Conceitualmente, o termo prostituta provém do latim “prostituere”, que significa “colocar diante”, “à frente”, “expor aos olhos” (Ceccarelli, 2008), o que leva à compreensão da amplitude do termo. Simone de Beauvoir (1980), em sua obra “O Segundo Sexo”, aponta que a prostituta ao longo da história, assume um lugar de bode expiatório do homem, que nela se liberta de sua infâmia ao mesmo tempo que a renega. Para a autora, as prostitutas assumem lugares de escravidão feminina adaptadas a sua condição, mas elas também conseguem, a partir dessa perspectiva, caminhar rumo às suas autonomias, conquistando certa independência. A coexistência de ambas as prerrogativas pode ser visualizada na análise de estudos que apresentam perspectivas sobre a escravidão da profissional do sexo (Banuth y Santos, 2016, Moreira y Monteiro, 2012), assim como os que tem como pano de fundo a autonomia da mulher prostituta (Diniz y Mayorga, 2018), demonstrando a ambivalência já discutida por Simone de Beauvoir.
Considerando o conceito de prostituição abordado no início deste texto sobre “expor aos olhos”, torna-se necessária e relevante a discussão sobre a temática da prostituição pela perspectiva de gênero, alinhada à concepção feminista. A significação do termo latim “prostituere” reverbera ideias que dialogam com o texto de Donna Haraway, denominado Saberes Localizados, o qual provoca a questão da objetividade do processo de pesquisa. A autora aponta que é necessária uma “escrita feminista do corpo que enfatize metaforicamente a visão” (Haraway, 1995, p. 20). Em outros termos, Haraway (1995) enfatiza que uma ciência, apoiada em saberes localizados, diz respeito aos sujeitos, não devendo esses serem reduzidos a meros objetos de pesquisa. Ao compreender esse processo, não será necessária a cisão entre sujeito e objeto, pois quando se aprende que um saber construído em um determinado território concerne aquele conhecimento localizado, os envolvidos no processo de pesquisa tornam-se responsáveis pelo que aprendem a ver. Este artigo torna-se pertinente por carregar consigo esse aspecto, o de corporificar o discurso feminino das prostitutas e da pesquisadora que se encontram num cenário usualmente masculino, tanto na prostituição, quanto na produção de conhecimento científico. Busca-se, portanto, refletir sobre o processo de uma pesquisa realizada com mulheres profissionais do sexo, sinalizando as reverberações e afetações da investigação na pesquisadora, a partir de uma perspectiva epistemológica feminista. Neste estudo, os termos prostituta e profissional do sexo serão utilizados como sinônimos.
A construção da pesquisa e o percurso metodológico
Os estudos sobre a prostituição perpassam por diferentes caminhos epistemológicos e são problematizados por abordagens em diversas perspectivas. Concepções provenientes do senso comum, que observam as mulheres prostitutas por vieses de vitimização, falta de oportunidade e desvio de caráter, coexistem com estudos acadêmicos que se interessam por esse tema a partir de múltiplos olhares. Ao tensionar a problemática da prostituição, Santos e Mayorga (2017) refletem que a experiência da prostituição, muitas vezes, reproduz uma dicotomia: ou as prostitutas são compreendidas como sendo o reflexo de sistemas de opressão, ou são compreendidas a partir de uma autonomia absoluta.
A pesquisa que deu origem a este artigo trata-se da dissertação de mestrado da primeira autora, sob orientação das demais autoras, e teve por objetivo analisar as vivências no trabalho e as histórias de vida de mulheres profissionais do sexo. A pesquisa foi realizada por meio de dois instrumentos, um questionário sociodemográfico e uma entrevista narrativa. O questionário sociodemográfico foi elaborado pelas autoras com o objetivo de identificar as participantes do estudo, contemplando itens como idade, estado civil, escolaridade e características do trabalho. A entrevista narrativa teve como objetivo conhecer a trajetória de vida das mulheres participantes da investigação.
Sendo assim, foram realizadas três entrevistas individuais com mulheres profissionais do sexo, com diferentes idades, entre dezembro de 2021 e março de 2022. O nível de escolaridade das participantes variou entre ensino fundamental completo e ensino médio completo. As três participantes possuíam filhos e tinham como principal fonte de renda a prostituição. As participantes receberam nomes aos quais elas mesmas escolheram para serem chamadas: Quenga, Garota de Programa e Acompanhante. A intenção foi preservar suas identidades, mas ao mesmo tempo dar voz aos seus lugares de fala, oferecendo um caminho de autonomia para seus discursos.
O estudo foi realizado na região do Vale dos Sinos, próximo à capital do Rio Grande do Sul, Brasil. O método utilizado para o acesso às participantes foi o Bola de Neve, porque atinge um grupo específico de participantes, sendo útil para estudar determinados grupos de difícil acesso (Vinuto, 2014). Tendo em vista o processo de inserção no campo de pesquisa, foi possível realizar diferentes aproximações com as mulheres entrevistadas, sendo o palco das entrevistas uma boate, um café e uma sala comercial. Todo o processo de pesquisa foi documentado por meio de um Diário de campo (Angrosino, 2009), que contemplou descrições detalhadas das experiências, sentimentos e reflexões da pesquisadora durante a coleta de dados.
Para fins de apresentação, as inquietações e afetações descritas nos diários de campo serão divididas em cinco partes neste artigo. A primeira, intitulada “O processo da pesquisa(dor)a” abordará as ressonâncias da pesquisa na própria pesquisadora, sendo as demais: “Quanto tu paga?”: dominação masculina; “Ela não tinha ninguém por ela, não valia nada...”: narrativas de resistência; “A patroa tá te esperando!”: sobreposição de preconceito; “Tem afeto, além de sexo”: identidade e reconhecimento enquanto mulheres, relacionadas às vivências e narrativas das mulheres entrevistadas.
Salienta-se que a referida pesquisa está amparada na Resolução nº 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia e na Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, a qual estabelece Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo Seres Humanos. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Feevale, sob o número 5.150.021.
O processo da pesquisa(dor)a
Tomada pelo desejo de investigação e conduzida pelos aportes teóricos bibliográficos realizados para qualificação da pesquisa, adentrei ao campo com o termo de consentimento, roteiro da entrevista e gravador. Acreditava que seria um percurso intenso, mas não tinha ideia do que estaria me aguardando a cada encontro com as pessoas e com os lugares dessa pesquisa. Quando nos propomos a pesquisar histórias, dados e informações para produzir ciência, muitas vezes não percebemos que vamos nos deparar com nossas próprias inquietações e afetações pessoais. Nastassja Martin (2021), em Escute as feras, reflete sobre essa questão: “Passei do estágio da dor, não sinto mais nada, mas contínuo consciente, nem uma gota me escapa, estou lúcida para além da minha humanidade, separada do meu corpo e ainda habitando nele” (p.9). A antropóloga retrata nessa obra, o encontro com um urso durante suas pesquisas nas montanhas de Kamtchátka, sobre o qual tece importantes reflexões a respeito dessa experiência. Conforme a autora, observamos que uma pesquisa está para um encontro entre mundos, onde as fronteiras se afrouxam para que possamos, enquanto pesquisadores, mergulhar (às vezes bem fundo) nas vivências dos sujeitos pesquisados. Pesquisar é “escutar as feras” e transformar em ciência.
As entrevistas com as três mulheres prostitutas permitiram tramar uma colcha de histórias e memórias, as quais foram dialogando com a quarta mulher do estudo: a pesquisadora. Ao percorrer os caminhos dessas mulheres, fui me deparando com os meus ao me deixar tomar por suas histórias e seus relatos, traçando uma linha que nos separava e nos unia enquanto mulheres. A seguir, apresento trechos do Diário de campo que foi construído ao longo do processo; esse documento serviu de apoio às inquietações e revelou também momentos de subversão, preconceitos e resistência. As categorias discutidas estão também nomeadas como lições que eu, pesquisadora e mulher, vivenciei ao longo do processo de coleta de dados. Foi importante poder nomear os aspectos levantados como lições, pois ao me deparar com o contexto da vida dessas mulheres pude observar as reverberações que causaram na minha construção cultural como mulher.
“Quanto tu paga?”: dominação masculina
Tendo como pano de fundo a dominação masculina que se estabelece na prostituição, tem-se a primeira lição: “O cafetão vai querer sempre cobrar por suas prostitutas, inclusive pelo silêncio delas” (Diário de campo, 2022).
Quando iniciei minha busca pelos sujeitos da pesquisa, comecei a fazer contato com algumas casas de prostituição. Consegui o contato de um cafetão - nome dado ao sujeito que supervisiona uma ou mais profissionais do sexo (Lins, 2014). Tentei algumas vezes conversar, realizando ligações telefônicas para que eu pudesse explicar minha intenção da pesquisa, mas minhas chamadas não eram atendidas. Parti então para mensagens via WhatsApp. Me esforcei para fazer um texto bem elaborado, e o retorno recebido surpreendeu pela forma como se apresentou, como fica explícito em determinado trecho do diário:
O dono da casa somente me perguntou se eu teria algum valor para pagar pela minha pesquisa. Expliquei a situação, trazendo que se tratava de uma pesquisa e que eu não tinha fomento para tal, e o que eu recebi foi somente: vou falar com as meninas... (Diário de campo, 2022).
Depois de algumas mensagens insistindo no retorno para agendarmos uma conversa, acabei desistindo. A partir desse momento, fui percebendo a dificuldade que eu teria para acessar as mulheres. Sentia que precisava da permissão desse homem para conseguir conversar com elas. Era como se uma mordaça invisível atuasse sobre os discursos delas e o meu, uma lógica patriarcal e de poder sobre nós mulheres. Percebi que eu, enquanto pesquisadora, também não tinha espaço para fazer-me ouvir, pois meu desejo de escutar essas mulheres encontraria alguns obstáculos; e um deles era de conseguir acessar as mulheres prostitutas através do cafetão.
À guisa dessas ideias, o patriarcado moderno aponta a diferença entre os sexos como uma diferença natural que estrutura a sociedade civil capitalista, sendo que um dos exemplos mais dramáticos se refere ao direito patriarcal dos homens sobre os corpos das mulheres exigindo que elas estejam com seus corpos à venda como mercadorias, como as prostitutas, por exemplo. Cabe salientar que ao trabalhar com o patriarcado está-se nomeando a sujeição das mulheres e o direito político que os homens exercem por serem homens (Azevedo, 2016). De fato, o domínio sobre o corpo e a voz da prostituta frequentemente passam por aquele que a conduz na prostituição, o cafetão. Algumas organizações especializadas em questões sobre prostituição apontam que 80% a 95% de todas as formas de prostituição são gerenciadas por um cafetão (Margotti, 2017), o que pode explicar os silêncios forçados que essas mulheres, muitas vezes, precisam enfrentar.
Nesse sentido, observa-se que o mundo patriarcal estabelece uma forma hierarquizada de ouvir, de falar, hierarquizando inclusive os sujeitos que falam, impondo domínio ao promover palavras de ordem, selecionando aquilo que pode ser ouvido ou não. Assim, apesar das mulheres serem falantes e ouvintes, elas se deparam com a submissão das diferentes formas de falar, ouvir e as múltiplas lógicas as quais precisam performar para moldar e escolher os sujeitos que as possam ouvir (Gebara, 2022). Nesse contexto, o estereótipo da puta que não pensa e não sente, está inerentemente ligado ao domínio sobre seu corpo, corpo esse que o cliente pode se apropriar como julgar conveniente, pois na perspectiva de poder sobre a mulher prostituta, seu corpo não passa de um objeto (Barberena y Ferrão 2021). Ainda na categoria de dominação masculina, o texto avançará para a segunda lição: “Não ache que o cafetão será sempre um homem!” (Diário de campo, 2022).
Dando continuidade à minhas buscas de sujeitos de pesquisa, realizando ligações para casas de prostituição, tenho a primeira resposta positiva, a qual registro em meu diário: “Realizei apenas uma ligação. Na primeira tentativa, uma mulher me atendeu, com voz rouca, provavelmente pelo uso abusivo do cigarro. Pedi para falar com o responsável pela casa, ela me disse: sou eu mesma” (Diário de campo, 2022). Conversamos e expliquei minha intenção de pesquisa. A mulher, dona da casa, foi bastante solícita ao meu pedido, dizendo para ir até à casa naquele momento, pois havia algumas meninas as quais eu poderia conversar e que o movimento de clientes estava tranquilo. Tomada por uma surpresa e alegria por ter conseguido uma resposta positiva para adentrar nesse espaço, me desloco até a casa imediatamente após desligar o telefone.
Chegando ao local, fui recebida pela cafetina que vestia um vestido cinza estilo modal, marcando todo o seu corpo; uma senhora, parecendo ter 60 anos de idade. O cabelo loiro, pintado com vários tons, denunciava os anos de diferentes pigmentos. Fui bem recebida, ela deixou que eu entrasse, conhecesse a casa e me apresentou às mulheres que ali estavam, me deixando à vontade para explicar minha pesquisa. Lembro que nos reunimos em torno de uma mesa de sinuca. Usei-a como apoio para minha papelada. Minhas mãos estavam trêmulas, sentia um misto de satisfação pelo passo importante que eu estava dando, mas um pouco aterrorizada por estar em um ambiente sobre o qual eu não tinha o menor conhecimento empírico. Me vinham muitas perguntas enquanto eu conversava com as mulheres: “E se algum cliente delas chegar aqui? E se for alguém que eu conheço? Como faço se, no meio da entrevista, uma delas for chamada para fazer o programa com um cliente?” Eram tantas dúvidas que em dado momento precisei silenciar-me das minhas inquietações para que pudesse deixar ali a angústia delas se fazer valer em palavras. Durante aquele bate-papo inicial fui observando o espaço: um lugar com muitos sofás, mesinhas e espaço de dança. A música ao fundo era de uma boa trilha sonora, bem dançante. Percebi que o lugar aos poucos se tornava um espaço menos estranho para mim; e as mulheres me ouviam, atentas ao objetivo da minha proposta de pesquisa. Uma delas, a Quenga, mencionou: “Acho bem importante esse tipo de pesquisa, pois as pessoas precisam saber que a gente não é lixo!” (Diário de campo, 2022).
A potência do enunciado de Quenga aparece quando ela menciona “o que se precisa saber”, no caso, que as mulheres prostitutas não são lixo. Silva (2018), parafraseando Foucault, aponta que o discurso é um objeto de poder e não simplesmente uma tradução de lutas ou de sistemas de dominação, pois o discurso é por aquilo que se luta, o desejo de se apoderar do próprio poder. Com isso, é importante refletir como as prostitutas procuram compreender-se a si mesmas, observando a resistência em relação aos poderes sociais normatizadores (Silva, 2018).
As reflexões aqui suscitadas permitem apontar para o fato de que as posições do cafetão e da cafetina, apesar de cumprirem a mesma função, parecem ser claramente diferenciadas. Com essas duas experiências foi possível perceber que a dominação não está na condição somente de ser cafetão, mas também de exercer poder sobre a mulher, o que denota o agravamento da lógica patriarcal que se atravessa nos discursos masculinizados. Num mundo dominado por homens, as escolhas das mulheres continuam ainda bastante limitadas, principalmente quando as prostitutas têm origens humildes. Nesse sentido, somente o empoderamento individual em favor do coletivo pode proporcionar uma potência verdadeiramente transformadora, pois o grande desafio da prostituição é não se submeter ao desejo do outro (Prada, 2018). De certo modo fica evidente que os discursos silenciados falam mais do que o próprio silêncio do cafetão frente a minha investida, produzindo ainda mais subsídios para reforçar a dominação masculina sobre as mulheres, em especial, as prostitutas.
“Ela não tinha ninguém por ela, não valia nada...”: narrativas de resistência
A categoria narrativas de resistência aponta para a terceira lição: “Uma história carrega muitas histórias” (Diário de campo, 2022). Ao realizar minha primeira entrevista, estava muito contente com meus inícios. Lembro que mandei mensagem para minhas orientadoras contando do quão intenso havia sido aquele encontro. Ouvi de Quenga sua história narrando muitas histórias. Quenga, ao ir contando sobre sua vida, foi fazendo costuras importantes sobre outras meninas e mulheres que fizeram parte da sua vida na prostituição; afinal, são 25 anos nesse trabalho convivendo com situações, não raramente, difíceis de dar um sentido. Quenga revela trajetórias de cuidados com as outras mulheres, pois em espaços onde circulou e circula ainda, conta que sempre está atenta para as outras meninas não serem tão inocentes em relação aos programas que fazem, orientando sobre o uso de drogas, álcool e preservativo. Na entrevista conta que cuidou de muitas meninas, e que inclusive ajudou várias a casar e sair da vida de prostituição. Quenga aponta abandonos e violências sofridas desde a infância, quando via a mãe apanhar do padrasto e tinha que a defender.
Ela também se emociona quando conta a história de uma menina para quem ofereceu abrigo e cuidado: “ela não tinha ninguém por ela, não valia nada...”. Nessa fala de Quenga se estabelece um aprendizado que transcende qualquer intenção de pesquisa:
(...) sentadas frente a frente em duas cadeiras desconfortáveis, cercadas por um corredor úmido e ruidoso havia um encontro, tal momento se fez quando um silêncio se apropriou de nós duas. Lembro de olhar para Quenga me sentindo tocada por aquelas palavras e pelo seu sofrimento ao lembrar daquela menina. Esperei Quenga se recompor do choro, mas me mantive ali com ela o tempo todo. Me senti fazendo o testemunho de uma história que precisava ser narrada. Acho que ela compreendeu meu olhar de gratidão e de valor por ela estar compartilhando comigo aquele momento (Diário de campo, 2022).
No dia seguinte da primeira entrevista volto ao local para conversar com mais uma mulher, conforme havia combinado. Trago a seguinte impressão descrita em meu diário:
Hoje chove muito, tenho a sensação de que o mundo vai desabar, em todos os sentidos. Minha noite não foi boa, meu sono não engrenou, fiquei muito mexida com as histórias contadas por Quenga. Sim, Quenga não conta somente sua história, me conta muitas histórias na sua história (Diário de campo, 2022).
A próxima entrevistada, a Acompanhante, carrega uma história de imigração. Chega ao Brasil há 20 anos e, desde então, atua na prostituição. Ela revela que foi seu primeiro patrão - dono de um bar onde trabalhava como garçonete - que a aconselhou a entrar neste ramo porque ele via que ela não tinha com quem deixar os filhos e não tinha condições financeiras de sustentá-los com o que ganhava. Segundo ela, essas foram as palavras de seu patrão à época:
(...)Oh, guria… o único jeito de tu dar uma vida boa para teus filhos, estudos… é ser acompanhante!” Abandonada pelo marido com as crianças pequenas, ela relata que não entendia nada da vida, como revela a seguir: “Porque eu perdi a virgindade com 19 anos, com o pai dos meus filhos. Casei, casada como manda a lei do céu e da terra (...).
Nas vinhetas apresentadas das histórias de Quenga e de Acompanhante observa-se que ambas precisaram encontrar caminhos possíveis para suas vidas e suas dores revelando a condição de mulher submetida à uma única posição, ser prostituta. Os sujeitos situam-se frente às suas condições histórico-sociais, pois eles não designam a homogeneidade, pelo contrário, os sujeitos são constituídos em gênero, classe, raça/etnia e demais marcadores sociais. Dependendo das condições históricas, um desses traços estará eminente, enquanto os demais traços estarão, ainda que vivos, submetidos à sombra do primeiro (Saffioti, 1999).
Assim, reforça-se a análise dos arranjos sociais das mulheres prostitutas conjuntamente com suas histórias e acesso aos recursos que possuem, pois as desigualdades e o estigma estão sempre presentes na vida das mulheres (Louro, 2017). Nessa direção, os movimentos feministas, que respeitam as particularidades de cada pessoa, podem ser importantes aliados, pois esses movimentos lutam para que a mulher saia da posição de inferioridade frente a lógica masculina, buscando princípios de equidade, de direitos e deveres.
Nesse cenário, como uma condição política e histórica, as lutas protagonizadas por prostitutas tornaram-se emergentes no Brasil e no mundo no final do século XX, especialmente após o surgimento do vírus HIV/AIDS. Atualmente, movimentos de mulheres prostitutas fortalecem-se dentro das especificidades da profissão, levando, cada vez mais, uma consciência sobre a opressão vivenciada no cotidiano de vida e de trabalho. Esses movimentos tomam força quando articulados a outros movimentos feministas e LGBT, disseminando ideias e valores de igualdade entre as prostitutas e permitindo-as ressignificarem suas experiências, pressupondo o fortalecimento do cotidiano e do enfrentamento nas suas relações (Diniz y Mayorga, 2018).
Indo nessa direção, a terceira entrevistada - a Garota de Programa - revela que estudar pode ser uma possibilidade de novos horizontes para sua vida, como mostra a fala a seguir: “(...) eu vou fazer ou uma faculdade ou um curso técnico. Vou me especializar na área da beleza, que é o que eu gosto, né. E vou investir, e vou fazer um pé de meia”.
No seu trabalho, ela revela que vive situações por vezes difíceis e que precisa fazer algumas pausas de algumas semanas nos atendimentos. Ela conta ainda, que já melhorou a forma como lida com as situações e que ter uma colega para dividir as angústias, torna o trabalho menos tortuoso, pois ambas se apoiam muito: “(...) tem como desabafar com ela, e ela tem como desabafar comigo. Então a gente se entende, a gente se entende muito. A gente se apoia, em muitas questões. E a gente precisa se apoiar hoje como mulher(...)”
De acordo com Diniz e Mayorga (2018, p. 5), “as mulheres prostitutas lidam cotidianamente com discursos que tendem a fixá-las em posições de passividade diante da vida”. São discursos construídos socialmente com diferentes explicações e interpretações sobre a condição de vida destas mulheres, relacionando “suas vidas a um barco à deriva” (Diniz e Mayorga 2018, p. 5). Na contramão disso, a narrativa da Garota de Programa, demonstra os caminhos que as mulheres prostitutas buscam em suas autonomias, pois ela pretende encontrar outros sentidos para sua história, como o desejo de construir um outro caminho pela via do conhecimento.
As histórias contadas por estas mulheres revelam facetas de submissão, mas também de subversão, nas quais elas oferecem suas narrativas e acontecimentos de suas vidas que tensionam uma condição de resistência para existirem enquanto sujeitos. Ao percorrer os caminhos da pesquisa realizando laços com as histórias das mulheres apresentadas neste trabalho, percebeu-se a importância da escuta no processo desta pesquisa, principalmente por se tratar da metodologia de histórias de vida. Desse modo, a história de vida emerge sobre o esforço de um narrador para reconstruir e transmitir os acontecimentos e as experiências de sua vida, através de um relato sobre a sua existência (Queiroz, 1988). Assim, sustentando essa narrativa, é importante salientar que é fundamental para o pesquisador rejeitar a ideia de que a identidade pode ser estudada como algo que já está dado, pois é fundamental a articulação entre a igualdade e a diferença, porque uma identidade nunca pode ser apresentada em sua totalidade devido ao sujeito que se pesquisa ser alguém que se apresenta como “caminhador” sobre a sua própria história perante os outros (Lima, 2014).
“A patroa tá te esperando!”: sobreposição de preconceitos
A categoria que discute a sobreposição de preconceitos assinala para a quarta lição: “Enfrentar o porteiro” (Diário de campo, 2022). Ao tomar rumos diferentes no percurso da minha pesquisa, vivenciei uma situação onde fui até outro local de atendimento da minha entrevistada. Era numa sala comercial que a Garota de Programa recebia seus clientes e me recebeu também. Nesse dia, cheguei na portaria do prédio comercial em torno das 10:00h, horário previamente combinado com a Garota de Programa. Cumprimentei o porteiro e pedi o número da sala. Primeiramente, ele me fitou com um olhar questionador, demorando um tempo considerável para responder aquilo que eu havia solicitado; pareciam segundos intermináveis. Pensamentos de repulsa em relação à postura do homem em relação a mim me invadiram: “O que mais tu precisas saber para me informar a sala e dizer que posso passar ao andar?” (Diário de campo, 2022).
Senti que o porteiro ficou curioso com a minha presença, pois após a “eternidade dos segundos” (Diário de campo, 2022), ele responde que acha que não há ninguém na sala em questão. Disse ao porteiro que eu faria contato com a garota de Programa e ele me indaga novamente: “mas tu marcou com ela?”. Respondo que sim. Na recepção do prédio haviam duas cadeiras, escolhi uma e sentei, fiquei em contato com a Garota de Programa por mensagem. Ela me avisou que iria se atrasar, mas que estava a caminho.
Em meio a nossa conversa por mensagem, a Garota de Programa pede para eu ver com o porteiro se a colega dela estava por lá, pois assim ela já poderia ir me recebendo. Naquele momento, pergunto ao porteiro sobre a colega e ele me questiona novamente: “mas tu marcou com ela?”. Respondo que sim, mas sou arrebatada com essa frase: “É que aqui é um prédio comercial!”. A partir daquele momento percebo que sou observada o tempo todo até a Garota de Programa chegar, em torno das 11:00h. Assim que ela aponta na porta do prédio, o porteiro a interpela dizendo: “A patroa tá te esperando!”. Naquele momento, a Garota de Programa e eu nos olhamos e fingimos não ter entendido o que ele disse. Frente ao nosso silêncio, o porteiro repete: “a patroa está ai”, sendo mais uma vez cordialmente ignorado por mim e pela minha entrevistada.
Entramos no elevador abandonando o rastro de desconfiança no porteiro. O discurso machista e masculinizado do porteiro parece revelar duas faces da lógica patriarcal que se relaciona com as profissionais do sexo. Uma delas diz respeito a suposição da heteronormatividade das relações estabelecidas. Isso porque, para o porteiro, uma outra mulher não poderia estar na condição de cliente, já que se apressa em dizer “é que aqui é um prédio comercial”, demonstrando toda a sua surpresa e incômodo pelo encontro que estava prestes a acontecer. A outra face, que se articula com a primeira, é a de demarcar a submissão e subjugação da prostituta em relação a outra mulher, no caso a pesquisadora que foi alçada à condição de patroa. Possivelmente por não conceber a possibilidade de que a pesquisadora fosse cliente, deduziu que seria então a chefe, a patroa. Certamente, vivenciar a situação com o porteiro promoveu a possibilidade novamente de denunciar a submissão da condição feminina frente à lógica de poder patriarcal.
“Tem afeto, além de sexo”: identidade e reconhecimento como mulheres
A categoria sobre o encontro possível entre mulheres aponta para a quinta e última lição: “Não acredite que todos os espaços de trabalho de garotas de programa são iguais” (Diário de campo, 2022). O encontro com a Garota de Programa se deu no espaço que ela atende. A entrevistada pede para eu ficar à vontade; me pede desculpas por não ter uma sala de espera. Digo a ela para não se preocupar. Percebo a boa vontade dela de estar ali, demonstrando interesse em contribuir para minha pesquisa. O lugar é simples, uma sala comercial dividida em duas salas ou quartos; ambos com colchões de casal no chão. Havia papel de parede e espelho. A Garota de Programa me convida para sentar, me aproximo da beirada do colchão para conversar, ela liga o ar condicionado para ficarmos mais à vontade. Além das duas salas/quarto, havia uma cozinha equipada e um banheiro. Nada era luxuoso, mas percebia-se que havia carinho, cuidado pelo lugar. Me senti confortável e bem acolhida; conseguimos dar, inclusive, boas risadas. Foi um encontro leve, apesar da história da entrevistada se mostrar difícil. Ao nos despedirmos, ganhei um abraço bem apertado e desejo de sucesso nessa minha pesquisa. Pensei: acho que sei por que os clientes voltam, tem afeto, além do sexo.
Ao encontro disso, foi possível perceber a importância de alguns momentos se despir do lugar de pesquisadora e produtora de ciência, pois ao estabelecer uma relação afetiva com a Garota de Programa, nossa entrevista também ocorreu de forma leve, menos persecutória que as demais que realizei com as outras duas entrevistadas. Nesse sentido, percebe-se que o que mais interessa aos participantes é a índole do pesquisador, ou seja, se ele é uma boa pessoa e se é alguém confiável (Minayo, 2012). Assim, para Minayo (2012), a austeridade e o comportamento confiável do pesquisador são aspectos fundamentais para sua inserção no campo. Talvez essa seja a lição mais significativa de todas no percurso da minha inserção no campo de pesquisa, a possibilidade de me despir de algumas amarras que o rigor da pesquisa convoca. Assim, mais despida e menos estranha no campo, foi possível estabelecer laços mais afetivos e de confiança em que o abraço e o sentimento de gratidão se fizeram mais presentes no meu processo como pesquisa(dor)a.
Pelas questões apresentadas que se reforça a importância da postura ética do pesquisador durante todo o processo de pesquisa, analisando sua implicação, sendo fundamental a sua presença sensível sobre os sujeitos de pesquisa e seu entorno. Nessa linha, sustenta-se que o olhar do pesquisador deve ser acompanhado de uma ética de ação, que consiste em conhecer e escutar o outro sem sair da sua posição de escuta; ao mesmo tempo, escutar-se a si mesmo com as ressonâncias que o outro convoca (Manrique, Di Matteo e Troussel, 2016).
Considerações
Apresentando essa pesquisa como uma possibilidade de reformulação de discurso, objetivou-se sobre o processo de uma pesquisa realizada com mulheres profissionais do sexo, sinalizando as reverberações e afetações da investigação na própria pesquisadora, a partir de uma perspectiva epistemológica feminista.
Foram evidenciados dados que refletem aspectos da dominação masculina, além de narrativas de resistência, preconceito, construção da identidade e reconhecimento das entrevistadas como mulheres. Como principais reflexões salienta-se o fato do poder que a lógica masculina exerce sobre as mulheres, sendo capaz inclusive de silenciá-las.
Na contramão dos discursos patriarcais, as narrativas das entrevistadas revelam caminhos de resistência frente aos desafios sociais e culturais que a profissão estabelece, como por exemplo, as narrativas de histórias de vida das entrevistadas. Nesse processo, foi possível perceber a potência que carrega o discurso, quando as próprias prostitutas conseguem fazer uso da palavra e narrar suas histórias. Por fim, a categoria de identidade e reconhecimento como mulheres revela a face da união das mulheres como possibilidade de luta, realizando ainda mais aberturas para o lugar de fala. Cabe aqui enfatizar o valor da epistemologia feminista enquanto contrassenso e necessidade, pois o feminismo preconiza a abolição da desigualdade de gênero, se estruturando como um conjunto de investigações e proposições de interesses sociopolíticos, em que os saberes individuais e sociais não podem ser oponentes; pelo contrário, precisam, apesar de percorrerem caminhos diferentes, andar juntos. Nesse sentido, a escolha de uma teoria não é o equivalente a decidir sobre uma verdade, mas sim como um ato verdadeiro de quem pesquisa (Longino, 2011). Assim, uma escolha teórica se baseia em um manifesto pessoal.
A partir disso, alerta-se para a necessidade de estudos críticos que outorguem à pesquisa sua dimensão política, ética e social, sustentadas por uma epistemologia feminista. As epistemologias feministas denunciam o caráter patriarcal do contexto social, ao mesmo tempo que revelam a invisibilidade das mulheres na ciência, tomando-as como objeto de investigação e de não-ação sobre seus discursos, fomentando sua condição inferior em relação ao homem, revelando o não-lugar que a mulher ocupa ainda no espaço de pesquisa. Longino (2011) reforça essa ideia, salientando a importância de construção de teorias a partir dos pontos de vista, em que se privilegiam as margens. A autora enfatiza que as teorias feministas revertem o aspecto de atribuição, subvertendo a teoria da justificação, proporcionando ao sujeito a busca por sua verdade, cuja intenção é de desmontar saberes unificados, o que tensiona, muitas vezes, a lógica de poder patriarcal.
Portanto, ao enfatizar a potência do discurso das mulheres enquanto pesquisadoras e pesquisadas, no sentido do que é falado tornar-se voz, buscou-se oportunizar as profissionais do sexo o efeito de tomarem a palavra e o discurso como produção própria. Nesse contexto, as reverberações que a pesquisa proporcionou à pesquisadora revelam importantes reflexões no que tange aos apontamentos das epistemologias feministas. A partir dos dados levantados sobre as vivências nos espaços onde as entrevistas aconteceram, pôde-se produzir relevantes considerações sobre ser mulher e ser prostituta.
Adentrar no campo de pesquisa foi um desafio para minha condição como mulher branca, pesquisadora, atravessada pelo discurso acadêmico. No entanto, ao construir esse trabalho, percebi o quanto se fez um processo também de (des)construção do meu próprio discurso. Nessa direção, o que é tensionado em todo esse processo é o quanto corpos e seus significados precisam coexistir para que eles não sejam construídos sobre discursos de transcendência, pois as teorias feministas críticas pouco querem se haver com essas perspectivas salvadoras, que reduzem sujeitos. Pelo contrário, esta pesquisa e as reflexões aqui explicitadas dialogam com a perspectiva de poder viver “em significados e corpos que tenham a possibilidade de viver de um futuro” (Haraway 1995, p. 16).
Finalmente, com essa pesquisa foi possível provocar os enunciados e as ideologias sobre o trabalho da prostituição bem como os caminhos de autonomia que as entrevistadas percorreram ao longo de suas vidas. Além disso, ao buscar a potência do discurso, abriu-se a possibilidade de fala dessas mulheres obturadas pelas circunstâncias de vulnerabilidade, preconceito e estigma. Conclui-se ainda que há um hiato que tensiona a posição feminina, como se a condição de ser prostituta anulasse a condição de ser mulher. Constata-se que a lógica patriarcal estabelece uma relação de poder ainda maior sobre as mulheres que trabalham com o sexo. Essa posição de abjeto necessita de olhares não somente de especialistas, mas das próprias mulheres que trabalham com a prostituição. Para isso, se faz necessário a continuidade de estudos e discussões sobre a temática da prostituição e seus atravessamentos sociais e culturais.