Introdução
O abortamento é uma temática permeada por questões religiosas, culturais, e quando acontece, mesmo em situações previstas pela Lei, torna-se problema de saúde pública de grande gravidade devido ao alto risco de complicações e morte de mulheres.1
A Organização Mundial da Saúde define o abortamento como a descontinuidade da gravidez até a 20ª ou 22ª semana de gestação, desde que o concepto tenha peso menor que quinhentos gramas.2,3 O aborto é o produto final do abortamento, contudo, comumente aborto é utilizado para se referir ao próprio processo do abortamento, como sinônimo. O abortamento pode se dá de modo espontâneo ou provocado. Espontâneo, quando o embrião não se desenvolve corretamente e o corpo da gestante o expulsa sem intervenções e o provocado, quando se faz uso de métodos para provocar a interrupção da gravidez.3
Em todo o mundo são realizados, aproximadamente, 56 milhões de abortamentos provocados a cada ano. Além dos riscos à saúde, o aborto provocado, realizado em condições inseguras, de forma ilegal, traz prejuízos a saúde pública porque na ocorrência de complicações gera altos custos financeiros para o tratamento.4) Vale salientar que 97 % dos abortos provocados ocorrem em países em desenvolvimento e suas complicações são responsáveis por 13,12 % da mortalidade materna. O aborto induzido seguro é visto como redutor de morte materna, já que as intervenções serão feitas com profissionais capacitados e em locais com assistência adequada.5
No Brasil, o abortamento provocado ou induzido é proibido por lei, exceto nos casos em que há risco iminente de morte para a mulher, estupro ou anomalias congênitas.6) O país possui um dos maiores índices de aborto ilegais do mundo, sendo mais ou menos 500.000 por ano entre mulheres de 18 a 39 anos, e por consequência cerca de 40 % ou 200.000 mulheres morrem por conta de suas complicações.7
A Resolução do Conselho Federal de Enfermagem n.º 564/2017 8) preconiza que é vetado a profissionais de Enfermagem provocar ou auxiliar em um processo de abortamento. Nas situações de abortamento que são previstas por lei, a enfermeira possui o direito de recusar sua participação desde que a assistência seja garantida. Entretanto, quando a mulher busca o serviço de saúde, em situações de complicações decorrentes do abortamento induzido, é obrigatório prestar o atendimento.
Frente a essa problemática, estudo de Borges, Clemente e Netto 9) demostrou a carência de profissionais devidamente capacitados(as) para lidar com questões delicadas como o abortamento e a violência sexual e doméstica. Madeiro e Rufino 10) também abordaram, em pesquisa realizada com mulheres que sofreram abortamento e profissionais da saúde, a privação por parte de profissionais em dispor de conhecimentos acerca das complicações do aborto e da complexidade dos cuidados necessários.
Nessa perspectiva, a formação universitária é fundamental para trabalhar com temas e questões ligadas às causas humanitárias e quebra de estigmas sociais, por meio da promoção de espaços educativos-dialógicos sobre o cuidado integral -técnico, humanístico e respeitoso, congruente às demandas da mulher. 11
Diante do exposto, emerge a presente pesquisa fundamentada pela Teoria das Representações Sociais (TRS), em sua abordagem processual considerando a possibilidade de, por meio desta teoria, compreender a concepção de estudantes de enfermagem sobre abortamento provocado baseada no senso comum e, em aspectos históricos, culturais, ideológicos e de valor na comunicação que o grupo compartilha.
Para Jodelet, a TRS é caracterizada pela abordagem processual, acessa o conhecimento das representações sociais a partir de uma abordagem de interpretação das palavras, entendendo o ser humano como produtor de significados, e analisando as produções simbólicas, os significados, a linguagem, por meio dos quais o ser humano constrói o mundo que vivemos.12
O estudo tem como objetivo explorar as representações sociais de estudantes de enfermagem sobre o abortamento provocado e discutir as representações sociais sobre o cuidado de enfermagem à mulheres em processo de abortamento ou pós-aborto com complicações.
Metodologia
Trata-se de estudo descritivo qualitativo, fundamentado na Teoria das Representações Sociais, realizado com estudantes de enfermagem da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus XII, localizada no município de Guanambi-Ba. A condução e apresentação da pesquisa seguem os critérios definidos pelo Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ). 13
A Universidade possui 135 discentes matriculados(as) no curso de enfermagem. Foi utilizado como critério de inclusão ser estudante de enfermagem devidamente matriculado(a) no semestre 2022.2 da UNEB e, de exclusão, ser menor de 18 anos.
A pesquisa foi divulgada aos(às) discentes pessoalmente e/ou por meio de aplicativo de envio de mensagens instantâneas e chamadas de voz para smartphones, por intermédio dos(as) estudantes. Considerando a disponibilidade de cada discente, marcou-se momento individual, em uma sala de aula reservada na UNEB, a fim de evitar qualquer intervenção e manter a privacidade da participante. Assim, nesse espaço, foram fornecidas mais informações sobre a pesquisa, reforçado o convite, realizada leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) .
Cabe destacar que a pesquisa foi realizada, em todo seu percurso, considerando as normas éticas da Resolução n.º 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde. 14 Foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade do Estado da Bahia sob o número de CAAE: 64244722.8.0000.0057.
A produção de dados foi realizada no mês de novembro de 2022 e, para tanto, foi utilizada a entrevista semi-estruturada, técnica que combina perguntas abertas e fechadas e deixar a(o) entrevistada(o) livre para expor e opinar sobre o assunto. 15) Dentre as perguntas foi questionado as participantes perguntas como “Fale para mim, por favor, o que você sabe sobre aborto provocado?”; “Qual sua opinião sobre o aborto provocado?”; “Como você relaciona os direitos sexuais e reprodutivos e a questão do aborto provocado?”; “Você já participou de alguma atividade aula ou discussão em sala de aula ou eventos durante a sua graduação sobre a questão do aborto? Como foi a discussão? Quais os principais pontos abordados?”. As entrevistas tiveram duração de dez minutos, em média, foram audiogravadas com o consentimento das participantes.
O número total de participantes foi de 16 estudantes e definido com base na lógica da saturação dos dados que é compreendida como a percepção da pesquisadora de ter informações suficientes para responder aos objetivos da pesquisa, diante da apreensão da lógica do objeto, de resultados redundantes e repetitivos, não necessitando de novas coletas, participações o que culmina com a suspensão da etapa de produção de dados. 16
Para a análise dos dados foi utilizado o software Iramuteq (Interface de R pour les Analises Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaire), seguindo os padrões sugeridos de acordo com o manual. O referido software constitui ferramenta para o processamento e exploração dos dados, disponibilizando várias possibilidades de análise de texto. 17
Neste estudo, utilizou-se o Método de Classificação Hierárquica Descendente (CHD), que classifica os segmentos de texto. Para tanto, foi realizada a análise do tipo Simples sobre ST que pré-determinada pelo software e recomendada quando se dispõe de textos longos. 18
Seguiram-se seis passos propostos para pesquisa qualitativa no processo de organização, tratamento e análise dos dados:13
1) Organizado e preparado os dados (confecção do corpus) para a análise, seguidas as orientações do manual; 2) Leitura de todos os dados com reflexão sobre o significado geral dos dados, tendo o cuidado para não os alterá-los durante a transcrição; 3) Realizada uma análise detalhada pelo processo de codificação com o apoio do software Iramuteq mediante a separação das palavras; 4) Realizada nova análise detalhada pelo processo de codificação, com novas leituras das entrevistas, principalmente, após a organização dos dados pelo sistema em UCE (Unidades de Contexto Elementar) e das palavras em destaque em cada classe; 5) Identificado como a descrição e os temas seriam representados na narrativa qualitativa, de acordo com os temas que surgiram da análise dos dados foi feito o suporte teórico com base nas literaturas e 6) Extraído o significado dos dados de acordo com a compreensão da pesquisadora e confrontados com informações identificadas na literatura.
Na etapa de transcrição e organização do corpus da entrevista foi definida como Unidade de Contexto Inicial (UCI) e o substrato analítico, executado no software para o processamento dos dados. Depois disso, as UCI foram agrupadas, dando origem às Unidades de Contexto Elementar (UCE) e a criação de um dicionário de formas menores, por meio do teste de qui-quadrado (X2) que revela a força associativa entre as palavras. 18
Os recortes de fala das participantes também foram utilizados para ilustrar as classes, pois, apresentam elementos importantes para contextualização das palavras/termos que configuram a CHD. Tais recortes foram citados exatamente como foram fragmentados pelo software, após o processamento, incluindo a pontuação, sendo que esta foi avaliada no momento da confecção do corpus. E, para garantir o anonimato das participantes, foram identificados pela letra E, seguida da ordem de participação.
Resultados e discussão
Participaram da pesquisa 16 estudantes de enfermagem do segundo, quarto, sexto, oitavo e nono semestres, todas do sexo feminino, com idades entre 18 e 42 anos. Destas, dez proferiram ser da religião católica, quatro evangélicas e duas negaram seguir algum tipo de religião.
Apesar de ter sido um fator limitante do nosso trabalho o tempo curto das entrevistas e o semestre no qual a estudante está, a literatura traz que isso pode se dar pela falta de conhecimento das estudantes acerca do assunto, por ser pouco abordado na graduação refletindo na falta de profundidade das respostas. Isso também se dá pelo modelo tradicional de ensino no qual o docente conduz o assunto carreado de crenças e valores pessoais. (19, 20)
A partir do agrupamento das palavras feito pelo sistema, obteve-se a classificação dos segmentos de texto em três classes, diferenciadas pelas cores. Estas classes são ilustradas pela figura do dendrograma (Figura 1).
A apresentação deste dendrograma mostra as divisões que foram feitas no corpus, até chegar nestas classes. A leitura é feita da esquerda para direita na qual as divisões são correlacionadas aos segmentos de texto e mostram o vocabulário das palavras com frequência média entre si e divergente entre elas. 18
O software dividiu o corpus em dois subcorpus que são constituídos pelas UCE, dessa forma: subcorpus 1 - Constituído pela classe 1 (73 UCE); subcorpus 2 - Classes 2 (85 UCE), 3 (55 UCE) com 77,74 % de aproveitamento do corpus. De acordo o manual, o corpus deve ter o aproveitamento de no mínimo 75 %, dessa forma pode se afirmar que houve um aproveitamento relevante para a pesquisa. 18
O dendrograma a seguir (Figura 2) é o produto do Iramuteq, que por meio da CHD, favorece a visualização e a relação das palavras entre elas. Não existe mudança entre a Figura 1 e ela em relação à classificação, mas dessa forma é possível visualizar a quantidade de vezes que a palavra foi citada, conforme sua hierarquização.
A partir da análise aprofudada do dendograma, e em cada uma das classes individualmente, percebeu-se que em cada segmento as palavras tem uma concordância. As classes ganharam maior sentido a partir da comparação do dendograma com os fragmentos das falas, no qual demonstraram significado e sentido para as entrevistas das graduandas em enfermagem.
Depois de ter sido feito o processamento dos dados, deu-se início as novas leituras, a classificação das palavras e nomeação das classes: Classe 1 - Cuidado de enfermagem à mulher em situação de aborto; Classe 2 - Representação do abortamento provocado na perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos e sua legalização como forma de reduzir o risco de complicações e morte; Classe 3 - Objeções da consciência frente ao abortamento legal ou ilegal. Para descrever cada classe foi realizada uma análise das palavras individualmente, observando em quais segmentos de textos elas eram inseridas, correlacionando com a literatura. Os fragmentos da entrevista foram mencionados conforme apareceram no software, exatamente como foram citadas, incluindo a pontuação que foi avaliada na confecção do corpus.
Classe 1 - Cuidado de enfermagem à mulher em situação de aborto
Esta classe está diretamente relacionada com o modo como as estudantes representam a assistência de enfermagem/o cuidado à mulher em abortamento ou pós-aborto a partir das palavras “assistência, cuidado e entender”, na qual estão ligadas à necessidade de cuidado e assistência integral, inclusive, envolvendo a dimensão psicológica, conforme explicitam:
A gente sabe que tem mulheres que provocam o aborto aí quando chega no hospital não recebe a assistência necessária, por conta disso fica julgando. Eu acho que deve prestar cuidado como em qualquer outro caso, uma assistência integral, tanto psicológica e assistencial mesmo. (E4) Então acho que primeiramente ela deveria ter esses cuidados de enfermagem, ela precisava de um acompanhamento psicológico porque provavelmente ela não estaria bem psicologicamente. (E9) O que eu observei nas práticas de saúde da mulher, inclusive achei uma falta de humanização no cuidado da assistência de enfermagem. (E14)
A fala de E 14 corrobora com o destaque realizado por Silva, Ferreira e Freitas 21) de que a maioria dos profissionais de saúde não está preparada para atuar em uma situação de pós abortamento. E é necessário que a enfermagem preste cuidado de qualidade a estas pacientes, reconhecendo sua vulnerabilidade e respeitando suas particularidades.
A necessidade de entender a mulher também foi uma representação apreendida sobre cuidado de enfermagem à mulher em pós-aborto. Aqui, as estudantes deixam claro a necessidade de um cuidado baseado na capacidade de compreender a mulher e de não julgá-la, conforme pode-se observar a seguir:
Ela é tratada como se fosse um bicho, que fez uma coisa muito errada, acho que ela precisa disso, do cuidado, da atenção e de menos julgamentos precipitados, tentar entender o lado dela. (E16) Ela é menosprezada, minimizada, sempre julgada ali, começa a ser tratada de qualquer jeito não tendo nenhum acolhimento, a gente costuma ver esses relatos assim. (E2)
Corroborando com as falas das participantes, um estudo feito no Piauí evidencia que as mulheres hospitalizadas em situação de aborto sofreram maus tratos e desrespeito por parte da equipe, além da violação da privacidade e da confidencialidade. 10
E ao revés, as estudantes destacam, em suas representações, a necessidade superar esse cuidado limitado que costumam vivenciar nas aulas práticas o que parece ser algo bastante positivo considerando que como futuras profissionais terão possibilidade de prestar um cuidado de enfermagem que elas mesmas denominam como integral, humanizado.
Ao cuidar de modo integral, numa abordagem sem discriminação, sem qualquer tipo de violência e exercendo o seu papel de com dignidade e competência, de maneira holística, profissionais de enfermagem terão como o foco o atendimento integral para a paciente, sem o foco no aborto em si como fato isolado. 22
Classe 2 - Representação do abortamento provocado na perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos e sua legalização como forma de reduzir o risco de complicações e morte
As palavras que mais se associaram nesta classe remetem a temas como: direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, sobre querer ou não ter filhos, bem como, sobre legalização do aborto e os tabus acerca da temática, conforme seguem:
Sou contra, eu concordo em partes pelo fato de que seu corpo suas regras você não quer ter filhos, você vai lá e aborta. (E1) Eu acredito que a gente está em uma sociedade ainda muito machista e quando você fala que não quer ter filho é um tabu. (E9) Eu acho que cada um tem o direito de escolher o que quiser, se ela não quiser ter o filho bom, se ela quiser ter bom também, desde que quando ela quiser ter, ela for responsável por esses filhos. (E4)
Outro aspecto que desponta nas representações das mulheres sobre o abortamento provocado é a questão da legalização como possibilidade de escolha da mulher e de não correr riscos quando se submetem ao abortamento em locais clandestinos e em condições inseguras, conforme evidenciado nas falas, a seguir:
Então eu acredito que em alguns casos, sim o aborto deveria ser legalizado, e ser permitido apesar de todo mundo falar “ah tem preservativos no posto de saúde, tem anticoncepcional”. (E13) Assim eu não julgo quem faz aborto, acho que cada pessoa tem o direito de escolher se quer ou não ser mãe. (E10) Eu não sou contra, acho que deveria legalizar, então não é uma coisa assim que eu julgo, porque a gente sabe que muita gente faz. (E2) Porque se legalizasse seria melhor que a pessoa não estaria correndo risco. (E6)
A argumentação a favor da legalização tem como embasamento o direito de escolha e o fato de que a ilegalidade não inibe o ato e, ainda, favorece a realização de abortamento em condições inseguras pelas mulheres em situação de maior vulnerabilidade social.
Uma parcela da população com poder aquisitivo melhor tem acesso a clínicas ilegais de aborto com melhores condições de funcionamento e com mais segurança, em contrapartida, a outra parcela pobre da população que se submete a locais sem nenhuma salubridade por não ter condições para ter acesso a um procedimento seguro. 23
Assim, tais representações parecem se ancorar no fato de que apesar do aborto ser ilegal no Brasil, isso não impede que muitas mulheres o faça o que denota um conhecimento de que esses procedimentos feitos de maneira clandestina, sem segurança, e muitas vezes, colocando em risco a vida de mulheres.
Classe 3 - Objeções da consciência frente ao abortamento legal ou ilegal
A relação de palavras ordenadas nesta classe está ligada com as objeções da consciência frente ao abortamento legal ou ilegal e ainda a representação de que cabe a mulher a decisão pouco importando a opinião de outrem nesta situação.
As estudantes expressam em seu discurso o que elas acham favorável nas questões de direito de escolha e que em uma gravidez indesejada ela pode sim ser solucionada dessa forma. Seguem as falas das entrevistadas:
Então nesses casos eu acredito que seja viável porque é muito sofrimento pra essa mulher que já passou por uma violência e ter que gerar um feto que não foi planejado (…) eu acredito que deve ser feito, porque ela sofreu uma violência, ela vai gerar uma criança que vai trazer muitos problemas, até mesmo psicológicos pra essa mulher. (E16) Ela tem livre arbítrio para fazer o que ela acha que deveria fazer e muitas vezes acaba sendo a única alternativa, por exemplo, em questão de estupro a mulher acaba se sentindo vulnerável psicologicamente também. (E9)
Em refutação aos discursos acima, o que ocorre com a maioria das (os) profissionais de enfermagem é a expressão de discursos baseados na própria criação, na sua cultura e valores, no qual eles acreditam que mesmo sendo uma gravidez fruto de uma violência a mulher não tem o direito de tirar outra vida. 21
Uma estudante representa a negação do direito do abortamento, mesmo em caso de estupro, situação prevista em lei como absurdo, conforme trecho a seguir:
Muitos casos de estupro também que é negado, eu acho um absurdo assim, a pessoa não desejou aquilo, e aí a pessoa fala “ah mas tem que levar a gestação, é só colocar pra adoção”. (E7)
A ideia de absurdo trazida pela estudante parece estar acocorada no fato de que a mulher que já teve seu corpo violado pelo estupro, ainda tem que lidar com a imposição dos padrões e a privação da sua liberdade de escolha sobre seu corpo, que é reprimida pelo falso moralismo existente. 24
As estudantes também trazem em suas representações a ideia de respeito a escolha do outro, o entendimento da distinção do que lhe é privado em relação ao que a outra pessoa pensa e escolhe e a adoção de uma postura isenta de julgamentos, como evidenciado a seguir:
Independente, agora essa questão dos direitos, é direito da pessoa ter a escolha dela, como eu falei antes é uma coisa que eu não faria. (E11) Eu não tenho muito minha opinião não, eu respeito a opinião da pessoa, a pessoa tem o direito de escolha, então a minha opinião naquele momento não vai ajudar, acho que minha opinião nesse momento é o que menos importa. (E6)
Isso é algo totalmente privado da mulher e não cabe a mim julgar a escolha de outra mulher, então isso vai muito de cultura e valores de cada uma. (E15)
Corroborando com as falas acima, Agostinho et al. 25 vem reforçando a necessidade de profissionais se absterem das suas ideologias, tendo em vista que a sociedade possui um estigma muito grande acerca do aborto/abortamento. Profissionais de saúde devem, assim, manter uma postura neutra, e atentando-se para uma escuta qualificada e compreensiva, pois, é um momento de extrema vulnerabilidade na vida da mulher e ela necessita de uma assistência humanizada.
Os achados dessa classe evidenciam que as estudantes de enfermagem representam o abortamento, legal ou provocado, livre de julgamentos quando se trata da escolha de outra mulher o que sugere a possibilidade de uma assistência mais humanizada e congruente com o respeito às mulheres.
Considerações finais
As representações sociais das estudantes sobre abortamento denoram respeito às tomadas de decisão das mulheres e o reconhecimento da necessidade da legalização do aborto. Por sua vez, as representações sociais sobre cuidado revelam o cenário atual do cuidado em saúde às mulheres que é marcado pela falta de cuidado integral, e por uma assistência carreada de preconceitos/julgamentos e distanciada das políticas públicas que visam promover uma assistência de qualidade e humanizada.
Na construção das representações sociais do abortamento foi perceptível a dualidade pois as participantes manifestaram sentimentos que vão desde a empatia e respeito a opinião de quem aborta, até o estigma e preconceito ligado à opinião pessoal.
Embora, o tamanho da população pode ser considerado com uma limitação, o estudo não pretende a generalização dos resultados e reflete uma realidade que pode ser comum a outros contextos acadêmicos em países em que o abortamento é prática ilegal. Ademais, oferece subsídios que podem incitar uma maior discussão/ reflexão crítica sobre temática do abortamento em cursos de graduação em saúde, em específico, de enfermagem e em processos de educação permanente, na direção de formar profissionais comprometidas(os) em oferecer cuidado integral, sem discriminação.
Considera-se necessário que o tema seja discutido com mais frequência na graduação para que se possa ampliar o conhecimento acerca do tema frente aos desafios profissionais que lidam diante da complexidade dos cuidados necessários à mulheres em processo de abortamento ou pós-aborto com complicações.