Introdução
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e com o início da globalização moderna, a forma como a segurança dos Estados era compreendida mudou fundamentalmente. A abertura dos mercados facilitou o deslocamento de pessoas, serviços e bens para além das fronteiras nacionais. O desenvolvimento tecnológico das telecomunicações tornou os fluxos internacionais ainda mais rápidos, as comunicações se tornaram tão móveis quanto as pessoas, de modo a ser impossível ter controle sobre todos esses movimentos.
Em contrapartida,com a intensificação das relações sociais em escala mundial, “os delitos antes praticados somente no plano nacional passaram a ser, também, cometidos no âmbito internacional”. Nessa perspectiva, “a criminalidade transnacional emerge como uma das maiores ameaças à economia, à política, à segurança e, em última análise, às sociedades modernas globalizadas em geral”, principalmente quando se trata da questão do tráfico de drogas, de armas e do contrabando, que vem criando uma enigmática rede ilegal (Kesikowski, Winter e Gomes, 2018).
Nesse cenário, o fenômeno da globalização propiciou a formação de acordos de integração regional e, consecutivamente, de blocos econômicos, com destaque para o Mercosul, recorte dado a este artigo: constituído em 1991 entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, com a assinatura do Tratado de Assunção, o qual deu início a uma nova ordem na América do Sul.
As nações mercosulinas, considerando a ascendente onda de criminalidade que pairava em suas fronteiras, viram-se frente a necessidade de desenvolver mecanismos específicos para combatê-la. Assim, a cooperação internacional tornou-se um instrumento com maior aptidão a conferir uma resposta adequada e eficaz ao problema e, nessa conjuntura, a elaboração de convenções internacionais e acordos multilaterais e bilaterais ganharam destaque.
Embora tenhatamanha relevância o tema abordado neste estudo,ao longo da pesquisa restou evidenciado que quando se fala em Mercosul muito pouco se discorre sobre a temática da segurança regional nas fronteiras, fator que se reflete no pequeno número de tratados elaborados sobre este assunto, como veremos adiante.
Indispensável explicar que a cooperação internacional se dá no âmbito de pessoas jurídicas de direito internacional e pode ser dividida na cooperação administrativa, cooperação da inteligência financeira e cooperação jurídica. A cooperação policial está inserida na cooperação administrativa que pode ser compreendida como uma “cooperação entre autoridades administrativas que prescinde de pronunciamento jurisdicional” e tem como objetivo a “troca de informações, de aperfeiçoamento de tecnologia, criação e alimentação de banco de dados e desenvolvimento de estratégias de atuação”. Ressalta-se que o presente artigose concentra sobre os acordos em matéria de segurança regional, portanto, enfocado na modalidade de cooperação policial (Iensue e Carvalho, 2015, p. 527).
Para ilustrar o debate, o artigo foi subdividido em itens, sendo que em seuprimeiro item discorre sobre o crescimento do crime organizado transnacional (COT) e sua influência para a transnacionalização da cooperação policial entre os Estados.Ato contínuo, estudamos os mecanismos de cooperação desenvolvidos para combater a criminalidade transnacional, mais especificamente, as convenções internacionais das Nações Unidas e, no âmbito regional, os tratados do Mercado Comum do Sul. No terceiro item, analisamos os desafios e obstáculos que a cooperação policial entre os Estados-membros enfrenta. Por último, o quarto item aborda a questão da aplicabilidade dos acordos, para isso, verificamosas legislações correlatas sobre o processo de incorporação das normativas mercosulinas no Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina e examinamos os dados fornecidos pelo Mercado Comum do Sul e pelo Ministério das Relações Exteriores quanto ao tempo percorrido entre a celebração dos acordos e a data de entrada em vigência, apontando as mudanças necessárias no bloco para que esses tratados não sejam sinônimo de morosidade. Como de costume, o trabalho se encerra com as principais conclusões.
Para a realização deste artigo, utilizamos o método de abordagem hipotético-dedutivo e, como procedimento, o histórico-comparativo,tendo por base os resultados apresentados no trabalho de conclusão de curso de Direito de um dos autores, bem como, alguns aprofundamentos encontrados nos núcleo e grupo de estudos e pesquisa, coordenados pelos outros dois autores (Dinter e GEP Virtù).
1. Ascensão da criminalidade transnacional como fator determinante para a cooperação
O advento da globalização fortaleceu os vínculos transfronteiriços e intensificou as relações que interligam pessoas e localidades ao redor do mundo,as fronteiras ficaram mais permeáveis e o trânsito de pessoas, mercadorias, serviços e recursos, cada vez mais ágil. Consequentemente, fizeram-se necessárias novas teorias para dar conta da relação complexa entre a dimensão local e a integração através da distância. Nesse contexto, a tendência das nações, nas relações travadas em política internacional, passou a ser no sentido de cooperação entre os povos, em relações internacionais que se mostram interdependentes (Giddens, 1991, p. 60).
Sem embargo, esse mundo que facilita o comércio e a integração dos povos, também provoca alterações na dinâmica dos crimes e da violência, afinal, as tecnologias que possibilitam melhores condições de vida, também são utilizadas por aqueles que burlam as leis, cometem crimes e desafiam a justiça(United-Nations-Office-on Drugs-and-Crime, 2012, p. 1).
Em sua obra, Pereira discorre que os Estados Unidos foi o percursor na criação da percepção do crime organizado transnacional como uma ameaça internacional à soberania dos Estados e à sociedade. Ao longo do governo do Presidente Bill Clinton (1993-2001), acolheu-se a ideia da globalização como impulsionadora do COT, já que a dinamização das relações sociais, políticas e comerciais, permitiu que estas atividades ilícitas se expandissem com mais facilidade pelas fronteiras nacionais.
Na medida em que o crime se tornou global, as respostas individuais de cada Estado foram se tornando gradativamente mais ineficientes. Enquanto o estado continuava limitando sua atuação puniendi por conta do princípio da territorialidade e da soberania estatal, a criminalidade transnacional se aproveitava dessa visão tradicionalista do direito penal para expandir o alcance da sua atuação (Marinho, 2019, p. 2).
Nessa lógica, ao trabalhar com a ideia de redes de segurança, Gerpacher e Dupont em 2007, argumentam que o caráter descentralizado e dinâmico do crime organizado, que permite a facilidade do desmembramento e da formação de novas rotas e grupos para a realização da atividade ilícita, exige uma restruturação e transnacionalização do policiamento. Sendo assim, a cooperação policial também deve ocorrer de forma descentralizada, para garantir uma maior dinamização das operações combativas aos grupos organizados.
Frascino e Castro (Frascino e Castro, 2017, p. 37),apontam que os governos passaram a pensar em uma cooperação para a elaboração de políticas específicas contra os problemas deste fenômeno transnacional, incentivando um movimento internacional de compartilhamento de informações e operações entre agentes e organizações policiais nacionais, que a literatura denomina de “transnacionalização do policiamento”, definido por Bowling e Sheptycki no ano 2015, apudFrascino e Castro, 2017, p. 143) como “qualquer forma de manutenção da ordem, aplicação da lei, manutenção da paz, investigação criminal, compartilhamento de inteligência ou outra forma de trabalho policial que transcende ou cruza as fronteiras nacionais”.
No mesmo sentido, Deflem (Deflem, 2002, p. 21, 26) reforça que a cooperação policial pode ser interpretada como “uma tentativa de forjar alianças entre sistemas policiais conjuntos, a fim de transcender as jurisdições de seus respectivos Estados-nação”. Para o autor, essas instituições procuram alcançar uma independência institucional em relação aos seus governantes, a fim de cooperarem com maior facilidade com as polícias dos outros países.
Sobre o objetivo dessa cooperação entre forças de segurança e polícias dos países,Leite (Leite, 2007, p. 5) aponta que existem quatro linhas gerais de ação:
Para atingir o objetivo existem quatro linhas gerais de ação: 1. Assistência recíproca entre organismos de controle e forças de segurança e/ou policiais mediante intercâmbio de informações; 2. Cooperação e coordenação em atividades operativas e de controle simultâneas; 3. Suporte tecnológico em matéria de sistemas informáticos e de comunicação; 4. Melhora da capacitação e intercâmbio de experiências dos recursos humanos.
Isto posto, se a contenção dos mercados ilícitos transnacionais está além da capacidade autônoma dos estados, a concatenação de esforços conjuntos se faz uma necessidade e a cooperação internacional se torna um imperativo (Naim, 2006).
Depreende-se, então, que a atuação integrada das nações em um objetivo comum merece destaque, pois demonstra a preocupação de aparar as diferenças e de impor barreiras ao ato delitivo. Nesse sentido, para lidar com o crime em sua dimensão transnacional, era e ainda é necessário romper os paradigmas históricos, flexibilizando conceitos anteriormente sólidos e irrevogáveis, como a soberania, a questão estatal e a própria jurisdição, considerando que a aplicação exclusiva de seus fundamentos originais não se presta a amparar a crise verificada no Direito contemporâneo, calcada na aceleração das mudanças (Trotta).
2. Mecanismos de Cooperação em matéria de Segurança Regional
Nesse paradigma, de preocupação crescente com o caráter transnacional das atividades criminosas, a cooperação internacional tornou-se uma importante ferramenta para combater o problema. Por esse ângulo, surge um processo de homogeneização de normas, basicamente, pela realização de tratados(1), entendidos como manifestações de vontades bilaterais ou multilaterais, em que os Estados aderem livremente, no exercício de sua soberania (Amaral Júnior, 2015, p. 50).
2.1 Convenções Internacionais das Nações Unidas
A Convenção Única das Nações Unidas de 1961 foi a primeira a ser estabelecida com a intenção de universalizar as normas e medidas de repressão ao abuso e ao tráfico ilícito de drogas. Posteriormente,foi estabelecida outra convenção de grande pertinência: a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Convenção de Viena) de 1988, seudestaque resta claro com o reconhecimento de mais de 100 estados ratificantes, dentre os quais, todos os Países-membros do Mercosul (Frascino e Castro, 2017, p. 28).
No entanto, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), de 15 de novembro de 2000, é o principal mecanismo existente, no cenário internacional, atinente a crimes de grande complexidade, cometidos por um grupo criminoso organizado, com área de abrangência global (United-Nations-Office-on Drugs-and-Crime, 2019).
A Convenção de Palermo demonstra sua importância pois, disciplina no art. 1º, como seu objetivo principal “promover a cooperação para prevenir e combater mais eficazmente a criminalidade organizada transnacional”. Ademais, estabeleceu a definição de “Grupo criminoso organizado” nos seguintes termos:
Art. 2º: Grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material (United-Nations-Office-on Drugs-and-Crime, 2019).
Da definição supramencionada extrai-se a conclusão de que é necessária a existência de uma pluralidade de pessoas, de estabilidade temporal e de uma estrutura organizatória, com divisão de tarefas e funcionamento em formato de redes, direcionado à prática reiterada de crimes. Igualmente, deve ter propósito econômico (voltado à obtenção de lucros) e deve ser constituídode maneira não aleatória (Medeiros, 2018, p. 31)(Belizário, 2018, p. 17).
Dá-se ênfase ao art. 3º da Convenção supracitada, que conceitua as características do que seria um delito “de caráter transnacional”, o qual ocorre: se a infração for cometida em mais de um Estado; se ocorrer em um único Estado, mas com uma parte substancial de sua preparação, planejamento, direção e controle, em outro Estado; se envolver a participação de grupo criminoso organizado, que pratique suas atividades em mais de um Estado; ou, por fim, se a infração produzir efeitos substanciais noutro Estado (United-Nations-Office-on Drugs-and-Crime, 2019).
Cabe ainda mencionar a importante diferenciação entre crime internacional e crime transnacional. Carlos Eduardo Japiassú (Japiassú, 2009, p. 1) sugere que o conceito de crime internacional seja dividido em duas subespécies principais, quais sejam, o crime internacional em sentido estrito ou propriamente dito e o crime em sentido amplo ou transnacional.Em sentido estrito, são os crimes internacionais que afetam a humanidade como um todo, tais como os crimes de guerra e genocídio, sendo o Tribunal Penal Internacional competente para julgá-los. Quanto aos crimes em sentido amplo, tem-se os “crimes transnacionais”, isto é, condutas com um elemento de internacionalidade, que por suas características, extensão e consequências ultrapassam fronteiras, envolvendo, portanto, mais de um Estado e para os quais não há tribunal próprio para julgamento, dependendo da atuação das jurisdições nacionais.
Ademais, deve-se esclarecer também que nem toda a criminalidade transnacional é organizada, assim como nem toda a criminalidade organizada é transnacional.
A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional conta com a adesão de 147 países, incluindo todos os pertencentes ao Mercosul. A Argentina foi o primeiro Estado-parte a aprovar a convenção, através da Lei 25.632, de 29 de agosto de 2002. Por sua vez o Paraguai procedeu a aprovação por meio da Lei n.º 2.298, em 25 de novembro de 2003. Logo depois, o Brasil promulgou a convenção pelo Decreto n.º 5.015, de 12 de março de 2004. Por fim, o Uruguai também aprovou o texto por meio da Lei n.º 17.861, de 28 de dezembro de 2004.
Ademais, vale salientar que o Brasil optou por publicar a Lei n.º 12.850, de 2 de agosto de 2013, denominada Lei de Combate às Organizações Criminosas, que acompanha o entendimento da Convenção de Palermo no que se refere à prevenção e repressão desse delito que se tornou um problema mundial.
2.2 Tratados do Mercado Comum do Sul
As faixas de fronteira entre os Países-membros do Mercosul, são delimitadas por diversas formas, desde uma grande extensão de rios ou lagos, ou ainda por uma linha imaginária ou até mesmo uma rua, situação que dificulta o controle aduaneiro e a fiscalização do transporte de cargas e passageiros, contribuindo para transformar essas fronteiras no espaço propício para o fomento de atividades ilícitas (Gemelli, 2013) (Nunes, 2017).
Ante essa realidade, com o propósito de enfrentar o crime organizado transnacional com maior eficácia, os Ministros da Justiça e Interior dos países signatários do Tratado de Assunção, em reunião realizada em Santa Maria/RS, em 22 de novembro de 1996, formalizaram uma declaração conjunta, sugerindo ao Conselho do Mercado Comum a convocação dos Ministros dos Países-membros para firmarem planos de cooperação multilateral. Assim, em 17 de dezembro de 1996, na cidade de Fortaleza/CE, foi criada a Reunião de Ministros do Interior do Mercosul (RMI), por meio da Decisão 7/96 do CMC, (Leite, 2007, p. 04).
A primeira reunião (Ata n.º 1/97 e n.º 2/97) oficial do grupo ocorreu na cidade de Assunção (PY), em 30 de maio de 1997. Na oportunidade, ficou estabelecido como prioridade do grupo “avançar na cooperação e coordenação das políticas e tarefas relativas à segurança e à harmonização das legislações em áreas pertinentes, a fim de aprofundar o processo de integração”. Na segunda RMI (Ata n.º 3/97), realizada em Punta del Este, em 21 de novembro de 1997, foram aprovados quatro acordos para reforçar a área de segurança na região. Durante a VI RMI (Ata n.º 2/99), realizada em Montevidéu, em 16 e 17 de novembro de 1999, foi aprovado por meio dos acordos 13/99 e 14/99, o Plano Geral de Cooperação e Coordenação Recíproca para a Segurança Regional, assinado pelos países do Mercosul (Leite, 2007, pp. 04, 06)(Brutti, 2008, pp. 19-20).
Visando promover assistência e cooperação relacionada às tarefas da polícia nas zonas fronteiriças, a República Federativa do Brasil e a República Oriental do Uruguai, em 14 de abril de 2004, firmaram o Acordo sobre cooperação policial em matéria de Investigação, prevenção e controle de fatos delituosos, o qual entrou em vigor internacional em 05/10/2008.
No mesmo ano, em 16 de dezembro, foi firmado o Acordo-Quadro sobre cooperação em matéria de segurança regional entre os Estados-partes do Mercosul. Tempo depois, este foi derrogado e substituído pelo Acordo-Quadro sobre Cooperação em Matéria de Segurança Regional entre os Estados-Partes do MERCOSUL, a República da Bolívia, a República do Chile, a República do Equador, a República do Peru e a República Bolivariana da Venezuela, de acordo com a Decisão CMC n.º 16/06 de 20 de julho de 2006.
Todos os países membros do Mercosul também firmaram, mas de forma bilateral, um Acordo de Cooperação Mútua para Combater o Tráfego de Aeronaves Envolvidas em Atividades Ilícitas Transnacionais. Nesse sentido, o primeiro foi entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República do Paraguai, em 10/02/2000; o segundo entre os Governos da República Federativa do Brasil e da República Argentina, de 09/12/2002; e o último entre o Governo da República Federativa do Brasil e a República Oriental do Uruguai, celebrado em 14/09/2004. Todos se encontram em vigor.
Em 08 de junho de 2006, na XIX RMI (Ata n.º 1/06), realizada em Buenos Aires, os Ministros do Interior, por meio do Acordo 04/2006, denominado Compromisso de Buenos Aires sobre segurança regional no Mercosul, definiram áreas prioritárias de trabalho, com o fim de avançar na implementação do Sistema de Segurança pública Regional, previsto no Acordo marco sobre Cooperação em Matéria de Segurança Regional(Leite, 2007, p. 09).
Quatro anos depois, em 02 de agosto de 2010, os Estados Partes do Mercosul, e o Estado Plurinacional da Bolívia e a República do Equador, “preocupados com delitos como o tráfico ilícito de entorpecentes (...) e todos aqueles que integram o chamado crime organizado transnacional” entenderam “necessário contar com mecanismos apropriados de cooperação que permitam uma efetiva coordenação entre as autoridades das Partes” acordando, através do Acordo-Quadro de cooperação entre os Estados-Partes do Mercosul e estados associados para a criação de equipes conjuntas de investigação. Referido acordo entrou em vigor em 22/05/2020.
Em 30 de maio de 2011, Brasil e Uruguai firmaram bilateralmente o Acordo-Quadro para Intercâmbio de Informações de Cooperação em Segurança Pública, com o fim de modernizar e capacitar as instituições policiais para controle de fronteiras e combate aos crimes transnacionais, o qual entrou em vigor internacional em 08/02/2017.
Em 20 de julho de 2017, os Países-membros do Mercosul firmaram o tratado multilateral com o Estado Plurinacional da Bolívia, República do Chile, República da Colômbia e República do Equador, intitulado de Acordo entre os Estados-partes do Mercosul e os estados associados para o intercâmbio de informação sobre a fabricação e o tráfico ilícitos de armas de fogo, munições explosivos e outros materiais relacionados.
Ainda em 2017, foi instituído o Programa Europeu, para a América Latina e Caribe, de Cooperação contra o Crime Transnacional Organizado, conhecido como EL PAcCTO. A iniciativa tem por objetivo prestar assistência técnica e fornece atividades de cooperação regional em três pilares (policial, penitenciário e justiça). A primeira esfera se dedica a apoiar o fortalecimento de forças policiais,através da criação de centros latino-americanos de cooperação policial para o reforço da segurança transfronteiriça. Cabe realçar que todos os Estados-membros do Mercosul fazem parte da composição do programa segundo ele Ministério da Justiça e Segurança Pública, (Brasil, 2019a).
Um ano depois, os Países-membros estabeleceram mecanismos de cooperação e negociação através do Acordo-Quadro para a disposição de bens apreendidos do crime organizado transnacional no Mercosul, de 17/12/2018.
A XLIV RMI, que ocorreu em Foz do Iguaçu, em 7 de novembro de 2019, representa um grande avanço na cooperação, pois foi graças a esta que em 5 de dezembro de 2019, através da decisão n.º 12/94, foi firmado o Acordo de cooperação policial aplicável aos estados fronteiriços entre os Estados-partes do Mercosul. O acordo no seu art. 7º permite a possibilidade de vigilância e persecução transfronteiriça.
À vista disso, todas essas iniciativas reforçaram o compromisso dos Estados-membros em estancar a expansão do crime organizado transnacional, em perfeita comunhão de esforços e conjugação de vontades, deixando-se de lado, a atuação individual frente aos riscos advindos da criminalidade além das fronteiras (Brutti, 2008, p. 20-26).
3. Desafios da cooperação policial no Cone Sul
As polícias dos Países-membros do Mercosul têm ampliado as suas capacidades operativas e construído ao longo de décadas ações estratégicas que já resultaram na extinção de poderosos esquemas de tráfico com alcance transnacional. Exemplo disso é a cooperação desenvolvida entre a Polícia Federal do Brasil em conjunto com a Secretaria Nacional Antidrogas paraguaia, na Operação Nova Aliança, que teve início em 30 de maio de 2019 e visa combater o tráfico de drogas. Conforme destacou o ex-diretor-geral da Polícia Federal do Brasil, Maurício Valeixo, a operação representa uma maneira com que as polícias brasileira e paraguaia podem atuar conjuntamente no combate ao crime organizado. Nas suas palavras “não existe outra forma de enfrentar a criminalidade transnacional se não atuarmos em conjunto”(Ministério da Justiça e Segurança Pública) (Brasil, 2019b).
Com efeito, notam-se resultados positivos ao observar os dados disponibilizados no site do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Brasil, 2019b, p. 1) a respeito da operação:
Em apenas dois dias de operação, foram erradicados 61 hectares de plantação de maconha. Considerando uma média de produção de três toneladas por hectare, foram incineradas aproximadamente 183 toneladas de Cannabis. Além da destruição de 800 kg da droga. Também foram destruídos cinco acampamentos e prensas usadas para preparar a droga para o transporte.
Sem embargo, existem alguns contratempos. O primeiro deles diz respeito à relação entre os membros do bloco, em especial Brasil e Paraguai, que reflete um contexto perceptível em toda a América do Sul, em que as visíveis desconfianças e rivalidades entre os países causam sérios entraves à formação de mecanismos de cooperação estáveis e efetivos, cooperação esta que também esbarra em limitações de ordem orçamentária, política e institucional de cada país. Ademais, as grandes assimetrias entre as economias nacionais e as divergências quanto a muitas propostas políticas também são vistas como obstáculos (Cepik e Arturi, 2011) (Camargo, 2010).
No olhar de Costa (Costa, 2017, p. 148), a relação entre Brasil e Paraguai é alicerçada na desconfiança e carregada por tensões mal resolvidas que dificultam boas práticas cooperação e uma efetiva integração fronteiriça. Nesse sentido:
As megaoperações realizadas pelo Brasil em suas fronteiras e a constante presença das Forças Armadas geram uma assimetria de poder que dificulta a ruptura da desconfiança, pois, durante boa parte da história do Brasil, o país atuou de modo soberanista nas fronteiras sem preocupar-se em desenvolver canais de diálogo e envolvimento do país vizinho em suas ações na fronteira.
Para mais, pode-se dizer que a cooperação policial entre os Estados-partes do bloco é considerada pouco diversificada, porquanto está focada em ações clássicas de controle de crime, com um caráter repressor, que acabam reduzidas à promoção de ações pontuais de apreensão, principalmente de ataque ao fornecimento, além de que, evidencia-se a centralidade do narcotráfico em detrimento de outros mercados ilícitos, como o de armas de fogo e contrabando (Almeida, 2017)(Medeiros, 2018, p. 100).
Segundo Naim (Naim, 2006, p. 218), esse método de perseguição dos produtores, transportadores e fornecedores, que se apoia no uso da força, da coerção e da imposição da lei, é o mais empregado pelos governos. Para o autor, este tipo de estratégia sugere que o comércio ilícito estaria confinado geograficamente, quando na verdade,as organizações criminosas optaram pelo modelo de atuação em rede, com uma organização descentralizada, fator que contribui para a alta capacidade de recomposição e adaptação das estratégias ante a repressão estatal.
A dinâmica do COT é regida pelas leis da oferta e da demanda, portanto, como bem salientamProcopio Filho e Vaz(Procopio Filho e Vaz, 1997, p.1), as suas estruturas e operação respondem tanto a estímulos do mercado, em sua dimensão transnacional e global, quanto à fatores e circunstâncias de ordem doméstica e local.
Pode-se dizer que a violência do crime atinge mais profundamente a sociedade e os indivíduos, manifestando-se para além do conflito armado. Pobreza e exclusão social são, simultaneamente, causa e consequência da atuação do crime organizado. Fatores como a corrupção, desigualdade social, debilidade das instituições públicas, deficiências da legislação e a porosidade das fronteiras, estão presentes em todos os países componentes do Mercosul e dificultam os esforços empreendidos para combater o problema(Junta Internacional de Fiscalización de Estupefacientes, 2017, p. 89).
Logo, pensar apenas em termos de repressão ao crime quando se discutem estratégias de enfrentamento à questão é ignorar as suas raízes de sustentação. A complexidade do COT, que o torna um fenômeno multifacetado, exige medidas de reação igualmente diversificadas, capazes de atingi-lo em diversas frentes, não podendo apenas limitar a análise do fenômeno às abordagens de segurança pública e defesa (Medeiros, 2018, p. 103).
Nessa perspectiva, as ações de cooperação deveriam focar a sua atenção na elaboração de estratégias destinadas a abalar as estruturas dos mercados transnacionais ilícitos, explorados pelo crime organizado, criando controles voltados ao caráter econômico de tais mercados, com foco na demanda e no consumo. Ademais, as políticas públicas precisam ser pensadas de maneira integrada, de modo a abrangerem além das medidas tradicionais de segurança pública, também políticas sociais voltadas às áreas mais suscetíveis da criminalidade (Almeida, 2017)(Araújo, 2017).
Como bem concluiu o Relatório Mundial Sobre Drogas de 2019, o panorama mundial dos desafios relacionados ao crime é cada vez mais complexo, sublinhando a necessidade de maiores esforços para ampliar a cooperação internacional, sendo fundamental enfrentar a vulnerabilidade e as atividades delitivas de maneira equilibrada e integrada, a partir de uma colaboração efetiva entre as instituições nacionais, regionais e internacionais (United-Nations-Office-on Drugs-and-Crime, 2019, p. 36-37).
4. Aplicabilidade dos acordos do Mercosul
No que diz respeito à cooperação firmada entre os países do Mercosul, tem-se que dos 162 registros de tratados disponíveis no site do Mercosul(2), no período compreendido entre 1991 e 2020, apenas 8 são relacionados à cooperação policial e segurança regional especificamente (sem considerar a cooperação jurídica, que não é foco deste estudo).
Considerando que o Acordo-Quadro sobre Cooperação em Matéria de Segurança Regional entre os Estados-partes do Mercosul, a República da Bolívia, a República do Chile, a República do Equador, a República do Peru e a República Bolivariana da Venezuela, de 20 de julho de 2006, derrogou e substituiu o Acordo-Quadro sobre Cooperação em Matéria de Segurança Regional entre os Estados-partes do MERCOSUL, Bolívia e Chile, de 16 de dezembro de 2004, restam apenas 7 acordos firmados nesta temática.
Além disso, o presente estudo propõe-se à análise dos instrumentos de cooperação que estejam voltados, em primeiro lugar, ao combate do crime organizado e, em segundo, que se refiram aos principais mercados ilícitos deste, quais sejam, o tráfico de drogas, armas e contrabando. Nesse sentido, dos 7 acordos restantes, dois referem-se ao tráfico de migrantes, que não seráabordado neste artigo. Destarte, apenas 5 acordos disponíveis no Mercosul obedecem aos critérios estipulados.
Quanto aos acordos disponíveis na base de dados Concórdia de atos internacionais do Brasil, mantido pelo Ministério das Relações Exteriores(3),de 813 resultados da pesquisa pela palavra “Mercosul”, abstraíram-se apenas 10 acordos relacionados com a temática e de interesse para o presente artigo. Dentro desses 10 tratados, cinco são os mesmos disponíveis no site do Mercosul, já citados anteriormente.Isto posto, apenas dez acordos resultaram viáveis para a análise neste estudo.
Importante destacar que a esmagadora maioria dos resultados da pesquisa de tratados no âmbito do Mercosul é relacionada aos Acordos sobre Complementação Econômica. Ressalta-se, portanto, que apesar do objeto da integração regional no Mercosul também envolver a questão da segurança, pouco se debate sobre este assunto, sendo o desenvolvimento econômico o foco principal da integração. O crime transnacional, suas implicações políticas e socioeconômicas, é tema incipiente na agenda de cooperação entre os países do Cone Sul, apesar da vinculação dos referidos países notadamente no que se refere ao consumo e trânsito de drogas, armas e contrabando, como já mencionado anteriormente.
Contudo, é imperioso observar que a integração econômica entre os países do bloco representa um fator interveniente e de caráter ambíguo: pode complicar os esforços de resposta dos governos ao crime, na medida em que torna mais permeáveis as fronteiras acarretando o incremento dos fluxos econômicos e de pessoas, dos quais se valem os criminosos; por outro lado, gera condições políticas mais favoráveis para ações conjuntas e para novas iniciativas entre os governos com vistas ao combater à criminalidade; propícia também maiores possibilidades de incrementar a cooperação internacional, de forma muito mais abrangente e efetiva do que em um contexto de soberanias nacionais e de esforços autocentrados (Procopio Filho e Vaz, 1997, p. 1).
Outro problema, além da pouca quantidade de acordos sobre o tema, diz respeito ao processo complexo de incorporação das normativas do Mercosul, fator que afeta diretamente a aplicabilidade dos tratados. Isto porque, dos 10 acordos analisados, apenas seis encontram-se em vigor na ordem internacional.
Ademais, destaca-se a ênfase no bilateralismo em alguns países do bloco. De acordo comLopes e Carvalho(Lopes e Carvalho 2010, p. 1), a opção pela alta realização de tratados bilaterais talvez possa ser explicada porque estes envolvem um menor número de países, fator que evitaria a complexidade das negociações multilaterais e, por consequência, aumentaria as chances de progressos.
Dessarte, podemos considerar a lentidão dos tratados multilaterais como causa para o aumento no número de acordos bilaterais. Isto porque, o Mercosul impõe a necessidade de vigência simultânea dos tratados na ordem interna de cada país, portanto, à medida que forem mais países signatários o processo será mais demorado, pois o acordo somente entrará em vigor quando todos o incorporarem, por outro lado, sendo apenas dois países (bilateral), a tendência é que seja mais rápido.
Dos acordos disponíveis na base de dados do Ministério das Relações Exteriores do Brasil,todos encontram-se em vigor(Tabela 1). No entanto, denota-se a demora para a incorporação desses tratados na ordem interna, já que o tempo mínimo entre a data de celebração e entrada em vigência na ordem internacional foi de dois anos e dois meses e o máximo, de aproximadamente sete anos:
Por sua vez, dos cinco tratados disponíveis no site do Mercosul, apenas 1 encontra-se em vigor, apesar de ter levado 10 anos para isso acontecer. Denota-se a morosidade do processo de incorporação ao observar que um acordo celebrado em 2006 ainda se encontra pendente de ratificação por cinco países signatários, em especial o Brasil (Tabela 2), que pode ser considerado o principal entrave para a vigência dos tratados:
A Comissão interamericana para o controle do abuso de drogas observou que durante os anos de 1999 a 2018, o Brasil tem ratificado todas as convenções e protocolos das Nações Unidas e as convenções da Organização dos Estados Americanos relacionadas com o problema mundial das drogas. E que, desde 2005 a 2018, o país tem estabelecido acordos bilaterais de cooperação internacional sobre assistência mútua em matéria penal para casos relacionados com o tráfico ilícito de drogas e delitos conexos (Organização dos Estados Americanos, 2019, p. 32).
Nada obstante, nota-se que a incorporação das normativas internacionais no Brasil enfrenta um processo bastante complexo, que acaba tornando-se um obstáculo, como veremos no próximo tópico.Levantamento inédito feito pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), aponta que os acordos internacionais assinados pelo governo brasileiro levam, mais ou menos, 1.590 dias entre a foto oficial e a entrada em vigor no direito interno. São mais de quatro anos tramitando na burocracia do Estado (Nicacio, 2017, p. 1).
No mesmo sentido, de acordo com análise feita por Ventura, Onuki e Medeiros, (Ventura, Onuki e Medeiros, 2012, p. 39), os países do Mercosul levam, em média, mais de 50% do tempo de existência do acordo para depositar o seu instrumento de ratificação, sendo que Argentina e Paraguai são mais ágeis no depósito dos tratados, por outro lado, Brasil e Uruguai realizam o depósito tardiamente. Conforme observado pelos autores, há uma tendência a internalizar com mais agilidade os tratados relacionados à temática de educação e processo e mais lentamente os relacionados ao direito penal e cooperação.
Certamente esses prazos acima da média são muito além do razoável e impedem que os países se beneficiem rapidamente dos acordos, o que pode vir a comprometer a sua efetividade.
Para o ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, só é possível combater o crime organizado por meio da cooperação internacional e, para isso, é necessário que os acordos firmados sejam efetivos. Nesse sentido, relevante frisar suas palavras:
É importante que transformemos esses acordos em ações efetivas (...). Os países devem unir esforços e investirem mais no sistema integrado de informações para a segurança do Mercosul. É de extrema relevância a criação de equipes conjuntas de investigação e de ações coordenadas entre países (Ministério da Justiça e Segurança Pública, Brasil, 2019b, p. 1).
4.1 O problema da incorporação das normativas do Mercosul nas ordens jurídicas nacionais
Os órgãos do Mercosul têm uma estrutura organizacional de natureza intergovernamental, isto é, com decisões consensuais e com a necessidade de ratificação por cada Estado-parte do bloco para eficácia dasnormas, já que estas não têm aplicação imediata (Nakayama, 2002, p. 300).
Vale destacar que o Direito Comunitário, aplicado na União Europeia, não se confunde com o Direito Internacional clássico e com o Direito de Integração, que é o que temos no âmbito do Mercosul. No direito da integração denota-se, portanto, a intergovernamentalidade e, assim, não existe transferência de competência, há a integração dos órgãos dos governos nacionais com a sua própria estrutura e por isso a necessidade de recepção interna das regras integracionais (Souza, 2014, p. 1) (Nakayama, 2002, p. 299).
Em razão disto, o mecanismo de incorporação das normas mercosulinas pelos Estados-partes revela-se bastante complexo. Para melhor entendimento, valiosa a lição de Nascimento (Nascimento, 2005, p.15-16):
Por eficácia direta entende-se a possibilidade de serem essas normas invocadas pelos particulares, quanto aos direitos e obrigações judiciárias, quando houver sua violação; e, por aplicabilidade imediata, a efetiva aplicação da norma, logo após sua publicação, sem necessidade de processo de reconhecimento ou incorporação no ordenamento jurídico nacional
Rocha (Rocha, 2011, p. 16-17) destaca que há recepção dos tratados internacionais pelo direito nacional e não sua integração, na medida em que a aplicabilidade de uma norma estrangeira na ordem jurídica nacional resulta de um procedimento de internalização, de uma efetiva “transposição” para o plano do direito endógeno, aí incluídas as convenções, tratados ou acordos celebrados no contexto regional do Mercosul. Daí decorre que, tais atos somente operarão efeitos interna corporisse uma “ordem de execução” vier a incorporá-los no ordenamento pátrio.
Sobre a matéria, o capítulo V do Protocolo de Ouro Preto (POP) estabelece que “as normas emanadas dos órgãos do Mercosul (...) terão caráter obrigatório e deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos de cada país”. Rocha (Rocha, 2011, p. 7), interpreta que a incorporação só caberia “quando fosse necessária”, quando submetida a condições constitucionais e legais para tanto, senão, deveria prevalecer a chamada doutrina “self executing”, ou seja, da autoexecutividade das normas provenientes de órgãos supranacionais/intergovernamentais. Para a autora, tal forma de incorporação afeta diretamente a viabilidade futura do bloco, “já que a ausência de supranacionalidade não pode implicar na submissão de todas as decisões, resoluções e diretrizes à expressa internalização de cada Estado Nacional”.
O POP afastou a possibilidade de aplicação imediata dos tratados ao estatuir no seu artigo 40 a necessidade de “vigência simultânea” das normas. Para isso, uma vez que o tratado estiver incorporado ao ordenamento interno nacional de cada país, o Estado deverá comunicar a internalização à Secretaria do Mercosul e esperar a comunicação sobre a incorporação da norma pelos demais países. Por fim, recebida mencionada comunicação, a norma entrará em vigor simultaneamente, no prazo de 30 dias em todos os Estados-partes, que deverão dar publicidade do início da vigência (1994).
Trindade (Trindade, 2007, p. 63) frisa que tal procedimento representa um obstáculo à vigência dos tratados pois acaba por conferir poder de veto aos países, isto porque, o não comparecimento ou abstenção de um membro nas reuniões deliberativas é suficiente para bloquear o processo decisório. Para mais, basta que o país não proceda à incorporação da norma ou não comunique da internalização para que ela não tenha vigência no bloco.
Quanto ao sistema de tomada de decisões, o art. 37 do POP dispõe que “as decisões dos órgãos do Mercosul serão tomadas por consenso e com a presença de todos os Estados-partes”, em princípio isso facilitaria o processo de harmonização da legislação, visto que já há um pré-acordo unânime a respeito do tema (no ano 1994). No entanto, essa situação denota:
uma desconfiança básica entre os parceiros, um arraigamento à soberania do Estado, favorecendo uma lentificação das ações e, pior, sendo ela invocada como justificativa ao descumprimento das normas decorrentes do tratado(...). Em caso de conflito, não prevalecem sobre o direito interno(...), podem ser abolidas ou alteradas, podem receber interpretações diferentes pelos juízes e tribunais dos Estados-partes, atos esses geradores de instabilidade na integração(Nascimento, 2005, p. 15).
Indubitavelmente o Mercado Comum do Sul, como órgão internacional, tem poder normativo e os seus órgãos institucionais possuem competência para produzir as normas jurídicas derivadas, mas, como demonstrado, precisam de internalização em cada país, o que denota a falta de autonomia no processo legislativo do bloco (Nascimento, 2005, p. 14).
ParaRocha (Rocha, 2011, p. 8), “conceber um conjunto de normas comunitárias sem efetividade, não apenas revela-se inútil, como descortina a incipiência do processo integracionista”, sendo necessária a instituição de mecanismos implementadores para a internalização das normas secundárias mercosulinas(4). Notoriamente, a transposição das regras emanadas pelo Mercosul para as ordens positivas nacionais de forma célere e sem tantos obstáculos para sua incorporação, é imperiosa para a coerência sistêmica do bloco.
A seguir, iremos analisar brevemente como é o processo de incorporação dos tratados nos países integrantes do Mercosul. Mas, de imediato, enfatize-se que as Constituições do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai indicam a adoção do dualismo(5) para a incorporação das normativas internacionais nas ordens internas. A questão centra-se em saber se as Constituições dos países do bloco autorizam o reconhecimento de singularidade ao direito de integração, ou mais além, permitem que os Estados pertençam a um órgão supranacional.
No Brasil, existem dois modelos procedimentais para viabilizar a incorporação de um tratado internacional, o procedimento simplificado(6) e o procedimento padrão multifásico.O primeiro procedimento é conhecido como acordo-executivo, que dispensa o trâmite legislativo e a aprovação pelo Congresso Nacional, a única formalidade exigida para sua entrada em vigor é a assinatura pelo Chefe do Poder Executivo, ou por outra autoridade por delegação (art. 84 da Constituição Federal de 1988). A doutrina que defende a plena possibilidade de tais acordos, se fundamenta na atual tendência de atenuar o rigor da regra constitucional em prol de uma menor avalanche de tratados que, excessivamente, onera o Poder Legislativo, dando causa a uma verdadeira acumulação de tratados à espera de aprovação (Soares, 2019, p. 2)(Mazzuoli, 2018, p. 285).
Por outro lado, no modelo multifásico, a primeira fase tem início com a negociação do tratado por representantes oficiais do Governo brasileiro, devidamente autorizados. A segunda fase do processo de internalização, ocorre no encerramento das negociações por ocasião da assinatura, quando não é mais possível alterar o texto discutido. Na terceira fase, o ato normativo deve ser submetido ao Congresso Nacional, devendo passar primeiramente pela Câmara dos Deputados, para sua apreciação pela Comissão de Constituição Justiça e Cidadania. Em seguida, o texto do tratado é enviado para análise da Comissão de Relações Exteriores, e ainda, pode ser apresentado a outras comissões temáticas a depender do seu conteúdo. Concluída essa etapa, o texto é submetido ao Plenário, e caso aprovado, será enviado ao Senado Federal para os mesmos procedimentos. Se houver aprovação deste último, o texto do tratado é então assinado pelo Presidente do Senado e publicado no Diário Oficial da União. A ratificação e a publicação do texto do tratado, por meio de decreto do Chefe do Executivo constitui a quarta fase, representando a sanção definitiva. A última fase no processo de internalização do tratado internacional decorre da comunicação acerca da promulgação (Soares, 2019, p. 2).
Destarte, apesar de a Constituição brasileira vigente ter introduzido o par. 1° do art. 4°, que traduz a disposição de se buscar uma “integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”, mostrou-se, entretanto, tímida em prever mecanismos capazes de concretizar tal regra programática. O Brasil continua inflexível quanto à possibilidade de delegar poderes a órgãos supranacionais, não havendo dúvida quanto à primazia do texto constitucional brasileiro em relação aos tratados (Nascimento, 2005, p. 17).
A Constituição da República Oriental do Uruguai, de 1967, estabelece, no seu art. 6º, que será promovida a integração social e econômica dos Estados Latino-americanos. Tal qual a Constituição Brasileira de 1988, trata-se de norma de conteúdo programático, não podendo ser apontada como acolhedora do direito integracionista. Ademais, merece destaque a ausência do caráter político da integração na norma uruguaia,Rocha (Rocha, 2011, p. 23) explica que a ausência de uma integração política pode ser um empecilho para delegação de competências a outros órgãos decisórios do bloco, fazendo com que a supranacionalidade na Constituição Uruguaia, reste vedada.
Souza(Souza, 2014, p.1) complementa tal entendimento ao discorrer que o Estado uruguaio reconhece a soberania nacional, portanto, reserva-se à nação uruguaia o direito exclusivo de estabelecer leis, não havendo qualquer possibilidade de ingresso direto no ordenamento jurídico de qualquer norma do Mercosul ou que esta norma tenha primazia em relação à norma nacional.
A falta de permissão para delegação de competências na Constituição Uruguaia dificulta a participação do país na integração regional do Mercosul, na medida em que sua positividade jurídica não permite o avanço do bloco regional em direção à autonomia e à independência política nas decisões, o que, certamente, proporcionaria maior celeridade à integração (Rocha, 2011, p. 24).
A Constituição Nacional da República do Paraguaide 1992, prevê em seu texto a possibilidade de delegação de competências. Pode-se dizer que isto se deve ao fato de que a Carta Magna do país foi confeccionada após à assinatura do Tratado de Assunção e, portanto, sofreu os reflexos do processo de integração do Mercosul.
Preliminarmente, impõe ressaltar que, ao contrário das Constituições do Uruguai e Brasil, a paraguaia prevê a supremacia hierárquica dos tratados internacionais sobre as demais leis, consoante se denota da leitura dos artigos 137 e 141. A competência para sua conclusão compete ao Poder Executivo, conforme dispõe o artigo 238, inciso 7º, correspondendo que se efetue a aprovação por lei do Congresso (art. 141). Tais elementos conferem uma segurança jurídica maior no que diz respeito aos tratados firmados pelo Estado Nacional do Paraguai (1992).
O art. 145 da Carta Política Paraguaia reconhece um ordenamento jurídico supranacional, não obstante sua aceitação dependa da aprovação da maioria absoluta de ambas as Câmaras do Parlamento Paraguaio. Nesse diapasão, mesmo que o Direito da Integração no âmbito do Mercosul não tenha tal caráter, a norma nacional possibilita eventuais mudanças institucionais no bloco regional, fornecendo ferramentas legais para a consolidação da integração do Cone Sul (Mizutani, 2006, p. 83).
Assim, uma vez aprovado o tratado de integração na conformidade constitucional, figura-se dispensável a incorporação ao ordenamento jurídico nacional, mediante referendo legislativo do direito nacional derivado, quando este é decorrente dos tratados fundacionais(Perotti, 2004, p. 372-373).
Por fim, a Constituição Nacional da República da Argentina, datada de 1853, cuja alteração foi promulgada em 28 de agosto de 1994, possui um texto contemporâneo e fortemente influenciado pelos processos integracionistas em vigor, prevendo, inclusive, a supranacionalidade, nos mesmos moldes da Lei Fundamental Paraguaia (Galvão, 2015, p. 45).
Sem dúvida, o dispositivo constitucional argentino de maior importância é o artigo 75, inciso 22, que atribui ao Poder Legislativo competência para aprovar ou rejeitar tratados firmados com os demais Estados Nacionais ou organizações internacionais, outorgando-lhes hierarquia superior às leis (1995).
No que se refere ao procedimento para ratificação dos tratados, a Constituição Argentina distingue os tratados regionais de integração (entre Estados do Mercosul), daqueles pactuados com os demais Estados Nacionais. Quanto aos primeiros, estes deverão ser aprovadas por maioria absoluta do total de membros de cada Casa Legislativa, por sua vez, no caso de tratados com outros Estados Nacionais, o procedimento será mais rigoroso. Veja-se que essa diferenciação resulta em uma fertilização de nível regional mais presente, já que as de nível mundial encontram maior barreira no processo de internalização das normas internacionais (Galvão, 2015, p. 78).
Infere-se, pois, que entre as Cartas Políticas de todos os Países-membros do Mercosul analisadas acima, a Constituição Argentina tem a visão mais avançada no tocante aos processos integracionistas, fator que propícia um avanço do Mercado Comum do Sul.SegundoNakayama (Nakayama, 2002, p. 300-301) a ausência de qualquer grau de supranacionalidade para a constituição do Mercosul impede que a harmonização das legislações se processe mediante a adoção de normas completas, sendo necessária a adoção da supranacionalidade para o aprofundamento do processo de integração.
Nesse sentido, conclui-se que a abertura constitucional das Leis Fundamentais dos Estados Argentino e Paraguaio facilitará o desenvolvimento da proposta mercosulina e auxiliarão a superação de um direito transitoriamente integracionista. Muito embora as Constituições brasileira e uruguaia não contenham normas de alcance semelhante, seus artigos 4º, parágrafo único e 6º, respectivamente, em tese, encerrariam possibilidades hermenêuticas de interpretação jurisprudencial favorável à integração (Rocha, 2011, p. 32).
Considerações finais
No presente estudo viu-se que a ascensão do crime organizado transnacional ao patamar de nova ameaça à paz e à segurança humana, trouxe mudanças à maneira com o qual os Estados deveriam se posicionar diante do problema, exigindo uma integração e concatenação de esforços entre os povos. Nesse cenário, a cooperação internacional aparece como a alternativa mais viável para conter o avanço desse empreendimento criminoso, cuja rede difusa de atuação, desafia a lógica tradicional e individual de policiamento.
Com efeito, o reconhecimento dos Países-membros do Mercosul, ainda que incipiente, da necessidade de se juntarem e cooperarem para enfrentar este problema comum, a partir do desenvolvimento de tratados multilaterais e bilaterais, já pode ser considerado um avanço significativo, com potencial para ir além.
No entanto, a pesquisa identificou alguns obstáculos para a cooperação na temática de segurança regional no Mercado Comum do Sul. Viu-se que as ações policiais voltadas apenas para questões relacionadas à segurança pública e defesanão são suficientes, pois não consideram a complexidade em rede na qual as organizações criminosas se inserem e a sua capacidade de reorientação das estratégias. Constata-se, portanto, que são necessárias ações que levem em conta o raciocínio puramente mercadológico por elas adotado e intervenha não apenas nas organizações, mas também nos mercados ilícitos por ela mantidos, com foco na demanda e no consumo.
Infere-se também que o desenvolvimento da faixa de fronteira, não apenas no aspecto econômico, mas também no âmbito social, de modo a permitir que a pobreza e a exclusão social não sejam fomentadoras da criminalidade, é fundamental para melhores resultados no combate ao crime transnacional.
Ademais, ao longo do presente estudo verificou-se que a morosidade do processo para a incorporação das normativas do Mercosul aos ordenamentos internos dos Estados-partes é um entrave à eficácia da cooperação.
Já são poucos os acordos que tratam sobre o assunto, o que constituiu uma limitação para a pesquisa, mas é o fato de que podem demorar até sete anos para entrarem em vigor que complica o cenário. A problemática se dá, principalmente porque enquanto o acordo aguarda todo esse tempo até ser incorporado, os fenômenos se transformam, o crime organizado evolui e, do mesmo modo, os mecanismos de cooperação e de investigação são aprimorados. Nessa conjuntura, uma vez que os acordos entram em vigor, estes serão eficazes, massa demora traz como consequência a possibilidade de não serem efetivos, já que podem produzir efeitos, porém não aqueles imaginados ou anunciados pelos países no momento da celebração.
Pode-se dizer que a tendência de alguns dos países do bloco em enfatizar acordos bilaterais também acaba por limitar o alcance da cooperação. Elaborar tratados apenas entre dois países leva à fragmentação do sistema, privilegiando a integração das forças policiais apenas entre duas fronteiras. No entanto, esse cenário reduz os incentivos para negociações multilaterais entre todos os Estados-membros do bloco, o que consequentemente, evita uma integração plena e um combate efetivo à criminalidade transnacional, que deve ser afrontada em grande escala.
Destarte, a eficácia da cooperação entre os países do Mercado Comum do Sul acaba sendo prejudicada, em parte, pela complexidade do sistema e falta de harmonização entre as Cartas Políticas de cada país, resultando imperioso para a coerência sistêmica do bloco, que a transposição dos acordos celebrados pelo Mercosul para as ordens jurídicas nacionais ocorra de forma célere, dinâmica e sem tantos obstáculos para sua incorporação. Contudo, parecer ser uma realidade difícil de alcançar.
Por esses motivos, é notável que o Mercosul ainda tem muito que caminhar no processo de integração, mas o incentivo às ações de cooperação para combater a criminalidade transnacional, ainda que tímido, é muito importante e vem obtendo alguns resultados positivos. Talvez, o estudo da questão da supranacionalidade seja acertado para o aprofundamento dessa integração