1. Introdução: caracterização do percurso teórico-metodológico
Em dimensão pancrônica, contemplamos, neste artigo, apenas uma das funções do pretérito mais-que-perfeito: a conjuntiva (nos termos de Said Ali 1964), cuja significação envolve, predominantemente, ou condição ou comparação. Embora do corpus tenham sido coletados todos os dados de mais-que-perfeito, 3.654 dados, e estes distribuídos em seis funções: passado do passado, passado em relação ao momento de fala, desiderativa, discursiva, condicional e conjuntiva (respectivamente, ilustradas de 01 a 06), só uma delas será aqui explorada, a conjuntiva, visando à verticalização analítica.
1. Havia o abolicionista por convicção e idealismo; havia o abolicionista que desejava aparecer, a vã ostentação de que FALARA José de Alencar, e auferir vantagens em promoções de natureza vária; havia o abolicionista por conveniência: o mercado de escravos ARREFECERA porque o tráfico FORA extinto; TORNARA-SE encargo pesado a manutenção de escravos em decorrência da Lei do Ventre Livre e da Lei dos Sexagenários; a abolição seria um alívio também para os donos de escravos... (Instituto do Ceará - Artigo: José de Alencar, 2006: 67) (Instituto do Ceará, revista do ano de 2006: 67).
2. No Ceará, a Faculdade de Direito ATENDERA, a partir de 1903, quando ENTRARA em funcionamento, ao desejo de uma vitória para alguns intelectuais empenhados nessa conquista desde a legislação dita do “ensino livre”. (Instituto do Ceará - Artigo: Professor Antonio Martins Filho, um exemplo de vida e imortalidade, 2002: 261) (Instituto do Ceará, revista do ano de 2002: 261).
3. Não conheci Pedro Jaime de Alencar Araripe, evocado a 17 de outubro de 2009 pela transcorrência, nessa data, do bicentenário do seu nascimento. Também PUDERA! (Efeméride: Bicentenário do nascimento de Pedro Jaime de Alencar Araripe, 2009: 290) (Instituto do Ceará, revista do ano de 2009: 290).
4. Tal função supramencionada - de relator ou escriba, sem conotação alguma de subordinação ou de ironia, por ela ser realmente de mentor sub-reptício - Francisco Alves a DESEMPENHARA no I Seminário da UFC. (Instituto do Ceará - Artigo: Francisco Alves de Andrade e Castro, 2001: 337) (Instituto do Ceará, revista do ano de 2001: 337).
5. Se Pinzón também tivesse tido a idéia de navegar para leste, não HOUVERA custado a descobrir o cotovelo sul-americano, como fez Lepe. (Instituto do Ceará - Artigo: Protohistória cearense, 1944: 138) (Instituto do Ceará, revista do ano de 1944: 138).
6. Preocupada com os problemas de nossa região, o Nordeste, problemas que, como a seca, não FORA a corrupção, a má gestão dos recursos financeiros... já poderiam estar devidamente equacionados e possivelmente resolvidos. (Instituto do Ceará - Discurso: Saudação à professora Dra. Rejane Maria Vasconcelos Accioly de Carvalho como sócia efetiva, 2002: 126) (Instituto do Ceará, revista do ano de 2002: 126).
Essa multifuncionalidade da forma de mais-que-perfeito foi evidenciada em outras pesquisas. Coan (2003), por exemplo, conjugando tempo, ponto de referência, modalidade sequencialidade/contrassequencialidade, mostra 377 dados em que tal forma tem quatorze significados, dentre os quais a expressão de condição e comparação condicional, função diferente daquela, frequentemente, ilustrada em materiais didáticos (a de passado do passado).
Esse significado de condição passada bem como o de comparação condicional (ambos de função conjuntiva) foram, conforme a autora, perdendo espaço ao longo do tempo, pois decresceu radicalmente o uso à medida que os séculos passaram: dos 55 dados encontrados na amostra do século XVI ao século XX, 47 são do século XVI.
Esses achados instigam-nos a buscar dados de mesma natureza. Se o uso é rarefeito na escrita do século XVI ao XX, haveria ainda resquícios em nosso tempo? Essa primeira tarefa envolveu a delimitação do fenômeno, já que a forma de mais-que-perfeito se presta a várias funções, dentre as quais optamos pela conjuntiva (ilustrada em 06), uma das menos usadas ao lado da função condicional e da optativa (ilustradas, respectivamente, em 05 e 03) e, também, envolveu a escolha não aleatória do corpus. Escolhemos, portanto, um corpus em que há esses resquícios: revistas históricas (conforme procedimentos explicitados na metodologia deste artigo, seção terceira).
Consideramos, a priori, alguns estudos com dados de fala para refinar a escolha da amostra, um sobre o mais-que-perfeito do indicativo e três outros sobre o imperfeito do subjuntivo (forma que, atualmente, codifica a função que queremos investigar, porém a investigamos com a forma do pretérito mais-que-perfeito). Coan (1997), em dados de fala provenientes de entrevistas sociolinguísticas, não detectou tal função, o que nos levou a acreditar que, não sendo forma de larga escala para expressar condição, poderia haver resistência em alguns gêneros escritos; eis por que trabalhamos com dados de escrita e não de fala. A autora observou que, em dados de fala, o uso da forma do mais-que-perfeito simples é restrito às projeções (dera, pudera, quisera), por vezes em estruturas cristalizadas, já gramaticalizadas, como é o caso de “tomara”. Já o imperfeito do subjuntivo é frequente para expressar condição no português do Brasil, como podemos verificar nas pesquisas de Gryner (1998), Neves e Souza (1999), Prestes (2003) e Back (2008), embora não seja exclusivo. Gryner (1998), por exemplo, registra, ao lado dos usos irreais (SE + imperfeito do subjuntivo), usos reais (SE + presente do indicativo) e potenciais (SE + futuro do subjuntivo). “Os reais pressupõem a afirmação do conteúdo proposicional; os irreais pressupõem sua negação e os potenciais não pressupõem nem realidade nem não-realidade do conteúdo proposicional” (Gryner 1998: 08).
Esses estudos com dados reais e atuais corroboram o exposto em materiais didáticos: é o imperfeito o exemplo de conjuntivo (em estrutura condicional). Tal constatação e a leitura assistemática de materiais didáticos direcionaram nossa escolha pelo corpus: dados de escrita, dados históricos, dados provenientes de vários gêneros textuais e dados dos últimos séculos, incluindo-se dados atuais (século XXI). Chegamos, pois, às revistas históricas do Instituto do Ceará. Todas as demais razões que nos levam a este corpus são detalhadas na metodologia.
Se o pretérito mais-que-perfeito simples como passado do passado é pouco utilizado em detrimento da forma composta e do pretérito perfeito, tanto em dados de escrita atuais (conforme Gonçalves 1993) como em dados de fala atuais (conforme Coan 1997), será, então, mais escasso ainda o mais-que-perfeito conjuntivo, correlação forma-função que conjuga forma pouco utilizada e função codificada frequentemente pelo imperfeito do subjuntivo.
Sabíamos que poucos dados nos esperavam em volume textual imenso (de, aproximadamente, nove mil páginas), por isso a análise foi exaustiva e envolveu parâmetros que pudessem caracterizar contextos mais prototípicos desta função que aqui nos interessa: a conjuntiva. Escolhemos pressupostos funcionalistas para guiar nossas análises, o que talvez já seja evidente pela recorrência do termo função neste início de texto. Foram considerados, para efeitos de análise, os seguintes parâmetros: tipo de construção semântico-sintática, uso de conectivo (marca de condicional na estrutura), tipo de verbo, factualidade, ordem entre prótase e apódose, polaridade, referência temporal, gênero textual e sincronia.
Todos esses grupos, a serem detalhados na metodologia, foram escolhidos porque podem nos mostrar a atuação de princípios e premissas funcionalistas na configuração da gramática: papel da Modalidade, atuação dos princípios de marcação e expressividade retórica e unidirecionalidade da mudança. Além do mais, já foram testados por outros autores que consideraram o tema em pauta. Aliada a uma análise qualitativa, apresentaremos, no decorrer do texto, frequências brutas, pois acreditamos, como Fox (2007), que a frequência modula a gramática. Também a frequência é critério para testarmos o princípio da marcação. Essas diretrizes serão explicitadas oportunamente, na análise e discussão dos dados.
Esses primeiros parágrafos direcionam a configuração deste artigo: há uma seção de revisão da literatura, uma metodológica e uma que discute os resultados à luz de pressupostos funcionalistas. Esse percurso didático retrata o caminho escolhido para que pudéssemos dizer um pouco mais sobre contextos de resistência de uma forma, por vezes, relegada, por ser considerada arcaica, obsoleta, desusada. Das funções codificadas pelo mais-que-perfeito, as mais antigas são a de passado do passado, a de passado conjuntivo e a de passado condicional, estas duas últimas desprovidas de atenção em dados do português do Brasil, possivelmente, por estarem restritas a contextos escritos mais formais, como evidenciaremos mais adiante, mas, sendo o mais-que-perfeito variante histórica, parece ter achado um lugar em textos históricos.
Outro ponto de relevo é o fato de a mudança não ter se efetivado como substitutiva em larga escala, ou seja, nem todo mais-que-perfeito simples foi substituído: há ainda o simples em muitos nichos, com frequências mínimas, mas está lá, resistindo, persistindo na língua, embora revestido de valor estilístico. Ressalva-se, contudo, que falamos em persistência porque, pelo que atesta Becker (2008), o mais-que-perfeito conjuntivo, em português, resistiu somente até o século XIX. Apresentaremos, no entanto, dados atuais, porém estilísticos, o que nos leva a incluir, também na análise, a dimensão estilística.
Ao coletarmos os dados nas revistas históricas do Instituto do Ceará, verificamos grande quantidade de ocorrências de mais-que-perfeito, distribuídas em seis funções (conforme demonstram as tabelas 01 e 02), dentre as quais destacamos a conjuntiva, objeto particularizado de investigação neste artigo. Na amostra de 1944-1956, localizamos 2386 dados, dos quais apenas 25 codificam a função conjuntiva; na amostra de 2000-2012, foram encontrados 11 dados de conjuntivo dentre os 1268 usos de mais-que-perfeito.
Essa quantidade de dados alerta-nos para o fato de que há resistência da forma, que vai ficando mais escassa com o passar do tempo, já que há 25 dados na primeira amostra e somente 11 na segunda.
Embora tenhamos poucos dados de mais-que-perfeito conjuntivo, função que queremos aqui investigar, visamos a apresentar um contexto de resistência mais alargado, até o século XXI e não restrito até o século XIX. Parece que falar de 36 dados dentre 3.654 (somadas as duas amostras) é insignificante, mas, em alusão ao discutido por Labov (2010), ao tratar do problema da restrição: não há um caráter irreversível da mudança, embora haja unidirecionalidade. Ao fazer referência ao principio de Garde - incorporações são irreversíveis - (citado em Labov 1994), o autor (2010), embora no âmbito da fonologia, mostra que influências externas podem reverter incorporações, mesmo que isso não seja comum. Estendendo a discussão para o âmbito do mais-que-perfeito conjuntivo, pode-se aludir ao que Becker (2012) trata como função residual do pretérito mais-que-perfeito.
A mudança, em princípio, consolidada no século XIX (conforme Becker, 2008), tem contra-evidência nas revistas históricas, pois há uns poucos dados de mais-que-perfeito simples na função conjuntiva (expressão de condição ou de comparação condicional). Tratar de uma variante residual também tem seu mérito, não só por mostrar irreversibilidade da mudança, mas por permitir que detalhes da história dessa forma integrem retratos históricos da língua.
2. Revisão da literatura: na busca pelo mais-que-perfeito condicional
Embora o mais-que-perfeito condicional não seja matéria frequente, há registros aqui e acolá sobre tal função. Cunha e Cintra (2008), por exemplo, registram que, na linguagem literária, o mais-que-perfeito ocorre no lugar do pretérito imperfeito do subjuntivo, como em (07), uso que, pelo exposto, é particular da linguagem literária, o que tem respaldo na observação de Almeida (1989), ao registrar que, “em certos casos”, (o imperfeito do subjuntivo) é elegantemente substituído pelo mais que perfeito do indicativo (Almeida 1989: 226).
Outra especificidade de uso decorre de simetria em todo o enunciado: de acordo com Barbosa (1830), ao usar -ra para expressar o condicional no lugar de -ria (pretérito perfeito relativo), usa-se também -ra em lugar de -sse. Adverte, no entanto, o autor que a substituição de -sse por -ra é restrita às condicionais, como em (08).
7. Assistimos à divina Tragédia, como se FÔRAMOS, no prodigioso quadro, os últimos personagens póstumos do Mestre. (Teixeira de Pascoaes - In:Cunha e Cintra, 2008: 472).
8. Se eu FORA hum dos beneméritos; em mim mesmo, e no meu próprio merecimento achara tão grandes razões de me consolar, que sem outra mercê nem despacho, me dera por mui contente e satisfeito. (Pe. Antonio Vieira - In:Barboza, 1830: 214).
Já Fiorin (2016: 184) diz que, “no português moderno, usa-se tal “embreagem” em orações condicionais e concessivas em que o subjuntivo é de rigor” (como em 09). Acrescenta o autor que tal uso se pode associar à modalidade, para admitir como verdadeira uma hipótese. Também considerando a modalidade (realis, irrealis1), mas combinando-a com outros fatores: tempo da situação codificada pelo pretérito mais-que-perfeito simples (passado, presente e futuro), ordenação (sequencial, contrassequencial e cotemporal) e tempo do ponto de referência (passado, presente ou futuro)2, Coan (2003) elenca quatorze usos do mais-que-perfeito, dos quais dois têm função condicional: situação passada irrealis que se estende ao presente tendo-o como ponto referência, conforme exemplo (10), e passado irrealis sequencial a um ponto de referência passado (condição passada em relação ao ponto de referência), conforme exemplo (11).
9. Se não FORA ele, eu estaria perdido. (Fiorin, 2016: 184).
10. Quando finalmente julgava realizar a minha felicidade, sou repelido como se FORA o maior criminoso! (Tojeiro, 1973: 72)
11. Lamento, por amor de ti apenas, as venturas sem par que perdeste. Que mau sestro te levou a não as querer gozar? Ai, se as PROVARAS, verias que eram mais gostosas que a satisfação de me haveres seduzido, e reconhecerias que se é mais feliz e que é bem mais agradável amar com ardor do que ser amado. (Alcoforado, 1962: 29).
Ainda Martins e Paiva (2013) observam, na carta de Pero Vaz Caminha, o valor de imperfeito do subjuntivo em uma estrutura variante do esquema condicional: a oração comparativa-condicional ((como se (não) + V-ra)), como no exemplo (12):
12. Acabado ocomer metemo nos todos no batel e eles cõ nosco ·/ deu hu)u) gromete ahu)u) deles hu) u)a armadura grande de porco montes bem Reuolta e tamto que atomou meteoa logo no beiço e por que se lho no) quería te)e)r · derã lhe hu)u)a pequena decera vermelha e ele corejeo lhe detras seu aderemço pera se te)e)r e meteoa no beíço asy Reuolta pera cjma e vijnha tam comtente com ela como se TEUERA hu)u)a grande joya. (Martins e Paiva, 2013: 545).
Conforme as autoras,
“Essa possibilidade de emprego do PMQPS com valor -realis já era atestada em latim, principalmente com os verbos modais poder e dever, expressões modalizadoras como “ser necessário”, “ser desejável”, com os verbos credo, puto, arbitror, opïnor e análogos, especialmente se precedidos de negação (Ex: non crediderat = não teria acreditado, melius fuerat = teria sido melhor), e na apódose de períodos condicionais” (conforme Ravizza 1958 apudMartins e Paiva 2013: 543).
A utilização do mais-que-perfeito em períodos modais foi também atestada em dados analisados por Coan (2003) e por Brocardo (2010). Coan (2003) atestou a relevância dos tipos de verbo, ao considerar a tipologia proposta por Vendler (1967): atividade, accomplishment, achievement e estado, além de verbo dicendi, verbo de cognição e verbo modal. Conforme a autora, pode-se aludir à tendência de o mais-que-perfeito simples permanecer no campo dos verbos modais, o que sugere um processo metafórico: de expressão de situações em espaço real para situações do campo psicológico (do desejo, da pretensão), processo metafórico que, segundo Sweetser (1990), tem guiado mudanças semânticas. O fato de o mais-que-perfeito aparecer cada vez menos em contextos mais dinâmicos e menos durativos (com verbos de atividade, accomplishment e achievement) abriu caminho para o uso do mais-que-perfeito composto na indicação de passado, ficando o simples no campo dos verbos menos dinâmicos e mais durativos: modais, cognitivos e estativos (Coan 2003).
Brocardo (2010, 2012) argumenta que a preservação da forma do pretérito mais-que-perfeito simples não poderia ser considerada marginal, embora, no português contemporâneo, esteja confinada à literatura ou a usos muito restritos.
Ocorre que, em dados diacrônicos, há um número considerável de usos do mais-que-perfeito, incluindo-se as formas atestadas com valor modal, que persistem hoje em expressões fixas, tais como: Quem me dera (ser rica), parafraseável por Como eu gostaria de (ser rica), ou Fora eu (rica)..., parafraseável por Se eu fosse (rica)..., logo, com valores geralmente expressos por condicional ou conjuntivo (exemplos da autora). Conforme Brocardo (2010), a leitura modal do mais-que-perfeito já ocorria em latim, sendo esta leitura, possivelmente, uma das condições que levaram ao desuso do mais-que-perfeito na atualidade com acepção de passado do passado; outra é o sincretismo da terceira pessoa do plural do mais-que-perfeito e do perfeito, mas mais relevante, de fato, parece ter sido a competição com a forma composta. Em amostra do século XIV, Silva (1989) verificou usos do mais-que-perfeito em condicionais e em sentenças irrealis em 13,6% dos dados; os demais correspondem ao valor temporal básico de passado do passado.
Não ser atualmente comum, em português, a expressão condicional em -ra pode decorrer da existência de outros mecanismos de codificação da modalidade irrealis na expressão de condição, como é o caso do imperfeito do subjuntivo (-sse); o uso de -ra torna-se, portanto, conforme Becker (2008: 106), “uma estratégia estilística altamente marcada no reino da retórica pomposa”. Ainda nos termos do autor, esse movimento do mais-que-perfeito permaneceu como tentativa ao irrealis, não sendo repetido pelo resto da comunidade de fala. Contrariamente, em espanhol, conforme Rojo e Vázquez Rozas (2014), há largo uso da forma -ra nas condicionais, mas a forma em -se resiste, pois é sentida como mais elegante, mais próxima da língua culta. O valor temporal do -ra ocorre em contexto estilisticamente marcado (Rojo 1996); seria arcaísmo ou dialetalismo (Alarcos 1994). Com valor condicional, -ra é mais frequente na oralidade e -se na escrita como variante estilística (Alarcos 1994). Pelo que tem sido mostrado na literatura, parece que é exatamente o oposto em português: os usos de -ra com valor de futuro do pretérito e de pretérito do subjuntivo ocorrem na linguagem literária (conforme Bechara 2009; Coan 2003 entre outros).
A função do mais-que-perfeito ora investigada, também o foi por Becker (2008), porém em dados do espanhol, com o intuito de mostrar a evolução de tempo para modo. Aponta o autor o século XIX como um marco para o desuso do mais-que-perfeito modal em português, o que aguça ainda mais nossa busca por dados dessa função em particular. De acordo com o autor, o mais-que-perfeito evoluiu para um imperfeito do conjuntivo, ocupando o lugar desta forma verbal (que, por sua vez, correspondia à continuação do mais-que-perfeito do conjuntivo latino). A alteração vincula-se a contextos condicionais, estendendo-se o uso da apódose para a prótase; contextos sem estruturas explicitamente condicionais e contextos com verbos modais como poder ou frases negativas, nos quais tanto uma leitura temporal como uma leitura modal seriam possíveis, desembocando o mais-que-perfeito para contextos de leitura ‘irrealis’. Para o autor, a combinação para que + -ra/-se é um contexto no qual as formas em -ra vão incrementando seu uso como formas subjuntivas. Essa polissemia é um estágio da mudança: um valor ‘marginal’ se torna central (Becker 2008). Ainda observa o autor que, em português, há estreitamento da função temporal enquanto, em espanhol, há transformação ao passado do subjuntivo.
Tem ficado evidente que o uso do -ra, em espanhol, é frequente em estruturas condicionais, as mesmas verificadas por Coan (2003) para usos do mais-que-perfeito condicional em Português, com frequência acentuada no século XVI. Conforme Martins e Paiva (2013), no entanto, parece haver, em português, expansão do esquema condicional para um esquema comparativo-condicional e, também, para orações causais, concessivas, consecutivas e conformativas. Para Neves (1999), há proximidade entre relações condicionais, causais e concessivas, pois expressam uma ‘conexão causal’ e são explicáveis em termos de satisfação/não-satisfação de necessidade. Essa proximidade pode desencadear alargamento de uso do -ra para mais tipos oracionais.
Tendo em vista não ser condição a função primordial do mais-que-perfeito em português, queremos saber se seu uso marginal estaria acoplado aos fatores elencados pela literatura sobre o tema, razão por que sistematizamos os contextos de ocorrência considerando tipo oracional e marca de condicional na estrutura, além do tipo de verbo (modal e não modal). Incorporamos, também, a polaridade, levando em conta que, além de Becker (2008), que detecta frase negativa como contexto de uso do mais-que-perfeito condicional, também Brocardo (2012) hipotetiza estar o uso do mais-que-perfeito modal associado a contextos negativos, condicionais e com verbos inerentemente modais.
Coan (1997 e 2003) e Martins (2010 e 2011) percebem, ainda, que o uso do mais-que-perfeito está associado a outro marcador de referência temporal (advérbios ou sintagmas preposicionais de referência temporal ou orações adverbiais temporais), o que parece reforçar a anterioridade de um estado de coisas em relação a outro. Somos, então, levados a considerar referência temporal, embora em perspectiva oposta, ou seja, somos levados a dizer que ao mais-que-perfeito conjuntivo não estaria acoplada referência temporal.
Da revisão da literatura, para averiguar a trajetória de mais realis a mais irrealis, interessa-nos, ainda, a factualidade ou não da situação codificada pelo mais-que-perfeito, bem como a ordem entre prótase e apódose. Depreendemos, portanto, sete fatores linguísticos, os quais controlamos neste estudo, visando a cercear o fenômeno por todos os lados. São eles: a) tipo oracional, considerando, conforme Martins e Paiva (2013), a expansão de uso do mais-que-perfeito à construção condicional e à concessiva (premissas, hipóteses); b) presença de conectivo, devido ao fato de a marcação do conectivo condicional reforçar o valor irrealis do mais-que-perfeito; c) tipo de verbo, já que o uso parece estar associado a verbos modais cuja acepção é mais irrealis do que a de outros verbos; d) factualidade, considerando que os usos de mais-que-perfeito tendem a ser menos factuais, em um percurso que, com o passar do tempo, vai da temporalidade à modalidade; e) contextos negativos, os quais são menos factuais do que os afirmativos; f) referência temporal, mais precisamente ausência de referência temporal, já que marca temporal parece fornecer mais precisão ao dado, tornando-o mais realis e g) relação entre prótase-apódose, a partir da hipótese de que houve extensão de uso da apódose para a prótase. Esses fatores serão detalhados na seção a seguir, que trata da metodologia da pesquisa.
3. Viés metodológico: corpus, parâmetros e procedimentos
Foram consideradas para análise 26 revistas formatadas pelo Instituto do Ceará (Brasil), cada qual contendo, em média, de 300 a 400 páginas, o que nos permitiu explorar um volume textual de, aproximadamente, 9 mil páginas. As revistas têm periodicidade anual (desde 1887), foram organizadas com o propósito de armazenar textos que refletem a história do Ceará e estão disponíveis no site: www.institutodoceara.org.br. Escolhemos 13 revistas por período: 1944 a 1956 e 2000 a 2012, escolha decorrente da quantidade de material disponível para o século XXI, à época em que projetamos esta pesquisa e que iniciamos a coleta de dados. As revistas contêm diversos gêneros textuais, quais sejam: artigo, data, biografia, catálogo, comentário, conferência, crítica, discurso, documentário, efeméride, genealogia, homenagem, nota, palestra, relatório e transcrição, razão por que resolvemos, também, observar em quais gêneros ocorrem os dados, constituindo gênero mais um parâmetro de análise. Consta, também, da análise o período temporal, visto observarmos dados em duas sincronias.
Nossos fatores, como já aludido anteriormente, decorrem do exposto na revisão da literatura, mas também de premissas teóricas que pautam as hipóteses. Em virtude disso, à exposição de cada grupo de fatores segue, por ora, a hipótese. Somente na próxima seção, dados e discussões teóricas vêm à tona. Constituem parâmetros de análise: tipo de construção semântico-sintática, presença de conectivo na estrutura, tipo de verbo, factualidade, ordem entre prótase e apódose, polaridade, referência temporal, gênero textual e sincronia. Tendo em vista a discussão teórica a ser empreendida na seção seguinte, os grupos acima arrolados visam à análise e discussão de três premissas teóricas: modalidade, marcação e unidirecionalidade.
Na abordagem da Modalidade, consideramos: tipo de construção, marca de condicional, tipo de verbo e factualidade. Para tipo de construção, examinamos, a priori, dois casos: condicional explícita e comparativo-condicional, estruturas encontradas na literatura e ilustradas no decorrer deste texto (Silva 1989, Coan 2003, Prestes 2011 e Martins e Paiva 2013). Nessas estruturas, conforme Fiorin (2016), o uso de -ra em contextos -sse serviria como estratégia modal, para admitir como verdadeira uma hipótese. Outros tipos também poderiam ser encontrados, tendo em vista o exposto por Neves (1999) de que há proximidade entre relações condicionais, causais e concessivas, por serem explicáveis em termos de satisfação/não-satisfação de uma necessidade.
Agregado a esse parâmetro, na expectativa de encontrarmos mais estruturas condicionais, retomamos o verificado por Brocardo (2012), sobre a influência da marca de condicional na estrutura (Fora eu rica / Se eu fosse/fora rica). Obviamente, em virtude da possibilidade de não encontrarmos somente estruturas condicionais, ampliamos a verificação para presença versus ausência de conector, considerando que a marcação do conectivo condicional reforçaria a leitura modal. Nessas estruturas, em virtude dos resultados obtidos por Coan (2003) e Brocardo (2010), observamos se os verbos das orações contendo a forma do mais-que-perfeito são ou não modais e, não sendo, qual item lexical é mais frequente.
A associação do mais-que-perfeito a verbos modais poderia ter reforçado a leitura irrealis, utilização verificada já em latim, conforme Martins e Paiva (2013).
Esses parâmetros podem estar aliados à factualidade ou não da situação, no sentido de esta ser factual, contrafactual ou potencial (Givón 1993, Neves e Souza 1999 e Prestes 2011). Se o contexto de uso do mais-que-perfeito conjuntivo seria o mesmo do imperfeito do subjuntivo na prótase, de acordo com Neves e Souza, só teríamos dados contrafactuais, nos quais a irrealidade expressa na prótase implicaria a irrealidade na apódose, diferentemente do que ocorre com as factuais, em que a realidade de uma implica a da outra, e com as eventuais, nas quais a apódose será real, se satisfeita a condição estabelecida na prótase. Embora sejam as contrafactuais as esperadas, consideramos esse parâmetro tendo em vista que nossa análise versa sobre o mais-que-perfeito, do que decorrem duas hipóteses antagônicas: por ser forma do indicativo, poderia conferir menos irrealidade do que o imperfeito, mas por se tratar de uma forma usada para expressar distanciamento no tempo, poderia acentuar a irrealidade: a distância temporal seria incorporada a estruturas já irrealis, a condicional e a comparativo-condicional.
A marcação, segunda premissa teórica, será tratada por meio da análise dos seguintes parâmetros: ordem, polaridade e referência temporal. Sendo em português a forma -sse a preferida para contextos condicionais, a forma -ra pode ser considerada como estratégia estilística, forma marcada, conforme Becker (2008). Os fatores elencados para esta discussão podem nos auxiliar na caracterização de marcação extrema (na acepção de Givón 1990, 1991 e 1995) ou de equilíbrio cognitivo-contextual (na acepção de Dubois e Votre 2012).
O uso do mais-que-perfeito com valor menos realis foi detectado na apódose de períodos condicionais por Ravizza 1958 (apudMartins e Paiva 2013). Nas estruturas remanescentes, interessa-nos saber qual é a ordenação oracional preferida: prótase-apódose ou apódose-prótase? Sendo a estrutura prótase-apódose a esperada para as orações condicionais, por ser sequencial e mais frequente, teríamos, por hipótese, a forma marcada (mais-que-perfeito condicional) em estrutura menos marcada, garantindo equilíbrio entre marcação extrema e não marcação. Conforme Gryner (1995), a estrutura condicional + principal é, estatisticamente, mais usada em decorrência do princípio da iconicidade: condições precedem fatos condicionais (Haiman 1985 apudGryner 1995).
No entanto, em se tratando das comparativas, a ordem esperada seria apódose-prótase. Também Freitag e Araújo (2001) mencionam a estrutura prótase-apódose como a ordem natural de apresentação da estrutura condicional - condição + consequência, construção, portanto, icônica. Considerando-se o princípio da iconicidade proposto por Givón (1984, 2001), especificamente o subprincípio da ordem sequencial, que orienta a ordenação linear semântica e pragmaticamente (Givón 1984), a ordem de codificação refletiria a ordem dos eventos.
Incorporamos também a polaridade, levando em conta que, além de Becker (2008), Brocardo (2012) hipotetiza estar o uso do mais-que-perfeito modal associado a contextos negativos.
Ainda Martins e Paiva (2013) registram a negação como contexto de uso do mais-que-perfeito com valor menos realis, especialmente quando precede verbos modais. Disso decorre a hipótese de que contextos negativos, em perspectiva escalar, seriam menos factuais do que os afirmativos, portanto, mais propícios ao mais-que-perfeito condicional.
Completa a discussão mais voltada ao contexto morfossintático, a análise de referência temporal, seja por meio de um termo, seja oracional. Coan (1997, 2003) e Martins (2010, 2011) detectaram que o uso do mais-que-perfeito como passado do passado está associado a outro marcador de referência temporal (advérbios ou sintagmas preposicionais de referência temporal ou orações adverbiais temporais), o que parece reforçar a anterioridade de um estado de coisas em relação a outro. Hipotetizamos, em perspectiva oposta, que ao mais-que-perfeito condicional não estaria acoplada referência temporal, possibilitando menos precisão temporal, portanto, seria o uso menos temporal e mais modal.
Por tratarmos de duas sincronias e de gêneros textuais diversos, esses parâmetros também serão considerados para discutirmos unidirecionalidade: o primeiro desses parâmetros servirá para, em visão pancrônica, compararmos os dois momentos de coleta, cuja distância temporal é de, aproximadamente, cinquenta anos. Essa diferença temporal permitirá verificarmos tendência à manutenção da função, mesmo que em proporções reduzidas ou decréscimo de uso, tendendo, pois, o mais-que-perfeito à residualidade. Quanto ao gênero textual, a relevância está assentada em buscarmos os nichos, os lugares textuais de resistência da forma com tal função. Considerando as instâncias do argumentar, expor, instruir, narrar e relatar, mais especificamente os agrupamentos de gêneros textuais na acepção de Dolz-Mestre e Schneuwly (1996), julgamos que tais dados apareçam em discursos da ordem do argumentar, que, por lidarem com questões polêmicas, requerem, frequentemente, modalização; é um contexto, também, propício a hipóteses, no sentido de mostrar perspectivas divergentes das adotadas (se fosse/fora X, haveria Y). Se o mais-que-perfeito conjuntivo está mais para a ordem do argumentar, o mais-que-perfeito passado do passado, em contrapartida, estaria mais na ordem do narrar. Em relação a este último uso, de fato, há frequência considerável em narrativas. Basta retomarmos os exemplos dos autores que o investigaram. Citamos, a título de ilustração, os corpora considerados por Coan (1997, 2003): muitos dos exemplos de passado do passado advêm de sequências narrativas dos gêneros considerados.
Nossa análise, a priori, seria de natureza qualitativa, por haver poucos dados. No entanto, deixar de lado o papel da frequência na gramática poderia não revelar tendências, generalizações, configurações gramaticais. Seguindo Fox (2007), consideramos, também, que a gramática é modulada pela frequência, mas falar de frequência de fatores aplicados a poucos dados, poderia gerar leituras errôneas. Embora a coleta da forma do mais-que-perfeito tenha sido exaustiva (são 3.654 dados), exploramos aqui uma das funções apenas, que conta com uma amostra de 36 dados desse corpus. Optamos por considerar tais dados via análise de token/type, na acepção de Bybee (2007): frequência de um item - token e frequência de uma categoria - type, por isso todos os fatores são contabilizados, para que se detectem contextos mais/menos propícios à resistência do mais-que-perfeito conjuntivo.
Delineado o percurso metodológico, passemos à analise que, além de mostrar qualitativa e quantitativamente os dados, discute os resultados com base em pressupostos funcionalistas.
4. Os resultados: poucos dados, muita história para contar
Nestas suas palavras se expressa a sua teoria da história. O mais perfeito respeito ao texto, que não deve ser interpretado, mas transcrito, como se FORA a própria construção histórica.
A epígrafe desta seção retrata o que vínhamos apontando, a relação estreita entre uso do mais-que-perfeito e história, resgatada e representada pelas revistas do Instituto do Ceará. Embora subjetiva, essa interpretação pode revelar o porquê de contextos de resistência. Cabe-nos, agora, mostrar como são, por meio dos parâmetros elencados na metodologia, os quais advêm da revisão da literatura e de pressupostos teóricos que intentamos discutir nesta análise, para um retrato empírico e teórico da história do mais-que-perfeito conjuntivo.
As considerações iniciais deste artigo bem como a revisão da literatura obrigam-nos a esclarecer alguns pontos teóricos, primeiramente, em virtude do conflito de identidade que paira sobre o mais-que-perfeito: afinal, o mais-que-perfeito é temporal ou modal? Em quais estruturas seria mais marcado e, portanto, menos frequente e mais residual? É estável na função nos últimos tempos ou tende mesmo à residualidade, confinando-se a estruturas e gêneros em particular? Mediante os parâmetros arrolados na metodologia, essas três questões são discutidas nas subseções a seguir, constando de cada uma as seguintes tessituras: na primeira, tratamos de modalidade por meio da análise do tipo oracional, presença ou não de conectivo, tipo de verbo (e, paralelamente, item lexical) e factualidade, visando a caracterizar o mais-que-perfeito como mais modal do que temporal; na segunda seção, por meio dos parâmetros ordem, polaridade e referência temporal, mostramos que há equilíbrio cognitivo-contextual, pois sendo a função condicional do mais-que-perfeito mais marcada, os contextos não o seriam; a terceira seção retoma os parâmetros período de tempo e gênero textual, para tratar de duas perspectivas antagônicas: estabilidade e mudança.
4.1. De temporal a modal: o mais-que-perfeito conjuntivo
Os casos por ora em pauta tendem à expressão da irrealidade: salientam a modalidade e não o tempo; poderiam ser vistos, portanto, como uma metáfora da expressão do tempo. Teoricamente, a escolha do mais-que-perfeito em construções condicionais parece querer dizer que a condição está mais distante, é menos provável ou que a comparação é com algo longínquo, assim, utiliza-se uma forma mais distante no tempo para, metaforicamente, expressar distância em outros domínios.
Partindo da acepção de modalidade como atitude do falante em relação à proposição (Fleischman 1982, Bybee e Fleischman 1995), a escolha de um tempo verbal como o pretérito mais-que-perfeito, nos últimos séculos, a julgar pelos exemplos apresentados em manuais didáticos ou gramáticas, indicaria que uma situação é passada, que é anterior a outra passada e que é factual ou realis, já que a asserção realis indica que algo é verdadeiro ou falso (Givón 1984). Assim, chegamos ao que Travaglia (1991) denomina de função dêitica e função modal: localização do evento e indicação de realidade.
Ocorre, porém, como já observado por Fleischman (1982), que distância temporal na direção do passado pode ser utilizada para expressar distância modal, no sentido de sinalizar o status de certeza ou não da asserção. Assim, o mais-que-perfeito, uma forma que codifica mais distância no tempo, serviria para indicar menos assertividade, quando em uso não prototípico (quando codifica, por exemplo, passado em relação ao momento de fala e não passado em relação a outro passado). Embora a autora não trate do mais-que-perfeito conjuntivo, o caso citado (I had thought about asking you to dinner) mostra que o uso de uma forma temporalmente distante serviria para indicar distância da imposição, distância da realidade.
Segundo Sweetser (1990), utilizamos a linguagem do mundo externo (distanciamento temporal) no mundo interno (distanciamento modal), o qual é metaforicamente estruturado como paralelo ao mundo externo. A utilização do mais-que-perfeito, em orações condicionais, serviria para expressar mais distância no tempo, já que da própria estrutura condicional decorreria menos assertividade.
Se o mais-que-perfeito expressa irrealidade, distanciamento, menos assertividade, é de se esperar que expresse menos factualidade (não-fato na acepção de Givón 2001). Ocorre que, conforme Prestes (2011), o imperfeito, forma mais recorrente para o contexto que estamos examinando, presta-se à expressão da factualidade, da contrafactualidade e da eventualidade. Ao ser usado o mais-que-perfeito conjuntivo, também haveria as três acepções? Talvez os resquícios de factualidade sejam evidências de um percurso que vai do tempo à modalidade.
Como aventado na Metodologia, o exame da factualidade do mais-que-perfeito visa a buscar contextos e traços outros que os já detectados para o imperfeito passado: contrafactualidade, preferencialmente em condicionais e comparativas. Sendo esse o contexto esperado para o mais-que-perfeito conjuntivo, deveríamos deparar-nos apenas com casos em que a irrealidade expressa na prótase implicaria a irrealidade na apódose, como em (13), no entanto, há casos em que a irrealidade só se vincula à prótase, não à apódose, como em (14), contextos eventuais como em (15) e factuais como em (16), esta concessiva (se = embora). Esses quatro contextos são percebidos na primeira amostra de 1944 a 1956, estreitando-se os usos e os contextos na segunda amostra, em que há 10 dados contrafactuais e apenas 01 factual.
13. Não FORA o tino e a energia de minha mãe, e seus três filhos talvez não se diplomassem. (Instituto do Ceará, revista do ano de 1950: 67).
prótase negativa (não fora o tino...) = pressuposto positivo (foi o tino...).
apódose negativa (....não se diplomassem) = pressuposto positivo (diplomaram-se).
14. Esse servo fiel, que salvou os padres, chamava-se Bonifácio dos Santos e serviu ao Mosteiro durante mais de sessenta anos, com uma dedicação e amor como se FORA filho do Ceará. (Instituto do Ceará, revista do ano de 1952: 225).
prótase positiva (como se fora...) = pressuposto negativo (não é...).
apódose positiva (serviu ao Mosteiro) = pressuposto positivo (serviu ao Mosteiro).
15. Certamente, se Martim FORA o autor do mapa, hipótese, aliás, ainda não ventilada, teria dado ao forte da barra do Ceará o nome que lhe aplicara em 1611 e não o correspondente ao forte de Coelho. (Instituto do Ceará, revista do ano de 1948: 151).
prótase positiva (se Martin fora...) = pressuposto eventual (hipótese, aliás, ainda não ventilada).
apódose positiva (teria dado) = pressuposto eventual (hipótese, aliás, ainda não ventilada).
16. Educou sobrinhos, auxiliou parentes, ajudou amigos. Se não FORA político militante - destacou-se como chefe local da L.E.C., em 1935 - poucos vigários poderiam ombrear-se com ele na estima de seus paroquianos.(Instituto do Ceará, revista do ano de 1950: 78).
prótase negativa (se não fora...) = pressuposto negativo (não foi político militante).
apódose positiva (destacou-se) = pressuposto positivo (destacou-se).
No entanto, a contrafactualidade não se aplica necessariamente à prótase e à apódose correlativamente; somente se aplica quando a prótase é condicional, como em (17), mas não quando é comparativo-condicional como em (18).
17. É oportuno, porém, ressaltar que o nosso autor não declara ser a religião condição essencial da moral. Se FORA assim, não haveria consciência emancipada. (Instituto do Ceará, revista do ano de 2004: 80).
18. Odilo Costa Filho... do alto de sua sábia experiência de vida, sentenciava, como se FORA um escritor da escola realista: ...vamos nos tornando, simultaneamente, sobreviventes e mutilados. (Instituto do Ceará, revista do ano de 2006: 290-291).
Quantitativamente, além do decréscimo do número de dados de uma amostra a outra (de 25 a 11), verificamos que, de 2000 a 2012, são 04 dados de condicionais e 07 de comparativo-condicionais, números mais expressivos na amostra de 1944 a 1956: 11 contrafactuais típicas (a irrealidade expressa na prótase implicaria a irrealidade na apódose); 04 contrafactuais não típicas (a irrealidade expressa na prótase não implica a irrealidade na apódose); 05 eventuais e 05 factuais.
Percebe-se, portanto, um estreitamento funcional, especializando-se o uso do mais-que-perfeito conjuntivo em condicionais e comparativo-condicionais, nas quais expressa contrafactualidade: expressa o oposto ao dito, diferentemente do que ocorre com as factuais, em que a realidade de uma implica a da outra, e com as eventuais, nas quais a apódose será real, se satisfeita a condição estabelecida na prótase.
A factualidade atua correlativamente ao tipo de construção: são as orações condicionais e as comparativo-condicionais os contextos em que o mais-que-perfeito conjuntivo atua. Esse estreitamento de uso pode ser percebido nos dados, pois, na amostra de 1944 a 1956, encontramos 15 casos de condicional, 04 de comparativo-condicional, 03 de substantiva objetiva direta, 01 de comparativa, 01 de concessiva e 01 de relativa; na amostra de 2000 a 2012, só há usos em condicionais e comparativo-condicionais. Os resultados obtidos reforçam o percurso do mais-que-perfeito de realis para irrealis, ficando o uso como conjuntivo restrito à expressão da contrafactualidade em estruturas condicionais e comparativo-condicionais.
Nessas, reforça a modalidade irrealis a presença dos conectivos se (em 14 de 19 condicionais da amostra) e como se (em 11 das 11 comparativo-condicionais).
Esperávamos que os verbos fossem modais, para mais um reforço irrealis, no entanto, os verbos, com exceção de 01 dado modal (pudera), não o são: são estativos; há 28 dados com fora, 02 com houvera, 02 com tivera, 01 com permanecera, 01 com havia sido e 01 com viera, este último não agentivo (...viera ao mundo com a sina de ser pagão...). Dois traços aspectuais depreendidos desses usos corroboram a modalidade irrealis: mais duratividade e menos dinamicidade, traços já arrolados na literatura para situações codificadas pelo mais-que-perfeito. A condução à leitura conjuntiva do mais-que-perfeito provém de um aglomerado de traços que vão compondo uma teia, fazendo com que a forma seja mais vista como irrealis do que como realis. Essa teia obriga-nos a uma leitura mais modal do que temporal para o mais-que-perfeito. Para que se garanta a leitura mais temporal, o falante e o escritor têm à disposição a forma composta do mais-que-perfeito e o pretérito perfeito simples (conforme já atestado na literatura, por exemplo, por Coan 1997, 2003).
4.2. Da marcação do mais-que-perfeito conjuntivo
Observando as pesquisas sobre o mais-que-perfeito, expostas na seção dois, percebemos que a forma é sempre tratada como marcada, na acepção givoniana de marcação (1990, 1991, 1995, 2001). Complexidade estrutural, distribuição de frequência e complexidade cognitiva são os critérios adotados pelo autor para avaliar a marcação, já que a estrutura marcada tende a ser maior, menos frequente e mais complexa (demanda mais atenção, esforço e tempo de processamento). Sendo por excelência uma forma marcada, esperaríamos que o contexto de ocorrência também o fosse, mas, por pressões cognitivas, às vezes o contexto é menos marcado, já que a forma o é. Aludimos, nesse quesito, ao princípio da expressividade retórica (Dubois e Votre 2012), calcado no equilíbrio entre codificação e cognição, visto que um procedimento discursivo marcado pode ser menos elaborado/menor, mais frequente e demandar menos esforço.
O mais-que-perfeito simples aqui investigado aparece como marcado, por ser menos frequente e por demandar mais atenção, já que não é usado em função temporal, função mais usual para a forma atualmente. Para indicar o passado do passado, usa-se o pretérito perfeito acoplado a um ponto de referência passado (Coan 1997); para indicar o passado em relação ao momento de fala, usa-se o pretérito perfeito (Campos et al. 1993); para indicar hipótese, usa-se o futuro do pretérito ou o imperfeito (Dias 2007); para indicar condição, usa-se o imperfeito do subjuntivo (Back 2008). Em todos esses contextos, o mais-que-perfeito é utilizado na escrita, como vimos nos exemplos apresentados no início deste artigo, mas em menor escala, bem menor, o que o caracteriza como forma marcada. Para verificar se os contextos de uso do mais-que-perfeito conjuntivo são marcados, consideramos, como já expostos na metodologia, três parâmetros: ordem, polaridade e referência temporal.
Vamos à ordem. Em condicionais, o esperado seria prótase-apódose; em comparativo-condicionais, o inverso. Encontramos 13 casos de prótase-apódose dentre os 19 de condicionais e 10 de apódose-prótase em 11 comparativo-condicionais, confirmando que as estruturas seriam as esperadas, menos marcadas, já que a forma do mais-que-perfeito na estrutura o é. Nos outros casos, a estrutura é de principal-subordinada, com exceção do único exemplo de concessiva, cuja estrutura é subordinada-principal. Para tratar de marcação, preferimos considerar os dois contextos oracionais mais frequentes de uso do mais-que-perfeito condicional, além de serem os únicos da amostra de 2000-2012; sendo os mais frequentes, seriam os menos marcados nessa correlação entre tipo oracional e uso do mais-que-perfeito, mas o mais-que-perfeito (seja simples, seja composto), por ser forma ocasional (em comparação ao imperfeito do subjuntivo), escolhida para conferir elegância ao texto, é, por excelência, a forma marcada. Assim, em se tratando do uso conjuntivo em relação à ordem, o mais-que-perfeito, forma marcada, ocorre na ordem não marcada, desencadeando equilíbrio no contexto.
Em relação à polaridade, há, na amostra global (36 dados), 23 dados em orações de polaridade positiva e 13 em polaridade negativa. Em se tratando das condicionais, 7 de 19 têm polaridade positiva; das 11 comparativo-condicionais, todas têm polaridade positiva. Se o contexto negativo é o marcado, então a tendência de marcação estaria mais para as condicionais, ficando as comparativo-condicionais em equilíbrio: uso da forma marcada do pretérito mais-que-perfeito em contexto não marcado (de polaridade positiva).
O terceiro parâmetro considera a referência temporal, por ter sido observada, para o mais-que-perfeito temporal, relação estreita a marcações temporais. Coan (1997) verificou forte associação entre o advérbio já e o mais-que-perfeito composto, aventando a possibilidade de estarmos diante de um caso de especialização, em decorrência da frequência da construção “já + mais-que-perfeito, pelo fato de o mais-que-perfeito estar perdendo seu traço de anterioridade temporal. Martins (2010, 2011) também destaca uso do mais-que-perfeito acoplado a um” marcador de referência temporal, como estratégia de reforço da anterioridade de um estado de coisas. Nossa hipótese vai em direção contrária, mas não em desacordo com as autoras. Se o mais-que-perfeito temporal precisa de reforço para garantir tal função, o mais-que-perfeito conjuntivo dispensaria tal reforço, buscando reforço modal e não temporal.
Dos 11 dados da amostra de 2000-2012, nenhum tem referência temporal acoplada ao mais-que-perfeito; dos 25 dados da amostra de 1944-1956, 18 não têm referência temporal. Para garantir o efeito modal irrealis, o mais-que-perfeito conjuntivo (na prótase) é associado ao uso do condicional - futuro do pretérito (na apódose), o que ajuda a garantir o efeito modal irrealis, atenuando-se o efeito temporal. Neves (1999), ao citar meios de manifestação da modalidade, inclui categorias gramaticais como tempo/aspecto/modo, dentre as quais está o uso do futuro do pretérito na proposição, o qual pode estar associado a outros lexemas modalizadores, por exemplo, um advérbio (talvez, possivelmente).
Citamos, para ilustrar, um caso que demostra o uso desse tempo verbal associado a outros elementos, embora, em nossos dados, o uso do mais-que-perfeito conjuntivo esteja basicamente associado ao futuro do pretérito e não a outros expedientes que possam minimizar (certamente) ou corroborar (hipótese) o efeito irrealis.
19. Certamente, se Martim FORA o autor do mapa, hipótese, aliás, ainda não ventilada, teria dado ao forte da barra do Ceará o nome que lhe aplicara em 1611 e não o correspondente ao forte de Coelho. (Instituto do Ceará, revista do ano de 1948: 151).
O que vimos destacando nesta seção tem demostrado que a forma do pretérito mais-que-perfeito, forma marcada por ser menos frequente na expressão do conjuntivo, é usada em contextos menos marcados, ou seja, na ordem esperada (prótase-apódose), com polaridade positiva e sem referência temporal (com reforço modal do futuro do pretérito). Parece-nos que os discursos têm caminhado em sintonia com o princípio da expressividade retórica: se a forma é marcada, que o contexto não o seja e vice-versa.
4.3. A unidirecionalidade do mais-que-perfeito
Ao longo da história, com base na revisão da literatura, o mais-que-perfeito foi ficando restrito até cair na obsolescência: a forma composta fixou-se para indicar um passado do passado e a simples para projeção (cristalizada em tomara e lexicalmente reduzida aos verbos dar, querer, poder - quem me dera, quisera eu, também pudera).
Mostramos, contudo, dados em várias funções na modalidade escrita, em cujo domínio formas reaparecem por razões outras, o que não destitui o princípio da unidirecionalidade, mas atesta reversibilidade, em que uma variante passa a ser usada como estilística (em nossos dados, na escrita). As razões pelas quais se materializa, uma vez em desuso na fala, congregam história, gênero textual e estilo.
Por serem revistas históricas, formas em desuso ganham espaço, no sentido de materializar a própria história. Tivéssemos encontrado apenas formas simples para as funções observadas, dentre as quais a condicional, poderíamos aludir somente à história, ao resgate histórico. No entanto, essas formas simples variam com outras: com o imperfeito do subjuntivo em condicionais e comparativo-condicionais; com o mais-que-perfeito composto e com o perfeito simples na função de passado do passado; com o perfeito na função metafórica, de passado anterior ao momento de fala e com o futuro do pretérito na exposição de hipóteses. Isso nos autoriza a ver o mais-que-perfeito simples como uma variante, mais precisamente, uma variante estilística, devido à incidência e ao contexto histórico.
Os dados de conjuntivo ocorrem, predominantemente, em gêneros da ordem do argumentar (artigos, discursos e palestras - 30 dados dos 36; os demais situam-se em textos da ordem do relatar): ou é um nicho para ocorrência das formas ou o achado é casuístico. Preferimos a primeira explicação, considerando que, mesmo em casos residuais, a escolha de uma ou outra variante não é livre, mas motivada por fatores de natureza diversa. Nesse sentido, aludimos a Labov (1994, 2001 e 2010), em cujas obras associa os usos linguísticos a fatores internos (1994), sociais (2001) e cognitivo-culturais (2010).
Como os gêneros em que o mais-que-perfeito conjuntivo ocorre são da ordem do argumentar (um dos agrupamentos propostos por Dolz-Mestre e Schneuwly, 1996), pode ser estratégia de menos comprometimento: ao mesmo tempo em que se confere elegância ao texto, confere-se menos certeza. Contextos argumentativos requerem modalização em muitas das situações, pois a divergência de opinião é uma constante.
Em relação às sincronias, há redução de dados de uma amostra a outra: 25 em 1944-1956 e 11 em 2000-2012. Com base nesses resultados, precisamos olhar para essas sincronias e para as consideradas em estudos citados no decorrer deste artigo em dois planos: em um primeiro plano, confirmamos o que vem ocorrendo na oralidade: redução das funções codificadas pelo mais-que-perfeito (a forma simples codifica projeção e ocorre em poucos casos: quisera, dera, pudera; a forma composta codifica passado do passado, mas compete com o pretérito perfeito e também vem perdendo espaço). Essa constatação decorre do fato de que, sendo uma função residual, a conjuntiva, restrita à escrita, vem perdendo espaço nesse nicho, de 25 formas na primeira amostra passa a 11 na segunda amostra. Essa diferença de 50 anos de uma amostra a outra é indício de que, na escrita, também o mais-que-perfeito simples vem perdendo espaço.
Em segundo plano, entretanto, podemos ver o mais-que-perfeito como variante estilística, característica que o levaria a continuar ocorrendo, embora em pequena quantidade para a função conjuntiva. Por ser forma residual, pouco usada na oralidade, parece conferir elegância ao texto, como se observa na sequência abaixo, de um mesmo gênero textual e da mesma página.
20. A referência a 1875 tem um prédio como se FORA o Liceu do Ceará, que na verdade é a casa residencial de José Gentil. (Instituto do Ceará, revista do ano de 2009: 19).
A referência a 1876 traz uma paisagem do Rio de Janeiro do Tempo Colonial como se FORA daquela data. (Instituto do Ceará, revista do ano de 2009: 19).
A referência a 1916 traz uma foto (a última de Clóvis Beviláqua) como se FORA do então presidente Venceslau Brás. (Instituto do Ceará, revista do ano de 2009: 19).
Não foi nossa pretensão tratar de variação entre mais-que-perfeito e imperfeito, mas de usos de mais-que-perfeito conjuntivo em textos históricos. É por essa razão que a associação entre forma-função e estilo decorre de evidências expressas na literatura. Se o mais-que-perfeito simples é forma obsoleta na fala (Coan 1997) e tem frequência reduzida na escrita (Gonçalves 1993 e Coan 2003), seu uso poderia ser visto de forma antagônica: pedante na fala e prestigiado na escrita formal. Essa associação da forma ao prestígio na escrita ganha evidência nas revistas históricas e esse fato permite integrarmos à discussão premissas adotadas por Bell (1984), Labov (2001) e Silva-Corvalán (2001) acerca da mudança de estilo.
Na direção laboviana, podemos dizer que o uso do mais-que-perfeito depende do falante/escritor, que alterna seu estilo devido ao grau de atenção dado à fala (à escrita de textos históricos em suporte formal - revistas); na direção de Bell, diríamos que os escritores usam formas prestigiadas para acomodar sua linguagem à audiência (aos leitores das revistas históricas); na direção de Silva-Corvalán (2001), vemos que o que a autora chama de propósito pode também desencadear usos de formas mais prestigiadas, já que considera como propósito o tipo de atividade (por exemplo, conversação, sermão, discurso etc.) e o tópico conversacional: os gêneros textuais nos quais o mais-que-perfeito conjuntivo ocorre são preferencialmente formais - artigos, discursos, palestras, homenagens e atas. “Numerosos pares de palavras, referencialmente sinônimos, pertencem a um dos níveis distintos de formalidade, portanto não são sinônimos no nível estilístico”, conforme Silva-Corvalán (2001: 117), o que validaria o uso do mais-que-perfeito conjuntivo como variante estilística.
5. Considerações finais
Nossa análise demonstra que a forma em -ra, especificamente o -ra conjuntivo, tem contexto de uso bastante restrito, contexto em que os valores contrafactuais e potenciais (mais modais) suplantam o factual (mais temporal). Além de restringirem-se os valores, passa a forma, neste contexto conjuntivo, a ser preenchida por uma variedade menor de verbos, destacando-se os verbos de estado (fora) em orações condicionais e comparativo-condicionais, respectivamente, com conectivos se e como se, reforçando a carga irrealis. Nesse contexto irrealis, portanto, o mais-que-perfeito passa a ser interpretado como mais modal do que temporal.
Observa-se que a forma, por ser pouco frequente e ocupar, na escrita, contextos de uso do imperfeito do subjuntivo, é forma marcada, mas o contexto não o é. Parece que codificação e contexto se equilibram, se um é mais marcado, o outro ameniza tal tarefa. Notamos que o mais-que-perfeito conjuntivo ocorre na prótase, na ordem prótase-apódose em condicionais e na ordem apódose-prótase em comparativo-condicionais, estruturas esperadas, já que condição precede hipótese e comparação segue o termo comparado. Atestamos, ainda, uso do mais-que-perfeito conjuntivo em orações afirmativas e sem referência temporal explícita; este último traço reforça o caráter modal, já que o mais-que-perfeito temporal teria, pelo atestado nas pesquisas, uso mais diretamente associado a marcador temporal. Embora a iconicidade não tenha ganhado relevo em nossa análise, com exceção da parte em que tratamos da ordem entre prótase e apódose, a opção de uso pelo mais-que-perfeito decorre, também, do fato de ser uma forma que, teoricamente, codificaria uma situação temporalmente mais distante: os discursos do Instituto do Ceará tendem a abordar fatos distanciados do momento de fala. Sabemos não ser esse o ponto crucial, já que há pouquíssimos dados, mas pode ser mais um fator a impulsionar o uso.
Os fatores gênero textual e sincronia permitiram uma reflexão acerca das características obsolescência e persistência que acoplamos ao mais-que-perfeito no título do artigo. A revisão da literatura, acerca de pesquisas sobre oralidade, aponta obsolescência como característica do mais-que-perfeito, pois a forma é tratada como arcaísmo, por estar em desuso. Ocorre, porém, que ainda resiste, pelo menos em contextos optativos (quem me dera, também pudera, quisera eu...). Tem um nicho, restrito, mas tem. Na escrita, também resiste, mas em mais nichos, como evidenciamos no início do texto, pois é forma que ainda codifica várias funções, das mais temporais (passado do passado) às mais modais (conjuntivo e condicional).
Essa resistência tem relação direta com o estilo: quanto mais formal o estilo, mais tendência de aparecer como variante na escrita. Esse movimento do mais-que-perfeito pela sobrevivência faz com que a forma busque novos domínios e, por conseguinte, novos campos de atuação: passa do domínio temporal ao modal e atua como variante estilística na escrita.
Outro ponto que merece destaque é a trajetória do mais-que-perfeito rumo à especialização. Na acepção de Hopper:
dentro de um domínio funcional, em um determinado estágio, uma variedade de formas com diferentes nuanças semânticas pode ser possível; à medida que a gramaticalização ocorre, essa variedade de escolhas formais estreita-se e as formas selecionadas assumem significados gramaticais mais gerais. (Hopper 1991: 22).
Em português, parece haver um caso bem particular de especialização: primeiramente, diríamos, especialização por especificação, na acepção de Tavares (1999a, 2003), considerando que a variante mais-que-perfeito passou a ser utilizada em contextos específicos, o que parece bem evidente quando nos deparamos com dados de mais-que-perfeito optativo. No caso do conjuntivo, essa especialização por especificação é ainda mais restrita, pois se trata de especialização por especificação estilística, ou seja, o mais-que-perfeito conjuntivo é, na escrita formal, uma variante estilística, o que o faz resistir à obsolescência.