A estima de lugar consiste em uma categoria que busca apreender a dimensão afetiva que se estabelece na inter-relação pessoa ambiente (Bomfim, 2010). Esse afeto diz respeito ao apego, apreço e valoração dos sujeitos com relação aos lugares. Esta se desenvolve com base na avaliação tanto dos aspectos físicos do ambiente, como na qualidade dos vínculos sociais com as pessoas que fazem parte do entorno, da imagem social que o lugar possui e do sentimento de apropriação que o sujeito estabelece com o ambiente (Bomfim, 2010).
Desenvolvida a partir de um diálogo entre a psicologia ambiental e a psicologia social, ambas de perspectiva histórico-cultural, a estima de lugar é “uma categoria socialmente construída, que mostra que o sujeito responde de maneira positiva ou negativa ao seu entorno, refletindo as possibilidades de ação do indivíduo no lugar, quer seja potencializando ou diminuindo sua ação no ambiente” (Bomfim, Alencar, Santos y Silveira, 2013, p. 322). Como afetos potencializadores da ação dos sujeitos nos ambientes são identificadas a estima de agradabilidade e pertencimento, e como afetos despotencializadores, a estima de lugar de destruição e insegurança com relação aos lugares.
Nas pesquisas realizadas acerca das disposições afetivas na inter-relação pessoa-ambiente ainda é possível encontrar sentimentos de contraste com relação aos lugares. Estes dizem respeito a afetos contraditórios e ambíguos que podem ser classificados tanto como potencializadores quanto despotencializadores da ação dos sujeitos nos ambientes.
Os sentimentos de agradabilidade, pertencimento, insegurança, destruição e contraste são afetos que orientam a ação dos sujeitos nos ambientes. A estima de lugar é, nesse sentido, uma categoria reveladora da implicação e participação cidadã das pessoas com os lugares que estimam. O processo de implicação e participação cidadã dos sujeitos com os lugares tem sido foco de muitos estudos que abordam a relação afetiva pessoa-ambiente a partir da estima de lugar (Pacheco, Sousa, y Bomfim, 2021). Essas pesquisas têm identificado a disposição afetiva das pessoas com relação a diferentes cenários, como locais de moradia (Melo, 2019), bairros (Ribeiro, 2015), comunidades (Pacheco, 2018), espaço urbano (Parente, 2020; Martins, 2015), meio rural (Martins, 2020), ambientes esportivos (Viana, 2009). Além disso são abordados os contextos das políticas públicas de saúde, como Centro de Saúde da Família (Barreto, 2017), Residência Integrada de Saúde da Família (Feitosa, 2014), Hospitais (Lima, 2013), Equipes de Saúde da Família (Silva, 2012), Centro de Atenção Psicossocial (Félix, 2011) e o contexto das políticas públicas de educação, como o ambiente universitário (Augusto, 2016; Bomfim, Maia, Lima, y Costa, 2019).
A estima relacionada ao contexto educacional foi abordada em uma pesquisa sobre a relação afetiva de alunos surdos do curso de Letras Libras da Universidade Federal do Ceará (UFC) com o seu campus universitário (Augusto, 2016). No entanto, essa temática tem sido levantada desde 2006 por meio dos estudos desenvolvidos no Vida no Campus, programa vinculado ao Laboratório de Pesquisa em Psicologia Ambiental (Locus) (Pacheco, Lima, y Bomfim, 2017).
O programa Vida no Campus tem em sua origem a demanda de compreender a relação dos indivíduos com o ambiente universitário. Tendo por base a perspectiva da psicologia ambiental e da psicologia social, ambas de base histórico-cultural, o programa promove atividades de extensão, tanto de caráter cultural quanto científico, visando à integração acadêmica de alunos, professores, pessoas frequentadoras dos campus e funcionários. Além disso, são desenvolvidas pesquisas voltadas para a compreensão dos vínculos estabelecidos entre os diferentes atores que fazem parte da universidade com o ambiente acadêmico (Inácio, Lima, Araújo, y Bomfim, 2016).
Investigações acerca da relação afetiva dos alunos com o campus em que estudam realizadas em 2006/2007, 2008/2009 e 2016 com discentes de diferentes cursos situados no Centros de Humanidade, da Universidade Federal do Ceará, revelam que o afeto de contraste é predominante na relação aluno-campus universitário (Bomfim et al., 2019). O contraste é resultante da avaliação realizada pelos sujeitos de que os ambientes universitários lhes geram sentimentos de bem-estar e agradabilidade, mas ao mesmo tempo apresenta estruturas precárias e causa-lhes insegurança.
Pesquisa realizada com esse mesmo público, qual seja, estudantes do ensino superior, no período de ensino remoto, decorrente da pandemia de Covid-19, demonstrou alto índice de pertencimento dos alunos com relação ao campus universitário. Esse resultado indica que os discentes perceberam, diante da suspensão das aulas presenciais, que o ambiente universitário é um espaço importante no processo de engajamento nas atividades acadêmicas (Silva, Martins, Pacheco, y Bomfim, 2020).
Funcionários e professores que atuam nas áreas que constituem os Centros de Humanidade da Universidade Federal do Ceará também revelam, predominantemente, sentimentos de contrastes com relação ao ambiente universitário em que atuam. Na opinião dos docentes que participaram da pesquisa, os ambientes da UFC situados no Benfica possuem espaços agradáveis e que promovem a humanização do campus, como o bosque e os jardins, no entanto muitos espaços estão com estruturas precárias e precisam de reformas (Bomfim et al., 2019).
Embora já tenham sido realizadas pesquisas que indicam a estima de lugar com relação ao contexto educacional, elas estão voltadas, majoritariamente, à relação afetiva aluno-campus universitário. Além disso, mesmo os estudos que abordaram a perspectiva de servidores e docentes, até o momento, ficaram limitados ao contexto do Centro de Humanidade da UFC, universidade pública localizada na capital do Ceará. Dessa maneira, ainda pouco se sabe a respeito da estima de lugar de professores de Instituições de Ensino Superior (IES) privadas e que estejam localizadas no interior do Estado. Diante disso, surge o seguinte questionamento: Como se revela a estima de lugar de professores de IES privadas localizadas no interior do Estado do Ceará com relação ao seu lugar de trabalho?
A partir dessa questão e com o intuito de colaborar com a ampliação dos estudos acerca da relação pessoa-ambiente no contexto educacional, este artigo se propõe a identificar a estima de lugar de professores de Instituições de Ensino Superior localizadas no interior do Estado do Ceará, Brasil, com relação ao seu ambiente de trabalho.
Para melhor compreensão desta investigação, é importante salientar que, ao desenvolver a categoria estima de lugar, Bomfim (2010) parte da perspectiva de que o termo ‘lugar’ se refere ao ambiente com o qual o sujeito estabelece um processo de apropriação, de identificação, de afetividade e cognição, enfim, de atribuição de valor. A partir dessa base conceitual, no presente trabalho toma-se a IES onde os professores exercem a sua atividade docente como esse lugar com o qual os referidos profissionais se inter-relacionam por meio de afetos, cognições e comportamentos, portanto, o estimam, tal como estimam a si mesmo ou a outras pessoas.
Método
Para identificar a estima de lugar de professores de Instituições de Ensino Superior localizadas no interior do Estado do Ceará, Brasil, com relação ao seu ambiente de trabalho foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa nos processos de construção, análise e interpretação dos dados, pois esta é a abordagem viável quando o propósito está em compreender um fenômeno situando-o em um determinado contexto social e histórico (Creswell, 2010). Trata-se de uma pesquisa descritiva, uma vez que se dedica à busca de uma caracterização dos aspectos afetivos dos sujeitos participantes com relação aos seus locais de trabalho.
Considerando que o valor da pesquisa qualitativa se concentra na particularização do fenômeno analisado e não na sua generalização, não demandando, necessariamente, uma quantidade representativa de participantes (Creswell, 2010), optou-se por realizar este estudo a partir de uma amostra intencional composta por 07 professores escolhidos por conveniência (Flick, 2009). No que se refere à sua caracterização, a amostra foi composta por um docente de um centro universitário localizado na região do Cariri cearense, vinculado a um conglomerado educacional de amplitude nacional; e os outros 6 participantes atuam em um centro universitário localizado no Centro Sul do Estado do Ceará, pertencente a um grupo educacional de abrangência regional. Todos os participantes são do gênero feminino, com idades que variam entre 29 e 43 anos; quanto ao estado civil, 04 são casadas e 03 solteiras. No que se refere ao nível de formação, 03 professoras são especialistas e 04 são mestres; tempo de serviço entre 03 e 15 anos e com dedicação de 14 a 30 horas de trabalho semanal na IES. Todas foram convidadas a colaborar com o estudo respondendo ao instrumento de pesquisa, qual seja: o Instrumento Gerador dos Mapas Afetivos (IGMA) (Bomfim, 2010).
O IGMA é um recurso, do tipo lápis e papel, que possibilita a identificação da disposição afetiva dos respondentes com relação ao lugar através da construção de imagens e metáforas. Por meio deste foi possível identificar a estima de lugar que se estabelece na relação das professoras participantes com a Instituição de Ensino Superior onde desenvolvem a sua atividade docente. Este instrumento é constituído por duas partes que foram aplicadas individualmente, de maneira conjunta e sequencial. Na primeira etapa foi solicitado à participante que elaborasse um desenho que represente os seus sentimentos com relação à IES, a definição das emoções despertadas pelo desenho em seis palavras e, em seguida, a respondente foi estimulada a construir uma metáfora que expresse, de maneira simbólica, seus afetos com relação ao ambiente. Na segunda parte do IGMA, cada professora avaliou o seu nível de concordância com afirmações acerca da sua percepção do ambiente em questão, utilizando para tanto uma escala Likert de 5 pontos que variam de ‘discordo totalmente’ a ‘concordo totalmente’.
As informações conseguidas com o IGMA foram interpretadas a partir da análise de conteúdo categorial, por meio da qual classifica-se as disposições afetivas dos sujeitos em 5 categorias, a saber: pertencimento, agradabilidade, insegurança, destruição e contraste (Bomfim, 2010). A estima de lugar é categorizada como de agradabilidade quando a imagem afetiva é composta por sentimentos e emoções tais como alegria, prazer e segurança. Esses afetos são atribuídos a lugares com estruturas físicas e condições climáticas que atendam às necessidades dos sujeitos e lhes possibilitam qualidade de vida. A estima de lugar de pertencimento se revela por meio da imagem afetiva construída a partir de sentimentos de cuidado, orgulho, apego, saudade. Esses são atribuídos a lugares percebidos pelo sujeito como sendo parte de sua história de vida, onde se tem amizades, onde se quer estar porque gosta. A estima de lugar é considerada de insegurança quando a imagem afetiva é construída a partir de sentimentos tais como medo, ansiedade, desamparo, desconfiança, entre outros. Esses são associados a ambientes percebidos pelo sujeito como perigosos, onde algo ruim pode acontecer a qualquer momento. Já a disposição afetiva de destruição é revelada na imagem composta por sentimentos, por exemplo, de nojo, vergonha, desprezo. Esses são atribuídos a lugares percebidos como sujos, poluídos, destruídos e abandonados. A imagem afetiva indica estima de lugar de contraste quando revela a coexistência de sentimentos e emoções contraditórios, polarizados. A expressão desses afetos é, geralmente, construída com as conjunções de oposição de ideias, tais como: mas, porém, no entanto.
As duas primeiras categorias, agradabilidade e pertencimento, caracterizam a estima de lugar potencializadora da ação dos indivíduos, o que indica uma maior participação cidadã dos sujeitos com o lugar. Os afetos de insegurança e destruição são despotencializadores da ação do sujeito, revelando menor implicação destes com os lugares. A estima de lugar de contraste comunica sentimentos contraditórios na relação pessoa-ambiente, podendo revelar-se tanto de maneira pontencializadora, quanto despontencializadora da ação dos participantes nos lugares.
A respeito dos aspectos éticos, o projeto que originou esta pesquisa foi submetido à apreciação do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Ceará (UFC), via Plataforma Brasil, recebendo aprovação sob parecer nº 5.281.899.
Resultados e discussão
Para efeito de análise, as participantes desta pesquisa foram identificadas por meio da numeração de 01 a 07. Informações adicionais sobre a caracterização de cada uma dessas pessoas serão citadas no decorrer da apresentação dos resultados.
A pesquisa realizada com professoras de instituições privadas de ensino superior localizadas no interior do Ceará indicou uma estima de lugar, predominantemente, despotencializadora dessas profissionais com relação à IES em que trabalham. Das 07 docentes que compuseram o corpus deste estudo, 3 revelaram sentimentos de destruição, 3 de contraste e 1 de insegurança quanto ao local onde desenvolvem as suas atividades laborais. O afeto de agradabilidade apareceu somente em contraste com o de insegurança. A estima de pertencimento, por sua vez, não foi demonstrada entre as professoras investigadas.
As participantes desta pesquisa, ao serem abordadas por meio do IGMA, revelaram principalmente sentimentos de destruição e contraste com relação à IES em que trabalham. É importante salientar que, ao serem indagadas sobre as suas representações, as docentes que indicaram afeto de destruição não se referem à precarização das estruturas físico-espaciais dos ambientes institucionais. O dano ao qual se reportaram está associado ao sistema educacional e às inter-relações que se estabelecem no processo de ensino-aprendizagem.
As imagens de destruição foram demonstradas por meio das metáforas: IES ‘repartição pública sem financiamento’ (participante 03, 32 anos, solteira, mestre, 03 anos de serviço, 30 horas-aula semanais), IES ‘castelo de areia’ (participante 05, 38 anos, casada, mestre, 09 anos de serviço, 14 horas-aula semanais) e IES ‘comércio’ (participante 06, 29 anos, solteira, mestre, 03 anos de serviço, 20 horas-aula semanais).
A instituição ‘repartição pública sem financiamento’ é aquela que tem muitos funcionários, mas estes não dão conta das suas atividades porque não têm financiamento para tal. Isto é, são muitas pessoas, mas que não desempenham adequadamente a sua função por falta de recursos. Para a participante 03, a IES é um espaço desorganizado no que se refere ao seu funcionamento. Há uma intensa burocratização dos processos que não resulta em maior eficiência. Isso é exemplificado pelo fato de que é requerido do professor o preenchimento de vários formulários para agendamento de salas e equipamentos, inclusive é cobrado que as reservas sejam realizadas com ampla antecedência, no entanto, quando chega o momento solicitado, os equipamentos e/ou salas não estão disponíveis.
Além do excesso de burocratização, a participante 03 sente uma pressão para que esteja à disposição da instituição em tempo integral. Isso porque diz ser comum receber demandas, tanto por parte da coordenação quanto dos alunos, independente de horário ou dia da semana, inclusive em feriados e finais de semana. Diante disso, os sentimentos que essa entrevistada tem com relação à IES são de desânimo, frustração, raiva, cansaço e tristeza.
A IES 'castelo de areia' é aquela que está desmoronando com o vento e, portanto, está em processo de destruição. Isso ocorre principalmente devido às relações de trabalho precarizadas. De acordo com a participante 05, o professor é explorado, pois dedica à instituição muito mais tempo do que o momento em que está em sala de aula, mas é remunerado somente pela hora/aula. Além disso, é permanente o sentimento de que tem que fazer sempre mais para manter o emprego. Mesmo assim, tem a certeza de que a qualquer instante e por qualquer motivo a empresa pode demiti-la.
Soma-se a esses sentimentos de exploração e descarte, o de que garantir a mensalidade do aluno é mais importante do que assegurar os processos pedagógicos: manter a satisfação do discente com a instituição é prioridade, ainda que para isso seja necessário comprometer o processo de aprendizagem. Em nome da satisfação do cliente, há uma alteração, inclusive, da organização da IES, uma vez que todas as regras ou acordos podem ser modificados a qualquer momento para que o aluno seja atendido em sua queixa.
Todo esse cenário faz com que a docente veja a IES como uma ilusão e que tenha, com relação à instituição, sentimento de frustração, decepção, tristeza, medo, insegurança e de enganação por considerar que a educação superior deveria primar pelo ensino, em detrimento dos aspectos financeiros.
Esse mal-estar com relação aos processos de mercantilização da educação está representado também por meio da imagem ‘IES comércio’ que é aquela em que a relação professor-aluno é substituída pela de vendedor-cliente. A ‘IES comércio’, de acordo com o participante 06, não valoriza o professor porque entende que o aluno é um cliente e o professor tem a função de satisfazê-lo, considerando o jargão segundo o qual “o cliente tem sempre razão”. Essa transmutação de relação professor-aluno em vendedor-cliente acarreta uma gama de cobranças por parte da coordenação e de desgaste em sala de aula que gera uma sensação de saturação, cansaço, raiva do professor com relação à IES.
Diante das imagens afetivas das participantes 03,05 e 06 com relação às IES privadas, é possível entender que o afeto de destruição não está associado aos prédios, ou seja, não é atribuído a questões estruturais, como aparece em Bomfim et al. (2019). Esse afeto revelado entre os docentes de instituições privadas parece estar mais relacionado à percepção de ‘desfazimento’, de desmoronamento da educação na sua funcionalidade, objetivos, princípios e organização. Esses sentimentos podem indicar uma compreensão de que os professores de IES particulares têm sido afetados com intensidade pelos impactos do neoliberalismo na educação.
O afeto de insegurança é manifestado por meio da imagem de um brinquedo existente nos parques de diversão, que consiste em um grande disco em movimento no qual várias pessoas tentam se equilibrar, chamado Samba. A IES ‘Samba’ é aquela onde o professor precisa estar permanentemente se equilibrando para não cair. Essa metáfora é construída pela participante 07 (34 anos, solteira, especialista, 08 anos de serviço, 20 horas-aula semanais) que a justificou pelo sentimento de que a sua chefia imediata está sempre pronta para oprimi-la. Em decorrência disso, a docente se diz em alerta constante, esperando e pronta para resistir a ações de opressão por parte da coordenação. Para esta professora, portanto, o problema da IES está centrado na má gestão que faz com que o ambiente da instituição seja de perseguição e desarmonia. Essa situação de tensão causa-lhe mágoa, tristeza, desamparo, raiva, dúvida e desvalorização.
Os sentimentos de desamparo, dúvida e tristeza são comuns entre aqueles que revelam imagem afetiva de insegurança, haja vista que, de acordo com Bomfim (2010), este afeto está relacionado a diferentes situações que denotam instabilidade e imprevisibilidade. A insegurança apareceu de maneira predominante em uma investigação realizada acerca dos sentimentos de pessoas com deficiência visual com relação à cidade de Fortaleza (Martins, 2015). Nesse caso, o afeto em questão está associado aos riscos e obstáculos decorrentes da falta de acessibilidade da capital cearense para as pessoas com deficiência visual e também à violência urbana. Diferentemente, a insegurança manifesta pelas professoras de IES privadas está vinculada à incerteza quanto à sua perspectiva de futuro no que tange a empregabilidade e rendimentos financeiros. Em ambos os contextos, o que é comum são os sentimentos angustiantes resultantes da falta de segurança e de previsibilidade quanto ao devir.
O sentimento de insegurança com relação à IES se manifesta também associado ao afeto de agradabilidade. A coexistência entre essas dois, insegurança e agradabilidade, aparece nas três imagens de contraste identificadas nessa investigação e que se revelaram por meio das metáforas: IES ‘segunda casa’ (participante 01, 43 anos, casada, especialista, 15 anos de serviço, 20 horas-aula semanais), IES ‘estação’ (participante 02, 36 anos, solteira, mestre, 03 anos de serviço, 28 horas-aula semanais) e IES ‘horizonte limitado’ (participante 04, 42 anos, casada, especialista, 15 anos de serviço, 24 horas-aula semanais).
A instituição ‘segunda casa’ é aquela percebida como um lugar agradável, onde se pode esquecer um pouco dos problemas familiares, mas que não é segura. Embora a docente-respondente esteja trabalhando há muitos anos na organização e sinta conforto nas relações que lá consegue estabelecer com os colegas e alunos, não se sente segura quanto à sua permanência e, sobretudo, quanto aos seus rendimentos. Essa insegurança se justifica pelo fato de que os professores da IES são horistas e a cada início de semestre a sua carga horária e disciplinas podem ser alteradas.
A IES "estação" é aquela que, embora seja acolhedora, é um lugar de passagem. Assim sendo, não dá para desenvolver um sentimento de pertencimento, porque não há garantia de permanência no lugar. De acordo com a participante 02, a rotina estabelecida na IES só tem validade para o semestre vigente. A cada novo período pode haver alterações de disciplinas e carga horária que implicam na variação dos rendimentos dos professores e inclusive na continuidade ou descontinuidade do vínculo empregatício. Diante dessa instabilidade com relação à carga horária e vínculo, o sentimento de insegurança acompanha a professora de maneira permanente, sendo mais intenso durante o período que antecede a lotação de cada docente nas disciplinas.
Diante disso, a IES ‘estação’ é um lugar onde se aprende e ensina, ou seja, onde há trocas, mas que causa sentimento de insegurança e instabilidade, inviabilizando assim, o afeto de pertencimento. Essa relação de contraposição entre as imagens de insegurança e pertencimento corrobora a conceituação desenvolvida por Bomfim (2010), segundo a qual a imagem de insegurança é o inverso da de pertencimento. Haja vista que enquanto a primeira remonta a sentimentos de instabilidade, a segunda está associada a sentimentos de segurança, estabilidade e apego ao lugar.
A instituição ‘horizonte limitado’ é aquela onde se vislumbra possibilidades de evolução, mas que a própria IES limita e inviabiliza o seu alcance. Como o horizonte, pode-se avistá-lo, mas não o alcançar. A participante 04 avalia que a instituição em que desenvolve a sua atividade docente é um local que a deixa feliz por possibilitar que desenvolva uma atividade que lhe dá prazer, a docência, e que lhe desperta o desejo de estudar mais e dar prosseguimento à sua formação com cursos de pós-graduação. No entanto, ao mesmo tempo em que lhe desperta o desejo de evoluir, aprisiona-a. Esse aprisionamento ocorre no sentido de que a hora-aula paga pela instituição é baixa, de modo que a professora precisa ter uma carga horária exaustiva para conseguir rendimentos suficientes para manter as suas despesas. Com isso, as possibilidades de cursar uma pós-graduação ficam inviabilizadas tanto por questões de falta de tempo para se dedicar a tal intento, quanto à limitação de recursos financeiros para custear a formação.
Diante disso, os sentimentos desta participante com relação à IES foram contrastantes: ao mesmo tempo que sente felicidade e amor por um ambiente que possibilita que se desenvolva a docência, sente também medo, angústia, preocupação e tristeza pela falta de reconhecimento financeiro e a impossibilidade de crescer na profissão
Essa coexistência entre sentimento de insegurança e agradabilidade entre os professores no desenvolvimento de suas funções corroboram outras pesquisas que tratam da docência do ensino superior (Galindo, et al, 2020; Martins y Honório, 2014). Conforme mostra Galindo, et al (2020), o exercício da docência no ambiente universitário traz prazer em decorrência das experiências de gratificação, orgulho e identificação com a atividade profissional. No entanto, esses sentimentos de satisfação com o trabalho ocorrem de maneira simultânea a vivências de sofrimento que se expressam por meio do esgotamento profissional. Esse, por sua vez, é resultante de situações que causam frustração, insegurança, inutilidade, desgaste e estresse no trabalho (Galindo, et al, 2020; Martins y Honório, 2014).
Diferentemente dos resultados elaborados por Bomfim et al. (2019), as evidências produzidas acerca dos afetos dos professores de instituições particulares do interior cearense apontam para sentimentos despotencializadores dos docentes com relação aos seus locais de trabalho. O afeto predominante entre docentes da Universidade Federal do Ceará é o de contraste entre os sentimentos de agradabilidade e destruição, com ênfase na agradabilidade (Bomfim et al., 2019). Já entre as docentes das instituições privadas do interior do Ceará que participaram da pesquisa ora relatada, os afetos predominantes foram de destruição e contraste com ênfase na insegurança. Esses dados podem indicar uma discrepância entre a estima de lugar dos professores do campus Benfica da UFC, instituição pública federal localizada na capital do estado cearense, e professores de IES privadas situadas no interior do mesmo Estado.
Os sentimentos de destruição e contraste com ênfase na insegurança, revelados entre as professoras de IES privadas, são afetos classificados por Bomfim (2010) como despotencializadores da ação dos sujeitos nos ambientes. Isso pode explicar o fato de que não é perceptível entre os docentes de instituições privadas uma implicação no sentido de promover uma transformação no modelo político-administrativo da organização. É mais evidente um desinvestimento que se manifesta por meio do que pode ser entendido, pelo menos de maneira a priori, como uma acomodação ao modelo vigente ou, em último caso, no pedido de demissão. Entre os professores da universidade federal, entretanto, cujos afetos potencializadores foram revelados, é mais notório o engajamento em movimentos sindicais e em manifestações públicas de reinvindicações por melhorias nos processos político-administrativos institucionais.
Considerações finais
As evidências produzidas acerca da estima de lugar das professoras de ensino superior de instituições privadas situadas no interior do Ceará mostraram que as profissionais que compuseram o corpus de análise desta pesquisa têm, predominantemente, afetos de destruição e de contraste com ênfase em insegurança com relação às instituições educacionais às quais estão vinculadas. O sentimento de agradabilidade sempre que aparece está em contraste com o de insegurança. Além disso, não há, considerando as informações produzidas, indicação de que as docentes tenham sentimento de pertencimento com relação à IES a qual desenvolvem as suas atividades laborais.
A comparação dos achados dessa pesquisa com os de pesquisa anterior, sobre a relação afetiva de professores com o ambiente universitário, pode indicar que docentes de instituições de ensino privadas revelam estima de lugar despotencializadora, enquanto aqueles de instituições públicas apresentam estima de lugar potencializadora com relação ao ambiente onde trabalham. Esse paralelo parece apontar para os diferentes níveis de implicação desses profissionais em manifestações públicas de luta para transformar as instituições e os processos educacionais ou para garantir melhorias já conquistadas nesse campo.
Com essas informações, a presente investigação teve como perspectiva contribuir com a ampliação dos estudos acerca da estima de lugar com relação ao ambiente educacional. Ao se debruçar sobre os afetos de professoras do interior cearense com relação às IES no qual trabalham, amplia-se a abrangência de compreensão da estima de lugar de professores que atuam para além do universo do campus Benfica, da Universidade Federal do Ceará, localizada na capital do Estado.
As informações produzidas por essa pesquisa, embora sejam relativas a um pequeno número de sujeitos, podem ser consideradas como elementos de um mapa dos afetos na inter-relação professor-IES. Este mapa pode servir de guia para os próprios professores, gestores, sindicatos e demais membros da comunidade acadêmica no processo de reflexão, orientação e decisão acerca dos rumos da educação superior no Brasil. Dessa forma, este trabalho visou a contribuir com a discussão acerca das consequências dos processos de mercantilização da educação no Brasil.
Considerando o objetivo aqui proposto e a quantidade de pessoas participantes, este estudo ficou circunscrito à análise da estima de lugar de um reduzido número de professores de IES privadas do interior do Ceará. Assim sendo, sugere-se, para trabalhos futuros, uma ampliação da quantidade de docentes abordados. Além disso, considera-se necessário, em investigações posteriores, desenvolver pesquisas que possam fundamentar melhor a discussão acerca do papel da estima de lugar no processo de engajamento dos docentes em movimentos públicos reivindicatórios de melhorias institucionais. Ainda como sugestão, apresenta-se a necessidade de aprofundar o debate acerca das implicações do neoliberalismo na inter-relação afetiva professor-IES.