1. Primeiras palavras
Nos últimos anos uma agenda conservadora e autoritária tem expandido sua zona de poder a partir de clamores marcados pela volta da «moral e dos bons costumes».2 É inegável que parte desta crise política, econômica e social está interconectada aos efeitos da etapa neoliberal do capitalismo. Este último, não só vem alterando as formas da produção econômica, como também, amplificando noções culturais que inibem a possibilidade da solidariedade como um modus operandi das instituições e das subjetividades de um modo geral.
É sob este contexto histórico que se torna necessário, mais uma vez, refletir sobre processos históricos que se relacionam a partir de continuidades e descontinuidades em nosso passado recente. Certamente, não é possível dizer que as histórias da América Latina são marcadas pela estabilidade e ausência de conflitos pelos diversos personagens que ocupam este espaço. Situar, portanto os elementos autoritários desta sociedade é viabilizar um debate público sobre o presente e passado. Ou seja, sobre as permanências e as transformações sociais que viabilizam o retorno de discursos em busca de uma determinada ordem.
Algumas das vozes que clamam pela volta desta «velha moral»3, estão conectadas em um processo político que exclui a da formação da cidadania plena das pessoas lgbtqia+4. Embora desejássemos que estes clamores fossem inéditos, eles não são. Há um sem-número de contradições que atravessam as histórias das sexualidades e identidades de gênero dissidentes à heteronorma e analisar este passado pode ampliar os quadros interpretativos sobre como chegamos, deste modo, até aqui.
Neste sentido, investigamos os combates pela moral na década de 1970 na Argentina e no Brasil à partir do uso da documentação da revista Somos e do jornal Lampião da Esquina. A revista foi criada pela Frente de Liberação Homossexual como uma estratégia política de ampliação dos desejos da libertação homossexual. somos, emergia em 1973, em um contexto de consolidação da organização viabilizada pela euforia política e social resultada do fim da ditadura de Juan Carlos Onganía (1966-1970).
Isto significa, que é nosso interesse verificar como a partir destes periódicos foram denunciadas as políticas construídas pela moral sexual e tornar visíveis os elementos mobilizados para uma outra moral sobre o sexo. De modo geral, este artigo deixa evidente que estes são alguns dos pontos possíveis de serem observados em cada publicação sendo, por vezes, limitados em representar de modo mais amplo outros elementos que recortam a formação de uma política de repressão sobre as homossexualidades na Argentina e no Brasil.
Ao longo de 8 números, a revista trouxe a público às denúncias sobre a perseguição contra homossexuais além de também propor uma crítica radical a moral política sobre o sexo e a sexualidade do período. Sendo publicada de modo irregular entre 1973 e 1976 a revista criada a partir da prensa manual, com colagens e ilustrações simples, informou a escalada autoritária no país além ter demonstrado as articulações políticas e formações de identidades homossexuais naquele período.
Já o Lampião da Esquina, produzida por um grupo de jornalistas na cidade do Rio de Janeiro, foi construído a partir da reunião de intelectuais, artistas e jornalistas, para promover um debate sobre a representação dos homossexuais e também de outras minorias sociais perseguidas pela ditadura. Mantendo o discurso de que estas minorias não cabiam também dentro do discurso da oposição tradicional ao regime -as esquerdas de diferentes percepções do marxismo-, o jornal publicado a partir da prensa industrial, alcançou altos patamares de circulação tendo sido publicado entre 1978 e 1981, 37 edições mensais.
Partindo deste corpus documental realizamos um debate sobre a construção da política moral do sexo em relação as homossexualidades masculinas nestes dois contextos. Este artigo utiliza esta documentação para compreender às raízes dos discursos, leis e práticas sociais contra homossexuais dentro destes regimes. Neste sentido, na seção «Entre ditaduras, autoritarismos e novos personagens sociais» realizamos uma síntese sobre as aproximações do contexto argentino e brasileiro. Já na terceira seção, parte de maior fôlego deste artigo, utilizamos estes jornais para articular como esta política sexual estabeleceu-se ao longo do século xx a partir de códigos de conduta presentes nas legislações de ambos os países.
Para realizar tal movimento analítico nos concentramos nas denúncias apontadas pelos dois periódicos para investigar as raízes de distintas violências. E, por último, destacamos algumas possibilidades de contestação realizada também nas páginas destes periódicos. Compreendendo o espaço da imprensa como um lugar de disputa política, a Frente de Liberação Homossexual Argentina e os homossexuais organizados de Lampião da Esquina expuseram de distintas formas uma crítica à moral vigente. Nesta seção não esgotamos o debate sobre estas estratégias, mas pontuamos parte de sua presença naquele período.
2. Entre ditaduras, autoritarismos e novos personagens sociais
Os movimentos homossexuais da Argentina e Brasil nasceram em um período marcado pelo forte autoritarismo. Seja no interregno democrático argentino, seja na ditadura militar brasileira, estes movimentos tiveram de lidar com a violência cotidiana. Esta violência é fruto de um conjunto de elementos que se estruturam sob a tutela da palavra dos ideais de «ordem» presentes tanto na Junta Militar e nas Forças Armadas.
Entretanto, este autoritarismo não está descolado de outros casos da América Latina, nem tão pouco do contexto global marcado pelos esforços de criminalização e marginalização das sexualidades dissidentes. Pelo contrário, é sob o contexto global viabilizado pela Guerra Fria que as Doutrinas de Segurança Nacional vão ser estabelecidas como norteadores de guerra e contenção contra ideais das esquerdas comunistas pela América Latina.5
Partindo de processos e eventos históricos distintos, a formação da Doutrina de Segurança Nacional (dsn) nestes dois países possui algumas diferenças fundamentais. A «Revolução argentina» de Juan Carlos Onganía (1966-1970), os governos de Alejandro Augstín Lanusse (1971-1973) e de Héctor Campora (1973), e o peronismo marcado pelas presidências de Juan Peron (1973-1974) e María Estela Martinez de Perón (1973-1976) marcaram o processo que levou à consolidação da dsn em 1976 com uma das ditaduras mais violentas de toda a América Latina (Fausto e Devoto, 2004). Neste caso, as descontinuidades deste processo levaram a viabilidade do surgimento de vozes contestatórias que se inserem nos períodos de fragilidade dos autoritarismos.
O grupo Nuestro Mundo, primeiro grupo homossexuais militantes da Argentina, foi fundado em 1969 a partir da euforia social causada pelos desgastes da Revolução Argentina.6 Este grupo é em grande medida, parte dos reflexos de mudanças culturais e políticas profundas que naquele mesmo período tinham levado à emergência de movimentos populares como o Cordobazo.7
Já no Brasil, a consolidação da dsn se deu a partir da estruturação e estabelecimento de uma legislação autoritária denominada por um conjunto de leis que tinham poder legal maior que a própria constituição do país. Os chamados Atos Institucionais apresentaram pouco a pouco uma escalada do grau de autoritarismo da ditadura militar. O longo dos 21 anos de ditadura militar, foram promulgados pelo menos 17 Atos Institucionais. Dentre eles, destaca-se o Ato Institucional número 5 mais conhecido como AI-5 (Netto, 2014).
Naquele contexto, a emenda revogava os direitos de manifestação política, o fim do direito ao habeas corpus e também proibia quaisquer manifestações de caráter político (Gomes e Lena, 2014). O contexto de sua publicação, dezembro de 1968, estava marcado pela ascensão de um movimento cultural e político que contestava o autoritarismo dos militares a partir do golpe em 1964. Portanto, é possível dizer que, embora não houvesse processos profundos de distensão política como na Argentina, o Brasil também foi marcado por um processo de escalada autoritária via ditadura militar.
O Movimento Homossexual Brasileiro, viria a organizar-se dez anos depois quando as estruturas autoritárias e a formação de unidade do regime já estavam ameaçadas. Em um contexto de enfraquecimento da ditadura, o jornal Lampião da Esquina e o grupo somos de São Paulo surgiram como pioneiros do ativismo homossexual no Brasil. O período de emergência deste movimento se dá no mesmo ano em que o AI-5 era revogado e uma abertura política começava a ser desenhada (Netto, 2014).8
Até aqui exploramos a construção de uma legislação, ou mecanismos de punição, pela visibilidade da homossexualidade. Não há de se espantar a ausência das experiências lésbicas dentro da construção desta legislação punitiva. Isto não quer dizer que não tenha existido mecanismos repressivos que entrecruzavam as experiências de mulheres lésbicas e de homossexuais masculinos.
Lampião da Esquina e somos, tocaram timidamente nas questões sobre as experiências lésbicas. Esta, sem sombra de dúvidas, é uma das questões internas ao processo de formação do movimento homossexual que mais tarde viria a ser ostensivamente criticado por um movimento lésbico que se contrapunha as políticas discriminatórias, de cunho machista, dentro do próprio movimento homossexual.
No caso do Brasil deram origem ao Grupo de Ação Lésbico Feminista que logo se distanciou do grupo somos, ganhando mais autonomia e publicando um dos primeiros periódicos lésbicos da América Latina, o ChanacomChana.9 Em Ações Lésbicas, Marisa Fernandes (2018) retrata alguns destes enfrentamentos. A ativista e intelectual recupera que naquele período as lésbicas «mal conseguiam falar, e quando lhes davam a oportunidade, era sempre para facilitar que os gays superassem os preconceitos que tinham contra as lésbicas» (2018, p. 92).
3. Inventando uma política sexual: leis e códigos de punição
Para compreender as políticas sexuais destes países, é preciso ter em mente que os códigos sociais de conduta, a legislação e os ideais contra sexualidades e identidades de gênero não são uma invenção dos autoritarismos das décadas de 1970 e 1980. É preciso deixar evidente que a construção de ferramentas de regulação, interdição, censura e sexo-negatividades são um reflexo direto de um longo processo de produção do dispositivo de sexualidade também ao longo do século xx.
Entendemos que, de modo geral, há a formação de uma moral sexual do regime e uma moral sexual combatida por estes movimentos homossexuais. Tomamos como base o trabalho de Gayle Rubin (2017) para compreender os elementos que recortam questões sobre o sexo e a sexualidade. De acordo com esta posição teórica há uma formação da negatividade-sexual no ocidente. Isto não quer dizer que estas histórias sejam permanentemente entendidas como repressivas, mas que o sexo é compreendido como um elemento perigoso à estas sociedades.
Isto significa compreender que o sexo é significado de formas distintas a partir da formação de discursos e práticas que o regulam. A racionalidade deste processo é indicada, segundo Rubin (2017, p. 87), a partir da formação de «sistemas de juízo sexual -religioso, psicológico, feminista ou socialista». É possível então compreender que há uma seleção a partir da regulação destes sistemas, daquilo que é o «bom» e o «mau» sexo e os significados que constituem a seleção destes é que indicam o que é a «boa» e a «má» prática ou ação moral.
Neste sentido, vejamos uma das primeiras denúncias de repressão a homossexuais na Argentina a partir de um trecho do primeiro número de Somos, revista produzida pela Frente de Liberação Homossexual (flh) Argentina durante o seu apogeu:
En los últimos meses se ha desatado con toda intensidad una campaña de represión a nuestra comunidade, que se integra a nível nacional con la comunidade, que se, integra a nível nacional com la ofensiva de los sectores más reacionários. Frente a ello creemos conveniente recordar algunas normas mínimas de seguridade. De qué se nos puedo acusar: Para reprimirnos la Policía apela a los Edictos Policiales antihomosexuales. Estos fueron dictados por funcionários policiales en distintas épocas sin passar jamás por la aprobación del Parlamento. Es importante aclarar que ni la Constituición ni el Código Penal estabelecen pena alguna contra la homosexualidad en si misma. Los edictos se refieren a: a) Reuniones privadas de homosexuales b) Estar en la vía pública acompanhado de un menor de edad. Ambas son consideradas contravenciones penadas com 30 días de cárcel, no redimibles por multa. Dificilmente se hace uso de ellos; el Edicto que más frecuentemente se aplica es el 2º H, que trata de «incitación al acto carnal en la vía pública», utilizado como pretexto para encarcelar por 30 dias a prostitutas y homosexuales, ya que jamás se aplica a los varones heterosexuales que piropean en público, por más brutales que sean. En nuestra Capital, los homosexuales contraventores son remitidos al penal de Villa Devoto, a um pabellón especial. (Somos, 1, 1973, p. 11)
O trecho citado acima nos possibilita compreender parte da moral política sobre o sexo que orientou a atuação da polícia, e que respaldava as prisões de homossexuais. Neste sentido é possível perceber que esta legislação sobre o sexo consistia não só na regulação da sexualidade a partir dos ambientes públicos e privados. É interessante notar que estas reportagens e textos da revista não possuíam autoria. Deste modo é evidente que um clima de insegurança contornava as experiências destes sujeitos.
Como já indicamos anteriormente em outros trabalhos.10 Os Edictos Policiales, e principalmente o 2º H, datam de um contexto histórico anterior. É na década de 1930, a partir da elaboração da defesa da família como elemento articulador da identidade nacional, que uma política contra a imoralidade é estabelecida. Além disso, é esse o momento em que os primeiros elementos sobre a “boa moral” são construídos.
Uma regulação mais específica sobre a forma da gestão das vidas é parte fundamental do dispositivo da sexualidade na Argentina. Naquele período, década de 1930, houve uma incorporação populista.11 O peronismo daqueles anos viu na defesa da família e dos valores pela tradição uma forma de rearranjar as relações políticas entre diferentes setores da política a partir de um esforço evidente na elaboração de um discurso pela saúde pública e pela influência da Igreja Católica em diferentes setores, mas, sobretudo, no ambiente educacional (Ben e Acha, 2005).
De acordo com Patrício Simonetto (2017, p. 35) estes Edictos Policiales que «penaban las práticas homosexuales costituían una abigarrada trama punitiva que, sancionada por regimes de facto, continuaran vigentes en gobiernos democráticos». Esta forma punitiva sobre as sexualidades dissidentes acompanha, em alguma medida, as transformações socioculturais daquele sexo. É evidente que, no contexto da década de 1970, essa moral foi criticada e as relações de tensão amplificadas seja por fatores externos às questões de sexualidades, seja a partir da ação política do flh e da ampliação dos espaços de sociabilidade homossexuais referentes à euforia cultural e política do final da década de 1960.
Já no Brasil, a formação de uma moral política sobre o sexo também data de um contexto anterior ao da formação de Lampião da Esquina. Mas é a partir de sua primeira matéria que é possível traçar os modos como as políticas sexuais foram evidenciadas naquele contexto. É possível inferir, assim como Simonetto (2017), que a criação de uma moral sobre o sexo e a punição pelo sexo desviante aos ideais da família não foram uma exclusividade argentina, manifestando-se também em outros países da América Latina.
Vejamos o caso de duas travestis entrevistadas para a edição de número 19, publicada em dezembro de 1979 pelo jornal brasileiro:
Tatiana -Eu posso contar o caso de um flagrante que aconteceu comigo, por suborno uma coisa que eu nem sabia da existência. Eu só sei que cheguei na delegacia e assinei papel, papel, papel... Flávia -É que naquele tempo eles pegavam a gente na avenida e a gente dava 50 cruzeiros, 100 cruzeiros e ia embora pra casa né? Tatiana -Estava eu e uma amiga, demos 50 cada uma, e sabe onde a gente foi parar? Na Casa de Detenção. Fiquei passada! Só aí eu fiquei sabendo que existia uma coisa chamada «suborno à autoridade»: porque normalmente a gente dá dinheiro, mas eles acham pouco, então vira flagrante. Flávia -Uma vez me pegaram na Avenida República do Líbano, tiraram 50 cruzeiros e me soltaram lá em Moeda. A Garra faz isso. Além de tirar o dinheiro, leva a gente e solta. (Lampião da Esquina, 1979, 19, p. 6, grifos do autor).
A publicação sem autoria, com o título de Dois travestis, uma advogada: três depoimentos vivos sobre o sufoco (Lampião da Esquina, 1979,)12, conta sobre o cotidiano das travestis levantando diferentes temas ao longo de suas experiências, desde discussões familiares até à expulsão de casa e as experiências com o trabalho da prostituição. As travestis Tatiana e Flávia são entrevistadas, ao que tudo indica, em uma noite do mês de novembro, na Rua Rego Freitas, na cidade de São Paulo, por Darcy Penteado, Alice Soares, Glauco Matoso e Jorge Schwartz.13 Soares era a advogada convidada, sua função era trazer uma informação sobre os direitos e a legislação vigente. Darcy Penteado e Glauco Matoso faziam parte dos Senhores Conselheiros de Lampião da Esquina. 14
Flávia havia chegado em São Paulo em 1973 após fugir das terapias de cura sexual que havia sofrido no interior do estado em Itatiba. Segundo a entrevista, «eles me davam drogas, choque, medicação e aí eu fiquei pirada» (Lampião da Esquina, 1979, 19, p. 6,). Flavia já havia trabalhado como doméstica, office-boy e logo começou a prostituir-se quando se viu sem possibilidade manter-se com estes empregos. Tatiana, a outra entrevistada, não quis se apresentar.
No contexto do trecho citado acima, podemos observar algumas das formas de atuação da regulação dos corpos, assim como propõe também a legislação argentina. No contexto brasileiro, chantagens e pagamentos de propinas foram muito utilizadas contra travestis e homossexuais por manter relações sexuais em espaços como os banheiros públicos.15 Aquelas e aqueles que tinham dinheiro e acesso podiam eventualmente escapar da prisão ou negociar a liberdade com a utilização do sexo e do dinheiro com os policiais.
A Casa de Detenção, mencionada pelas entrevistadas era ocupada com frequência por travestis, homossexuais, prostitutas e dependentes químicos. De acordo com Tatiana, era frequente que houvesse travestis presas por quinze a vinte dias. As prisões e as chantagens encontravam espaço em uma legislação que não proibia nem a transexualidade, nem tampouco a homossexualidade.
Ao analisar questões acerca da política sexual na ditadura brasileira, Renan Quinalha (2017) nos fornece algumas análises que demonstram algumas especificidades. Para o autor «a prática policial criminalizava, assim, as condutas que a legislação não definia como delitos penais» (2017, p. 173). Isto quer dizer que a legislação sobre as sexualidades desviantes era esparsa, sendo aplicada à medida que o contexto político e social pedia. Quanto maior a crise, ou quanto maior a interposição das resistências e mais forte era o caráter repressivo da ditadura.16
Era sob a tutela da Lei de Vadiagem que estas prisões eram em sua maioria tipificadas. Como destaca Rafael Ocanha (2014, p. 156), «(...) desde 1924, a Delegacia de Costumes utilizava a Lei de Vadiagem para prender quem realizasse práticas sexuais que não agradassem a política». No sentido literal da lei esperava-se que todo cidadão tivesse a carteira de trabalho assinada como comprovação de que este era não só um cidadão de bem como também um exímio trabalhador. No fim das contas, a lei acabou sendo usada como uma espécie de instrumentalização da regulação de corpos nos espaços públicos.
É neste sentido que podemos ver aqui algumas especificidades. Do ponto de vista legislativo, a diferença entre a Lei de Vadiagem e também o 2º H dos Edictos Policiales, é a do acesso a vida privada. Enquanto a lei brasileira abria espaço para a punição da exibição de amores dissidentes nos espaços públicos, os Edictos viabilizavam a punição nestes mesmos espaços e também no espaço privado. Entretanto, não é possível dizer que a repressão à homossexuais e se deu somente em espaços públicos no Brasil.
Por fim, é digno também ressaltar o impacto do contexto da Guerra Fria na construção de uma mentalidade antihomossexual dentro da Doutrina de Segurança Nacional.
As forças de segurança, portanto monitoraram e policiaram a homossexualidade por várias razões nas duas décadas após 1964. Seguindo tendências históricas, nacionais e internacionais ideólogos da segurança nos anos 1960 teorizavam o homossexo como parte de uma série de ameaças degenerativas à segurança nacional anticomunista. Nos anos finais do regime estas ansiedades sobre a homossexualidade chocaram-se e recombinaram com a oposição reacionária à abertura dos movimentos sociais em si. Polícias políticas e a comunidade de informações assistiram com inquietação estudada e predeterminada às tentativas de se forjarem alianças entre a oposição burguesa ao regime (a abi e oab), a esquerda tradicional e nova, os movimentos negros e o índio e particularmente feministas e ativistas do movimento gay. No final dos anos 1970, policiais retinham interpretações antigas, médico-legais do desejo homossexual - entretanto, eles reagiram às novas realidades da política de identidade. Nas duas perspectivas, homossexualidade foi associada com ameaças ao estado, à sociedade e a segurança nacional, que augurariam dissolução social e no contexto da Guerra Fria, o triunfo da subversão comunista. (Cowan, 2014, p. 29)
A Doutrina de Segurança Nacional no Brasil, articulou a guerra a subversão compreendendo então que a homossexualidade era também parte do desvio proporcionado por uma possível política de expansão do comunismo. A análise de Benjamin Cowan não nos viabiliza compreender o contexto argentino, mas possibilita conectar e inferir algumas questões que podem ter acrescido a discriminação e repressão contra homossexuais e travestis ainda que a dsn não estivesse, entre 1973-1976, consolidada.
A percepção da qualidade da vilania da homossexualidade masculina está também atrelada aos elementos que constituem os saber-poder sobre o sexo e as identidades sexuais. Neste ponto, a soma das interpretações de uma medicina sanitarista que vê na homossexualidade uma doença social, viabilizou junto dos valores judaico-cristãos a criação do sistema de juízo sexual daquele período em ambos os contextos analisados. Esta é, sem sombra de dúvidas, uma manifestação das transformações descontínuas da formação e atuação dos dispositivos de sexualidade em cada um dos países.
É importante destacar que o processo de institucionalização que passam a punir as homossexualidades estão baseados em percepções que datam ainda do início do século e que se aproximam da higienização social como destacaram Trevisan (2018), Figari (2012) e Green (2019) quando se interpelam as experiências brasileiras. Assim como o Brasil, a Argentina também vai passar por um período de incorporação da percepção de invertido e invertida sexual. Tais narrativas são observadas a partir das experiências de mulheres lésbicas levantadas por Figari e Gemetro (2009) e na medicalização das sexualidades dissidentes presente na análise Jorge Salessi (1995).
Neste sentido, uma das bases de sustentação deste processo de legalização da repressão às sexualidades e identidades de gênero dissidentes está na percepção da existência de um modelo de representação do sujeito homossexual. Em outros trabalhos investigamos como a articulação da percepção da inversão sexual tornou-se uma das bases da compreensão de inadequação de sujeitos. A inversão pode ser entendida a partir da ideia de assimetria entre gênero -entendido como expectativa social a partir da definição da ideia de homem e mulher- e sexualidade a partir do desejo.
Por último, vale ressaltar que estas políticas estiveram também atreladas às outras formas de censura e repressão política. No caso da Argentina, a escalada do autoritarismo naquele ano fez com a Frente da Libertação Homossexual Argentina fosse ameaçada um sem-número de vezes. A última e a mais implacável se dava por esta associação entre homossexualidade masculina e comunismo de uma organização paraestatal. A Triple A, ou a Aliança Anticomunista Argentina é a manifestação completa desta conexão.
Com a morte de Juan Domingo Perón em 1974, as disputas políticas se intensificaram. O governo sucessor de Isabelita Perón (1974-1976) estava mergulhado nas contradições e desgastes da relação entre o peronismo e as Forças Armadas. Em 1975, El Caudillo, um volante produzido pela Triple A, era divulgado por Buenos Aires com o título único de Acabar con los homosexuales:
Hay que acabar con los homosexuales. Tenemos que crear brigadas callejeras que salgan a recorrer los barrios de las ciudades para que den caza a estos sujetos vestidos como mujeres, hablando como mujeres, pensando como mujeres. Cortarles el pelo en la calle o raparlos y dejarlos atados a los árboles con leyendas exploratorias y didácticas. No queremos más homosexuales. Que se vayan todos a «los países amigos». Los que ambicionen en esta vida llegar a ser presidentes del Club Boca Juniors o los que se infiltren en la difusión con canciones para «expeditiva y rápida de poner un pueblo de rodillas es enviciarlo y corromperlo. Una vez consigue esto, todo es más fácil. No hace muy inteligente para darse cuenta». El marxismo ha utilizado y utiliza a la homosexualidad como un instrumento de su penetración y un aliado de su objetivo. (El Caudillo, 1975)
O trecho acima nos possibilita conectar os elementos que povoam o imaginário do processo de formação da Doutrina de Segurança Nacional. O contexto de distribuição deste material se dá pouco tempo antes da formação de uma nova ditadura no país. O que a publicação da Triple A garante é que a homossexualidade masculina é uma ferramenta destruidora do ponto fundamental da sociedade argentina, a família. E, como uma técnica de guerra - em contexto da Guerra Fria e da escalada do autoritarismo no país - é preciso eliminar os inimigos subversivos. Por fim, é a partir da soma destas ameaças que a Frente de Liberação Homossexual Argentina irá dissolver-se com o autoexílio de boa parte de seus ex-militantes.17
Acabar con los homosexuales, é também parte de um jogo político produzido em todo o ano de 1975. Como nos assegura Simonetto (2017), Wild e Klocker (2018), é perceptível que as ações de denúncias da flh a partir de somos tenham despertado uma ação violenta a partir de diferentes modos de ameaça à organização. O que se observa neste sentido é a formação de um discurso político autoritário que combina todos os fatores presentes na elaboração de uma moral política sobre o sexo que gradualmente tornava-se mais opressora.
O jogo político produzido a partir da relação entre Triple A e flh nos faz pensar também nas distintas formas com as quais os integrantes de Lampião da Esquina foram sendo gradualmente reprimidos por uma legislação completar à Lei da Vadiagem. Se esta inibia a ação e a reunião das sujeitas e sujeitos marginais. As disputas por representação da homossexualidade masculina eram também visualizadas dentro da imprensa brasileira.
Ao lançar um jornal estruturado a partir de uma dinâmica de respeitabilidade que se afastava à imprensa homossexual da década de 1960 no Brasil, Lampião da Esquina tinha como proposta geral ampliar os quadros de representação sobre a homossexualidade masculina. Esta visão, em alguma medida, será discutida na próxima seção deste trabalho. O que importa agora é compreender que a legislação sobre o sexo e as representações acerca das homossexualidades, apresentaram-se de forma complementar.
Ao longo de seu primeiro ano de existência Lampião da Esquina sofreu um inquérito policial. Antônio Crysóstomo, Francisco Bittencourt, Aguinaldo Silva, Cóvis Marques e Adão Acosta foram convocados a comparecer em 2 de abril de 1979 ao Departamento da Polícia Federal, no Rio de Janeiro, para prestar esclarecimentos ao inquérito de número 25/78. Ao longo de suas edições: 8, 9, 12, 13, e 18; é possível observar a morosidade do processo que se iniciou em agosto de 1978 e acabou sendo arquivado em 1979.
A motivação do inquérito era a aplicação da Lei de Imprensa. Conhecida como a Lei número 5250, Lampião da Esquina era acusado de ofender a «moral e os bons costumes». E uma outra ocasião, à do processo de um jornalista que também viabilizava um debate sobre a homossexualidade, Lampião da Esquina esclarecia as definições da lei a partir do artigo 17, utilizado contra o jornalista Celso Curi18 em 1976 e posteriormente com o Lampião.
De acordo com o jornal, artigo 17 define que ofender a moral e os bons costumes pode causar pena de «detenção de 3(três) meses a 1(um) ano e multa de 1(um) a 20(vinte) salários-mínimos» (Lampião da Esquina, 1978, 0, p. 6). Uma das motivações para o fim da publicação do jornal se deu, em alguma medida, pelo desgastante processo. Durante o inquérito, os editores tiveram de apresentar os cadernos de finanças do periódico e também que comparecer um sem-número de vezes ao Departamento da Polícia Federal.
Ao discutir parte desta legislação, Renan Quinalha (2017) defende que em parte, Lampião da Esquina tem seu processo arquivado pelos desgastes gerados pelo próprio contexto da ditadura no Brasil. Com o aparato repressivo em crise, não havia a formação de uma unidade quanto aos aspectos da censura. Deste modo o judiciário atuava de forma ambígua produzindo, por vezes, alguma vitória às questões pertinentes a censura relacionada à moral.
3. Somos e Lampião da Esquina contra os bons costumes
Na seção anterior, discutimos os efeitos e traçamos algumas genealogias da formação de uma moral política sobre o sexo, que não só afetou as experiências de sujeitos e sujeitas que viveram suas identidades sexuais e de gênero dissidentes como pressionou o gueto homossexual a reivindicar formas de resistências que viabilizassem as possibilidades de encontros e sociabilidades.
Além disso, destacamos que as origens da repressão contra este grupo social não é uma exclusividade dos contextos das décadas de 1960 e 1970, mas sim, um processo histórico marcado por repressão e negociações acerca desta moral. Neste sentido, somos e Lampião da Esquina cumprem um papel disruptivo que desafia a política moral sobre o sexo e propõe formas múltiplas de existência digna.
Ambos os periódicos nos viabilizam a análise de distintas propostas e estratégias de combate à boa moral e os bons costumes. Uma delas pode ser evidenciada a partir do humor como uma forma de contestação política. Em fevereiro de 1974 o flh publicava um teste de (i)moralidade: (Figura 1)
No fragmento reproduzido acima é possível evidenciar a partir da sátira o sistema de moralidade argentino. As questões que seguiam a formação deste teste estavam relacionadas à aproximação com um vocabulário utilizado dentro do gueto homossexual. No ponto da letra e), por exemplo, é questionado os tipos de sexo que o leitor pode ter tido durante a sua experiência de vida. Entre as opções estão «Una persona del sexo opuesto; Con la que no estuvierse casado/a, Una persona del mismo sexo; Más de uma persona» (Somos, 1979, 2, p. 11).
O processo de questionamento da moral vigente a partir de um teste como esse se dá a partir da capacidade de leitura dos elementos que recortam a possibilidade de saber não só ler os elementos que constituem o sistema de juízo sexual, como apresentar também formas de contestação ao mencionar outras possibilidades «imorais» sobre o sexo e a sexualidade. O que está evidenciado neste trecho é a possibilidade de leitura social produzida pelo flh a partir das influências teóricas de grupos feministas, ou mesmo da oficina teórica do Grupo de Política Sexual.19
Neste sentido, Somos demonstrava em seu Teste de Imoralidade a possibilidade de nomear a norma. Segundo Jota Mombaça (2021, p. 67) «nomear a norma é o primeiro a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência, porque a norma é o que não se nomeia, e nisso consiste seu privilégio». De modo geral, isto significa que a força teórica e de ação política da flh mantinha uma leitura política radical de seu contexto histórico.
Um segundo elemento de nossa análise é viabilizado a partir da formação de códigos de conduta do gueto, evidentes a partir do teste de imoralidade. Na letra f) o leitor é questionado se ele conhece expressões como «Yirar; Sesenta y nueve; Besos Negros; Vuelta y vuelta, Chongo» (Somos, 1974, 2, p. 11).20 Estes termos significam a explicitação de práticas e identidades que estariam no lado negativo da imoralidade. Neste sentido, a imoralidade torna-se uma estratégia política da matriz homonormativa. Estes elementos são incorporados como condutores à formação de uma identidade homossexual mediada (Pinto, 2021).21
Já no Brasil, o que se observa é um processo de reflexão sobre a moralidade na medida em que a identidade homossexual é mediada. Ao longo de suas 37 edições Lampião da Esquina apresentou um olhar aguçado sobre as questões de seu tempo. Neste sentido, enfrentou a política de moral sobre o sexo a partir de diferentes estratégias. Cabe aqui mencionar sua proposta política.
Os Senhores conselheiros elencavam assim com a flh a percepção de que o contexto em que viviam era de uma moral que não cabiam todos os homossexuais. Em seu texto-manifesto «Saindo do Gueto», os jornalistas apresentam uma plataforma política em que o periódico se coloca como uma ferramenta de lembrar que parte da população brasileira carregava «o estigma de não-reprodutividade numa sociedade petrificada na mitologia hebraico-cristã» (Lampião da Esquina, 1978, 0, p. 2).
O corpo editorial de colaboradores do Lampião da Esquina apresentava uma crítica que se comportava, a partir de um contexto histórico mais brando do que o argentino, confrontava a moral vigente. No primeiro ano de jornal, enquanto ocorria o inquérito contra o jornal, os colaboradores de Lampião tentaram demonstrar de forma simbolicamente e materialmente o desgaste da política de censura que se utilizava da «velha moral» como uma estratégia de silenciamento das vozes homossexuais.
É possível esperar que, no caso do nosso jornal, as pessoas encarregadas de decidir se ele é atentatório ou não reajam com a mesma contemporaneidade: não é possível fabricar pílulas anticoncepcionais indiscriminadamente e ao mesmo tempo acreditar que os bebês nascem de repolhos ou do bico diligente das cegonhas; da mesma forma, não é possível considerar imoral a luta de um determinado grupo -discriminado sexualmente- para sair do gueto que lhe foi imposto e assumir seu lugar na sociedade, deixando de ser, dessa forma, cidadãos de segunda classe. (Silva, 1979, 9, p. 5, grifo do autor)
No contexto da nota escrita por Aguinaldo Silva é possível observar uma crítica ácida aos censores e à estratégia de questionar os elementos que julgam à homossexualidade e os homossexuais lampiônicos de expressarem a sua voz. Como reitera editor-chefe e colaborador do jornal, há naquele contexto uma percepção de que homossexuais são representados e compreendidos como sujeitos de segunda classe.
Ao apontar este ponto, acreditamos que Aguinaldo Silva e os lampiônicos viabilizam uma forma de negociação a partir da justificativa da existência da imprensa homossexual no Brasil. O que é interessante perceber é que a homossexualidade é retratada em diferentes periódicos a partir de jogos de imagem e representações que se distanciam daquela projetada em Lampião da Esquina. Isto significa que mais do que a homossexualidade, mas sim a forma com que esta é tratada que é o fruto da tensão e crise do sistema de moral vigente.
Deste modo, é possível considerar que o que sustenta a formação de um sistema de juízo sobre as práticas sexuais e as identidades produzidas a partir delas são, em grande medida, uma racionalidade esperada da formação da heteronormatividade. Como Butler (2003) e Rubin (2017) nos lembram, a criação de uma matriz heterocentrada é aquela que entende a heterossexualidade como ponto de construção das referências éticas, estéticas e representativas. É a partir desta racionalidade que as representações sobre aquilo que não é «bom» são construídas. E, quando os elementos que constituem esta racionalidade são desestabilizados há uma força de contenção que se apresenta na forma de violência.
4. Considerações finais
Ao longo deste artigo traçamos alguns pontos que acreditamos ser fundamentais à formação de uma moral política sobre o sexo e as identidades sexuais formadas na Argentina e no Brasil ao longo dos anos 1960 e 1970. Longe de ser uma exclusividade destas décadas, a formação de uma moral que se utiliza da repressão sobre as sexualidades e identidades de gênero dissidentes estão mais conectadas à soma de elementos que recorrem à tradição judaico-cristã destes países, como também a formação de uma Doutrina de Segurança Nacional marcada por um contexto da Guerra Fria.
A partir de uma luta anticomunista, setores políticos destes países não só elencaram estas sexualidades e gêneros como subversivos como também marcaram estes corpos a partir de representações que viabilizam a existência de um sujeito homossexual desumanizado. No que tange ao contexto argentino, é possível compreender o uso do humor como uma forma de contraposição à seriedade dos discursos sobre a moral que ressoaram a partir do volante El Caudillo.
Já no Brasil, ficou evidente também um processo histórico que entende a homossexualidade não só como uma prova da degeneração causada pelo comunismo, e por conseguinte, a apreensão de a homossexualidade era uma estratégia de guerra em um mundo bipolarizado. Deste modo, é importante perceber que embora as legislações contra à homossexualidade estivessem presentes de diferentes maneiras, o resultado geral era a formação de espaços de sociabilidade que tentaram desestabilizar esta moral vigente.
Seja no gueto -espaço autodenominado como um lugar possível de viver a sua sexualidade, mas também um espaço delimitado e territorializado pela sociedade heteronormativa-, seja nos espaços de construção da negociação pela dignidade humana, Lampião da Esquina e Somos, não só denunciaram como satirizaram a moral política construída pelos autoritarismos. Entretanto, é impossível esgotar neste espaço as diferentes formas de contestação e de produção de sentido de uma nova moral política capitaneada não só pelos movimentos homossexuais como também pelos movimentos feministas de cada contexto.
Os esforços contidos neste texto são de viabilizar uma análise sobre as origens de uma política moral ou moral política sobre o sexo cada vez mais repressiva às sexualidades as homossexualidades masculinas. Isto significa que as Doutrinas de Segurança Nacional construíram um lugar ainda mais marginal aos homossexuais, lésbicas e travestis daquele tempo. Entretanto é possível perceber os limites de tal análise.
Os elementos documentais levantados e analisados neste artigo representam uma fração de um dos eixos que construíram uma política sexual. Neste sentido é possível dizer que um dos caminhos futuros à pesquisa sobre a formação da moral sobre o sexo nos anos 60 e 70 do último século deva ser interconectar os aspectos legislativos e de códigos de condutas apresentado neste artigo com elementos constitutivos que orbitam o ponto central da formação dos sistemas de juízo. Isto significa dizer que em pesquisas futuras seja necessário ampliar o escopo para compreender como a relação entre família, homossexualidade masculina e as ideias de inversão sexual são articuladas na criação de uma política repressiva neste contexto.
Vale ainda ressaltar, mais uma vez, os limites apresentados a partir das análises produzidas neste texto. Algumas das análises sobre a atuação dos mecanismos de repressão -com base na formação de políticas repressivas por meio de legislações e práticas policiais- talvez tenham sido experimentadas de modo distinto para a comunidade lésbica. Ainda que este não seja o escopo do texto, é necessário articular tais experiências no futuro para compreender como a política sexual pode atuar em camadas de acordo com regimes de visibilidades das experiências desviantes a norma.
Por último, este artigo viabiliza a compreensão de que a relação entre discurso e prática repressiva estão presentes em ambos os contextos. A construção dos Edictos Policiales, a aplicação da Lei de Vadiagem ou ainda da lei de imprensa assim como a atuação de grupos como a Triple A deram corpo a uma ampla repressão social e institucional aos homossexuais.
Em contraposição a investida repressiva, movimentos e movimentações homossexuais desestabilizaram a consolidação desta moral sexual. Em ambos os contextos a superexposição -que pode ser entendida aqui como a tentativa de tornar o desejo homossexual público- foram fundamentais. Embora seja a seção mais curta deste texto, a existência destes periódicos cumpre a função de tentar tornar positiva a experiência destes homossexuais.
A crítica a moral, foi ampla e se realizou a partir de múltiplos eixos. Alguns deles foram a denúncia e às prisões recorrentes explícitas em ambos os periódicos como vimos anteriormente. Aqui é possível perceber um entrecruzamento entre tais experiências. Algumas das singularidades talvez estejam presentes quanto a centralidade do humor como uma ferramenta de combate a política da moral. No caso de Lampião da Esquina este humor foi utilizado, mas é perceptível o quanto em Somos esta perspectiva de «imoralidade» ganha ênfase.
Isto não significa que no caso brasileiro o humor não tenha ocupado uma parte sensível da política contra a moral vigente, mas que os elementos que constituem a consolidação da política repressiva ditatorial tenham levado o jornal a se utilizar de uma crítica mais sistemática ao regime. Nem tampouco é possível afirmar que a crítica a moral, no caso Argentino, tenha sido unicamente experimentada a partir do humor.
Neste sentido, novas questões apresentam-se no horizonte. Como as experiências de homossexuais e lésbicas podem ser entrecruzadas para compreender tais regimes de política sexual de forma mais ampla? Como os ideais de família nuclear, presentes em cada contexto, se interconectam com as percepções de inversão sexual do início do século? Quais outros elementos constituem a gama de ferramentas críticas a moral vigente daquele período por estes movimentos homossexuais? Tais perguntas seguem constituindo um roteiro de pesquisa ainda em execução.