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Lingüística
versión On-line ISSN 2079-312X
Lingüística vol.32 no.1 Montevideo jun. 2016
https://doi.org/10.5935/2079-312X.20160005
Lingüística
Vol. 32-1, junio 2016: 79-93
ISSN 2079-312X en línea
ISSN 1132-0214 impresa
DOI: 10.5935/2079-312X.20160005
OS MORTOS EU ESCUTO, OLHOS DESPERTOS: HOMENAGEM A MOACYR SCLIAR
THE DEAD I LISTEN WITH MY OPEN EYES: HOMAGE TO MOACYR SCLIAR
Leonor Scliar-Cabral
Universidade Federal de Santa Catarina - Brasil
Palavras-chave: Tradução poética. Dificuldades. Espanhol/português. Quevedo. Barroco.
Keywords: Poetic translation. Difficulties. Spanish/Portuguese. Quevedo. Barroque.
The aim of this paper is a discussion of the criteria used on the translation of Spanish poetry into Portuguese. I thus exemplify it with the translations of Quevedo’s sonnets, specifically of the sonnet “Desde la torre”. I based the criteria upon theories of translation, more specifically upon poetic translation. I describe in detail the genre sonnet, particularly its metrics and rhymes, and the difficulties of translating them. I end the paper with a microanalysis of “Desde la torre” translation into Portuguese.
(Recibido: 30/1/15; Aceptado: 31/8/15)
1. Quevedo e o contexto histórico e literário
Para desfrutar das múltiplas leituras que Quevedo (Francisco Gómez de Quevedo y Villegas (1580-1645)) enseja, é preciso mergulhar nas desilusões de que foi vítima e na derrocada da Espanha do século XVII, cenário tumultuado do barroco: a Espanha era assolada pela Guerra dos Trinta Anos, derrotada pela Holanda e pela França. Nesse pano de fundo é que viceja o barroco literário espanhol, cujas principais características são o cultismo e o conceptismo, sendo Quevedo adepto do último, ao contrário de Gôngora. O autor do soneto, considerado o mais belo da língua espanhola por Damaso Alonso (1960: 395), “Cerrar podrá mis ojos la postrera/ sombra”, esteve desterrado três vezes em razão de intrigas palacianas e não é outra senão uma destas que inspirou o título do soneto “Desde la torre”. Dos topos por ele versados, desde os satíricos, até o amoroso, é sem dúvida ao tratar da morte e da brevidade da vida que o conceptismo é manejado de forma mais vigorosa: o neoestoicismo embasa-lhe as ideias, na esteira do pensamento de Sêneca, revisitado pelo cristianismo.
Deve-se entender o conceptismo como um estilo que pode tanto ser epigramático quanto vigoroso, cujas palavras ou frases concisas, brilham com a força e rapidez de um relâmpago. Há muito jogo de palavras e metáforas vivazes.
Mas o toque característico de Quevedo, conforme assinala Dámaso Alonso (1960) em vários passos, é sua afetividade: a “vitalidade eruptiva” (1960: 428/9), a “fúria forjadora”, e a “condensação” (1960: 376/376).
Quevedo é, talvez, dos poetas traduzidos por mim (Scliar-Cabral 1998), o mais hispânico sem, contudo, deixar de ser o mais universal e, ao mesmo tempo, histórico: emoções aprisionadas que afinal explodem, a satirização das vilanias humanas, o painel de uma Espanha em decadência são retratados com a maestria formal de quem domina a técnica petrarqueana, o maneirismo e o barroco, embora não se deixe por eles subjugar.
A ideia das paixões aprisionadas tem sua fonte mais na visão existencial de Quevedo do que talvez em experiências com mulheres reais, mas uma vivência muito concreta de prisão ele a teve por três vezes. Na última das prisões, no final da vida, de 1639 a 1643, permaneceu em cárcere domiciliar, sob suspeitas de sátira política ao rei Filipe IV (pobre de quem caísse sob a mira de Quevedo!).
2. Os topos em Quevedo
Com uma obra vastíssima, cuja cronologia ainda não foi estabelecida com precisão, o tema que sobressai nos sonetos por mim traduzidos (Scliar-Cabral 1998) é o da explosão de afetos. Ao se percorrerem os sonetos de Quevedo, pode-se notar a recorrência dos campos semânticos “fogo” e “prisão2. O primeiro aparece até a fadiga no jogo dos contrários dentro da tradição petrarqueana das parelhas como fogo/neve~água e na coletânea que eu traduzi vem ilustrado nos sonetos: “Os olhos cerrará a derradeira”; “Pedra sou em sofrer pena e cuidado”; “É nos claustros desta alma que a ferida”; “Ostentas de prodígios coroado”, como a seguir, respectivamente:
nadar sabe-me a chama na água fria (verso 7)
Em meio ao rubro fogo, ao me aguentar
sob teus escárnios ásperos e frios, (versos 9 e 10)
Bebe-me o ardor hidrópica esta vida, (verso 5)
de fogo e neve os feitos teus gigantes
Mas como em alta neve ardo acendido (versos 3 e 12).
Mas a obsessão pelo fogo interior aparece também em suas preferências lexicais e metafóricas por termos como "medulas" (em “Os olhos cerrará a derradeira”, verso 11); (em “E' nos claustros desta alma que a ferida", verso 4) e "salamandra” (em “Pedra sou em sofrer pena e cuidado”, verso 11).
A ideia de aprisionamento das paixões está nos primeiros versos do soneto:
É nos claustros desta alma que a ferida
jaz calada; porém sorve sedenta
a vida, que nas veias alimenta
chama pelas medulas estendida.
Um Bosch da literatura, Quevedo hiperbolicamente realça o grotesco humano, ilustrado abaixo com o soneto que satiriza a velhice feminina[1]. É exatamente na vertente satírica onde Quevedo apresenta uma de suas grandes originalidades. Abeberando-se nos registros populares, povoa seus versos de palavras e expressões que corriam na boca do povo, como são exemplo “repelón”, “antano”, “quijada”, “morenos”, “présteme un ochavo”, “guarismo” e assim por diante, contrariando a tendência predominante pelos cultismos.
Por outro lado, um verdadeiro painel da decadência hispânica, onde sua preferência pelos oprimidos é nítida, desfila diante de nós, desta vez lembrando Goya. E não por menos foi vítima de processos inquisitoriais, por zombar do próprio inferno. Seus apelos para que a morte o venha acolher atingem o máximo lirismo em “Já formidável e espantoso soa”:
Se agradável descanso, paz serena,
paramentada em dor a morte envia, (versos 5 e 6)
finde-me a vida e meu viver intime. (último verso)
Apesar de dominar as formas petrarqueanas e barrocas, o conceptismo e o cultismo, com todo seu arsenal de figuras mitológicas greco-latinas e, muitas vezes, quase que traduzindo os autores dentro desta tradição cultural (o que não lhe diminui o valor literário, como são exemplos as grandes contribuições de Plauto e Terêncio), Quevedo apresenta originalidades, conforme já assinalei: seu sincretismo pagão-cristão cuja inspiração pode ser rastreada no estoicismo de Sêneca ou num Marco Aurélio, de que é exemplo o tema da fugacidade da vida, jamais obscurece o lado mais forte de sua produção literária que é expressar o âmago das paixões humanas e os recursos formais dos quais darei alguns exemplos não se configuram como um fim em si mesmos, mas são criadores de tensões, que espelham as energias mais íntimas, a começar pelos paralelismos sintáticos, formando um tipo de correlação.
3. A tradução poética é possível?
O debate sobre a traduzibilidade da poesia se insere, em primeiro lugar, nas teorias da tradução de um modo geral. Conforme Paes (1996: 14), “Desde os seus mais recuados primórdios, a tradução pode então ser vista como um esforço de fazer o impulso positivo da linguagem para a abertura e a comunicação preponderar sobre a negatividade do seu outro impulso para o fechamento e a exclusão”... “o tradutor é um construtor de pontes linguísticas que ligam, umas às outras as ilhas idiomáticas fechadas em si mesmas”.
Paes se coloca, pois, entre aqueles que admitem a traduzibilidade, citando Walter Benjamin (1969: 79-80), ao referir-se à restauração na memória humana dos “traços da língua adâmica apagados pela maldição de Babel”: a existência de uma cognição humana universal, a despeito da diversidade linguística, daria suporte à traduzibilidade, uma vez que no processo tradutório o tradutor parte da interpretação do texto na língua fonte e conclui seu trabalho, disponibilizando ao receptor a mesma interpretação no texto de chegada. Conforme Gadamer (2010: 237), “O sentido deve ser mantido, mas por ter que ser entendido em um novo mundo linguístico, ele entrará em vigor de maneira nova. É por isso que toda tradução é interpretação”, ideia compartilhada por Theodor (1986: 13). Mais adiante, Gadamer (2010: 241) enfatiza o papel da recriação no processo tradutório.
Na corrente oposta se colocam vários teóricos da tradução, cuja base epistemológica afina com o relativismo linguístico de Sapir (1949) e Whorf (2012), ou seja, que os sistemas linguísticos, condicionados espacial e temporalmente, conformam o modo de perceber a realidade e, portanto, de pensar e isto impossibilitaria a tradução de cosmovisões distintas.
Num período (início do século XIX) em que a tradução ainda se volta muito para a tradução literal, palavra a palavra, Wilhelm von Humboldt (2010: 105) afirma no prefácio à sua tradução do Agamênon de Ésquilo: “Análise e experiência confirmam aquilo que já se observou mais de uma vez: que, abstraindo das expressões que designam apenas objetos físicos, nenhuma palavra de uma língua é perfeitamente igual a uma de outra”. Coseriu (2010: 261) critica a abordagem da tradução literal palavra a palavra, asseverando que “somente textos são traduzidos”, tendo que se levar em conta, ademais, os vários contextos extralinguísticos implicados: empírico, histórico, cultural etc.
O próprio Paes, no entanto (1996: 14), embora aceite a traduzibilidade, conforme comentei acima, no que se refere à poesia, afirma: “Em nenhum outro setor da atividade tradutória a luta contra o impulso isolacionista da linguagem é mais encarniçada do que na tradução da poesia”... “Isso na medida em que, para significar o máximo com o mínimo, lança mão de todos os recursos expressivos do idioma, em grande parte peculiares, exclusivos dele”... “Para desespero do tradutor de poesia, o extrato fônico é sempre o mais idiossincrásico”... “o tradutor de poesia se vê levado às vezes a soluções mais radicais do que as adotadas comumente na rotina do ofício de traduzir. Isso pode influenciar criativamente o próprio uso da língua para a qual ele traduz, enriquecendo-a de recursos de “estranheza” (id: 15). No entanto, Humboldt (2010: 111) alerta para: “Na medida em que faz sentir o estranho ao invés da estranheza, a tradução alcançou suas mais altas finalidades, entretanto, no momento em que aparece a estranheza em si, talvez até mesmo obscurecendo o estranho, o tradutor revela não estar à altura de seu original”.
Humboldt (2010: 105) também reconhece a impossibilidade de traduzir poesia, ao referir-se ao Agamênon. A unicidade de cada mensagem está vinculada ao conceito de energeia: “cada um deve carregar dentro de si o seu trabalho e o de todos os outros, esse surgimento deveria assemelhar-se ao surgimento de uma figura ideal na imaginação do artista. Esta tampouco pode ser extraída de algo real, ela surge por uma pura energia do espírito, e mais propriamente do nada, mas a partir deste momento ela passa a viver e ser real e duradoura” (Humboldt 2010: 105, 107).
Uma vertente muito forte sobre a tradução poética defende a ideia de que somente um poeta tem competência para fazê-la. Os argumentos alegados repousam no caráter eminentemente criativo da tradução poética com todas as implicações dele advindas sobre as ousadias permissíveis de violar o texto original (Manzoorul Islam 1995: 61; Paz 1992: 155; Silvestri 2003: 14).
Eco (2001: 13) assinala que o sentido completo do texto poético repousa também nas sugestões fônicas, bem como na rima e noutros aspectos sonoros, como a paronomásia, aludindo à análise de Jakobson ao exemplo “I like Ike”. É necessário frisar que Jakobson (1964: 356-357) não estava se referindo estritamente à poesia, mas sim à função poética da linguagem, que ele definiu como aquela que tem a mensagem em si mesma como seu foco (também para Silvestri 2003: 16). Assim, a função poética pode ser a predominante na escolha que a menina faz do adjetivo “horrible”, na expressão “The horrible Harry”, ao invés de “dreadful”, “terrible”, “frightful” ou “disgusting”, por se tratar de uma paronomásia. Eco (2001: 12) conclui que a noção de conteúdo proposicional só se aplica a enunciados que representam de forma não ambígua estados do mundo e nunca àqueles nos quais o foco é a própria mensagem, como ocorre quando a função poética predomina. A substância expressiva, pois, para Eco (2001: 88) é “fundamental no que diz respeito aos tópicos fonoestilísticos e ao ritmo discursivo, em geral”. Mas é justamente à substância expressiva que muitos negam a possibilidade de tradução (Silvestri 2003: 12).
As dificuldades para a tradução da poesia e da prosa artística já haviam sido assinaladas por Schleiermacher (2010: 67, 68) para as quais “tem também especial e superior importância o elemento musical da língua que se manifesta no ritmo e na entoação... Por conseguinte, o que ao leitor sensível da obra original impressiona neste aspecto como característico, intencionado e eficaz quanto ao tom e a disposição de ânimo, e como decisivo para o acompanhamento rítmico ou musical do discurso, deve também transmiti-lo o tradutor”.
Numa posição intermediária, encontram-se os teóricos como é o caso de Dollerup (1997, p. 129) que afirmam não ser possível encontrar equivalências na tradução poética, mas, sim, estratégias compensatórias, como a do uso de traços considerados poéticos por uma dada cultura.
O conceito de buscar equivalências na língua de chegada tem sido um dos mais debatidos pelos teóricos da tradução. Schleiermacher (2010: 49), em seu clássico ensaio sobre os diferentes métodos de tradução, ao comentar as dificuldades da tradução literária e científica, pontua a diferença entre “expressão equivalente” (a qual é impossível) e “mais aproximada” (a qual é possível). Já Coseriu (2010: 267), a partir de seu modelo tripartido de Significado 1 (o significado da língua fonte), Significado 2 (o significado na língua de chegada) e Designação, ou seja, o referente, só admite equivalências na designação. Para ele, “no processo tradutório em si – trata-se de encontrar significados na língua de chegada que possam designar a mesma coisa”. Na verdade, Coseriu defende (2010: 257) que os conteúdos linguísticos estão numa relação irracional, o que ele denomina de incomensurabilidade, sendo esta, em sua concepção, o problema principal da teoria da tradução, ou seja, “o problema da designação idêntica com diferentes meios linguísticos” (Coseriu 2010: 265). No entanto, a designação idêntica esbarra com as diferenças entre culturas, distanciadas espacial e temporalmente, conforme ironicamente acentua Nietzsche (2010: 197): “Existem traduções com intenções honestas que são quase falsificações e vulgarizações involuntárias do original, somente porque o seu alegre e corajoso tempo não pôde ser traduzido – tempo que, providencialmente omitido, supera tudo que é perigoso em coisas e palavras”.
Ao tratar da questão da incomensurabilidade, Eco (2001: 12, 13) assevera que, embora ela seja um fato, não se pode igualá-la à incomparabilidade. A possibilidade de comparar alarga os horizontes da traduzibilidade, desde que o tradutor não fique restrito aos limites linguísticos, valendo-se da intertextualidade, da narratividade e dos aspectos psicológicos.
Eco (2001: 14) aborda a questão sob outro prisma, ao propor a existência de um sentido profundo nos textos, ao qual o tradutor tem acesso através da interpretação, superficializando-o, ao traduzi-lo para a língua de chegada, mesmo ao preço de violações lexicais e referenciais. Ao afirmar que as traduções “não são sobre tipos linguísticos, mas sobre ocorrências linguísticas” e, ao lembrar a dicotomia chomskyana estruturas profundas e superficiais, seguem-se várias implicações: sobre o sentido profundo, superficializado nos enunciados intervêm vários fatores (que Coseriu denomina de contextos). Um primeiro fator que Eco menciona é o contexto total da obra, exemplificado pela tradução de al di là dela siepe, do seu livro O Pêndulo de Foucault. Trata-se de uma citação literária do soneto L’infinito de Giacomo Leopardi, como centenas de outras que recheiam o livro, para assinalar o estilo dos três personagens.
O tradutor inglês Weaver fez a melhor tradução, com uma “referência explícita a Keats” (Eco 2001: 16): “we glimpsed endless vistas”. Outro fator apontado por Eco é o das diferenças culturais que interferem na tradução de situações até banais. A expressão francesa “Cherchez la femme”, não pode ser traduzida por “Procure a mulher”, pois seu sentido é “onde houver encrenca, a causa está nalguma mulher”.
4. A necessidade da tradução poética
Apesar das imensas dificuldades com as quais se defronta a tradução poética, ela é necessária. Vários teóricos assinalam que ela permite aos que não conhecem a língua fonte, ter acesso a novas formas de arte e a novas cosmovisões, além de enriquecer a língua de chegada com novas formas de expressão (Humboldt 2010: 107, 109). Humboldt cita o exemplo do enriquecimento da métrica alemã, após a tradução dos clássicos gregos por Klopstock. Cito a contribuição de Plauto e Terêncio, ao traduzirem a Nova Comédia grega e, assim, estabelecerem a métrica latina.
O enriquecimento da língua e da cultura de chegada não é propiciado apenas pela tradução poética: o impacto sobre a língua e cultura alemãs, com a tradução ao vernáculo da Bíblia por Lutero foi assinalado por Humboldt e Eco (2001: 21) menciona a mudança radical no estilo do gênero filosófico francês, após a tradução de Heidegger, o mesmo acontecendo com as narrativas italianas, após a tradução dos autores americanos, anteriores à 2ª Guerra Mundial. Em decorrência, conforme Eco, o eixo do debate se desloca das relações entre língua fonte e língua de chegada para o “efeito que o texto traduzido tem sobre a cultura de chegada”.
5. Dificuldades da tradução poética
Traduzir poesia é um desafio, pois implica encontrar os recursos estilísticos na língua de chegada, ou seja, encontrar, dentre os parâmetros que definem um dado gênero, os que causarão no leitor efeito semelhante aos que sentem os leitores do texto fonte.
Borges (1999: 258) confessou que, se conseguisse traduzir a música do inglês ou do alemão para o espanhol, seria um grande poeta. Parafraseando, pode-se afirmar que somente quem lida com os efeitos musicais consegue traduzir poesia e este é o maior desafio, ou seja, conciliar os sentidos intencionados pelo autor com as soluções estéticas, encontrando-lhes as disponibilidades estéticas na língua de chegada, ou, como afirmava Dámaso Alonso (1960: 24), “em poesia há sempre uma vinculação motivada entre significante e significado”.
Dadas as dificuldades em encontrar equivalências na língua de chegada, particularmente no que dizrespeito à tradução poética, os teóricos da tradução têm sugerido estratégias compensatórias para que se obtenham efeitos similares durante a recepção. Gadamer (2010: 241, 243) explicita a trajetória, às vezes dolorosa, em que o tradutor busca um meio termo para conciliar a interpretação que faz do texto da língua fonte para disponibilizá-la na língua de chegada, através de vai e vens. Tal meio termo também é sugerido por Goethe (2010: 31), quando explica que existem duas máximas na tradução, a primeira que consiste em trazer a cultura de onde provém o texto a ser traduzido até a cultura da língua de chegada, havendo uma incorporação, enquanto a outra consiste numa trajetória inversa, ou seja, a sujeição “às condições, sua maneira de falar, suas particularidades”. Em caso de dúvida, Goethe sugere a primeira opção.
Schleiermacher (2010: 57) concebe o ideal que seria na tradução ou possibilitar que o leitor fosse ao encontro do autor do texto ou a recíproca, que o autor fosse ao encontro do leitor. Na segunda hipótese, o autor seria capaz de escrever a obra na língua de chegada, o que seria a tradução perfeita. É surpreendente que em 1813 Schleiermacher (2010: 61) já fizesse menção a “Poderíamos esboçar regras para cada um dos dois métodos, levando-se em conta os diversos gêneros de discursos”. Para se ter uma ideia das dificuldades na tradução de um soneto petrarqueano, como é o soneto “Desde la torre”, começarei por examinar as questões de métrica e rima.
Para resolvê-las, são utilizadas estratégias que envolvem inversões, acréscimos, omissões e substituições de itens, de preferência, puramente gramaticais, embora acréscimos e perdas de itens e/ou expressões que se refiram à significação externa sejam também utilizados; deslocamentos de maior monta implicam, em geral, mudanças morfossintáticas. Na esfera da significação são empregados recursos como a utilização de itens pertencentes ao mesmo campo semântico e de figuras como metáforas. Utilizam-se, às vezes, alguns recursos mais audaciosos, interpretados como o espaço de liberdade deixado à criação poética do tradutor. Tais dificuldades são acrescidas quando se comparam as diferenças entre a língua fonte e a língua alvo, como ocorre na tradução do espanhol para o português. A seguir, são sistematizadas e mais adiante aprofundadas:
a) o espanhol somente possui cinco vogais orais, ao contrário do português, que possui sete;
b) o espanhol não contrai as preposições com os artigos, ao contrário do português, do que resulta um maior número de sílabas por verso;
c) há diferenças marcantes no emprego do aspecto verbal;
d) há muitas discrepâncias quanto à incidência do acento de intensidade, ou seja, muitas palavras proparoxítonas são paroxítonas no espanhol;
e) falsos cognatos.
5.1 Problemas mais sérios de rima
As questões mais sérias de rima na tradução do espanhol para o português decorrem das diferenças entre os dois sistemas fonológicos, particularmente no que diz respeito ao sistema vocálico, uma vez que, como visto, o espanhol possui cinco vogais orais e o português sete, embora os grafemas para representá-las sejam os mesmos, a saber, “e”, “o”. Acrescem as diferenças relativas às consoantes nasais que, no espanhol, podem figurar em travamento silábico, ao contrário do português que compensa esta lacuna com os ditongos nasalizados, ausentes no espanhol.
A não observância destas diferenças acarretou várias falhas na tradução de Horta, Vianna e Rivera (2000), conforme dois exemplos a seguir:
À p. 49, no poema “Sonho” de Cristóbal de Castillejo, os tradutores rimam “vê-la” com “dela” e “bela”, conforme se pode verificar:
que em pleno maio me achava
em um lugar onde olhava
para uma linda ribeira,
tão verde, florida e bela,
que por mirá-la e por vê-la
mil cuidados desprezei,
e com só um eu fiquei
mui grande, por gozar dela.
No mesmo poema, à p. 51, rimam “cousa” com “saborosa” e “formosa”:
Afinal, nenhuma cousa
de prazer e de alegria,
agradável, saborosa,
nesta tão fresca e formosa
ribeira me falecia.
Observa-se, pois, que não é difícil cair na armadilha do grafema igual, sem lhe atribuir os valores diferentes que tem nas duas línguas.
5.2 Problemas de métrica
Os problemas de métrica, particularmente em versos heróicos, isto é, decassílabos com icto no sexto pé, decorrem de dois fatores principais, quais sejam, 1º, questões morfossintáticas, como por exemplo, a não existência de combinações ou contrações de preposições com artigos no espanhol, ao contrário do português; o fato de os artigos definidos no espanhol começarem por consoante, o que impede assimilações se a palavra precedente terminar por vogal; tempos compostos no espanhol que têm que ser traduzidos por tempos simples no português; 2º, questões de prosódia, já que muitos vocábulos paroxítonos no espanhol são proparoxítonos no português, principalmente quando se tratar de nomes próprios.
Sendo assim, conforme asseverei acima, são necessárias diversas estratégias que especificarei a seguir.
5.2.1 Inversões, acréscimos, omissões e substituições
Exemplo de inversão na tradução do soneto “Desde la torre”, determinada pelo fato de “morte” não rimar com “deserto” (1º verso), encontrei no 4º verso da 1ª estrofe:
y escucho con
Observe que houve duas inversões importantes: na primeira, o objeto direto (os mortos) foi anteposto ao verbo; na segunda o adjunto adverbial de instrumento, não só foi deslocado para o final do verso, como também foi substituído por um predicativo, com o acréscimo do adjetivo “despertos” e com as omissões da preposição “con” e do possessivo “mis”.
5.3 Campos semânticos e figuras
Abordarei neste passo questões mais específicas de semântica e figuras, particularmente metáforas.
Deve-se partir do pressuposto de que podem ser encontradas significações aproximadas na língua fonte e na língua de chegada, mas nunca de sentidos, já que seus respectivos leitores não compartilham as mesmas experiências socioculturais, estando implícitas as coordenadas espaço-temporais. Tal diferença já possibilita ao tradutor literário uma vasta margem de criatividade, sem discrepar em demasia dos significados originais.
Sendo assim, utilizará recursos como a substituição de palavras por itens pertencentes ao mesmo campo semântico, por paráfrases e por tropos. Às vezes, elimina itens não essenciais à ideia central.
5.4 Paralelismos
O primeiro paralelismo sintático de que tratarei é o que ocorre em “Os olhos cerrará a derradeira”. Trata-se de três sujeitos de orações partidas, coordenados assindeticamente, seguidos cada um por uma oração adjetiva (no primeiro terceto), criando uma tensão que se resolve na última estrofe, com a retomada dos três predicados, novamente coordenados assindeticamente, mas contrapostos cada um por adversativas:
Alma que todo um deus a tem rendido,
veias que a tanto fogo humor têm dado,
medulas que gloriosas têm ardido,
seu corpo deixarão, não seu cuidado;
serão cinza, terão, porém, sentido:
pó serão, porém, pó enamorado.”
Encontra-se outro exemplo de paralelismo sintático em “Pedra sou em sofrer pena e cuidado”, desta vez, coordenando sindética e assindeticamente predicativos que iniciam cada verso, seguidos de orações infinitivas adverbiais e criando uma tensão ainda mais prolongada, pois se estende ao longo de oito versos. Os predicativos são “Pedra”, “cera”, “sábio”, “néscio”, “medroso”, “valente”, “homem”, “besta”. Observe-se, pois, que cada um dos pares é de contrários, seguidos por uma oração infinitiva adverbial, a do primeiro verso: “em sofrer pena e cuidado”.
Já foi mencionado o uso dos contrários, tão caros à tradição trovadoresca e a Petrarca, mas outro recurso coocorrente é o dos versos bimembres, como em “Esta vida! Oh! Ninguém a mim responde?”:
“Falta-me a vida, assiste ao já vivido,” (verso 7)
“Ontem foi-se. O Amanhã, não anunciado;” (verso 9)
Em “Ostentas de prodígios coroado”: monte traidor e tumba fulminante, (verso 2).
Mas encontram-se também os versos trimembres, alguns deles a síntese da brevidade da vida como em “Essa vida! Oh! Ninguém a mim responde?”: sou um Foi, e um Será e um É cansado. (verso 11). Ou como em “Mandou-me, ai Fábio, que eu amasse Flora”: Terra será o corpo, é, foi nada (verso 12).
Como afirmei acima, todo este domínio formal não obscurece a explosão dos afetos, seja nos tons sombrios de convite à morte, seja nos tons rubros da chama que o queima, atingindo a perfeição nos fechos dos sonetos:
pó serão, porém, pó enamorado.
habitantes perenes de dois rios.
suceder de defuntos permaneço.
finde-me a vida e meu viver intime.
Meu coração é só reino de espanto.
E ardente imitação de ti no mundo.
eterno amante sou de eterna amada.
6. O soneto
O soneto é uma forma poética que data do século XIII, tendo se originado na Sicília, na corte de Frederico II e convive com a poesia provençal, mas quem estabeleceu sua forma, foi o poeta Guittone D'Arezzo. Os primeiros grandes clássicos do gênero são Petrarca e Dante. O primeiro legou seu nome a uma das formas mais difundidas do soneto, o soneto petrarqueano, adotado por Camões. Shakespeare compôs seus sonetos na forma inglesa, com três quartetos e um dístico.
Em Portugal, quem introduziu o soneto e vários outros gêneros poéticos, constituindo o denominado dolce stil nuovo foi Sá de Miranda, depois de ter realizado uma viagem à Itália no primeiro quartel do século XV.
A estrutura adotada nos sonetos de Quevedo é a petrarqueana.
Apesar de criticado, o soneto continua sendo amplamente praticado. O grande poeta cearense Francisco Carvalho (2010) pergunta: “Afinal de contas, se o soneto está realmente fora de moda, ultrapassado na forma e no conteúdo, por que tanta gente continua a escrevê-lo com tamanha convicção?”
6.1 A métrica
Começarei explicando as unidades de que se constitui o verso no soneto.
São elas os pés (provavelmente uma metonímia oriunda da marcação do ritmo) e têm origem na lírica grega, depois adotada pelos romanos. Plauto e Terêncio foram os criadores da métrica latina, ao traduzirem a Nova Comédia Grega, conforme já mencionado. Pode-se, pois, concluir, que o papel do tradutor vai muito além da tradução. Tanto no grego, quanto no latim, o acento fonológico é baseado na duração e, por isso, a métrica também o é. Assim, o que conta é como se articulam entre si as sílabas longas e breves, formando as unidades denominadas pés, valendo quantas são e a posição que ocupam. Trata-se, pois, de um sistema binário, sendo o limite das combinações possíveis determinado pela nossa capacidade de processamento.
Nas línguas cujo acento fonológico é baseado na intensidade, como é o caso do português e do espanhol, faz-se uma equivalência. Portanto, vejam-se quais pés, com suas respectivas denominações e formalizações, costumam ocorrer no decassílabo (verso com dez sílabas), usado no soneto “Da torre”:
Iâmbico (I), cuja formalização é - /, significando sílaba breve ou átona, seguida de sílaba longa ou mais forte, como o início do 1º verso da 2ª estrofe de “Da torre”: “Se
Troqueu (T), cuja formalização é / -, significando sílaba longa ou mais forte, seguida de sílaba breve ou átona, como nas três últimas palavras do 2º verso “com
Pirríqueo (P), cuja formalização é - -, significando sílaba breve ou átona, seguida de outra sílaba breve ou átona, como no início do 3º verso da 2ª estrofe: “e
Espondeu (E), cuja formalização é //, significando sílaba longa ou mais forte, seguida de sílaba longa ou mais forte. Não há exemplos em “Da torre”.
Anapesto (A), cuja formalização é - - /, significando sílaba breve ou átona, seguida de outra sílaba breve ou átona, e de mais outra sílaba longa ou mais forte, como os dois primeiros pés do 1º verso (linha 2) do soneto: “Retirado na
Datílico (D), cuja formalização é /- -, significando sílaba longa ou mais forte, seguida de duas sílabas breves ou átonas, como em destes
A seguir, explicarei os tipos de ritmo e suas denominações nos decassílabos, com a distribuição dos pés e os respectivos dígitos que representam qual é a sílaba mais forte e um exemplo.
Heroico propriamente dito (HP): 2, 6, (8), 10
e os
Heroico (H): 4, 6,10
e
Martelo-agalopado (M): 3, 6, (8),10
a vingar as injúrias de outrora, - - / - -/ - - -/ A A P I 3,6,10 M
Iâmbico (I): 2, 4, 6, 8, 10
Sáfico (S): 4, 8,10 e Gaita Galega ou Moinheira (GG): 4, 7, 10 não ocorreram no soneto “Da torre”.
7. Micro-análise da tradução de “Desde la torre”
Retirado en la
con pocos, pero doctos libros
y escucho con
o enmiendan, o fecundan
y en
al sueño de la
Las
de injurias de los años vengadora, a vingar as injúrias de outrora,
libra, ¡
En
pero aquélla el mejor
7.1 Análise estilística e a busca de efeitos estéticos na tradução
Já na primeira palavra, defronta-se com a polissemia em “Retirado”, pois tanto pode ter o sentido de alguém que busca a paz num retiro, quanto o do desterro que impuseram a Quevedo: inclino-me pela segunda interpretação, em virtude da metáfora “desertos”, imagem da solidão. No segundo verso, o autor alude ao confisco de seus livros, quando preso em 1639. O adjetivo “doctos” é repetido no último verso do primeiro terceto. Na primeira estrofe, só houve dificuldades no quarto verso, pois “mortos” não rima com “desertos”:
Fiz transposições sintáticas, arrastando “os mortos” para o início do verso e atraindo “despertos”, que estava no final da segunda estrofe, para coroar o final da primeira. Em virtude destas alterações, eliminei “con mis”.
O efeito destas mudanças foi a topicalização de “os mortos”. Convém acentuar que esse verso é dos mais belos de Quevedo, tanto é que dá título ao presente artigo.
Não só o autor utiliza a sinestesia e o paradoxo, quanto, como tantas vezes acontece na literatura, se antecipa aos achados científicos da neurociência, ao comprovar que, após o reconhecimento da palavra escrita pelos neurônios da leitura, se ouvem internamente as imagens acústicas que lhes correspondem. Antecipação semelhante do subconsciente foi registrada por Virgíle (1955, 1(26), p. 4) na Eneida, quando utiliza a expressão alta mente.
Na segunda estrofe, fiz algumas alterações lexicais na última palavra em três versos, em virtude das rimas.
No primeiro e quarto verso, foram determinadas por ter elevado “despertos” ao quarto verso da primeira estrofe. Acredito não terem acarretado violações semânticas de monta. Os dois primeiros versos são bimembres e tal recurso, muito petrarqueano, foi mantido. O terceiro verso, contudo, foi problemático, pois “contrapontos” não termina em “untos”. Para manter a métrica, inverti a ordem de “músicos calados”, substituindo este último por “silenciosos”: o oxímoro foi mantido, porém não consegui uma boa solução para “contrapuntos”. Esta palavra, além de conotar antítese, foi uma das formas musicais do barroco, cultivada por J. S. Bach. Também por questões de métrica, fiz um giro sintático em “al sueño de la vida”, alterado para “à vida em sonho”, pelo fato de no espanhol existirem duas sílabas em “de la”. Foi possível manter na tradução a metáfora “fecundam” e a anástrofe no quarto verso, características do barroco.
Os dois últimos versos do primeiro terceto se constituíram num grande desafio ao tradutor, em virtude de o espanhol possuir somente cinco vogais orais, ao contrário do português que possui sete. Em decorrência, não é possível manter o mesmo léxico, para a obtenção das rimas, como é o caso de “vengadora”. Utilizei um recurso sintático e transformei o adjetivo em verbo, mantendo o mesmo radical e substituí “de los años”, com sentido semelhante, por “outrora”, para manter a rima, porém, refiz a ordem das palavras, sacrificando a anástrofe do original, o que vai ocorrer, também, no último verso, uma vez que “imprensa”, não rima com “ausenta”. Usei o recurso da metonímia e a substituí por “livros”, colocando o sintagma no início do verso. Quevedo alude nesse verso ao seu editor e comentarista, Joseph Gonzalez de Salas.
O topos mais caro à poesia espanhola, a brevidade da vida, inaugura o último terceto, encerrado nos dois últimos versos por uma correlação. Novamente, em virtude de a ditongação das formas verbais rizotônicas no espanhol não ocorrer no português, fui obrigada a substituir “cuenta” por “assenta”, com regência distinta.
No plano fônico, a maior parte das sinéreses intervocabulares foi mantida na tradução, com vistas à fidelidade métrica.
A métrica do soneto foi analisada no item 4.1.
8. Conclusões
Para a compreensão das estratégias tradutórias por mim empregadas na tradução do soneto de Quevedo.
“
Por isto, iniciei o artigo com uma contextualização histórica e com uma evocação dos episódios marcantes na vida de Quevedo que serviram de pano de fundo para os topos em sua obra e, em particular, para o soneto que é o foco principal do artigo. Só assim é possível capturar a alusão à prisão e ao isolamento, no título e no primeiro verso de “
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Anexo
Apresentação bilíngue dos sonetos de Quevedo por mim traduzidos (Scliar-Cabral 1998):
Cerrar podrá mis ojos la postrera Os olhos cerrará a derradeira
sombra que me llevare el blanco día, sombra a me carregar no albor do dia
y podrá desatar esta alma mía e desatar minha alma poderia
hora a su afán ansioso lisonjera; hora ao afã ansioso lisonjeira;
mas no de esotra parte en la ribera mas não destoutra parte na ribeira
dejará la memoria en donde ardía; deixará a memória onde ela ardia;
nadar sabe mi llama la agua fría, nadar sabe-me a chama na água fria,
y perder el respeto a ley severa. rompendo a lei da qual é prisioneira.
Alma a quien todo un dios prisión há sido, Alma que todo um deus a tem rendido,
venas que humor a tanto fuego han dado, veias que a tanto fogo humor têm dado,
medulas que han gloriosamente ardido, medulas que gloriosas têm ardido,
su cuerpo dejarán, no su cuidado; seu corpo deixarão, não seu cuidado;
serán ceniza, mas tendrán sentido: serão cinza, terão, porém, sentido:
polvo serán, mas polvo enamorado. pó serão, porém, pó enamorado.
¡Ah, de la vida! Nadie me responde? Esta vida! Ninguém a mim responde?
¡aqui de los antaños que he vivido! Aqui os montes de anos já vividos!
La Fortuna mis tiempos há mordido; Pela Fortuna o tempo meu mordido;
las Horas mi locura las esconde. minha loucura, às Horas, as esconde.
¡Que, sin poder saber cómo ni adónde, Que, sem poder saber como e aonde,
la salud y la edad se hayan huído! saúde e idade haviam já fugido!
Falta la vida, asiste lo vivido, Falta-me a vida, assiste ao já vivido,
y no hay calamidad que no me ronde. e desgraça não há que não me ronde.
Ayer se fué; Mañana no há llegado; Ontem foi-se. O Amanhã, não anunciado;
Hoy se está yendo sin parar un punto: Hoje sem demorar se vai no berço,
soy un Fué, y un Será y un Es cansado. sou um Foi, e um Será e um É cansado.
En el hoy y mañana y ayer, junto Ao ontem, ao amanhã, ao hoje acresço
pañales y mortaja. Y he quedado as fraldas e mortalha. Atualizado
presentes sucesiones de difunto. suceder de defuntos permaneço.
Ya formidable y espantoso suena Já formidável e espantoso soa
dentro del corazón el postrer día; dentro do coração o último dia
y la última hora, negra y fría, e a derradeira hora, negra e fria,
se acerca, de temor y sombras llena. de sombras e temores cheia ecoa.
Si agradable descanso, paz serena, Se agradável descanso, paz serena,
la muerte en traje de dolor envía, paramentada em dor a morte envia,
señas da su desdén de cortesía; sinais dá seu desdém de cortesia;
más tiene de caricia que de pena. que é muito mais carícia do que pena.
¿Qué pretende el temor desacordado Que pretende o temor desacordado
de la que a rescatar piadosa viene de quem piedosa vem e me redime
espíritu en miserias añudado? o espírito em misérias afundado?
Llegue rogada, pues mi bien previene; Chegue rogada, e em mim o bem anime;
hálleme agradecido, no asustado; grato me encontre e não apavorado;
mi vida acabe, y mi vivir ordene. finde-me a vida e meu viver intime.
En los claustros del alma la herida É nos claustros desta alma que a ferida
yace callada; mas consume, hambrienta, jaz calada; porém, sorve sedenta
la vida, que en mis venas alimenta a vida, que nas veias alimenta
llama por las medulas extendida. chama pelas medulas estendida.
Bebe el ardor hidrópica mi vida, Bebe-me o ardor hidrópica esta vida,
que ya ceniza amante y macilenta, que agora cinza amante e macilenta,
cadáver del incendio hermoso, ostenta cadáver do formoso incêndio, ostenta
la luz en humo y noche fallecida. a luz em fumo e noite falecida.
La gente esquivo y me es horror el día; Da gente esquivo-me, é horror o dia;
dilato en largas voces negro llanto dilato em longos versos negro pranto
que a sordo mar mi ardiente pena envía. que ao surdo mar a ardente pena envia.
A los suspiros di la voz del canto. Aos meus suspiros dei a voz do canto.
La confusión inunda el alma mía. Minha alma em confusão já se asfixia.
Mi corazón es reino del espanto. Meu coração é só reino do espanto.
[1] Tema caro aos epigramistas gregos e latinos, cf. a Anthologia Palatina, livro XI (Grotius et al. 1871)