1. Introdução
A maioria das descrições de usos do verbo “saber” no português brasileiro (PB) destaca, em contexto de subordinação, seu funcionamento como predicado matriz de variadas nuances semânticas (Kapp-Barboza 2017; Gonçalves et al. 2008), não contemplando, entretanto, usos em que o verbo compõe a construção “(eu só) sei que”2. Alguns desses trabalhos até chegam a mencionar o funcionamento do verbo na organização textual (Bertasso 2020), mas nenhum deles explicita o modo desse funcionamento. Este artigo ocupa-se justamente da análise da construção “(eu só) sei que” que, em suas funções de articulador textual, comporta-se como Marcador Discursivo (MD, daqui em diante).
Ao analisar funções textual-interativas de MD, Guerra (2007) defende que a constituição formal não é um aspecto relevante para sua definição de MD, ao contrário, por exemplo, das funções que exercem. Corroborando essa posição da autora, reconhecemos que, embora “(eu só) sei que” possa preservar traços de forma e de significado de predicado matriz, seu uso se diferencia daqueles já descritos na literatura.
Guerra constrói esse pressuposto a partir do quadro da Gramática Textual-Interativa (Jubran 2015a), que, dentre os vários processos constitutivos do texto, dispensa toda uma parte teórico-analítica ao tratamento dos MDs, razão de também assentarmos neste mesmo quadro teórico nossas análises. No presente artigo, temos por objetivo, então, descrever e analisar a função dessa construção específica na organização textual, tomando por base ocorrências do PB falado no noroeste paulista, sob a hipótese de que a construção em exame se categoriza como MD com função predominante textual. Para tanto, tomamos da Gramática Textual-Interativa o Tópico Discursivo como unidade fundamental para descrição e análise da construção “(eu só) sei que”.
Além desta introdução, o artigo segue organizado do seguinte modo: na seção 2, sintetizamos os princípios da Gramática Textual-Interativa e explicamos a noção de MD; na seção 3, expomos as funções de “saber” já descritas na literatura; na seção 4, esclarecemos a metodologia que orienta as análises e os resultados, expostos na seção 5; na seção 6, apresentamos nossas conclusões, seguidas das referências.
2. A Gramática Textual-Interativa e a noção de Marcador Discursivo
Apesar de a categoria “MD” ser amplamente reconhecida na literatura linguística de orientação funcionalista, é no âmbito da Gramática Textual-Interativa (GTI, daqui em diante) que essa “classe” encontra tratamento teórico-analítico mais detalhado de suas funções. Mesmo reconhecendo que outras abordagens teóricas também dispõem dessa categoria analítica, a exemplo da abordagem construcional da gramática (Traugott 1995, 2020; Bybee 2016) que considera como construções desenvolvem funções mais discursivizadas no uso, não se encontra nesses estudos, até onde sabemos, uma teorização sobre o funcionamento de MD na organização do texto. No entanto, é importante destacar que, da abordagem construcional de Traugott (2020) e de Bybee (2016), tomamos emprestado apenas o conceito de “construção”, que nos permite reconhecer que o MD “(eu só) sei que”, em análise neste artigo, constitui de fato um pareamento convencionalizado de forma e de função, interessando-nos centrar nossa descrição mais nos aspectos discursivos (ou função) da construção.
Embora seja dispensável detalharmos princípios da abordagem construcional da gramática, por não ser este o fundamento de nossas análises, cabe-nos destacar dois pontos cruciais de convergência entre a GTI e a abordagem construcional: (i) a importância atribuída ao uso da língua em contextos reais de interação; (ii) a variação e a gradiência de funções a que uma construção se submete na língua em uso (Bybee 2016).
A GTI, uma proposta teórico-metodológica brasileira de análise textual, considera a linguagem como atividade de interação social exercida entre pelo menos dois interlocutores, inseridos em uma localização contextual, em que um se situa reciprocamente em relação ao outro, considerando as circunstâncias de enunciação (Jubran 2015a). Essa concepção de linguagem liga-se, especialmente, a dois princípios teóricos da GTI: (i) o de que os fenômenos textual-interativos têm suas propriedades e funções definidas nas situações concretas de interlocução, coenvolvendo as circunstâncias enunciativas, e (ii) o de que os fatores interacionais são inerentes à expressão linguística, havendo uma presença natural de dados interacionais no processamento verbal. Sob esse segundo princípio, a GTI assume que os processos de formulação textual e de interação estão estreitamente imbricados, o que já revela seu terceiro princípio teórico, o “Princípio de gradiência”, segundo o qual a investigação dos processos de construção textual e das marcas linguísticas que gerenciam esses processos não coloca em oposição as funções textual e interativa, mas sim as conjuga, conforme a dominância de uma ou de outra.
Para tratar dos níveis de organização textual, a GTI define como categoria analítica o “Tópico discursivo”, uma categoria abstrata entendida como tema (ou assunto) interacionalmente construído pelos interlocutores em determinado ponto do texto. Operando com o Tópico discursivo, a GTI ainda estabelece a noção de “Segmento Tópico” (SegT, daqui em diante), que serve para identificar um segmento textual concreto. Os menores SegTs de um texto, os que materializam seus tópicos discursivos mais específicos, são os chamados “SegTs mínimos”. Neste trabalho, nossas análises centram-se sempre no interior desses SegTs mínimos, como ilustramos a partir do caso em (1), emprestado de Jubran (2015b).
1. Exemplo para análise de Tópico discursivo e de SegT
Doc. - o seu marido sempre exerceu essa profissão que ele tem agora?
L1 - não ele teve escritório no início da carreira (...) depois ... ainda com escritório ... e como ele tinha liberdade de advogar ele também ... exercia a:: profi/ o a advocacia do Estado né?:: ... e depois ... é que ele começou a lecionar quando houve ... a necessidade de regime de dedicação exclusiva (...) ... então:: ele::: começou a lecionar (...) e::: e deu-se muito bem no magistério ... ele se realiza sabe? (...) ele se dedica muitíssimo a ... tanto à carreira de procurador como de professor (tá?) (...) (D2 SP 360: 1.160-91) (Jubran 2015b: 88).
Com base na propriedade tópica de centração, que abrange os traços de concernência, relevância e pontualização e é definida por Jubran (2015b) como a propriedade de concentração da interação verbal em um conjunto de referentes, explícitos ou inferíveis, concernentes entre si e em relevância em determinados pontos do texto, o Tópico discursivo em (1) é nomeado como “Atividades profissionais do marido de L1”. Sua constituição é dada por relação de interdependência semântica entre os elementos constitutivos dos enunciados desse segmento textual, firmada por mecanismos coesivos de sequenciação e referenciação, como os lexemas do mesmo campo semântico relativo ao tema profissão (“escritório”, “carreira”, “advogar”, “lecionar”, “procurador”, “magistério”), o que já define o traço da concernência. Além disso, os temas sentenciais são expressos pelo pronome “ele”, referenciando “marido”, e, os remas ligados a esses temas expressam a dominância do tema profissão (“se dedica muitíssimo a ... tanto à carreira de procurador como de professor”), demonstrando, assim, a relevância do Tópico discursivo, segundo traço da centração.
Ainda, o SegT em (1) tem uma localização delimitada no texto do qual foi extraído, o que caracteriza a terceira propriedade da centração tópica - a pontualização. Enquanto noção abstrata, o “Tópico discursivo” é preenchido concretamente na materialidade textual pelos SegTs. Como se observa, o SegT, em (1), é todo o trecho do texto que materializa todo o tópico “Atividades profissionais do marido de L1”.
Assumindo o texto como objeto de estudo mais amplo, dentre os vários processos de construção textual que investiga, a GTI reserva tratamento especial aos MDs como recursos linguísticos envolvidos na organização textual-interativa (Jubran 2015a).
Para Risso et al. (2015), a classe dos MDs tem constituição difusa e abriga de sons não lexicalizados a sintagmas mais desenvolvidos. Para sancionar o estatuto de MD, a GTI vale-se de um conjunto de variáveis, cada uma com traços definidores, como segue em (2), a partir dos quais se define a matriz de traços prototípicos dada em (3).
2. Variáveis definidoras do estatuto de MD (Risso et al. 2015)
• Variável 1. Padrão de recorrência
Traços: 1) baixa frequência; 2) média frequência; 3) alta frequência.
• Variável 2. Articulação de segmentos do discurso
Traços: 1) sequenciador tópico; 2) sequenciador frasal; 0) não sequenciador.
• Variável 3. Orientação da interação
Traços: 1) secundariamente orientador; 2) basicamente orientador; 3) fragilmente orientador.
• Variável 4. Relação com o conteúdo proposicional
Traços: 1) exterior ao conteúdo; 0) não exterior ao conteúdo; 2) não se aplica.
• Variável 5. Transparência semântica
Traços: 2) total; 1) parcial; 0) opaco; 3) não se aplica.
• Variável 6. Apresentação formal
Traços: 1) forma única; 2) forma variante.
• Variável 7. Relação sintática com a estrutura oracional
Traços: 1) sintaticamente independente; 0) sintaticamente dependente.
• Variável 8: Demarcação prosódica
Traços: 1) com pauta demarcativa; 0) sem pauta demarcativa.
• Variável 9: Autonomia comunicativa
Traços: 1) comunicativamente autônomo; 0) comunicativamente não autônomo.
• Variável 10: Massa fônica
Traços: 1) até três sílabas tônicas; 2) além de três sílabas tônicas.
3. Matriz de traços de MD prototípicos (Risso et al. 2015)3
• alta recorrência (variável 1);
• articulação tópica + orientação interacional fraca ou média; ou não articulação tópica + orientação interacional forte (variáveis 2 e 3);
• exterioridade ao conteúdo proposicional (variável 4);
• transparência semântica parcial (variável 5);
• independência sintática (variável 7);
• demarcação prosódica (variável 8);
• não autonomia comunicativa (variável 9);
• massa fônica reduzida (variável 10).
O afastamento de um MD dessa matriz de traços indica apenas que ele não se configura como MD prototípico.
Nesse sentido, a classificação da GTI admite certa flexibilidade, uma vez que desvios em relação à matriz prototípica não excluem o exemplar da categoria MD. Além disso, conforme assumido na GTI, uma mesma forma linguística pode servir a diferentes funções e ter, assim, variadas categorizações. Como se pode notar em (2) e em (3), consoante ao Princípio de gradiência, um MD pode sinalizar ao mesmo tempo articulações textuais e relações interpessoais, com predominância de um ou de outro desses aspectos. Assim, dois grupos de MDs são reconhecidos pela GTI: os basicamente sequenciadores e os basicamente interacionais, com o primeiro incluindo MDs que operam, com predominância, na articulação textual, como é o caso de “agora”, “então”, “aí”, “mas” etc, e o segundo, recobrindo MDs cuja função dominante envolve a relação entre os interlocutores e entre o enunciador e seu enunciado, de que são exemplos os MDs “né?”, “certo?” e “sabe?”
Em resumo, sintetizamos, nesta seção, os princípios teóricos da GTI e sua unidade de análise, e apresentamos a noção e os traços caracterizadores de MD assumidos por essa teoria, explanações que embasam o percurso de nossa investigação, descrito na seção 4, e, especialmente, a discussão de nossos resultados, elaborada na seção 5.
3. Usos do verbo “saber” na descrição linguística
Na literatura linguística, “saber” é comumente descrito como predicado cognitivo de uma oração matriz na qual se encaixa uma subordinada. Trabalhos mais específicos, porém, consideram-no como verbo altamente polissêmico, em função do contexto linguístico em que ocorre (Kapp-Barboza 2017; Bertasso 2020). Ampliando a natureza multifuncional desse verbo, nesta seção, elaboramos uma síntese de suas funções já descritas na literatura, para, na seção seguinte, detalharmos as funções textual-interativas da construção “(eu só) sei que”, não contempladas nas descrições disponíveis.
Segundo Gonçalves et al. (2008), em construções subordinadas substantivas, “saber” funciona como predicado de cognição, expressando conhecimento por parte do referente do sujeito da oração principal acerca de eventos do mundo real, como em (4), exemplo dos autores, em que “saber” indica posse de conhecimento.
4. “Saber” como predicado de cognição (posse de conhecimento)
... por exemplo... no setor odontológico... sabemos... que... existe uma demanda... muito grande... atualmente... das pessoas... em relação... aos respectivos sindicatos... (DID REC 131) (Gonçalves et al. 2008: 1033).
Para Kapp-Barboza (2017), em usos como em (4), os processos mentais que envolvem “saber” estão relacionados à memória, à crença, à compreensão, à constatação de conhecimento, o que implica ter de reconhecer que a oração completiva representa um conteúdo proposicional4. Destaca ainda a autora que a não correferencialidade entre sujeitos da oração matriz e subordinada é uma característica morfossintática do valor cognitivo de “saber”, dado que ele veicula conhecimento adquirido.
Em sua tipologia, Kapp-Barboza (2017) identifica a função informativa de “saber”, que expressa posse ou aquisição de informação, não estando o enunciador envolvido em um processo analítico, uma vez que a informação já está disponível a ele, conforme observamos em (5).
5. “Saber” como predicado informativo
Assim, é possível que algumas das composições de Wolfgang sejam dela. Também sabemos que quando ele estava em Londres, trabalhando sobre sua primeira sinfonia, ela escreveu tudo e fez os arranjos orquestrais para ele. (Internet) (Kapp-Barboza 2017: 112).
Em (5), o locutor informa ter uma informação sobre um conteúdo exterior a ele (“ela escreveu tudo e fez os arranjos orquestrais”), não se envolvendo em um processo reflexivo-analítico, mas sim demonstrando objetividade ao enunciar uma informação pressupostamente compartilhada. Para a compreensão dessa função particular, Kapp-Barboza (2017) esclarece que o uso informativo de “saber” não se prende à semântica de tempo nem de pessoa verbais, de modo que a variação de tempo e/ou pessoa não afeta o sentido de informação adquirida.
Outra função de “saber” descrita por Kapp-Barboza (2017) é a que expressa modalidade facultativa, a qual está relacionada a capacidades intrínsecas ou adquiridas por um participante de se envolver em um estado de coisas designado pelo predicado encaixado, como em (6).
6. “Saber” como predicado de modalidade facultativa
Meu pai não sabia nadá(r) ele/ esse senhor pulô(u) no rio e:: salvô(u) éh... ele tava/tava se afogando. (AC-083; NR: 110-111) (Kapp-Barboza 2017: 117).
O predicado “nadar” encaixado no verbo “saber” facultativo, em (6), representa um estado de coisas, codificado por uma sentença infinitiva, característica, segundo a autora, desse tipo semântico. Gonçalves et al. (2008), no entanto, consideram que, em usos como esse em (6), “saber” perde propriedades de predicado matriz encaixador de oração subordinada e assume comportamento muito próximo ao de construções com verbo auxiliar. De toda forma, optamos por considerar esse uso de saber como facultativo, sem, contudo, deixar de reconhecer, nesse contexto particular, seu funcionamento como um “quase-auxiliar”.
Ainda no domínio das modalidades, tanto Kapp-Barboza (2017) como Gonçalves et al. (2008) reconhecem “saber” como predicado de modalidade epistêmica, que indica comprometimento do falante com o conteúdo da proposição da oração encaixada, como em (7).
7. “Saber” como predicado epistêmico
Não há emoções em que eu posso usar para descrever como foi ter que abandonar aquela corrida. Duas desistências em um campeonato não é muito útil. Eu sei que fizemos o melhor trabalho, mas não deveríamos ter perdido a liderança daquele jeito. Mas não havia nada o que eu poderia fazer, visto que eu já não tinha mais freios. (Internet) (Kapp-Barboza 2017: 82).
Em (7), o enunciador assume como verdadeiro o fato de ele e sua equipe terem feito um bom trabalho, ainda que tenham perdido a liderança do circuito de corrida, comprometendo-se, pois, com esse conteúdo proposicional. Assim, quando “saber” expressa modalidade epistêmica, seu complemento representa uma proposição possível, pela sua natureza subjetiva-avaliativa, de ser avaliada em termos de sua verdade. Além disso, “saber” restringe-se à primeira pessoa e ao tempo presente, posto que a avaliação proposicional necessariamente passa pelo crivo do falante e está ligada ao momento presente da enunciação.
No domínio da evidencialidade, Kapp-Barboza (2017) distingue três usos de “saber”, dois dos quais propostos pela própria autora. O primeiro dos três usos, já identificado por Dall’Aglio Hattnher et al. (2001), é o evidencial reportativo, a partir do qual o falante comunica uma informação que lhe foi passada por outrem, como exemplificado em (8).
8. “Saber” como predicado evidencial reportativo
Estado - Soube que em sua recente visita ao Peru, o senhor andou levantando informações sobre a situação da imprensa naquele país e saiu de lá preocupado. Poderia falar alguma coisa sobre o que está ocorrendo? (Narrativa Oral; 19Or:Br:Intrv:ISP) (Kapp-Barboza 2017: 127).
Em (8), o enunciador não se apresenta como fonte da informação presente na oração encaixada, de sorte que o conteúdo comunicado se origina em uma situação discursiva anterior à corrente, quando o enunciador era ouvinte, e uma outra fonte lhe fornecera a informação ora comunicada na oração subordinada.
O segundo uso evidencial de “saber” proposto pela autora é o inferencial, reconhecido quando o enunciador comunica um conteúdo baseado em seu conhecimento de mundo (cultural, histórico ou físico), como mostra (9).
9. “Saber” como predicado evidencial inferencial
Compro baseado em a minha experiência. Só de olhar já sei quando o animal tem qualidade, disse Carvalho. (Artigo de Jornal; 19N:Br:Folha) (Kapp-Barboza 2017: 132).
Em (9), o enunciador, com base em experiência anterior, diz já saber em quais circunstâncias o animal tem qualidade. Algumas particularidades desse uso evidencial inferencial são: (i) conjugação na primeira pessoa (singular ou plural); (ii) restrição a tempos de futuro; (iii) não correferencialidade entre sujeitos das orações principal e subordinada, porque, se afirma que sabe algo sobre si mesmo, o enunciador ou se compromete com a proposição enunciada ou indica posse de informação - respectivamente, usos epistêmico e informativo de “saber” já descritos.
O terceiro e último tipo evidencial, também proposto por Kapp-Barboza (2017), é o dedutivo. Nesse caso, o enunciador sinaliza que construiu determinado enunciado se baseando em evidência percebida por algum dos sentidos, evidência sensorial que necessariamente deve estar explicitada para o reconhecimento dessa função evidencial de “saber”. É o que exemplifica a ocorrência em (10).
10. “Saber” como predicado evidencial de dedução
Sei, pelo barulho do encanamento do edifício, que o vizinho do andar de cima já acordou e está escovando os dentes. (Internet) (Kapp-Barboza 2017: 136).
Em (10), o enunciador deduz, por meio da evidência auditiva (o barulho do encanamento do edifício), que seu vizinho já acordou e está escovando os dentes. Em tais casos, “saber” ocorre sempre no presente ou no passado do indicativo, tendo como sujeito oracional, necessariamente, a primeira pessoa do singular. De modo semelhante ao que ocorre com o “saber” inferencial, no uso dedutivo, o sujeito da oração matriz também difere do da oração encaixada, pois a oração completiva carrega a informação sobre o evento deduzido que sempre envolve terceiros.
Como fica claro até aqui que os contextos de usos de “saber” conferem-lhe estatuto semântico-sintático de verbo pleno, por ser possível atribuir a eles diferentes sentidos. Contudo, há contextos em que esses sentidos se esvaem, e o verbo perde estatuto lexical em favor de funções discursivas. É, então, desses usos particulares de “saber” que nos ocuparemos daqui em diante, uma vez que tanto Gonçalves et al. (2008) quanto Kapp-Barboza (2017) apenas sinalizam a existência de tais usos, sem, contudo, tratá-los dentro do arcabouço teórico que utilizam.
Um trabalho que constata o uso de “saber” como MD é o de Bertasso (2020), que, analisando construções subordinadas com o verbo “saber” no PB paulista sob perspectiva cognitivo-funcional, reconhece, fora de contextos de subordinação, uma função textual-interativa, predominante, segundo a autora, na terceira pessoa do singular, como em (11).
11. “Saber” como MD textual-interativo (basicamente interacional)
Doc.: POR que que cê acha que tem que sê(r) estudioso? Inf.: eu Acho que tem que sê(r)
estudioso pra (...) pra você::... éh:: tirá(r) notas bo::as sabe?...PRA você APRENDÊ(R). (IBORUNA - AC-002, L128) (Bertasso 2020: 677).
Como explica Bertasso (2020), em (11), “saber” está a serviço do monitoramento da interação por parte do falante, atuando, pois, como um MD com função mais pragmático-discursiva. Também Urbano (2015) e Guerra (2007) reconhecem esse mesmo uso de “saber” como MD e explicam que esse é um marcador predominantemente interacional que expressa busca de aprovação discursiva do falante em direção ao seu ouvinte. Em seus dados, Bertasso chega a constatar ainda, em contextos de subordinação, outro uso de “saber” e apenas especula sua função textual-interativa. Neste caso particular, “saber” aparece na primeira pessoa do singular e no presente do indicativo e indica, nas palavras da autora, “retomada ou fechamento de um tópico discursivo” (Bertasso 2020: 680), como em (12), em que “sei que” introduz o ato de fala com avaliação final sobre o tópico desenvolvido.
12. “Saber” em construção com função textual-interativa (fechamento de tópico discursivo)
cê nem nem conhecia a:: o rosto dele como que ele tava... e o (filho) meu filho F. tava tam(b)ém em o(u)tro quarto em observação... porque ele:: ele saiu pelo vidro e ele cortô(u) assim o ombro né? ele vazô(u) pelo vidro que era pequenininho também né?... sei que foi uma coisa muito muito chata né?... de:: desse acidente. (IBORUNA -AC 136, L68) (Bertasso 2020: 677).
Gonçalves et al. (2008) também conjecturam a função textual de “saber”, em contextos de sequência narrativa de caráter conclusivo em relação a um grupo de enunciados construídos anteriormente, como mostra a ocorrência em (13).
13. “Saber” em construção com função textual
meu avô... (...) foi buscar umas galinhas... e trouxe tudo dentro dum saco... (...) quando ele chegou em casa (...) era só galinha morta que saía... cada galinha que saía a minha:: minha avó gritava mais... velho maLUco... (...) eu sei que aquele dia se comeu foi uma comilança de galinha (DID POA 45) (Gonçalves et al. 2008: 1040).
Investigações que reconhecem o uso de “saber” na organização textual, como em (12) e (13), não desenvolvem uma análise de seu funcionamento na estruturação do texto. Mesmo no âmbito da GTI (Urbano 2015; Guerra 2007), MD com “saber” restringe-se a casos como o descrito em (11), mas não são reconhecidos os aqui em exame. Tendo em vista, portanto, a ausência de descrição desse uso do verbo, desenvolvemos, nas seções seguintes, um percurso de análise que detalha a função textual de da construção “(eu só) sei que” como MD. As demais funções descritas nesta seção não estão, portanto, contempladas em nossas análises.
4. Procedimentos de análise
Os dados analisados neste trabalho provêm da Amostra Censo (AC) do Banco de Dados Iboruna, composta de 152 entrevistas socialmente estratificadas, segundo critérios sociolinguísticos, e direcionadas para a obtenção de cinco tipos de texto: (i) narrativa de experiência (NE); (ii) narrativa recontada (NR); (iii) relato de descrição (DE); (iv) relato de procedimento (RP); e (v) relato de opinião (RO), todos de cunho predominantemente monológico, em que há apenas um informante e, quase sempre, também um único documentador (Gonçalves 2007). Buscamos, em AC, usos de “(eu só) sei que”, o que nos permitiu coletar 148 ocorrências nos diferentes tipos de texto de 113 das 152 entrevistas.
Como explicado na seção 2, assumimos o SegT como unidade de análise e, dessa forma, todas as 148 ocorrências são analisadas dentro do tópico discursivo e do SegT. Além disso, seguimos a metodologia proposta por Penhavel (2010, 2020), no que se refere à identificação da estruturação interna de SegTs mínimos, mediante a identificação da maneira como se manifestam os traços componentes da centração tópica - concernência, relevância e pontualização - no interior dos SegTs mínimos.
Assim, segmentamos os SegTs mínimos internamente em partes constituintes, para verificar com precisão em que ponto dos SegTs mínimos a construção estudada ocorre. Exemplificamos, a partir de (14), esse procedimento.
A ocorrência em (14) é parte de uma NR. No ponto do texto do qual extraímos esse SegT mínimo, a informante trata especificamente do momento em que uma amiga fez um primeiro conserto no carro em uma viagem de volta do Paraná, por isso, com base na propriedade da centração, nomeamos o tópico como “Primeiro conserto do carro”. Além da concernência geral que integra todos os enunciados desse SegT a um único tópico discursivo, há também uma concernência mais específica em cada um dos grupos de enunciados distinguidos: nas linhas 1-3, a concernência gira em torno da ida a um posto de gasolina para o conserto da roda de um carro; nas linhas 4-5, os enunciados focalizam a necessidade de ir a outro posto para consertar o carro; e, finalmente, na linha 6, a concernência centra-se no conserto do carro, expresso por um enunciado mais geral nesse SegT.
Dessa forma, o reconhecimento de pontos de concernência particulares dentro do SegT foi decisivo para a distinção de diferentes partes do próprio SegT, chamadas de “Unidades intratópicas”, e, consequentemente, para a identificação do ponto, dentro do SegT, em que a construção “(eu só) sei que” ocorre.
Como discute Penhavel (2020), os traços de relevância e pontualização, que, com a concernência, caracterizam a centração tópica, também colaboram com a identificação de partes do SegT. Assim, a relevância permite a averiguação de possíveis (sub)grupos de enunciados dentro do SegT, o que revelaria (sub)grupos mais e menos relevantes (centrais e subsidiários) em relação ao foco do desenvolvimento do tópico.
Já a pontualização, segundo a qual os tópicos de um texto manifestam-se em segmentos textuais concretos - os SegTs -, também sustenta que cada elemento do tópico de um SegT pode se manifestar em um ponto específico do SegT, sendo, portanto, o SegT composto por (sub)agrupamentos de enunciados. Contudo, no presente artigo, como não estamos focalizando a descrição da estruturação interna de SegTs e em virtude do limite de espaço, não detalharemos como a relevância e a pontualização se manifestam em (14), pois a concernência já oferece condições de esclarecer o método utilizado para a distinção de partes do SegT.
Expostos esses procedimentos de análise tópica, buscamos investigar, com base nos traços definidores de MD (vd. seção 2), se cada um dos 148 casos de “(eu só) sei que” poderia assumir a função de MD. Assim, do total de ocorrências, 47 manifestam função de MD, como detalhamos a seguir.
5. O funcionamento do Marcador Discursivo “(eu só) sei que”
Pautando-nos na especificação da função de “sequenciamento tópico” proposta por Guerra (2007), que entende que MDs que introduzem, sequenciam e fecham tópico podem ser analisados como subtipos da função mais ampla de sequenciador tópico, assumimos que “(eu só) sei que” apresenta uma macrofunção de sequenciador tópico, que é especificada por cinco funções, as quais chamamos de abertura de tópico, sequenciamento de tópico, fechamento de tópico, sequenciamento intratópico e basicamente sequenciador tópico + secundariamente modal. Na Tabela 1, ilustramos o percentual de ocorrências de cada uma dessas funções em nosso córpus.
Funções | Frequência |
---|---|
Fechamento de tópico | 57,44% (27/47) |
Sequenciamento intratópico | 19,15% (9/47) |
Sequenciamento de tópico | 10,64% (5/47) |
Abertura de tópico | 10,64% (5/47) |
Basicamente sequenciador tópico + secundariamente modal | 2,13% (1/47) |
Total | 47 casos (100%) |
Fonte: Autoria própria.
Conforme resultados da Tabela 1, em mais da metade das ocorrências (57,44%), “(eu só) sei que” assume a função de MD de fechamento de tópico.
Para reforçar nossa argumentação sobre o predomínio dessa função, mostramos, a partir de (15), como esse MD pode ser equiparado a “então”, prototípico de fechamento de tópico (Guerra 2007).
15. Tópico discursivo: Atividades com amigo paulistano na cidade natal do informante
aí chegando aqui em MiraSSOL... nós fomos pesca::r (..) ele nunca tinha pescado... né?... aí de noite nós fomos numa festa::: na festa junina que ele também nunca tinha i::do (..) aí (..) eu chamava ele de caipira né (...) aí nós fomos na HORta vê::éh:: eu fui comprar mandiOca... (...) e ele num sabia que a mandioca dava no chão... ((o informante ri)) ele pensava que mandioca dava na Árvore (..) ele era de São Paulo e viu laran::ja no nos pé (...) jabutica::ba ele ficou abismado e e:: então isso daí é uma coisa que eu nunca esqueço... (AC-129, NE) (Guerra 2007: 55).
Guerra (2007) recortou o SegT em (15) de uma NE em que, em meio ao desenvolvimento do tópico discursivo mais amplo “Ida a São Paulo à procura de emprego”, o informante narra atividades com um amigo paulistano que veio conhecer sua cidade natal.
Assim, de acordo com pesquisadora, introduzindo a sentença “isso daí é uma coisa que eu nunca esqueço”, o MD “então” providencia o fechamento do tópico discursivo. A partir de (16), comparemos “então” com “(eu só) sei que” na mesma função de fechamento de tópico.
Na NE em que ocorre o SegT em (16), o informante narra sua vida familiar, com especial atenção à relação com sua mãe, antes e depois de seu casamento, e os cuidados com ela durante uma doença. No tópico instaurado, ele narra travessuras da mãe durante a esclerose. Nas linhas 1-3, o falante instaura o tópico discursivo e, em cada um dos grupos de enunciados delimitados, vai narrando diferentes ações da mãe durante a enfermidade, até chegar ao trecho na linha 14, com o qual conclui o tópico fazendo uma espécie de resumo das ações da mãe - “ela fazia arte o tempo todo” - e uma avaliação do conteúdo do tópico - “num foi fácil não... a convivência junto”. Assim, na linha 14, “(eu só) sei que” tem função de MD, porque “saber”, na construção, perde autossuficiência comunicativa para operar na articulação tópica, particularmente no fechamento de tópico, já que introduz um grupo de enunciados no interior do SegT, do mesmo modo de “então” em (15). Ao contrário de “então”, que pode fechar tópico em textos argumentativos e narrativos, chama-nos a atenção o fato de “(eu só) sei que” ter uma tendência maior de ocorrer em textos narrativos, posto que, dos 47 casos como MD, 37 ocorrem em narrativas (21 em NR e 16 em NE) e 10, em RO e em DE (7 e 3 casos, respectivamente).
Em (17), mostramos mais um caso do MD em fechamento de tópico:
Em (17), a centração focaliza a entrada de um rapaz armado em um programa de TV. No primeiro agrupamento de enunciados (L. 1-2), o tópico é anunciado, e cada um dos agrupamentos seguintes vai desenvolvendo o tópico, até que “só sei que” introduz a última parte do SegT (L. 7-8), marcando o fim do tópico discursivo com o desfecho da invasão.
A segunda função de “(eu só) sei que” mais recorrente em nosso córpus foi a de MD de sequenciamento intratópico, atuante na estruturação interna das partes do SegT, ou seja, no interior de unidades intratópicas.
A partir de (18), analisamos uma ocorrência dessa natureza.
Em (18), ocorrência extraída de uma NR, a informante relata um procedimento místico feito para o tio se livrar da amante. No primeiro grupo de enunciados (L. 1-2), a informante contextualiza o foco temático - “um dia foi marcado lá pra fazê(r) um trabalho no cemitério”; no segundo grupo (L. 3-6), explica que não pôde acompanhar o procedimento e, por isso, pediu à irmã que fosse em seu lugar; no terceiro conjunto (L. 7), fecha o tópico, explicitando onde o procedimento foi realizado - “aí foram acho que no cemitério de Cedral Uchoa”. Considerando essa organização do SegT, “eu sei que” é um MD sequenciador intratópico, porque articula a estrutura interna de uma unidade intratópica (conjunto específico de enunciados) que, com outras unidades intratópicas, compõe um único tópico discursivo. Assim, “eu sei que” encaminha o fechamento da unidade intratópica particularmente concernente à falta de disponibilidade da informante para participar do procedimento no cemitério (L. 3-6)5. A terceira função identificada de “eu (só) sei que” foi a de MD de sequenciamento de tópico, que analisamos, a partir do SegT em (19).
O SegT em (19) é parte da mesma NE do SegT em (16), no qual o informante narra travessuras da mãe durante estágios de esclerose. Em (19), ele narra os cuidados com a mãe depois que seu filho nasceu, como sugerido nas linhas 1-2. Depois desse primeiro trecho do SegT, outros quatro agrupamentos de enunciados, que também contribuem para a instauração do tópico discursivo, expressam, cada um, uma concernência mais específica e vão desenvolvendo aspectos do tópico: a relação da mãe com os brinquedos do filho (L. 3-4); a avaliação da convivência com a mãe (L. 5-6); ou ainda, nas linhas 9-10, o relato de que a mãe não deixava o filho brincar com os colegas. Partindo dessa segmentação, “eu sei que” funciona como MD de sequenciamento de tópico porque “saber” perde autossuficiência comunicativa para integrar uma construção que introduz, ainda em meio ao desenvolvimento do tópico, uma unidade intratópica, articulando, assim, partes de um mesmo tópico discursivo.
Além dessa atuação mais ampla na articulação textual, dois outros fatores mais específicos ajudam a sustentar a análise de “(eu só) sei que”, em (19), como MD.
O primeiro é a sua coocorrência, na introdução de uma unidade intratópica, com o MD “e”, salientando que, naquele ponto do texto, a articulação textual é predominante. O segundo é a pausa prosódica, sinalizada pelas reticências que antecedem “eu sei que”, revelando que o MD ocorre demarcado prosodicamente e, como exposto na seção 2, a demarcação prosódica é um dos traços da matriz de MD prototípicos. Ademais, semelhantemente ao que ocorre em (16), em que uma avaliação geral do tópico é introduzida por esse MD no fechamento de tópico, também em (19) “eu sei que” introduz uma avaliação sobre o tópico - “e... eu sei que num foi fácil a gente convivê(r) esse tempo todo” - ainda em meio ao seu desenvolvimento, de forma que, depois dessa avaliação, o informante continua desenvolvendo o tópico discursivo. Assim, lembrando que (16) e (19) são parte de uma mesma NE, destacamos que a avaliação do tópico introduzida pelo MD de sequenciamento de tópico (L. 5, em (19)) é parafraseada, em certa medida, pela avaliação do tópico introduzida por “eu sei que” de fechamento de tópico, - “eu sei que ela fazia arte o tempo todo... (...) num foi fácil não... a convivência junto” (L. 14, em (16)), mostrando que esse tipo do MD apresentando uma avaliação do tópico caracteriza tanto o sequenciamento quanto o fechamento de tópico.
Em (20), segue caso exemplar de “(eu só) sei que” como MD de abertura de tópico, quarta função identificada. Como estamos lidando sempre com os tópicos discursivos mais específicos do texto materializados pelos SegTs mínimos, “(eu só) sei que”, nessa função, marca a instauração de tópico específico (sinalizando a passagem de um SegT mínimo a outro) depois de mudança de centração, já definida como propriedade de concentração da interação verbal em um conjunto de referentes concernentes entre si e em relevância em determinados pontos do texto6.
A porção textual em (20) é parte da mesma NR do SegT em (18), na qual a informante narra o caso do tio e sua amante. Em (20), os tópicos 1 e 2, adjacentes na linearidade textual, integram o supertópico “Ações do tio para se livrar da amante”. Das linhas 1 a 14, apreende-se o tema da tentativa do tio de se livrar da amante, mas, nas linhas 1-5, a centração particular gira em torno da criação de uma boneca de vodu pelo tio, enquanto nas linhas 6-14, retrata-se a decisão do tio de fazer macumba para matar a amante. Por manifestar centrações diferentes entre si, esses dois trechos são SegTs mínimos diferentes, concretizando dois tópicos discursivos distintos. Fica claro, portanto, que “saber” perde autossuficiência comunicativa e adquire função de sequenciador tópico, compondo uma construção cristalizada com estatuto de MD, neste caso, de abertura de tópico, pois marca a instauração de uma nova centração, o início de um tópico discursivo, depois de o tópico anterior ter sido finalizado.
Ainda a partir de (20), salientamos que “eu sei que” na função de MD tende a ser sintaticamente independente. Explica Risso (2015) que a não integração de um MD à estrutura sentencial pode causar a impressão de que o marcador poderia ser descartado do texto, sem prejuízos à significação. No caso em análise, a eliminação de “eu sei que” e do MD “aí”, que juntos explicitam o movimento de abertura de tópico, não impediria uma mudança de tópico.
No entanto, segundo a autora, basta que se excluam do texto elementos desse tipo para percebermos quantas informações são perdidas em relação à administração da estruturação textual por parte do falante. Assim, mostrando que a independência sintática, um dos traços de MD prototípicos, também caracteriza o MD “(eu só) sei que”, reforçamos nosso posicionamento sobre seu estatuto de MD.
Nesta seção, nosso foco foi discutir casos de “(eu só) sei que” cuja categorização como MD é, a nosso ver, bem precisa. Todavia, admitimos que nem sempre é fácil precisar a função da construção, como problematizamos na sequência, a partir do contexto dado em (21), que exemplifica a função de MD basicamente sequenciador + secundariamente modal, última das funções identificadas.
Em (21), a princípio, classificamos “eu sei que” como MD de fechamento de tópico, pois entendemos que o verbo “saber” perde autonomia comunicativa para integrar a construção cristalizada que introduz, no último agrupamento de enunciados (L.9-10), uma avaliação conclusiva sobre o tópico discursivo, interpretação reforçada pela presença de “então” (L. 9), que, como MD típico de fechamento de tópicos, acumula-se a “eu sei que” para marcar a relação conclusiva do trecho em relação ao restante dos enunciados (L. 1-8) que instauram o tópico discursivo. Por outro lado, também é possível o reconhecimento da função modal epistêmica de “saber”, já que, na função de predicado epistêmico encaixador, o falante parece se comprometer com a proposição da oração subordinada, assumindo ter ciência do grande ciúme de sua namorada, como podemos ainda entender se comparamos o trecho da linha 2 (“eu num sabia que ela era assim”) com o das linhas 9-10 (“hoje em dia eu sei que ela é muito ciumenta se fosse há seis meses atrás eu falava que não”). É diante dessas duas possibilidades de análise que assumimos, então, a dificuldade de precisar se “eu sei que” seria mesmo MD ou predicado encaixador. Uma vez que, nos processos de construção textual e nos MDs, a GTI defende a dominância (não exclusividade) de uma função, mesmo que a construção com “saber” como MD possa preservar traços de predicado epistêmico, esse uso se diferencia dos contextos nos quais é claramente predicado matriz. Assim, pelo princípio da gradiência, classificamos casos como (21) como apresentando função de basicamente MD de fechamento de tópico, porque é um caso bastante semelhante aos apresentados anteriormente nos quais “(eu só) sei que” introduz uma avaliação sobre o tópico, mas não deixamos de reconhecer a presença de traços de modalidade epistêmica, quando “saber” ocorre como predicado matriz.
Em síntese, nesta seção, defendemos que o verbo “saber”, quando constitui a construção “(eu só) sei que”, pode ser analisado como MD, porque perde autonomia comunicativa e deixa de funcionar como predicado matriz, para atuar na organização textual-interativa, assumindo a macrofunção de sequenciador tópico que instancia as funções específicas de fechamento e de abertura de tópicos discursivos, de sequenciação de partes de um tópico e até mesmo a de uma unidade intratópica, além da de basicamente sequenciador + secundariamente modal.
Conforme procuramos argumentar em nossas análises, dentre as funções desse MD, a mais recorrente é a de fechamento de tópico, o que confirma nossa hipótese inicial de que esse MD seria típico desse contexto. Além disso, verificamos que, em fechamento de tópico, é comum que este MD introduza o desfecho do tópico, ou também um resumo ou uma avaliação sobre o tópico discursivo, avaliação que pode acontecer também quando o marcador tem a função de sequenciamento de tópico. Ainda, discutimos que nem sempre é fácil categorizar a função da construção “(eu só) sei que”, distinguindo com precisão seu uso como oração matriz em construções complexas, ou como um MD, que atua na organização textual-interativa. Em meio a essa dificuldade, sustentamos que a construção, ao se cristalizar, pode preservar traços semânticos de predicado matriz, mas sua função dominante é, de fato, a de MD. Assim, estabelecemos uma tipologia de usos da construção como MD que reúne cinco categorias, todas particularizando a função de MD basicamente sequenciador, de acordo com os dois principais grupos de MD reconhecidos pela GTI.
6. Conclusões
Defendemos, no curso de nossas análises, que “(eu só) sei que” é um MD do PB, em decorrência da perda de autossuficiência comunicativa do verbo “saber”, que passa a constituir uma construção fixa com cinco diferentes funções textual-interativas: (i) fechamento de tópico, (ii) sequenciamento intratópico, (iii) sequenciamento de tópico, (iv) abertura de tópico e (v) basicamente sequenciador + secundariamente modal. O reconhecimento dessas funções, somadas a outras já descritas para o verbo “saber”, leva-nos, nesses arremates finais, a considerar fortemente a hipótese de uma trajetória de mudança linguística que, formulada em bases puramente sincrônicas, assume por origem o uso pleno do verbo como predicado matriz. Considerando-se descrições já disponíveis, às quais se acrescentam as funções textual-interativas aqui detalhadas, essa hipótese de trajetória de mudança envolvendo o verbo “saber” se assentaria principalmente no reconhecimento de construções que vão se abstratizando semanticamente ao longo de um continuum, que teria como ponto focal terminal a função de MD de arranjo textual, como mostrado na Tabela 2.
O importante a destacar desta escala proposta é o papel da fixidez da construção “(eu só) sei que” ao longo da escala de abstratização, que se inicia no ponto a partir do qual ela assume a função de expressar modalidade epistêmica e evidencialidade. Embora tenhamos atestado um contexto ambíguo da construção entre seu funcionamento como matriz epistêmica e como MD de fechamento de tópico, é possível reconhecer também sobreposições entre as categorias de modalidade e evidencialidade (Gonçalves 2003), o que explicaria a localização da função MD textual-interativo como último ponto da escala. A escala de mudança aqui proposta como hipótese requer comprovação empírica a ser diacronicamente atestada, embora reconheçamos que funções textual-interativas de MD identificadas no texto falado possam restringir sua investigação em viés diacrônico, o que requereria, para tanto, textos de sincronias pretéritas que estivessem mais próximos da modalidade falada, questões que apontam para importante proposta de investigação futura.