, Shulman e Scharf (2018) discutem que as psicopatologias podem variar conforme o contexto e as condições, sendo que alguns são mais difíceis para meninas (que, em consequência, sofreriam maiores níveis de estresse) enquanto outros são mais estressantes para meninos. Sendo assim, esse padrão pode variar entre diferentes países e culturas. Por fim, outra possível explicação para a semelhança entre os sexos é a amostra não-clínica utilizada neste estudo, o que pode indicar que os participantes não apresentam problemas em níveis elevados.
Nas análises de variância realizadas para testar a hipótese 2, esperava-se que adolescentes que avaliaram suas famílias como sendo do tipo IV (maior conflito/menor afetividade) apresentassem maiores escores em cognições disfuncionais e PEC, enquanto aqueles que as avaliaram como sendo do tipo I (menor conflito/maior afetividade) apresentassem menores escores. A hipótese foi confirmada, visto que os resultados mostraram médias significativamente inferiores de cognições disfuncionais e PEC dos adolescentes de famílias do tipo I quando comparadas aqueles do tipo IV.
Todavia, outras diferenças que não eram esperadas foram encontradas, justamente nos grupos em que o conflito variava. Em todos os tipos familiares em que o conflito era alto, os escores em cognições disfuncionais e PEC também eram mais elevados, enquanto nos grupos em que o conflito era baixo, esses escores também eram menores. Porém, esse mesmo resultado não foi encontrado para a afetividade, o que pode indicar que o conflito familiar está mais associado às variações das cognições disfuncionais e dos PEC do que a afetividade.
Em estudo com conflito interparental, McCauley et al. (2019) encontraram que alguns fatores, como o sucesso na escola e o apoio dos pares, possuíam potencial para compensar o impacto do conflito na vida dos filhos, mas não eram capazes de diminuir a intensidade de seus efeitos. No caso do presente estudo, pode ser que a afetividade se enquadre como um fator que proteja contra os impactos do conflito na vida dos adolescentes, mas não tenha potência suficiente para impedir o aparecimento de cognições disfuncionais e PEC. Esta proposição pode ser melhor investigada em estudos futuros.
Ainda nas análises com os tipos de família, ocorreram exceções em que não foram encontradas diferenças significativas em alguns dos grupos em que o conflito variava. No caso das queixas somáticas (os tipos III e IV não se diferiram) e dos problemas de pensamento (tipos I e II não se diferiram) (vide tabela 1), uma possível explicação encontra-se nas análises de regressão. Para aquelas que incluíram as queixas somáticas e os problemas de pensamento como variáveis dependentes, apenas as cognições disfuncionais foram preditoras, sendo as percepções de conflito e afetividade não significativas. Isso pode indicar que o relacionamento familiar não possui uma influência direta tão relevante sobre esses dois problemas, e será melhor tratado posteriormente, juntamente com a discussão sobre a hipótese de mediação.
A partir da nova perspectiva de que, mais do que a afetividade familiar, a percepção de conflito é que está relacionada às cognições disfuncionais e aos PEC, foi investigado se a intensidade dessa variável também era importante. Os resultados apontaram uma diferença significativa entre pelo menos dois, dos três níveis de percepção de conflito (baixo, médio e alto), sendo que quanto maior o nível, maiores eram os escores em cognições disfuncionais e PEC. Isso indica que quanto mais conflitos há em uma família, maiores os níveis de cognições disfuncionais e PEC dos filhos e podemos dizer que, consequentemente, maiores são as chances de desenvolvimento de psicopatologias, considerando a teoria cognitiva, que associa cognições disfuncionais aos transtornos mentais (Beck, 2013).
Esta hipótese vai ao encontro do estudo de Weymouth et al. (2019), que acompanharam 768 adolescentes do 6º ao 8º ano e suas famílias, para investigar o impacto do conflito conjugal nas cognições dos filhos e o risco para desenvolvimento de ansiedade social. Os resultados apontaram que a exposição ao conflito interparental está associada à percepção de ameaça pelos adolescentes que, por sua vez, aumenta o risco para sintomas de ansiedade social. Além disso, Lara et al. (2021), em estudo de revisão, encontraram associações entre o funcionamento familiar desadaptativo, como o conflito familiar, o conjugal e as práticas parentais, e os desfechos negativos nas cognições e nos problemas emocionais e comportamentais dos filhos adolescentes.
Análises de regressão foram conduzidas para testar as hipóteses 3 e 4. A hipótese 3 foi confirmada, dado que os resultados mostraram efeito das percepções de conflito e de afetividade sobre as cognições disfuncionais e os PEC dos participantes, e das cognições sobre os PEC. Porém, corroborando com resultados dos coeficientes de correlação e das análises de variância, o poder de predição da afetividade foi menor do que o do conflito. Ademais, as cognições disfuncionais apresentaram maiores índices de predição do que as outras duas variáveis, o que é respaldado pela teoria cognitiva (Beck, 2013).
Uma possível explicação para a afetividade não ter aparecido como um fator importante na relação com as cognições disfuncionais e os PEC é que neste estudo foram abordados apenas problemas e aspectos negativos das cognições. Talvez a afetividade não seja um fator de proteção contra essas duas variáveis, mas seja importante para o surgimento e manutenção das cognições, emoções e comportamentos mais funcionais e positivos, o que, indiretamente, dificultaria a instalação de psicopatologias, como uma forma de compensação. Portanto, estudos futuros deveriam incluir tanto os aspectos funcionais quanto os disfuncionais das cognições e dos comportamentos para investigar essa proposição.
Outra possibilidade para explicar a baixa magnitude dessas relações seria a idade dos participantes. Segundo Rocha (2012), os PEC têm uma tendência maior a surgir em adolescentes com idade superior a 15 anos, e a média de idade dos participantes no presente estudo foi de 12 anos. Além disso, Shulman e Scharf (2018) discutem fatores importantes, além das relações com seus pais, que ajudariam os adolescentes a lidarem com condições de estresse elevado, como a baixa sensibilidade à rejeição e capacidades internas de coping. Pode ser que a percepção de afetividade familiar seja responsável por apenas parte da proteção contra psicopatologias nos adolescentes, proposição que deve ser melhor investigada em estudos futuros.
A quarta hipótese testada neste estudo diz respeito à mediação parcial das cognições disfuncionais na relação entre a percepção familiar e os PEC. Foi demonstrado nas análises que as percepções de conflito e de afetividade familiares possuíam efeito significativo sobre todos os PEC, apesar de a porcentagem de variância explicada ser menor para alguns, como os problemas de pensamento e as queixas somáticas (vide tabela 3). Quando as cognições disfuncionais foram incluídas na equação, nas análises de Regressão Múltipla, seu efeito foi significativo para todos os PEC, enquanto o efeito da percepção de conflito: 1) diminuiu, mas permaneceu significativo, nos casos dos sintomas depressivos, problemas sociais, problemas de atenção, comportamento de quebrar regras e comportamento agressivo; 2) perdeu sua significância nos casos de ansiedade/depressão, isolamento/depressão, queixas somáticas e problemas de pensamento. Em relação às análises com a afetividade, as cognições disfuncionais também demonstraram efeito sobre todos os PEC, enquanto o efeito da percepção de afetividade familiar: 1) diminuiu, mas permaneceu significativo, nos casos dos sintomas depressivos, comportamento de quebrar regras e comportamento agressivo; 2) perdeu sua significância nos casos de ansiedade/depressão, isolamento/depressão, queixas somáticas, problemas sociais, problemas de pensamento e problemas de atenção.
Esses resultados sugerem que a hipótese 4 estava parcialmente correta. Segundo Tabachnick e Fidell (1996), quando há um efeito entre duas variáveis (como ocorreu com o conflito e a afetividade familiares em relação aos PEC) e este efeito diminui quando uma terceira variável é incluída na equação (no caso, as cognições disfuncionais), considera-se uma mediação parcial. Por outro lado, quando, diante da inclusão da terceira variável, não há mais efeito entre as duas primeiras, considera-se mediação total.
Sendo assim, as cognições disfuncionais parecem mediar parcialmente a relação entre a percepção de conflito familiar e os sintomas depressivos, os problemas sociais e de atenção, o comportamento de quebrar regras e o agressivo. Por outro lado, diferentemente do que era esperado, os resultados apontam que essa variável medeia totalmente a relação entre o conflito e a ansiedade/depressão, o isolamento/depressão, as queixas somáticas e os problemas de pensamento.
O mesmo ocorreu com a percepção de afetividade, posto que foi encontrado um efeito indireto desta variável sobre os sintomas depressivos, o comportamento de quebrar regras e o comportamento agressivo, mediado pelas cognições disfuncionais, confirmando a hipótese inicial. Entretanto, na maioria dos casos, parece haver uma mediação total das cognições, o que ocorreu nas relações com a ansiedade/depressão, o isolamento/depressão, as queixas somáticas, os problemas sociais, os de pensamento e os de atenção.
Essa ocorrência de mediação total das cognições pode explicar o fato de terem sido encontradas menores porcentagens de variância explicada do conflito e da afetividade justamente em relação às queixas somáticas e aos problemas de pensamento. Ademais, também corrobora com essa explicação o fato de, nas análises de variância com os tipos de família e cada um desses dois problemas, não terem sido encontradas diferenças significativas entre todos os grupos em que o conflito variava, como ocorreu com os outros problemas.
Apesar de não terem sido encontrados estudos brasileiros que incluíssem a relação entre a percepção de família, as cognições disfuncionais e os PEC, esses resultados se assemelham aos de alguns estudos realizados em outros países, que incluíram as cognições como mediadoras da relação entre as outras duas variáveis. Por exemplo, Throuvala et al. (2019) demonstraram que as cognições sobre si mesmo de 225 jovens adultos mediavam a relação entre a rejeição parental e o Transtorno do Jogo pela Internet. Shi et al. (2017) também demonstraram a mediação da autoestima na relação entre o funcionamento familiar e o vício em internet, em estudo com 3.289 estudantes.
Cabe destacar que o presente estudo possui algumas limitações. Primeiramente, a amostra foi selecionada por conveniência e não houve diferenciação entre os grupos clínico e não-clínico, o que pode dificultar a generalização dos resultados. Essa diferenciação poderia contribuir para resultados mais acurados em estudos futuros.
Apesar de os adolescentes já possuírem maturidade social e cognitiva para relatar seus sentimentos e comportamentos (Achenbach, 1991), e do conhecimento de que não são os fatos e experiências em si que influenciam o surgimento de cognições disfuncionais, mas sim as interpretações que cada um dá a esses eventos (Beck, 2013), acredita-se que o fato de os instrumentos serem de autorrelato e respondidos por um único informante pode ter sido outra limitação. Respostas de outras fontes de informação poderiam servir como um complemento, principalmente em relação aos fatores mais facilmente observáveis, como os problemas de comportamento. Essa complementação também ajudaria a diminuir efeitos de desejabilidade social e de dificuldades de recordação por parte dos adolescentes.
Em terceiro lugar, apesar de mostrar indicativos de efeitos entre variáveis, o delineamento deste estudo foi transversal, o que não permite uma confirmação de tal influência. Cabe salientar ainda, que a coleta de dados foi realizada entre o período de 2010 e 2013. Tendo em vista as mudanças familiares e geracionais, principalmente aquelas advindas após a pandemia da COVID-19, sugere-se que estudos futuros explorem essas relações familiares, as cognições disfuncionais e os PEC longitudinalmente. Ademais, sugere-se que as cognições e os comportamentos funcionais sejam incluídos, para a investigação do papel preditor da percepção de afetividade sobre elas.
Conclusões
De forma geral, os resultados deste estudo indicam que, tanto para meninas quanto para meninos, o conflito familiar possui influência sobre as cognições disfuncionais e os PEC, enquanto a afetividade não parece ter robustez suficiente para impedir o aparecimento desses mesmos aspectos. Além disso, as cognições disfuncionais apresentam-se como um importante mediador da relação entre a família e os problemas dos filhos, confirmando o que aponta o modelo cognitivo (Beck, 2013).
Em termos de implicações clínicas, os resultados desta pesquisa chamam a atenção para a importância de os tratamentos psicológicos de psicopatologias infanto-juvenis abordarem, além dos comportamentos e cognições disfuncionais dos próprios pacientes, também a funcionalidade das relações intrafamiliares, no sentido de tentar reduzir os conflitos existentes tanto entre o casal, quanto entre a família como um todo. Sugere-se o enfoque do ensino aos pais de habilidades de resolução de problemas para que sejam modelos para os filhos e transmitam a eles a capacidade de terem discussões mais funcionais. Desse modo, espera-se reduzir as chances de desenvolvimento de cognições disfuncionais e, consequentemente, de psicopatologias futuras.