O interesse na compreensão das habilidades superiores apresentadas por pessoas com alta habilidade/superdotação (AH/SD) tem aumentado nas últimas décadas. No Brasil, país em que o presente estudo foi desenvolvido, a definição que embasa as políticas públicas afirma que pessoas com AH/SD, termo adotado no país, são aqueles que apresentam habilidades elevadas em uma ou mais áreas do desenvolvimento humano, tais como a intelectual, acadêmica, psicomotora, de liderança, criativa, além de representativo envolvimento com tarefas de seu interesse e motivação para aprendizagem (Brasil, 2012).
Essa concepção multidimensional do fenômeno tem guiado políticas públicas em diversos países (Li et al., 2009; Nakano & Oliveira, 2020). Atualmente, muitos programas voltados a esse público-alvo vão além da identificação por meio da inteligência, incluindo outros tipos de habilidades que podem se mostrar elevadas, de modo que o objetivo da identificação das altas habilidades/superdotação volta-se à compreensão do indivíduo e de suas necessidades especiais (Sternberg, 2023).
Diferentemente do que muitos ainda pensam, a identificação das AH/SD não visa a rotulação e tampouco a criação de um grupo privilegiado (Pocinho, 2009; Sabatella, 2008). Seu principal objetivo é fornecer informações sobre a pessoa, especialmente a identificação de seus pontos fortes e necessidades específicas, de modo que tal conhecimento possa ser usado para oportunizar a adaptação, valorização das forças e qualidades positivas da pessoa, assim como o fortalecimento dos recursos pessoais (Scorsolini-Comin & Santos, 2010), construção de um autoconceito positivo, motivação e estabilidade emocional (Chagas-Ferreira, 2014). Desse modo, as avaliações e possíveis intervenções podem favorecer um desenvolvimento social, emocional, acadêmico e psicológico mais saudável (Irueste et al., 2018).
Além desses aspectos, o conhecimento dos potenciais pode atuar como um fator protetivo em relação a possíveis desajustamentos, principalmente sociais e emocionais que podem ser decorrentes da ausência de identificação, sendo tais aspectos, usualmente apontados como fonte de vulnerabilidades e dificuldades emocionais nessa população (Piske, 2016; Prado & Fleith, 2016).
No entanto, apesar dos benefícios indicados, na prática, dificuldades relacionadas à identificação tem se mostrado um dos principais desafios na temática (Al-Hroub & El Khoury, 2018). Dentre os principais motivos, pode-se citar a ausência de instrumentos adequadamente validados para esse grupo de estudantes. Como consequência, a perda de talento, resultante das dificuldades de identificar os alunos que apresentam AH/SD não apenas priva a sociedade de contribuições potenciais que essas pessoas poderiam trazer, mas, também, limita as oportunidades desses alunos, prejudicando sua capacidade de alcançar realização pessoal e profissional (Nakano & Peixoto, 2023).
Considerando-se que a valorização dos potenciais varia de acordo com o contexto (Sternberg, 2023), o desenvolvimento ou adaptação de medidas para a avaliação das AH/SD deve ser feita para a população em que seu uso será conduzido. Nesse sentido, carência de medidas válidas para identificar tais indivíduos tem atuado de modo a impedir sua identificação (Barbosa et al., 2012). Tal lacuna evidencia a necessidade de que instrumentos sejam desenvolvidos especificamente para uso nessa população, de modo a contemplar a heterogeneidade de perfis e, os diferentes níveis de habilidades que pessoas com essa condição apresentam (Zaia & Nakano, 2020). Segundo as autoras, tal preocupação se mostra relevante se considerarmos que, comumente, essas pessoas facilmente podem atingir o nível máximo de pontuação que outros testes conseguem medir, devido ao fato de terem sido normatizados para a população regular, de modo que diferentes níveis de desempenho, localizados no topo das habilidades, não serão corretamente aferidos e diferenciados.
Além disso, a identificação da área em que esse potencial elevado se faz presente é essencial, especialmente ao constatar a diversidade de áreas em que a AH/SD pode se manifestar: intelectual, acadêmica ou escolar, produtivo-criativa, social, psicomotora, dentre outras (Mettrau & Reis, 2007). Dependendo da área em que a AH/SD se manifesta, diferentes comportamentos e habilidades podem se destacar.
Neste estudo enfoca-se a AH/SD do tipo intelectual, a qual se relaciona à presença de uma alta habilidade em relação à capacidade intelectual geral, marcada pela presença de características cognitivas como flexibilidade e fluência de pensamento, capacidade de pensamento abstrato para fazer associações e resolver problemas, produção ideativa, rapidez do pensamento, compreensão e memória elevada, capacidade verbal e raciocínio bem desenvolvido (Farias, 2012; Nakano, 2021). Envolve ainda a manifestação de potencial elevado em domínios relacionados a realizações intelectuais (Stricker et al., 2019). O processo de construção de uma escala para avaliar esse tipo de superdotação é relatado neste estudo.
As habilidades cognitivas elevadas estão presentes no modelo dos Três Anéis de Renzulli (Renzulli, 2016; Renzulli & Reis, 2018), que guia as políticas públicas brasileiras, como um dos três pilares que caracterizam a superdotação. A importância da inteligência enquanto uma característica pode ser verificada por meio do grande número de teorias e instrumentos voltados a esse construto (Wechsler et al., 2022). Dentre tais modelos, o Cattell-Horn-Carroll (CHC) tem se destacado, sendo reconhecido como o mais abrangente (Schneider & McGrew, 2018).
A avaliação de um potencial superior no domínio da inteligência se ampara na constatação de que este é um construto estável e importante preditor de resultados da vida como anos de escolaridade, comportamentos positivos relacionados à saúde, desempenho escolar, sucesso profissional e status socioeconômico, não se limitando a estes citados (Caemmerer et al., 2020). Segundo Heyder et al. (2018), o conhecimento sobre talentos intelectuais são os mais facilmente reconhecidos, inclusive pelos professores. Neste sentido, no processo de indicação para avaliação, tais profissionais assumem papel essencial, atuando como uma avaliação externa dos comportamentos associados à AH/SD (Pfeiffer & Blei, 2008). Destaca-se que, no Brasil, a maioria dos alunos que são atendidos em programas especiais é admitida por meio de indicações feitas por seus professores (Alencar et al., 2018; Farias, 2012; Farias & Wechsler, 2014/2018).
Embora entenda-se que esse tipo de AH/SD vem sendo valorizada desde os primeiros estudos na temática, ocasião em que tal fenômeno era compreendido como sinônimo exclusivo de alta inteligência, tal equívoco ainda se faz presente no senso comum (Tan et al., 2019). Identificada por meio de testes que avaliavam esse construto e, consequentemente, estimavam o quociente de inteligência (Sternberg & Kaufman, 2018), tal prática acabou por excluir muitos potenciais que não são adequadamente avaliados por esse tipo de instrumento, ou ainda pelas limitações das áreas em que estes avaliam. Outra dificuldade se ampara no fato de que os testes psicológicos se constituem como ferramentas de uso exclusivo do psicólogo, durante um processo de avaliação psicológica. O elevado tempo necessário para completar esse processo, bem como seu custo (Nakano, 2021) atua de modo a diminuir o número de identificações realizadas, resultando em uma subnotificação dos casos.
Uma possível solução envolve a consulta a professores, a qual apresenta, como principais vantagens, o baixo custo e redução de tempo para condução de uma primeira triagem dos casos potenciais. Esse profissional é capaz de avaliar a presença de comportamentos que “tipicamente” são apresentados por estudantes com AH/SD (Hertzog et al., 2018), de modo a ser consultado dentro de um processo de observação sistematizada dos estudantes (Cleveland, 2017). Neste sentido, as escalas de avaliação do professor têm sido utilizadas como um primeiro filtro dos alunos, de modo que, aqueles que forem indicados poderão ser encaminhados para uma avaliação mais completa (Nakano et al., 2016).
Reitera-se, com o parágrafo anterior, a importância da avaliação (como rastreio) feita pelo professor. Sem, com isso, desconhecer sua limitação. Se o professor avaliador não receber um treinamento a respeito sua participação neste rastreio pode ser enviesada e subjetiva. Entretanto, alicerçada na revisão de estudos, a credibilidade da participação desse profissional no processo de identificação de alunos superdotados tem sido ressaltada (Gagne, 1989; Guenther, 2006). Entretanto, apesar dessas limitações, a nomeação por parte dos professores tem servido, no contexto internacional, como importante ferramenta de rastreio para um melhor emprego e direcionamento de outros recursos voltados a esse público.
Dada a relevância de uma primeira identificação feita pelo professor, diferentes instrumentos podem ser encontrados no Brasil: a Triagem de Indicadores de Altas Habilidades/Superdotação (Nakano, 2021), a Escala de Identificação de Precocidade e Indicadores de AH/SD (Martins, 2020), Questionário para Identificação de Indicadores de AH/SD (Freitas & Pérez, 2012), Lista Base de Indicadores de Superdotação (Delou, 1987), Escala de Identificação de Dotação e Talento (Freitas et al., 2017), Guia de Observação Direta em Sala de Aula (Guenther, 2014). Além destes, o processo de adaptação de outros instrumentos internacionais também pode ser encontrado: Escala para Avaliação das Características Comportamentais dos Alunos com Habilidades Superiores de Renzulli (Rondini et al., 2022), Gifted Rating Scale (Nakano & Siqueira, 2012) e Escala Hope (Rondini et al., 2022).
A diferença entre os instrumentos citados e o aqui apresentado se ampara no fato de que, diferentemente dos demais, este se propõe a avaliar um tipo específico de AH/SD, de forma mais aprofundada e fazendo uso de diferentes áreas em que um alto potencial cognitivo pode se manifestar (Farias, 2012). Os demais, avaliam diferentes áreas, não sendo tão específico e cobrindo os comportamentos relacionados à superdotação intelectual de uma forma geral. Para diferenciar-se dos já existentes, os itens foram desenvolvidos com base nos 10 domínios amplos do modelo teórico sobre habilidades cognitivas conhecidas como Cattell-Horn-Carroll (CHC). Esse modelo consiste em uma nomenclatura padrão para discutir as habilidades cognitivas (McGill & Dombrowski, 2019), fornecendo uma taxonomia abrangente para as habilidades cognitivas atualmente conhecidas (McGrew, 2009), sendo amplamente reconhecido como um modelo que vai além da mensuração de um QI geral (McGrew et al., 2023).
O CHC constitui-se em um modelo hierárquico de inteligência, composto por três estratos (Figura 1). No primeiro deles estaria localizado um fator geral de inteligência, seguido por 10 fatores mais amplos e cerca de 60 fatores específicos, ligados às capacidades específicas avaliadas em testes de inteligência (Bryan & Mayer, 2020).
A escolha por esse modelo teórico como fundamento para a escala baseia-se na hipótese de que as habilidades cognitivas específicas que compõem a inteligência se mostram mais importantes do que a inteligência geral em si (Geisinger, 2019), sendo consideradas mais informativas do que o QI geral (Cormier et al., 2016). Além disso, a literatura tem demonstrado que o modelo CHC tem influenciado, nas últimas décadas, as teorias de inteligência, o desenvolvimento de testes para avaliação desse construto e as pesquisas na temática (McGrew, 2023).
Assim sendo, o presente estudo teve, como objetivo, relatar o processo de construção de uma escala de nomeação por professores de alunos com AH/SD do tipo intelectual, segundo o modelo teórico sobre inteligência conhecido como CHC. Mais especificamente, apresenta os resultados da busca pelas evidências de validade de conteúdo do instrumento.
Método
Participantes
Cinco juízes avaliadores que cursavam um programa de pós-graduação em Psicologia, especificamente na área de avaliação psicológica e construção de instrumento e, que conheciam o modelo CHC de inteligência. Destes, quatro eram do sexo feminino, sendo dois doutores, dois doutorandos e um especialista.
Instrumento
Escala para Nomeação de Dotação Intelectual - versão professor (ENDI-p): Escala do tipo rastreio para identificação de alunos com AH/SD a ser respondida pelo professor (Farias, 2012). Trata-se de um instrumento construído para ajudar o professor no processo de identificação de AH/SD na área intelectual de seus alunos matriculados no ensino fundamental. A versão aqui utilizada apresenta 80 itens, organizados segundo os dez domínios da CHC, sendo que cada domínio possui oito itens (quatro negativos e quatro positivos), como seguem:
1.Inteligência fluida (Gf): itens positivos: 1, 12, 31, 53 e itens negativos: 3, 10, 47, 73. Exemplo de item: “Apresenta facilidade ao lidar com conceitos abstratos”.
2.Inteligência cristalizada (Gc): itens positivos: 13, 20, 48, 43 e itens negativos: 23, 76, 68, 41. Exemplo de item: “Apresenta facilidade em lidar com conteúdo de conhecimento geral”.
3.Raciocínio matemático quantitativo (Gq): itens positivos: 58, 59, 26, 37 e itens negativos: 61, 7, 77 e 28. Exemplo de item: “Prefere exercícios que envolvam números”.
4.Memória em curto prazo (Gsm): itens positivos: 19, 18, 17, 16 e itens negativos: 40, 2, 75, 55. Exemplo de item: “Consegue lembrar-se do que foi aprendido recentemente”.
5.Armazenamento e recuperação da memória de longo prazo (Glr): itens positivos: 46, 21, 66, 67 e itens negativos: 5, 70, 39, 71. Exemplo de item: “Lembra-se de acontecimentos passados com facilidade”.
6.Processamento visual (Gv): itens positivos: 57, 54, 49, 32, itens negativos: 2, 4, 72, 14. Exemplo de item: “Percebe os espaços de modo coerente”.
7.Processamento auditivo (Ga): itens positivos: 44, 56, 45, 27 e itens negativos: 51, 69, 50, 9. Exemplo de item: “Identifica sons (ritmo) com facilidade”.
8.Rapidez de processamento e execução (Gs): itens positivos: 22, 29, 78, 33 e itens negativos: 65, 30, 62, 35. Exemplo de item: “Demonstra rapidez em compreender os fatos simples”.
9.Velocidade de reação e decisão (Gt): itens positivos: 79, 64, 15, 74 e itens negativos: 8, 63, 24, 36. Exemplo de item: “Toma decisões rapidamente perante assuntos complexos”.
10.Leitura e escrita (Grw): itens positivos: 42, 80, 38, 34 e itens negativos: 60, 52, 11, 6. Exemplo de item: “Usa vocabulário elaborado em suas redações”.
Procedimentos
Inicialmente o projeto foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa (CAAE 0124.0.147.000-11). Os juízes receberam um formulário com explicação sobre o objetivo da pesquisa, a tarefa a ser desempenhada por cada juiz e a definição de cada um dos 10 domínios, para embasar sua avaliação. A tarefa envolvia ler os itens e julgar qual dos domínios da CHC o item representava. Os formulários utilizados neste processo podem ser acessados em Farias (2012).
A fim de impedir que os itens fossem agrupados conforme as áreas que avaliam, eles foram organizados de modo randômico em uma lista. Os professores foram orientados a responder a ENDI-p avaliando seus alunos (ensino fundamental), independentemente da idade que estes alunos apresentavam na ocasião.
Análise de dados
Uma planilha com os resultados de cada juiz foi elaborada. Inicialmente a porcentagem de concordância para cada item e, posteriormente, para cada dimensão, foi calculada. Para interpretação dos resultados, adotou-se o critério de concordância de, ao menos, 80% entre os juízes para indicar a adequação e pertinência do item (Pasquali, 2010).
Aqueles itens que obtiveram tal valor foram considerados adequados e selecionados para compor a versão 2 do instrumento. Os que ficaram abaixo dessa porcentagem foram excluídos. Uma terceira possibilidade envolvia a realocação do item em outra área, diferente daquela para o qual foi originalmente desenvolvido, caso houvesse concordância dos juízes (acima de 80%) em outra área.
Foram tomados, como critérios para a intepretação dos resultados, a porcentagem de concordância, os valores definidos por Landis e Koch (1977): concordância quase perfeita, 0,80 a 1; concordância substancial, 0,60 a 0,80; concordância moderada, 0,40 a 0,60; concordância regular, 0,20 a 0,40; concordância discreta, 0 a 0,20. No tocante ao coeficiente kappa, as recomendações de Fleiss et al. (2003) foram seguidas: acima de 0,75 = concordância excelente; entre 0,40 e 0,75 = concordância satisfatória; abaixo de 0,40 = concordância insatisfatória.
Resultados
Inicialmente a porcentagem de concordância entre juízes foi estimada. De modo geral, os resultados mostraram a adequação dos itens aos domínios que se propõem a medir, segundo avaliação dos juízes (73,75% dos itens). Outros 21 itens (26,25%) não alcançaram a porcentagem de concordância desejada.
Considerando-se cada área, os itens que não se mostraram consensuais pertenciam aos domínios: inteligência fluída (n = 5), inteligência cristalizada (n = 5), raciocínio matemático quantitativo (n = 1), memória de curto prazo (n = 4), armazenamento e recuperação de memória em longo prazo (n = 1), rapidez de processamento e execução (n = 2), velocidade de reação e decisão (n = 2) e leitura/escrita (n = 1). As dimensões processamento visual e processamento auditivo apresentaram adequação de todos os seus itens. Os resultados são apresentados na Tabela 1.
Nota: Farias, 2012. *Itens excluídos da escala. **Itens que alcançaram concordância em outra dimensão.
Dois itens apresentaram concordância em outra dimensão, diferente da originalmente pensada. Foi o caso de dois itens: item 41 do domínio de inteligência cristalizada que foi realocado para o domínio inteligência fluida, item 2 do processamento visual que foi classificado como raciocínio matemático quantitativo. Tais itens foram realocados na dimensão indicada pelos juízes.
Deste modo, após a avaliação dos juízes, a segunda versão da escala ficou composta por 59 itens. Analisando-se os resultados de cada área, Gc com 2 itens (25% do número de itens iniciais), Glr, Gv e Grw com 7 itens cada (87,5%), Gf e Gsm com 4 itens (50%), Ga e Gq com 8 itens (100%), Gs e Gt com 6 itens cada (75%).
Em seguida, a estimativa do coeficiente Kappa foi conduzida, visando verificar a intensidade de concordância entre os avaliadores. Para isso o cruzamento entre as classificações feitas pelos juízes comparando-as com um “juiz ideal” (as dimensões originais dos itens) foi realizada. Estimou-se o número de itens classificados em cada um dos domínios, bem como o número e porcentagem de acerto nas classificações realizadas. Os resultados são apresentados na Tabela 2.
Nota: Inteligência fluida (Gf), Inteligência cristalizada (Gc), Raciocínio matemático quantitativo (Gq), Memória em curto prazo (Gsm), Armazenamento e recuperação da memória de longo prazo (Glr), Processamento visual (Gv), Processamento auditivo (Ga), Rapidez de processamento e execução (Gs), Velocidade de reação e decisão (Gt), Leitura e escrita (Grw).
Os resultados demonstraram que todos os juízes apresentaram concordância satisfatória de acordo com os valores estabelecidos pela literatura (Fleiss et al., 2003). Quatro juízes (juiz 2, 3, 4 e 5) obtiveram uma concordância considerada excelente, ao passo que o juiz 1 alcançou uma concordância considerada satisfatória. De modo geral, o juiz que apresentou maior porcentagem de acertos, considerando-se todas as áreas, foi o juiz 4, que apresentou concordância igual ou acima de 87,5% em oito das dez áreas. Por outro lado, o juiz que apresentou pior desempenho foi o juiz 1, cuja porcentagem de acerto foi superior a tal valor somente em duas áreas.
Se analisados separadamente, vê-se que em cada dimensão teve-se acerto acima de 87,5% no julgamento dos juízes foi raciocínio matemático quantitativo (cinco juízes) e processamento auditivo (cinco juízes). Por outro lado, as áreas de inteligência fluida (somente um juiz) e velocidade de reação e decisão (dois juízes) agrupavam os itens que tiveram menor porcentagem de acerto por parte dos juízes indicando, possivelmente, mais dúvidas.
Discussão
Após o processo de seleção do modelo teórico que embasaria os itens da escala para identificação de indicadores de AHSD acadêmica, tendo-se selecionado o modelo teórico mais completo e atual de inteligência, o modelo CHC, os itens da escala foram construídos. Neste sentido, foram criados, inicialmente, oito itens para cada uma das áreas que compõem as dimensões amplas do modelo.
Posteriormente, a busca por evidências de validade de construto da escala foi realizada, por meio de dois diferentes métodos: porcentagem de concordância (que julga a qualidade dos itens segundo especialistas) e coeficiente Kappa (que julga a qualificação dos juízes). A análise dos itens, por juízes especialistas na área de avaliação psicológica, inteligência ou construção de instrumento, indicou a adequação da maior parte deles (73,25%).
Essa etapa se mostrou fundamental para auxiliar as pesquisadoras na seleção dos itens que se mostraram adequadas, bem como a exclusão daqueles que, na avaliação dos juízes, não se mostraram claros, de modo que não alcançaram o valor de concordância esperado. Chama atenção o fato de que duas áreas, relacionadas ao processamento visual e auditivo, alcançaram concordância dos juízes em todos os seus itens, de modo a se pensar que tanto a definição apresentada para tais domínios, bem como os itens criados para representar tais habilidades cognitivas, parecem claros e adequados.
Outras quatro áreas perderam somente um item (raciocínio matemático quantitativo, processamento visual, armazenamento e recuperação de memória em longo prazo e leitura e escrita), de modo que se mostraram representadas nos itens que foram selecionados. Desse modo, continuaram apresentando um número adequado de itens no instrumento, de modo a sugerir dificuldades em itens específicos pertencentes a esses domínios.
Por outro lado, as áreas de inteligência fluída e cristalizada foram as que apresentaram maiores perdas restando apenas quatro e dois itens, respectivamente. A inteligência cristalizada é aquela capacidade que permite a resolução de problemas tendo como base o conhecimento adquirido e a experiência passada, ao passo que a inteligência fluída se refere à capacidade de resolver problemas novos, com base no pensamento abstrato e reconhecimento de padrões (Simpson-Kent et al., 2020). Interessantemente, convém destacar que tanto ambos os tipos de inteligência são os mais comumente avaliados nos modelos de inteligência e nos testes que medem tal construto, dada a ideia de que esses dois tipos podem ser considerados habilidades mais elementares da inteligência (Horn, 1972). Diante disso, esperava-se que fossem áreas que os juízes não enfrentariam dificuldades, apresentando melhor desempenho.
No entanto, no estudo aqui apresentado, foram as que alcançaram piores resultados, não correspondendo às expectativas, visto que os avaliadores tiveram maior dificuldade em julgar corretamente seus itens. Diante de tal situação torna-se necessário avaliar se o baixo índice de concordância em tais áreas ocorreu devido a dificuldades no conteúdo expresso pelos itens, pela inadequação da definição fornecida como base para o julgamento ou a ausência de domínio dos juízes sobre tais dimensões. Estudos futuros voltados à ampliação dos itens dessa área, melhor definição a ser oferecida ais juízes, como bem itens mais precisos poderão ajudar a ampliar o número de itens, a fim de igualar aos que foram selecionados nas demais dimensões. Somente a partir dessa revisão é que a escala poderá ter, de forma mais equilibrada, a avaliação dos dez domínios do modelo CHC que se propõe a seguir.
O processo de construção do instrumento para, posteriormente, ser utilizado pelo professor (que responderá sobre seus alunos matriculados no ensino fundamental) se faz importante, visto que, este profissional convive com o discente durante uma parte considerável do dia, em período / ano letivo. Justamente por isso, uma vez treinado, será capaz de observar (com base na ciência e, diminuindo o viés subjetivo) comportamentos dos alunos, indicando pontos fortes e fracos. Os pontos fortes, se entendidos como provável AH/SD podem ser desenvolvidos e refletir em desempenho de excelência, independentes da área. Já os pontos fracos também merecem receber atenção especial, vislumbrando contribuir com o desempenho geral da pessoa, de modo a embasar, também, adequações curriculares que possam ser feitas para melhorar o aprendizado daquele tipo de inteligência, e sua relação com a prática do dia a dia. Tal situação geralmente favorece o envolvimento e interesse dos alunos.
Considerações finais
O estudo consiste na apresentação da proposta de um novo instrumento para identificação de um tipo específico de AH/SD (do tipo intelectual), baseado no modelo mais amplo e reconhecido de inteligência, o modelo CHC. A escolha desse modelo como fundamentação teórica para a escala tem, como vantagem, a identificação de comportamentos relacionados a diferentes tipos de inteligência, cujos potenciais podem se mostrar elevados, de modo a caracterizar uma possível superdotação.
É importante ressaltar que os resultados aqui apresentados se constituem em um estudo inicial de investigação das qualidades psicométricas do instrumento em desenvolvimento, limitando-se à investigação das evidências de validade de construto. Mais especificamente, possibilitou investigar a clareza, representatividade e relevância dos itens desenvolvidos para uma escala de triagem de AH/SD, a ser respondida pelo professor sobre seus alunos no ensino fundamental.
A fim de buscar refinamento para a ENDI-p, outros estudos voltados à investigação das suas qualidades psicométricas são necessários, podendo-se citar outras fontes de evidências de validade (por meio da estrutura interna, análise de itens ou relação com variáveis externas), bem como da sua precisão.
Apesar dos resultados favoráveis aqui apresentados, algumas limitações do estudo podem ser citadas. Dentre elas, a redução importante no número de itens voltados à avaliação da inteligência fluida e cristalizada, de modo que novos itens para avaliar essas áreas precisarão ser criados. Tal ação pode envolver a reformulação dos itens que foram excluídos, a redação de novos itens, melhoria na definição da área e, posteriormente, a condução de novo estudo com outros juízes especialistas na área de inteligência. No entanto, é importante ressaltar que os itens pertencentes à outras oito dimensões apresentaram resultados adequados, de modo a motivar os pesquisadores na continuidade dos estudos com a escala.