1. INTRODUÇÃO
O século XVIII se afigura como o momento em que a preocupação com a descrição das línguas, direcionada à variação que se registra de uma região para outra, ganha a atenção dos estudiosos, como assinala Pop (1950: XXII) ao afirmar que “Au courant du XVIIIe. siècle, les travaux concernant directement ou indirectement la dialectologie sont nombreux”1. Destaca o final desse século como de importância para a Dialetologia uma vez que passa a ocupar o interesse continuado dos linguistas, afirmando que
C’est seulement à la fin du XVIIIe. siècle que les dialectes ont retenu d’une manière constante l’attention des linguistes, auparavant, les recherches portaient principalement sur le problème de la formation des langues littéraires et de l’évolution du langage, car les théories de l’antiquité dans ce domaine ne satifaisaient plus les savants. (Pop, 1950: XXII)2
A tendência que se vê esboçada a partir do século XVIII não significa dizer que a variação dos usos em uma determinada língua tivesse sido desconsiderada até então. A história tem numerosos casos, uns mais outros menos recuados no tempo, de demonstração da consciência da variação presente entre os falantes. Entre os romanos, registra-se a estranheza da plateia quando os atores, nas apresentações teatrais, emitiam uma vogal breve em lugar de uma vogal longa e vice-versa, revelando que àquela época, provavelmente, a oposição breve x longa já não se lhes afigurava significativa, como menciona Cícero (Orat. 51, apud Faria, 1970: 66): “In uersu quidem theatra tota exclamant, si fit una syllaba aut breuior, aut longior”3. Por volta do século III D.C., o experiente gramático apontava, no Appendix Probi, o que não se deveria dizer, ou seja, tornava desacreditada e não aceitável a variante que apresentava o caminho da mudança em relação à forma tida como do padrão latino. Assim, em speculum non speclum (correção 3) indicava que se deveria dizer speculum, ou seja, a pronúncia com apagamento da vogal postônica não final era inaceitável. A esses juntam-se muitos outros exemplos, dos quais dois são aqui trazidos como ilustração para o português e o espanhol.
No tocante à língua portuguesa, Fernão de Oliveira ([1536] 2000), no cap. XXXVIII da sua Gramática da Linguagem Portuguesa, destaca, com maestria, os lados da variação, ao firmar:
As dições usadas são estas que nos servem a cada porta [...] E porém de todas elas, ou são geraes a todos, [...] ou são particulares: e esta particularidade ou se faz entre ofícios e tratos, [...] ou também se faz em terras [...]. E o velho, como tem o entender mais firme com o que mais sabe, também suas falas são de peso e as do mancebo, mais leves (Oliveira [1536] 2000: 131).
Como se vê, reconhece, com pertinência, especificando com muita clareza, o que hoje se rotula como variação diatópica, diastrática e diageracional, ao afirmar que esta “particularidade” se observa “entre ofícios e tratos”, “se faz em terras” e também as falas do velho são diferentes das do mancebo porque “suas falas são de peso e as do mancebo, mais leves”.
Covarrubias ([1611] 1994), no século XVII, de referência à pronúncia da palavra cebolla, no verbete cebolla do seu Tesoro de la lengua castellana o española, afirma, no que toca à Espanha, que “Con este vocablo prueban a los que sospechan ser moriscos, porque pronuncian sebolla, y aún los andaluces y valencianos, y gente de cerca de la mar. ”
O implemento dos estudos voltados para os dialetos produz o primeiro atlas linguístico, o Atlas Linguistique de la France - ALF (Gilliéron, 1902-1910), que vai definir um novo caminho da investigação da variação, introduzindo a metodologia do mapeamento linguístico. Tem, assim, início uma nova fase na abordagem da diversidade, com a descrição da variação apresentada de forma cartográfica, metodologia que une a geografia dos espaços à geografia dos usos de que se reveste toda e qualquer língua.
Implantado o novo método, ganha força a produção de trabalhos, particularmente na Europa. Produzem-se os primeiros atlas linguísticos voltados, inicialmente, para uma única dimensão, a diatópica. A exclusividade dada a uma metodologia monodimensional, porém, não significou a desconsideração de fatores sociais a serem observados na coleta de dados.
O primeiro desses atlas, o ALF, tem, no seu conjunto de informações, dados referentes a homens e mulheres de diferentes faixas etárias e representantes de graus de instrução diferenciado os quais, nada obstante a diversidade social que reúnem, não se apresentam expressos, visualmente, nas cartas linguísticas e, por isso, não se constituem em informação perceptível à simples consulta de cada mapa.
Nesse aspecto, reside a diferença entre o que vai caracterizar a metodologia monodimensional, vigente nos primeiros momentos, de outra, a pluridimensional que, ao considerar varáveis sociais e mantê-las sob controle na constituição de corpora, identifica, na cartografia, o controle de informações diatópicas, diastráticas, diagenéricas e dissexuais, ao lado da diatópica.
Passa-se a entender que a língua, realidade viva de uma localidade, de uma região determinada e passível de delimitação, não se apresenta uniforme nesse espaço considerado. A incursão na busca das razões conduziu à identificação de fatores sociais, intervenientes na postura do falante, responsáveis pelas diferenças linguísticas que se registram em uma mesma área.
Essa nova visão de configuração da realidade linguística de uma área considerada levou a que uma tendência metodológica, a pluridimensional, se difundisse e ganhasse ampla aceitação, passando a lastrear a maioria dos atlas linguísticos produzidos a partir da terceira década do século XX, iniciando-se com o atlas de Kurath e Bloch. (1939-1943), o Linguistic Atlas of New England (LANE) que vai trazer, pela primeira vez, o controle de variáveis sociais, com a documentação sistemática de informantes mais velhos e de meia idade, distribuídos por diferentes níveis de educação formal (pouca escolaridade, escolaridade média e escolaridade grande, em geral, universitária) e três graus de referência às relações sociais (escasso, médio e grande).
Considerando, pois, os caminhos da Geolinguística no contexto geral, apresenta-se o desenvolvimento desse campo dos estudos linguísticos no que concerne ao português brasileiro, focalizando os caminhos seguidos do Atlas Prévio dos Falares Baianos - APFB (Rossi, 1963), primeiro atlas publicado, ao Atlas Linguístico do Brasil - ALiB, que se inicia com os dois primeiros volumes aparecidos em 2014, e examinando o que já revelam os dados que integram o vasto corpus do Projeto Atlas Linguístico do Brasil.
2. A GEOLINGUÍSTICA NO BRASIL: DO APFB AO ALiB
Os estudos dialetológicos no Brasil, embora tenham contado, desde o século XIX, com alguns levantamentos, em geral referentes ao léxico, e trabalhos pioneiros sobre determinadas áreas, como, entre outros, os de (1920), Nascentes ([1922] 1953), Marroquim ([1934] 1996), estabelecem-se definitivamente como campo de pesquisa para o conhecimento da realidade linguística brasileira com a publicação do Atlas Prévio dos Falares Baianos - APFB, na segunda metade do século XX (Cf. Rossi 1963).
Do ponto de vista metodológico, o APFB se apresenta como um atlas monodimensional, uma vez que se registram, em geral, dois informantes por localidade, mas esses informantes não são estratificados quanto às variáveis sociais, geralmente consideradas (escolaridade, faixa etária, sexo4).
O APFB apresenta 154 cartas linguísticas, com dados fonéticos e lexicais, e mais 44 cartas-resumo que destacam, de forma sintética, as informações de algumas cartas. O corpus foi constituído in loco, através da aplicação de um questionário de 182 questões a 100 informantes, em 50 localidades baianas.
Após a publicação do APFB seguiram, até a implementação de um atlas linguístico do Brasil, no tocante à língua portuguesa, mais cinco atlas: o Esboço de um atlas lingüístico de Minas Gerais (Ribeiro et al, 1977), o Atlas lingüístico da Paraíba (Aragão e Menezes, 1984), o Atlas lingüístico de Sergipe (Ferreira et al, 1987) e o Atlas lingüístico do Paraná (Aguilera, 1994) - todos esses restritos à área de um Estado - e o Atlas lingüístico-etnográfico da região Sul do Brasil (Koch, Klassmann e Altenhofen (Orgs.), 2002), que cobre uma região geográfica, constituída por três Estados.
Do ponto de vista metodológico, destacam-se, entre esses atlas, o Atlas lingüístico de Sergipe (Ferreira et al, 1987) e o Atlas lingüístico do Paraná (Aguilera, 1994) como os primeiros atlas brasileiros bidimensionais, por apresentarem o controle, sistemático, da variável sexo.
O ALiB teve seu início em 1996, no Seminário Caminhos e perspectivas para a geolingüística no Brasil, realizado, por iniciativa de um grupo de pesquisadores ligados à área de Dialetologia, no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. Nessa ocasião, constituiu-se, para a coordenação do Projeto, um Comitê formado pelos autores de atlas brasileiros publicados e por um representante dos atlas então em andamento5.
O Comitê Nacional, atualmente, está constituído pelos pesquisadores: Suzana Alice Cardoso (Diretora-Presidente), Jacyra Andrade Mota (Diretora-Executiva), ambas da UFBA, e os Diretores Científicos Aparecida Negri Isquerdo (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul), Felício Margotti (Universidade Federal de Santa Catarina), Maria do Socorro Aragão (Universidade Federal do Ceará), e Vanderci de Andrade Aguilera (Universidade Estadual de Londrina).
O ALiB, metodologicamente, acompanha os parâmetros da Geolinguística Pluridimensional Contemporânea, contemplando, ao lado da diatopia, outras variáveis, como o sexo, a idade - faixa etária I, de 18 a 30 anos, e II, de 50 a 65 anos -, o nível de escolaridade, apenas nas capitais de Estado - nível fundamental e nível universitário.
Conta com uma rede de pontos constituída por 250 localidades, incluindo todas as capitais brasileiras, à exceção de Brasília (capital do País) e Palmas (capital do Estado de Tocantins), cidades fundadas na segunda metade do século XX, 1960 e 1989, respectivamente, e, por essa razão, não fornecerem informantes da segunda faixa etária, naturais da localidade, cujos pais tenham também nascido nessas localidades, de acordo com os requisitos para a seleção dos informantes do ALiB.
A diversidade de questionários utilizados para a obtenção dos dados linguísticos, no ALiB - fonético-fonológico (QFF), semântico-lexical (QSL), morfossintático (QMS), pragmático-discursivo, além de questões de natureza metalinguística e texto para leitura (cf. Comitê Nacional, 2001) - permite, ainda, a apuração da variável diafásica, a partir do confronto entre trechos mais monitoradas pelo falante (nos questionários de perguntas diretas) e relatos emitidos com maior grau de espontaneidade a respeito da própria vida, de acontecimentos marcantes, de sua ocupação diária, etc.
Nos dois primeiros volumes do ALiB, publicados em 2014 (Cf. Cardoso et al. 2014a, 2014b), encontram-se dados sobre a implementação do Projeto ALiB e a sua metodologia e 159 cartas linguísticas (46 fonético-fonológicas, 106 semântico-lexicais e sete morfossintáticas) referentes a amostras das capitais.
Os volumes 3, 4, 5, seguintes, em preparação, apresentarão comentários sobre os dados linguísticos que constam do volume 2 e outras cartas linguísticas ainda com as amostras de capitais. As análises do corpus documentado nas localidades do interior, já iniciadas, servirão de base para as cartas linguísticas que comporão os volumes 6 a 9, prevendo-se completar a divulgação dos dados já documentados em mais 11 volumes.
3. O PROJETO ALiB E AS REVELAÇÕES SOBRE O PORTUGUÊS DO BRASIL
Primeira empreitada linguística brasileira a apresentar uma documentação do português do Brasil de Norte a Sul, de Leste a Oeste, do Oiapoque ao Chuí - para evocar a palavra de Nascentes ([1922] 1953) ao mencionar o espectro espacial de sua investigação - o Projeto Atlas Linguístico do Brasil traz no seu corpo de dados relevante contribuição ao conhecimento da língua majoritariamente falada em nosso território.
Neste item do artigo são trazidos casos ilustrativos das revelações que o Projeto ALiB vem mostrando aos interessados na área aos quais se acrescentam outros originários do APFB, quando possível comparando os resultados das duas épocas.
3.1 ÁREAS E SUBÁREAS DIALETAIS NO PORTUGUÊS DO BRASIL
O corpus do ALiB, embora ainda não analisado integralmente, começa a delinear áreas e subáreas dialetais no português do Brasil, possibilitando a revisão de propostas anteriores, como, por exemplo, a de Nascentes ([1922] 1953), quanto à extensão e aos limites dos falares do Norte e do Sul, do subfalar baiano e do subfalar sulista. Permite, também, a visualização de subáreas, com base em diferenças fônicas e lexicais.
3.1.1 Falares do Norte versus falares do Sul
Antenor Nascentes ([1922] 1953), com base no timbre aberto ou fechado das vogais médias pretônicas e em diferenças entoacionais, admitiu, no Brasil, a existência de duas grandes áreas dialetais: a dos falares do Norte, com predominância de vogais médias abertas (como em [ɛ]l[ɛ]fante, c[ɔ]ragem), e a dos falares do Sul, com maior frequência de vogais médias fechadas (como em [e]l[e]fante, c[o]ragem), subdividindo cada uma dessas áreas em subáreas: no Norte, estariam os subfalares amazônico e nordestino; no sul, o baiano, o fluminense, o mineiro e o sulista.6
3.1.1.1 Vogais médias pretônicas nos falares do Norte e do Sul
Quanto ao timbre das vogais médias pretônicas, os dados do ALiB, já analisados, se, por um lado, confirmam a existência de duas áreas, uma ao Norte e outra ao Sul, mostram, por outro, algumas divergências com relação aos limites dessas áreas, assim como do subfalar baiano, tal como sugerido por Nascentes ([1922] 1953) e assinalam ilhas de vogais pretônicas predominantemente fechadas em espaço definido como de realização aberta.
Verifica-se, nas cartas fonéticas referentes às vogais médias pretônicas, no ALiB (cf. Cardoso et al, 2014b, cartas F01 V1, F01 V2), que o subfalar amazônico diferencia-se do subfalar nordestino, apresentando, em algumas áreas, maior frequência de vogais médias fechadas do que de abertas, em posição pretônica. Não se configura, portanto, a unidade que o autor identificou como falar do Norte.
Por outro lado, os dados do ALiB mostram que o subfalar baiano, considerado como um dos falares do Sul e “intermediário entre os dois grupos” (Nascentes ([1922] 1953: 25), aproxima-se muito mais dos falares do Norte, principalmente, do subfalar nordestino. Cf. Figuras 1 e Figura 2.
3.1.1.2Falares do Norte versus falares do Sul: diferenças lexicais
A diversidade que exibe o léxico de uma língua tem sempre uma grande amplitude, seja determinada por razões histórico-culturais, seja porque esse é o mundo da liberdade maior de criação do falante em face dos outros níveis (fonético e morfossintático).
Reconhecendo-se essa prerrogativa, e apesar de serem, até o momento, vinte e sete os conceitos do mundo biossocial considerados na publicação do volume 2 do ALiB, pode-se ilustrar a questão, mostrando preferências de uso que estão ao Norte/Nordeste e não se encontram registradas nas demais regiões.
A Figura 3, que reúne dados das Cartas L01, L06, L07 e L13, exemplifica a questão e apresenta respostas para os conceitos “granizo” (chuva de neve), “parte terminal da inflorescência da bananeira” (mangará), “penca de banana” (palma) e “bicho da goiaba” (tapuru).
As formas constantes da Figura 3 constituem-se em lexias não documentadas em outras áreas geográficas, o que configura uma seleção lexical específica dessa região.
Fato a ser destacado é a posição de Salvador (Bahia) e Aracaju (Sergipe), que se afastam da grande área traçada pelas quatro ocorrências selecionadas, com registro de apenas uma das denominações, chuva de neve. Trata-se, exatamente, dos dois estados que Nascentes ([1922] 1953) na sua divisão dialetal do Brasil, coloca na área do “subfalar baiano”.
3.1.1.3Subfalar sulista: diferenças lexicais
De acordo com a proposta de divisão dialetal apresentada por Nascentes ([1922] 1953), encontram-se, nos falares do Sul, além do subfalar baiano, os subfalares fluminense, mineiro e sulista. Os dados do ALiB têm possibilitado a discussão dessas outras áreas, tal como o fez Romano (2015), após a análise de dados de 118 localidades, com relação ao subfalar sulista, que, segundo Nascentes ([1922] 1953: 26), compreenderia os estados de “São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas (Sul e Triângulo), Goiás (Sul) e Mato Grosso”.
Romano (2015) propõe que o subfalar sulista seja subdividido em sulista e paulista, o primeiro restrito à parte meridional do País, representada pelo Rio Grande do Sul, parte dos Estados de Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul, e o segundo abrangendo, além de São Paulo, também Goiás, Minas Gerais e parte do Paraná e de Mato Grosso do Sul.7
Essa análise se baseou em respostas obtidas a cinco questões do questionário semântico lexical do ALiB (Comitê Nacional, 2001), a saber: (a) “ rio pequeno, de uns dois metros de largura” (QSL 001); (b) “frutas menores que a laranja que se descascam com a mão...” (QSL 039); (c) “criança (...) de 5 a 10 anos, do sexo masculino” (QSL 132); (d) “coisinhas redondas de vidro com que os meninos gostam de brincar” (QSL 156); (e) “pasta feita de frutas para passar no pão, biscoito” (QSL 177).
O autor observa, no falar paulista, “uma maior homogeneidade lexical na área geográfica, revelando um menor número de coocorrência de variantes lexicais” com “o predomínio das formas mais produtivas que são consideradas padrão” (Romano, 2015: 262), citando córrego (QSL 001), mexerica, poncã (QSL 039), menino, moleque (QSL 121), bolinha de gude (QSL 156) e geleia (QSL 177).
No falar sulista, as lexias encontradas revelam “o contato do português com línguas de imigração, o espanhol, o alemão, o italiano que se evidenciam por variantes presentes na norma lexical dos informantes”. (Romano, 2015: 263), como atestam, por exemplo, os vocábulos bolita (QSL 156), em que o sufixo -ita pode ser explicado por influência do espanhol platino, e chimia (QSL 177), do alemão schimiere “untura, lubrificante, graxa” que teria passado a identificar geléia “por extensão de sentido” (cf. Houaiss e Villar, 2001).
Além desses dois falares, há indícios de subáreas lexicais, que se identificam ora com o falar paulista, ora com o falar sulista (cf. Romano, 2015: 264).
As cartas do ALiB (Cardoso et al., 2014b) Tangerina (L05) e Bolinha de gude (L18) mostram a distribuição de duas das variantes aqui citadas, nas capitais de Estados do Centro-Oeste, Sudeste e Sul.
3.2 CONSERVADORISMO E INOVAÇÃO NO PORTUGUÊS DO BRASILFigura 7 Figura 8
O português do Brasil vem traçando caminhos que mostram, ao lado da continuidade em comum com o mundo da lusofonia, aspectos de conservadorismo e de inovação. Apresentamos, a seguir, alguns exemplos, já apontados por inúmeros pesquisadores, que vêm sendo confirmados pela geolinguística brasileira.
3.2.1 Na fonética
Na fonética, destaca-se, aqui, a realização palatalizada das consoantes dento-alveolares, oclusivas /t, d/, lateral /l/ e nasal /i/, diante de vogal alta [i], na maior parte das áreas brasileiras, fato que Silva Neto ([1950] 1986: 162) relacionou a “certo relaxamento da articulação”, que se documenta, também, em outras línguas transplantadas. Essas palatalizações seriam, segundo o autor, “mais ou menos pronunciadas à proporção que se baixa ou se sobe na escala social”.
Os dados atuais mostram, ao contrário do que observara Silva Neto, o predomínio dessas variantes palatalizadas, inovadoras, no português do Brasil, como variantes de maior prestígio do que as dentais, conservadoras.
3.2.1.1 Conservação da articulação dental das oclusivas /t, d/ diante de vogal alta [i]
As variantes dentais para o /t, d/ diante de vogal alta [i], tanto em casos de /i/ fonológico ([i] proveniente de /i/), como em tia, dia, como naqueles em que a vogal resulta do alteamento de /E/ átono ([i] derivado), como em tarde, noite, caracterizam subáreas dialetais, no português do Brasil.
Quanto à distribuição diatópica nas capitais brasileiras, embora se documentem, também, em outras áreas, é em parte da região Nordeste que as variantes dentais [ti, di] ocorrem com maior frequência, delineando-se, aí, uma subárea dialetal, como se verifica nos dados da Tabela 1 e na Figura 3, referente à carta F06 C1 (cf. Cardoso et al, 2014b).
CAPITAIS | /t, d/ + [i] | ||
[i] < /i/ | [i] < /E/ | ||
São Luís | 100 | 100 | |
Fortaleza | 100 | 100 | |
Salvador | 100 | 100 | |
Teresina | 97 | 91 | |
Natal | 30 | 31 | |
Recife | 21 | 26 | |
João Pessoa | 18 | 16 | |
Aracaju | 16 | 24 | |
Maceió | 16 | 16 |
Fonte: Banco de dados do ALiB. Elaborada pelas autoras.
O prestígio das variantes palatais inovadoras (realizadas como oclusivas palatais [tj] e dj] ou como africadas palatais [tʃ] e [dʒ]) abre caminho para um processo de mudança, que se pode observar, por exemplo, confrontando duas sincronias, a partir dos dados do APFB e do ALiB, como o fizeram Cardoso e Mota (2013).
Consideradas as nove localidades da Bahia, que constam da rede de pontos dos dois atlas8, registram-se, nas cartas do APFB, apenas seis ocorrências de variantes palatais, localizadas em Santa Cruz Cabrália (Sul) e em Caetité (Centro Sul).
No corpus do ALiB, no entanto, a análise dos vocábulos também presentes nas cartas do APFB (prostituta, sutiã, trasanteontem, dente, para as surdas; diarista e velide, para as sonoras) mostra o aumento percentual das variantes palatais, registrando-se, aí, em um total de 47 ocorrências da consoante surda, 72% de realizações palatais e, em 23 da sonora, 78% de palatais.
3.2.1.2 Conservação da articulação dental das consoantes lateral e nasal /l, n/ diante de vogal alta [i]
Como as oclusivas /t, d/, as consoantes lateral e nasal /l, n/ também se palatalizam, no português do Brasil, diante da vogal alta [i], como se pode observar na carta F03C1 do ALiB (cf. Cardoso et al, 2014b), Figura 4 no vocábulo liquidação (questão 095 do QFF). Documenta-se, porém, em grande parte do Nordeste, a conservação da variante dental, acompanhando a tendência observada com relação ao /t, d/.
A propósito do fato, observam Oliveira, Lima e Razky (2016: 67), a partir do confronto entre as cinco regiões geográficas brasileiras, com base nos dados do ALiB, referentes às capitais: “O Nordeste, com 25% de palatalização, é a única região cuja frequência fica abaixo de 50%”.
Esse índice de 25% de palatalização do Nordeste destoa das demais regiões do Brasil, mas destoa especialmente da região Norte, o que demonstra que essas duas regiões, apesar de geograficamente próximas, são linguisticamente distantes. (Oliveira, Lima e Razky, 2016: 63-72).
Quanto à consoante nasal dento-alveolar, nesse mesmo contexto, análises preliminares têm apontado a manutenção da variante nasal dental [n], em vocábulos como bonito (questão 037 do QFF), menino (questão 132 do QSL)9, no Nordeste, que se apresenta, quanto ao fato, como uma subárea dialetal conservadora.
3.2.1.2 No léxico
As investigações dialetais presenteiam o pesquisador com revelações que, provavelmente, não lhe chegariam por outros caminhos, por exemplo, o da consulta aos dicionários tradicionais da língua. Exemplifica esse caso a documentação de sarolha no português brasileiro.
Trata-se de denominação para terra levemente molhada, ou seja, terra úmida, registrada, com idêntico valor, por D. João I no Livro da Montaria (Pereira, 1918: 150). Integrante do acervo lexical do português arcaico, desaparece do uso geral da língua o que a faz escapar ao registro dos dicionaristas nas suas obras, tanto as editadas em Portugal como as produzidas no Brasil. A recolha de dados para o Atlas Prévio dos Falares Baianos (Rossi, 1963) mostrou, de maneira inconteste, a presença de sarolha e variantes (sarolhada, sarobada e zarolha) no território baiano, com uso que se pode qualificar de generalizado, uma vez que ocorreu em 34 dos 50 pontos da rede, como se mostra na Figura 5.
A esses dados da década de 60, do século XX, juntam-se, na atualidade, os reunidos no corpus do Projeto Atlas Linguístico do Brasil, os quais permitem o traçado que se exibe na Figura 6 e assinalam o registro da forma numa parte específica do território brasileiro, o Nordeste.
Como indicam as informações cartografadas na Figura 5, sarolha, na Bahia, está documentada na parte mais central do Estado e em direção ao Norte, deixando de aparecer no extremo Sul, como atestam os registros do APFB, que passamos a identificar como sincronia 1.
Observando-se a Figura 6 vê-se confirmada a mesma distribuição areal de sarolha com os dados do ALiB, identificados como sincronia 2. Os resultados apresentados referentes à sincronia 2, ALiB, resultam de levantamento em todos os pontos da rede - 250 localidades, 1,100 informantes - e mostram que a forma não só continua documentada na Bahia, mas está registrada, também, em Sergipe, Alagoas e, sob a variante zarolha, nos estados de Pernambuco, Ceará, Piauí e Maranhão, portanto na Região Nordeste.
Nesse exemplo temos um caso de conservadorismo lexical, documentado exclusivamente nessa área geográfica do Brasil, onde transita de forma representativa em duas sincronias. Em algumas áreas, documenta-se expansão de sentido, como ratificam as ocorrências de farofa sarolha e beiju sarolho, no Estado de Sergipe, para, respectivamente, uma espécie de farofa meio molhada em cuja feitura se usa água e não óleo, e um tipo de beiju, iguaria feita com tapioca, molhada com leite de coco.
E se põe, não pode escapar, a pergunta: Por que isso se deu/se dá no Nordeste? Pela impossibilidade de expandir-se a questão, a resposta fica para outro momento.
3.2.2. Alguns casos de inovação, caminhos de mudança
O português brasileiro, nas características que o diferem do português europeu, apresenta inovações e traz, em alguns casos, indícios de mudança, como se observou, anteriormente, de referência à palatalização das consoantes dento-alveolares /t, d, n, l/, diante de vogal alta anterior.
Apresentam-se, neste item, casos ilustrativos de possíveis mudanças, no nível da morfossintaxe.
3.2.2.1 O que se passa na morfossintaxe
Três exemplos, documentados no volume 2 do Atlas Linguístico do Brasil, são aqui destacados: o uso de ter/haver com sentido existencial, o plural de degrau e a forma de tratamento, tu ou você, dada ao interlocutor.
O sentido existencial expresso, no padrão da língua, por haver apresenta, no português brasileiro, uma forte tendência de substituição por ter. Os dados revelados na Figura 6 exibem a prevalência de ter, o que mostra um caso de variação, mais propriamente um caso de mudança em curso.
O Questionário Morfossintático do ALiB apura, com a pergunta 16, a formação do plural para degrau. Os dados constantes da Carta M01E mostram os resultados obtidos para degraus e degrais, apresentados segundo o grau de escolaridade do informante.
Além dessas, uma terceira variante, marcada pelo morfema zero, foi registrada, configurando-se, do ponto de vista diastrático, as seguintes características de uso: o padrão da língua, degraus, apresenta maior índice de ocorrência entre os informantes de nível universitário; a variante com morfema zero, predomina entre os de curso fundamental, e a variante com morfema inovador, -ais, aparece como segunda opção entre os de curso fundamental e, também, entre os de nível universitário, entre os quais se registra um percentual de 17%. A Tabela 2, que resume a integralidade dos dados constantes das respostas à questão formulada, fornece o perfil de uso pelos informantes e sugere um possível caminho de mudança.
Variante Escolaridade | degraus | degrais | degrau( | Total | |||||
Nº | % | Nº | % | Nº | % | Nº | % | ||
Fundamental | 22 | 23 | 33 | 34 | 41 | 43 | 96 | 100 | |
Universitária | 74 | 77 | 16 | 17 | 6 | 6 | 96 | 100 | |
Total | 96 | 50 | 49 | 26 | 47 | 24 | 192 | 100 |
Fonte: Banco de dados do ALiB. Elaborada pelas autoras.
O terceiro caso a que se dá destaque, refere-se ao uso de tu/você, no tratamento com o interlocutor. Trata-se de casos em que tu/você são comutáveis, aparecem em idênticas situações de uso e com o mesmo valor semântico e discursivo.
A Carta M02 mostra a prevalência de uso de você, destacando-se ilhas de domínio do tu. Salienta-se, na distribuição esboçada, a posição de Porto Alegre, no extremo Sul, onde o uso de tu se configura geral, chamando a atenção a coincidência de percentuais para esse mesmo uso em Florianópolis, também na Região Sul, e em quatro capitais ao Norte: Rio Branco, Belém e Macapá, na Região Norte, e São Luís na parte mais extrema da Região Nordeste. E, novamente, se põe uma indagação: por que essa similitude entre regiões extremas, separadas por um imenso vale de você? E fica mais essa resposta para um outro momento.
4. PARA CONCLUIR
Buscou-se, neste artigo, dar uma visão, ainda que breve, da contribuição dos estudos geolinguísticos para o conhecimento do português brasileiro e para a construção da socio-história da língua majoritariamente falada no país.
Assim, destacaram-se fatos demarcadores de áreas dialetais, conservadorismos e inovações no português do Brasil, exemplificados com dados do corpus do ALiB, em alguns casos, confrontados com os do APFB, que possibilitam flagrar processos de mudança em andamento.
O caráter exemplificativo adotado, no entanto, não permitiu que se comentassem outros fatos, de não menor importância, tanto no nível fonético, quanto no morfossintático e lexical, como se ilustra a seguir.
No nível fonético, a discussão sobre a origem das realizações abertas das vogais médias pretônicas, características, como vimos, da Região Nordeste e de algumas áreas da Região Norte, que, segundo alguns autores (cf., por exemplo, Teyssier, 1982: 81), podem ser vistas como um traço conservador da pronúncia trazida pelos portugueses, explicado pela generalização do timbre aberto de vogais pretônicas decorrentes de crases antigas (como em esqueecer > esqu[ɛ]cer; coorar > c[ɔ]rar).
No léxico, a presença das línguas indígenas em denominações de itens do mundo biossocial correntes no país, assim como vestígios de línguas africanas, como ilustram os exemplos: (a) piá e guri (do tupi), respostas ao QSL 132 (“menino”), sobretudo na região Sul; (b) carapanã, (também do tupi), para “pernilongo” (QSL 088), que consta da carta L14 do ALiB, delimitando uma subárea dialetal, representada pelas seis capitais que constituem a região Norte; (c) moleque (“menino”), também resposta ao QSL 132, dado como originário do quimbundo. E, como vimos, os empréstimos das línguas de imigração estabelecidas em várias partes do território nacional.
No nível morfossintático, além dos já citados, outros casos (gênero dos nomes, formas imperativas, frases negativas, etc.) vêm sendo analisados a partir do corpus do ALiB, com utilização não só das respostas às 48 questões do Questionário morfossintático, mas também a partir dos trechos de elocução espontânea, registrados nos comentários do informante ou, sistematicamente, nos discursos solicitados ao final do inquérito. Espera-se que, ao trazer esse conjunto de dados, se tenha possibilitado uma visualização da realidade do português brasileiro e do que ainda venha a ser revelado com os resultados, em análise, do vasto corpus do Projeto ALiB