1. Introdução
São Tomé é uma das ilhas que compõe a República Democrática de São Tomé e Príncipe, país da África Ocidental, próximo à linha do Equador, com uma população de cerca de 197.700 habitantes (INE, 2017). Segundo Hagemeijer (2009), a colonização portuguesa do arquipélago tem início no final do século XV: inicialmente as ilhas tiveram um papel de importante entreposto de escravos em virtude da localização geográfica privilegiada, passando mais tarde a se destacar como grandes produtoras de cana de açúcar. Em meados do século XIX, se inicia o segundo período de colonização portuguesa, com o advento do cultivo de cacau e café e a instauração do regime de trabalho contratado.
Como em diversos países africanos, em São Tomé há a convivência de diversas línguas: santome (ISO 639-3: cri), angolar (ISO 639-3: aoa) (línguas crioulas naturais de São Tomé), kabuverdianu (ISO 639-3: kea) (língua transplantada com os trabalhadores contratados) e português (língua dos ex-colonizadores que mais tarde foi adquirindo características próprias).
O estatuto e os usos dessas diversas línguas são desiguais, sendo o português a língua oficial, única usada nas instâncias governamentais, e língua materna de grande parte da população.
Dentre as línguas faladas em São Tomé, neste artigo, discutimos o subsistema pretônico do português urbano santomense (PST): inventário de segmentos, aspectos acústicos e o processo de alçamento vocálico. Esse estudo mostra-se relevante na medida em que a despeito de constituir uma variedade própria, o português santomense ainda é analisado muitas vezes sob a ótica do português europeu, norma alvo da população do arquipélago e aquela vigente no sistema de ensino. Assim, são comuns comentários negativos sempre que as estruturas da variedade de português santomense se afastam do português europeu. Ademais, como apontado por Hagemeijer (2016), o português de São Tomé e Príncipe, assim como o de Cabo Verde e o da Guiné Bissau, são foco de poucos estudos especialmente no que diz respeito a seus aspectos fonológicos, lacuna que este estudo contribui para sanar.
Esse artigo está dividido da seguinte forma: a seção 2 discute o estatuto da língua portuguesa em São Tomé. A seção 3 trata brevemente da metodologia do estudo. Na seção 4, o foco recai no sistema vocálico do PST, sobretudo no quadro da posição pretônica, caracterizado sob a perspectiva da geometria de traços. Em 4.1, é apresentada uma descrição acústica das vogais pretônicas no que tange à duração e aos formantes; em 4.2, discute-se o processo de alçamento e seus condicionamentos. Por fim, na seção 5, aparecem as considerações finais do estudo.
2. A Língua Portuguesa em São Tomé
De acordo com o censo de 2012, em São Tomé e Príncipe, o português é usado por 98.4% da população (cerca de 170.309 pessoas) (INE, 2012), sendo esse o único país africano em que a língua portuguesa tem um uso majoritário (Hagemeijer, 2016, Araujo, 2020). Analisando aspectos sociohistóricos, percebe-se que a vitalidade do português na ilha foi um processo paulatino, que ganhou impulso no século passado. De acordo com Gonçalves e Hagemeijer (2015) e Araujo (2020), até aproximadamente 1950, não havia um número significativo de portugueses residentes em São Tomé, de modo que o português não apresentava um uso expressivo na ilha, sendo as línguas crioulas as mais usadas para a comunicação2. Com base em números retirados de Nascimento (2000, 2008), Araujo (2020) mostra que entre 1807 e 1950, a população portuguesa de São Tomé oscilou entre 1.03% e 1.91% do total de habitantes, porcentagem diminuta para impactar nos hábitos linguísticos da ilha.
Em finais do século XX, o cenário linguístico começa a se alterar, observando-se um incremento no uso do português, como mostram dados dos últimos censos referentes a São Tomé e Príncipe: em 1981, a quantidade de falantes de português era 60.519; em 1991, esse número aumentou para 94.907; já em 2001, o arquipélago contava com 136.085 usuários de português; por fim, em 2012, os falantes de português chegaram a 170.309 habitantes. Comparando os dados de 1991 e de 2012, observa-se que, num período de 21 anos, a quantidade de falantes de português quase triplicou, suplantando os falantes das demais línguas empregadas no arquipélago.
Diversos acontecimentos sociais ocorridos no século XX ajudam a compreender esse aumento vertiginoso no uso do português em São Tomé (Gonçalves e Hagemeijer, 2015, Araujo, 2020). Em primeiro lugar, como é o caso de outras ex-colônias portuguesas na África, pode-se mencionar como importante fator na difusão do português sua escolha como língua oficial do arquipélago. Essa decisão foi baseada no argumento de que essa não era a língua de nenhum dos grupos étnicos, o que diminuiria a possibilidade de conflitos e também no fato de que não seria necessário elaborar materiais didáticos e traduzir textos, dado que já havia uma farta produção em língua portuguesa. Ademais, a escolha do português como língua oficial atendia os anseios da elite colonial, que já era falante de português e, assim, poderia manter seus privilégios e continuar no poder, ocupando o lugar outrora dos portugueses.
Araujo (2020) menciona ainda três fatores que contribuíram para a difusão do português: (i) a urbanização que teve início em 1975, impulsionada não somente pela construção de uma melhor infraestrutura urbana, mas também pelo declínio da economia agroindustrial e a reforma agrária; (ii) a escolarização, realizada somente em português (tendo como modelo a norma europeia); (iii) a mídia, que, desde o surgimento dos primeiros jornais impressos em 1857 até as transmissões de rádio e de televisão mais atuais, utiliza de forma maciça o português, havendo pouco espaço para as línguas locais.
A difusão do português em São Tomé foi acompanhada, em contrapartida, de uma desvalorização (ou até mesmo abandono) das outras línguas faladas na ilha. Ademais, políticas linguísticas em defesa das línguas crioulas faladas em São Tomé e Príncipe não têm sido foco dos governantes, que se defrontam com dificuldades prementes em outras áreas (Araujo, 2020). Desse modo, o multilinguismo outrora vigente vê-se ameaçado, na medida em que as gerações mais jovens muitas vezes não desejam aprender a língua de seus pais e avós, mas tão somente o português.
A despeito de o modelo escolar e mesmo a língua-alvo do ponto de vista social ser o português europeu, o português falado em São Tomé hoje como língua materna é resultado de uma língua antes falada como segunda língua, que sofreu reanálises estruturais do input europeu através do processo de transmissão linguística irregular (Lucchesi e Baxter, 2009). Assim sendo, o português de São Tomé apresenta traços linguísticos próprios e interferências das línguas autóctones anteriormente usadas de forma maciça na ilha.
3. Metodologia
Os dados que compõem essa pesquisa foram coletados durante trabalho de campo na cidade de São Tomé em 2019. Para análise do alçamento vocálico, considerando os contextos pretônicos, examinamos 40 itens lexicais distintos possuindo /e/ (20 itens) e /o/ (20 itens) em sílabas pretônicas.3 Tais palavras foram extraídas mediante a repetição da frase-veículo Eu falo X baixinho, totalizando três ocorrências de cada palavra. Enquanto a primeira ocorrência foi descartada, analisamos acusticamente duas ocorrências por informante, extraindo a duração e F1 e F2 das vogais-alvo pelo Praat (Boersma e Weenink, 2020).
As gravações foram feitas com seis informantes, 03 homens e 03 mulheres, analisados separadamente de acordo com o sexo. Todos apresentavam escolaridade média-alta4 e tinham entre 18 e 23 anos. Tendo em vista que propriedades acústicas distintas subjazem a ambos os grupos e podem causar alterações consistentes nos valores em Hertz dos informantes (Fant, 1966, Pépiot, 2009), a separação dos grupos foi realizada para o exame fonético nos dados, ao passo que, fonologicamente, avaliamos o alçamento de maneira geral.
Ademais, para restringir os efeitos fisiológicos individuais dos informantes que não puderam ser controlados, fizemos duas análises distintas, mostrando, em um primeiro momento, os valores brutos de F1 e F2 e, posteriormente, expondo os espaços acústicos com os valores de F1 e F2 normalizados a partir do método de normalização Lobanov45. No total, considerando 40 palavras com a vogal-alvo em sílaba pretônica, temos 80 ocorrências por informante (40 palavras x 2 ocorrências) e 40 descartes, havendo, portanto, 480 ocorrências no total (80 ocorrências x 3 informantes homens; 80 ocorrências x 3 informantes mulheres).
As médias obtidas para a duração, F1 e F2 são apresentadas em conjunto com o desvio padrão (DP) e o erro padrão (EP), de forma a indicarmos a variabilidade e a imprecisão das médias analisadas. A esse respeito, o desvio padrão sumariza a informação relativa à dispersão da média amostral, estimando, também, a dispersão na população de que a amostra é proveniente. O Erro padrão, por seu turno, indica a imprecisão da estimativa média da duração vocálica, bem como dos valores de F1 e F2 (Lunet et al., 2006).
Após a descrição acústica, examinamos os itens lexicais a partir de critérios linguísticos como: alvo, gatilho(s) e contexto(s) segmental(is) que pudessem afetar o alçamento das vogais médias em pretônicas no PST. Para tanto, discutimos o subsistema pretônico e o fenômeno em questão a partir do quadro teórico gerativo, especificadamente, mediante os pressupostos da geometria de traços (Goldsmith, 1990, Wetzels, 1992).
4. Vogais no PST
O PST possui sete vogais orais /i, e, ɛ, a, ɔ, o, u/ (cf. Christofoletti e Araujo 2018), demonstradas na figura 1.
As sete vogais orais /i, e, ɛ, a, ɔ, o, u/ do PST podem ser neutralizadas em seis vogais (i, e, a, ə, o, u) nas sílabas pretônicas6 e postônicas não finais, bem como em três vogais (ɪ, a, ʊ) em átonas finais, como indicado na figura 2. Nesse quadro, os segmentos destacados compõem o resultado da implementação de processos fonológicos observados nos dados investigados. Em sílabas pretônicas, por exemplo, notamos que (ɛ, ɔ) podem ainda ser verificadas em decorrência da harmonia vocálica, como em bolota (bɔ.ˈlɔ.tɐ) e precoce (pɾɛ.ˈkɔ.sɪ) (Santiago et al. no prelo), ao passo que, em átonas finais, vogais altas podem ser desvozeadas (ɪ̥, ʊ̥), como ocorre no Português do Príncipe em elefante (e.le.ˈfɐ̃.tʃɪ̥) (Santiago 2019, Santiago et al. no prelo). Em átonas finais, a vogal baixa pode ser alteada - como previsto para o PB e para o PE - ou não, havendo a possibilidade de itens como banana (ba.ˈnɐ̃.na) serem produzidos com (a) na sílaba átona final. Por fim, (a) pode alternar, também, como (ə) em posições átonas, como em natal (nə.ˈtaɫ).
As seis vogais orais (i, e, a, ə, o, u) do subsistema pretônico são identificadas em dados como os itens lexicais expostos na figura 3 7. Como indicado, palavras contendo uma das seis vogais orais em sílaba pretônica são recorrentes em início absoluto da palavra ou em meio de palavra, na primeira ou segunda sílabas pretônicas (cf. Christofoletti e Araujo, 2018, Nascimento, 2018, Santiago, 2019, Santiago et al. no prelo).
Neste artigo, nosso foco recairá na descrição do subsistema pretônico do PST. Apresentaremos, assim, características acústicas como duração e formantes das vogais licenciadas nesta pauta e, posteriormente, discutiremos o alçamento cujo domínio são as sílabas pretônicas. Para tanto, adotamos a geometria de traços para descrição da altura das vogais e formalização dos processos.
Para a fonologia gerativa clássica, todos os traços fonológicos são binários (cf. Chomsky e Halle 1968). De acordo com esse raciocínio, a altura das vogais é definida a partir dos traços (alto) e (baixo), os quais podem adquirir as especificações de (+) ou (-). Uma vogal como /i/ ou /u/, por exemplo, tem sua altura caracterizada como (+ alto, - baixo), ao passo que /e/ e /o/ seriam (- alto, - baixo) e /a/ (- alto, + baixo). Essa proposta, conforme apontado por uma série de estudos posteriores, além de abrir margem a combinações impossíveis, como *(+ alto, + baixo), é insuficiente para formalizar sistemas vocálicos que possuem mais de três alturas, como é o caso do português, pois não consegue explicar as vogais médias-baixas /ɛ, ɔ/ (Goldsmith, 1990).
Ciente dessa falha na teoria gerativa clássica, Lopez (1979), ao estabelecer o quadro vocálico do português, retoma a proposta de Kiparsky (1985) e lança mão de mais um traço para a especificação das vogais, o (alçado) ((raised)), o qual é definido, articulatoriamente, como um movimento de elevação da língua em relação à sua posição neutra (Lopez, 1979). Desse modo, conforme a autora, o traço (alçado) é responsável pela distinção entre as vogais médias, que são delimitadas como (- alto, - baixo, + alçado), se /e, o/, e como (- alto, - baixo, - alçado), se /ɛ, ɔ/ (Lopez 1979). Com base nessa especificação, o processo de neutralização é explicado a partir da alternância na marcação de (alçado), posto que as vogais (-baixo), nesse caso /e, ɛ, o, ɔ/, podem ser alçadas em sílabas átonas (Lopez, 1979).
O traço (alçado) corresponde a um dos diferentes recursos empregados para suprir a deficiência imposta pela definição de altura vocálica a partir dos traços (alto) e (baixo) do SPE. Outra alternativa comum é o uso do traço (tenso), que define as vogais médias-altas como (+ tenso) e as vogais médias-baixas como (- tenso) (cf. Redenbarger, 1977). No entanto, embora (tenso) seja empregado como uma alternativa para lidar com os graus de abertura das vogais, este não é um traço cuja função primária tenha qualquer relação com a caracterização dos diferentes sistemas vocálicos das línguas naturais. De fato, o traço (tenso) designa as diferenças, no momento de produção dos segmentos, da tensão muscular, da amplitude, da duração e do deslocamento dos articuladores em relação à posição neutra da cavidade oral, não configurando, portanto, o traço mais adequado para especificar altura vocálica (Goldsmith, 1990).
A proposta de Lopez (1979) para o português indica que somente os traços (alto) e (baixo), dentro dessa perspectiva linear, não são suficientes para explanar o quadro vocálico da língua portuguesa e, tampouco, formalizar o processo de alçamento vocálico. Todavia, empregados sob uma perspectiva não linear, os traços (alto) e (baixo) podem ser utilizados para delimitação do quadro vocálico da língua portuguesa, como também para justificar os fenômenos de neutralização previstos nesse sistema, sem recorrer a traços extras. Mateus e D'Andrade (2000) adotam essa perspectiva e assumem que os traços de altura (alto) e (baixo) são suficientes para representar os processos fonológicos da língua dentro de um molde autossegmental (Mateus e D'Andrade, 2000).
Em geral, as vogais do português, conforme a perspectiva autossegmental de Mateus e D'Andrade (2000), não são plenamente especificadas no nível lexical, e, em decorrência disso, alguns fatores, como a atribuição do acento, poderiam engatilhar regras de preenchimento dos traços não especificados. Assim sendo, o processo de neutralização pode ser explanado com base na demarcação dos valores binários de (alto) e (baixo) das vogais átonas em um nível pós-lexical.
Para Mateus e D'Andrade (2000), a neutralização de (e, o, ɛ, ɔ), no PE, decorre da especificação como (+alto) de tais segmentos, resultando em um alçamento que reduz os segmentos anteriores a (i) e os labiais a (u). O alçamento de (a), por sua vez, justifica-se pela demarcação de (-baixo) atribuída a essa vogal, responsável por elevá-la, articulatoriamente, à (ɐ). Ao contrário, no PB, o alçamento é esclarecido, conforme os autores, a partir da especificação como (-alto, -baixo) de (e, ɛ, o, ɔ), que, por um lado, anula a distinção entre as médias e, por outro, mantém a distinção entre as mesmas e as vogais altas (i, u) (Mateus e D'Andrade, 2000). A proposta analítica dos autores fornece um exame econômico do fenômeno, interpretando a neutralização com base apenas em dois traços, embora não explique os casos em que essa alteração atinge toda a série coronal e a dorsal8.
Todavia, distintamente do que é defendido por Mateus e D'Andrade (2000), a neutralização não pode ser explicada, dentro desse modelo teórico, apenas como regra de preenchimento de traços subespecificados. No PE, embora seja possível preencher como (+ alto) (ɛ, ɔ), isso não é possível com (e, o), já que, para essas últimas vogais, (alto) não está subespecificado, mas é, lexicalmente, determinado como (- alto).
A mesma questão pode ser suscitada para (a), que envolve mudança de especificação de (+ baixo) para (- baixo). Além do mais, a especificação como (-alto, -baixo) de (e, ɛ, o, ɔ), na variedade brasileira do português, é capaz de explicar, exclusivamente, o alçamento das pretônicas, porém não abarca o alçamento de átonas finais, caracterizado por reduzir as vogais médias em vogais (+alto) (i, u) e, tampouco esclarece a discussão relacionada às postônicas, ou mesmo ao abaixamento vocálico previsto em alguns dialetos do PB.
Ainda com base em uma proposta autossegmental, contudo adotando valores escalares para o nó de altura da vogal, Wetzels (1992) argumenta que as distinções, baseadas em graus de abertura, são mais adequadas para o exame da neutralização vocálica do que os traços binários (alto) e (baixo). Conforme o autor, as vogais do português contêm três graus de abertura e são identificadas como (+/- aberto 1), (+/- aberto 2), (+/- aberto 3). Nessa proposta, as vogais médias são opostas em decorrência de (aberto 3), ao passo que (aberto 1) e (aberto 2) as definem como uma classe única em oposição a /i, u/ e a /a/. A neutralização das vogais médias-baixas em médias-altas, portanto, é explicada, conforme o autor, pelo desligamento de (aberto 3).
Essa regra, retomada em estudos subsequentes como os de Bisol (2003, 2010), assinala que, no domínio da palavra fonológica, as vogais localizadas em sílabas átonas têm o traço (+ aberto 3) desligado, resultando em um sistema de cinco vogais (e, i, a, u, o), contrastes estabelecidos por (+ aberto 1) e (+ aberto 2). Essa regra tem como objetivo justificar o subsistema de vogais pretônicas do PB, já que os subsistemas de vogais postônicas e de vogais átonas finais são formalmente distintos entre si e em relação às vogais pretônicas.
A proposta de Wetzels (1992) é revista pelo próprio autor e reinterpretada à luz da mudança de especificação de traços em detrimento do desligamento do tier de abertura. Wetzels (2011) defende, assim, que a regra de neutralização não deve ser concebida como consequência da perda de um traço terminal de altura, mas sim como o resultado de uma alteração da marcação do traço, em que um valor distintivo é modificado por seu valor oposto na camada que define a distinção entre os segmentos. De acordo com essa perspectiva, a neutralização das pretônicas, no PB, seria justificada pela mudança de especificação de (aberto 3), o qual passa a ser (- aberto 3) para (ɛ, ɔ) e, por conseguinte, propicia a produção de (e, o).
A partir da proposta de Wetzels (1992, 2011) para o PB e considerando a altura da mandíbula na produção das vogais do PST, assumimos, também, diferentes graus de abertura: (+/- aberto 1), (+/- aberto 2), (+/- aberto 3) para descrição dessa variedade, como indicado na tabela 1.
Delimitados os traços vocálicos de altura licenciados no PST, dedicamos a seção 4.1, a seguir, a uma breve descrição fonética do subsistema pretônico. Nela, contemplamos alguns fatores acústicos como a duração segmental das vogais e o valor do primeiro e segundo formantes (F1 e F2), que caracterizam os segmentos vocálicos na pauta pretônica. Isso posto, a seção 4.2 é dedicada à discussão do alçamento, processo fonológico cujo domínio é a sílaba pretônica.
4.1. Descrição Acústica
A duração média das vogais pretônicas, no PST, é apresentada na tabela 1 para os dados de fala de informantes masculinos e femininos. Nos dados analisados, foram excluídas palavras que sofriam qualquer processo fonológico na sílaba pretônica.
Na tabela 2, observamos que a duração dos segmentos não diferiu muito em função da voz de homens e mulheres. De maneira geral, as vogais menos longas são (i) e (u), sendo (a) a mais longa nos dados de fala de mulheres, e seu alofone (ə) na fala de homens.
Esses dados, no entanto, oferecem apenas uma visão ampla da duração vocálica de (i, e, a, ə, o, u) em sílabas pretônicas no PST, visto que não foram controlados os contextos segmentais precedentes e seguintes, ou mesmo a posição da pretônica (se em sílaba pretônica inicial absoluta ou medial), aspectos que podem interferir na duração dos segmentos.
As tabelas 3 e 4, por seu turno, reúnem as médias de F1 e F2 das vogais faladas pelos informantes masculinos e femininos, respectivamente. Os valores dos formantes F1 e F2 são brutos e, assim como reportado pela literatura (cf. Ladefoged e Johnson, 2011), o primeiro formante (F1) está correlacionado à altura da mandíbula, definindo o segmento vocálico como alto, médio ou baixo, ao passo que o segundo formante (F2) corresponde ao movimento horizontal da língua, relacionando-se à posterioridade ou anterioridade do segmento. Os valores dos formantes são atribuídos em Hertz e apresentam configurações próprias.
O F1, como exposto nas tabelas 3 e 4, é inversamente proporcional à altura da mandíbula e, por isso, as vogais altas possuem F1 baixo ao passo que as vogais baixas tendem a apresentar valores de F1 mais elevados. De outra forma, os valores mais altos de F2 relacionam-se à anterioridade: quanto mais anterior um segmento vocálico, maior seu F2, enquanto que, quanto mais posterior, menor será seu valor de F2.
Avaliando o espaço acústico F1 x F2 ocupado pelas vogais pretônicas para os dados de fala masculina, a figura 4 indica que, por vezes, são observadas sobreposições entre os valores de F1 de (i) e (e) e de (u) e (o), mesmo que nesses casos o alçamento não seja perceptivamente observado. Os valores de F1 de (a) e (ə) também são sobrepostos, todavia é perceptível a realização mais baixa de (a).
O mesmo ocorre ao avaliarmos o espaço acústico F1 X F2 dos dados dos informantes femininos normalizados, como exposto na figura 5.
A descrição acústica apresentada nesta seção contribuiu para delimitação dos casos de alçamento das vogais médias, sendo os valores médios da duração e de F1 interpretados como correlatos acústicos do fenômeno. Na tabela 5 expomos os valores médios da duração em milissegundos, e de F1 e F2 em hertz9.
Comparando os valores da tabela 4 com os valores médios de (e) e (i) e de (o) e (u) dos informantes masculinos e femininos, confirmamos o alçamento, preliminarmente indicado de oitiva, pela alteração do valor de F1 dos itens-alvo, representados como /e/ ( (i) e /o/ ( (u). Nas tabelas 6 e 7, os valores médios da duração e de F1 de /e/ ( (i) e /o/ ( (u) sugerem que, de fato, o fenômeno foi implementado, visto que, por ser produzido com a mandíbula mais fechada, é esperado que a duração e o F1 dos segmentos sejam menores em relação a (e) (cf. tabela 5) e (o) (cf. tabela 6).
4.2. Processos Fonológicos - Alçamento Vocálico
A sílaba pretônica corresponde ao domínio de diferentes processos fonológicos, dentre os quais podemos citar o alçamento. O alçamento vocálico é um fenômeno fonológico demarcado pela alternância sonora motivada pela elevação da língua, resultando em uma vogal cujo ponto de articulação está mais elevado em relação à altura do segmento-alvo - como sugerido pela alteração de F1 demarcada na seção 4.1.
No PST, o alçamento vocálico das vogais médias é produzido a partir da eliminação do contraste do traço (aberto 2) entre os segmentos médio-altos e altos, na sílaba átona, ocorrendo de forma independente a uma vogal gatilho (Abaurre-Gnerre, 1981, Wetzels, 1992), como indicado nos exemplos da figura 6.
As neutralizações de (e) ~ (i) e (o) ~ (u) ocorrem independentemente de o segmento vocálico seguinte demonstrar o traço (+ aberto 2) e, em alguns casos, (+ aberto 3), como observado em pequeno (pi.ˈke.nʊ); pescar (piʃ.ˈkaɾ); boneca (bu.ˈnɛ.kɐ) e sofá (su.ˈfa). Entretanto, além de consolidado de forma independente à qualidade do segmento vocálico à direita ou à esquerda da vogal-alvo, resultando em um processo de redução vocálica com sequências de altura desarmônicas, o alçamento pode ser implementado pela concordância do traço de altura (- aberto 2) com as vogais /i/ e /u/, caracterizando sequências harmônicas como consequência de uma coarticulação antecipatória que pode promover a harmonização: menina (mi.ˈni.nɐ); Portugal (puɾ.tu.ˈgaɫ) e mosquito (muʃ.ˈki.tʊ).
Apesar de estudos como o de Nascimento (2018) interpretarem dados como menina (mi.ˈni.nɐ) e Portugal (puɾ.tu.ˈgaɫ) como resultado de harmonia vocálica no PST, não há evidências, nos dados analisados, que atestem ser esse o caso. De fato, ainda que segmentos como /i/ e /u/ tônicos ou pretônicos coarticulados à direita da vogal média-alvo possam favorecer o alçamento de /e/ e /o/ pretônicos (cf. Nascimento 2018), esse fator não é suficiente para garantir a tais vogais o estatuto de gatilho de um processo de harmonia, requisito necessário para caracterização da harmonia vocálica. Isso ocorre porque o alçamento é verificado de modo independente à concordância de traços de altura e/ou (ATR).
Conforme Bisol (1981), a harmonia vocálica, em posição pretônica no PB, é o processo segundo o qual as vogais pretônicas médias /e/ e /o/ são alçadas quando antecedem uma vogal tônica contígua alta: p(i)p(i)no ~ p(e)p(i)no, f(u)rm(i)ga ~ f(o)rm(i)ga e c(u)r(u)ja ~ c(o)r(u)ja. Nesse sentido, podemos observar que, semelhante ao PB, o PST apresenta palavras com sequências harmônicas de vogais altas, entretanto, distintamente do estudo de Bisol (1981), que aponta a vogal alta tônica como gatilho, não há evidências que indiquem ser o alçamento da pretônica motivado por harmonia vocálica, posto que o fenômeno é verificado em vogais seguidas por uma vogal contígua (+ aberto 1, 2, 3) como nafigura 7.
Na figura 7, notamos que o alçamento ocorre a despeito da concordância do traço de abertura entre as vogais. Dados como pequeno (pe.ˈke.nʊ) ~ (pi.ˈke.nʊ) e desporto (deʃ.ˈpoɾ.tʊ) ~ (diʃ.ˈpoɾ.tʊ), por exemplo, apresentam alçamento vocálico da vogal pretônica, resultando em sequências desarmônicas pela modificação do traço (aberto 2) que passa de (+ aberto 2), inicialmente em concordância com a vogal contígua tônica, para (- aberto 2). Já itens como boneca (bo.ˈnɛ.kɐ) ~ (bu.ˈnɛ.kɐ) essa discrepância fica ainda maior, posto que a diferença de abertura, já existente, passa a ser ainda mais evidente, modificando os traços (aberto 2, 3). Os exemplos do quadro 6 sugerem, portanto, que o alçamento, no PST, mesmo diante de casos cujo resultado são sequências harmônicas, não são provenientes de harmonia vocálica10.
Em relação ao PB (cf. Bisol e Magalhães, 2004, Lee, 2008), e mesmo a processos vocálicos envolvendo as línguas autóctones de STP (cf. Araujo et al., 2020), há propostas que visam explanar processos vocálicos por meio da incorporação do traço (ATR) na configuração do sistema vocálico do português e/ou das línguas crioulas emergidas no arquipélago, abordagem que possui a vantagem de integrar as vogais médias a uma mesma classe natural em relação à altura (Lee, 2008). Bisol e Magalhães (2004), por exemplo, argumentam que a ausência de contraste entre as vogais médias, nas sílabas átonas, pode ser explicada por meio do ranqueamento de restrições de fidelidade posicional e de marcação, como o cancelamento do traço (ATR) e das vogais médias *(MID).
O sistema pleno das sete vogais seria assim definido: (i, e, o, u) (+ATR) e (a, ɛ, ɔ) (-ATR) (Bisol e Magalhães, 2004: 202).
Com base em McCarthy (1988), Bisol e Magalhães (2004) consideram três fatores distintos para descrever e analisar a redução vocálica em PB: (i) a posição em que o contraste é perdido e mantido; (ii) a natureza do contraste observado e, por fim, (iii) o resultado da neutralização. Tendo em vista o traço (ATR), é possível observar que o contraste permanece em sílaba tônica e é cancelado em sílaba átona. O traço anulado é (- ATR), fazendo com que (+/- ATR) perca sua função fonológica. O resultado de tal cancelamento é um sistema de cinco vogais (i, e, a, o, u), assinalado pela presença apenas de vogais médias (+ATR). Abordando o alçamento das médias pretônicas, no PST, por meio da incorporação do traço (ATR) (cf. Bisol e Magalhães, 2004, Lee, 2008), avaliamos a possibilidade de o alçamento ser um resultado de harmonia vocálica a partir de uma perspectiva que integra as vogais médias a uma mesma classe natural em relação à altura (Lee, 2008). Nesse caso, como indicado na figura 8, apesar de pequeno (pe.ˈke.nʊ) ~ (pi.ˈke.nʊ) e desporto (deʃ.ˈpoɾ.tʊ) ~ (diʃ.ˈpoɾ.tʊ) terem como resultado uma sequência (+ATR) harmônica, dados como boneca (bo.ˈnɛ.kɐ) ~ (bu.ˈnɛ.kɐ) e sofá (so.ˈfa) ~ (su.ˈfa) são, ainda, um output desarmônico, confirmando, portanto, que o alçamento, no PST é um fenômeno independente à harmonia vocálica - assim como postulado para o Português do Príncipe (Santiago et al., no prelo).
A discordância de traços mantida ou resultante do alçamento de pretônicas nos leva a questionar uma hipótese puramente relacionada a efeitos assimilatórios de coarticulação fonética para explanar o alçamento vocálico no PST, ao passo que a concordância de traços vocálicos não justifica exemplos como os expostos nas figuras 7 e 8 e, por isso, não é capaz de justificar, satisfatoriamente, o alçamento de pretônicas na variedade em questão. Isso posto, o fenômeno parece evidenciar mais um processo de redução vocálica, possibilitado pela atonicidade silábica, do que um fenômeno decorrente do compartilhamento de traços de altura.
O alçamento, no PST, parecer ser, portanto, um fenômeno que atua sobre uma posição fonológica não privilegiada, isto é, que não porta proeminência fonética e/ou psicolinguística que configurem informações relevantes para armazenamento lexical, por exemplo (cf. Beckman, 1998). A partir dessa hipótese, é preciso considerar, ainda, o alçamento em outras posições silábicas, assim como a possibilidade de outros processos de lenição, como o desvozeamento vocálico, poderem atuar em sílabas átonas.
Esses fatos, quando analisados em conjunto, podem constituir indícios de que, no PST, os segmentos vocálicos que não portam o acento lexical são reduzidos de modo a maximizar os contrastes de proeminência dentro da palavra e, como consequência, maximizam o contraste de altura entre os segmentos em sílaba tônica e átona (cf. Crosswhite, 2004, Nevins, 2012).
5. Considerações Finais
Neste artigo, discutimos as vogais pretônicas do português de São Tomé, apresentando o quadro dessa posição de seis segmentos ((i, e, a, ə, o, u)) e uma descrição acústica dessa posição. Além disso, analisamos o processo de alçamento vocálico pretônico, diferenciando esse processo da harmonia vocálica.
Por limitações de foco e espaço, algumas questões não foram destrinchadas neste estudo, podendo ser examinados em trabalhos futuros pautados em abordagens teóricas distintas. As variáveis extralinguísticas, por exemplo, não foram consideradas, na análise, fato que pode encobrir alguns aspectos relacionados à comunidade de fala onde o PST é falado, especialmente no que tange ao contato linguístico. Logo, outras motivações podem estar subjacentes à regra variável de elevação das médias pretônicas. Esse é o caso não somente dos fatores sociais, não considerados nesse artigo, como comunidade de fala, idade, escolaridade e sexo, como também o próprio léxico e a frequência lexical. De fato, alguns estudos dedicados ao português ressaltam a interferência de múltiplos fatores na aplicabilidade da regra de alçamento sem motivação aparente, como a difusão lexical, a coarticulação de sequências CV, a dispersão vocálica, entre outros fatores (Oliveira, 1992, 1995; Biasibetti, 2014; Battisti et al., 2020). Assim, esse estudo pode servir como ponto de partida para pesquisas futuras sobre o português de São Tomé, dado que essa variedade ainda carece de mais descrições.