Introdução
A atenção primária é um dos componentes chaves para os modelos de sistemas de saúde universais, que buscam a promoção da saúde, a garantia da continuidade e integralidade do cuidado no contexto individual e coletivo; bem como a resolutividade das necessidades de saúde de uma população. 1) A autonomia do usuário, a interdisciplinaridade e a construção de vínculo enfermeiro-pessoa-família são elementos típicos presentes na atenção primária que asseguram as necessidades em saúde. 2
Com efeito, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) foi um dos maiores marcos na história da saúde pública do Brasil. Desde sua instituição no país, em 1988, o SUS tem por objetivo assegurar que todos os cidadãos brasileiros tenham acesso à saúde de forma gratuita e universal. Neste contexto, destaca-se a atenção primária, organizada e regulamentada a partir da Política Nacional de Atenção Básica incorporada como principal porta de entrada e centro de comunicação com a rede de atenção à saúde. 3,4
A atenção primária é o eixo ordenador e articulador da rede assistencial em que um indivíduo e sua família são assistidos, logo é considerada a porta de entrada assistencial prioritária no SUS. Além disso, atenção primária é considerada o centro articulador das ações de saúde no plano individual e coletivo, destinadas a promover a saúde, prevenir doenças e agravos e produzir cuidados de baixa densidade tecnológica. 5
Um dos componentes primordiais da atenção primária, considerado uma estratégia fundamental para a organização e prestação de serviços na saúde, é a saúde da família. A Estratégia Saúde da Família (ESF) apresenta por objetivo oferecer assistência integral e continuada às pessoas e à comunidade, mediante uma abordagem que coloca a família como centro da atenção. A ESF é composta por uma equipe multiprofissional representada, no mínimo, por: médico generalista ou especialista em saúde da família, enfermeiro generalista ou especialista em saúde da família, auxiliar ou técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde. 2,6
No interior desta equipe encontra-se a enfermagem considerada uma área da saúde que se dedica ao cuidado aos indivíduos, famílias e comunidades. No contexto da ESF, o enfermeiro desempenha um papel fundamental, atuando na linha de frente da atenção primária de forma articulada e integrada com a equipe de saúde. Diversas são as competências do enfermeiro na ESF, tendo que desempenhar funções assistenciais, gerenciais, educativas e de controle social. De modo particular, as atividades educativas desenvolvidas pelos enfermeiros na atenção primária é de extrema importância para a promoção da saúde, melhoria da qualidade de vida da população, redução de custos e sobrecarga para o SUS, promoção do autocuidado da população e participação ativa da comunidade nas decisões de saúde. 6
No âmbito da promoção da saúde as atividades de capacitação das famílias realizadas pelos enfermeiros atuantes na atenção primária melhoram a qualidade de vida das pessoas e empodera uma maior participação da comunidade no controle dos processos de saúde-doença. Cabe destacar que isto inclui uma base sólida de acesso à informação, experiências e habilidades com ambientes saudáveis, bem como oportunidades que permitam as famílias fazerem escolhas por uma vida mais sadia. 7
Nesta corrente, é importante destacar que, transcorridos quarenta anos desde a Declaração de Alma Ata, a atenção primária aposta na proposição de soluções práticas nascidas do diálogo e da escuta. Em uma leitura atual do documento, a participação social vai além de uma mera formalidade no campo da promoção da saúde. Ela é um meio para descentralizar o poder e promover o protagonismo das diversas famílias, sem discriminação, favorecendo assim a obtenção do maior nível possível de qualidade de vida nas comunidades. 8
Especificamente, o termo família é cercado por variadas percepções culturais, sociais e políticas que o torna dotado de uma pluralidade de significados e interpretações. Em linhas gerais, é possível perceber que a organização das famílias passou por diversas reestruturações marcada pela transição de grandes grupos com relações consanguíneas para uma família monogâmica constituída por homem, mulher e filhos, centrada na figura masculina como autoridade. Atualmente, os núcleos familiares também agregam relações afetivas e assumem diversos arranjos que merecem atenção por parte dos enfermeiros atuantes na atenção primária quando produzem os seus cuidados. 9,10
Nesse prisma, cabe localizar que no contexto da saúde, a família é a primeira unidade de cuidado e que merece atenção no campo da promoção da saúde pelos enfermeiros atuantes na ESF. Essa forma de cuidado surge para suprir as necessidades, acolher o integrante da família e projetar os valores culturais da sociedade. O cuidado, por sua vez, é visto como algo primordial para o ser humano e se relaciona ao vínculo, aos bons tratos, a empatia, supervisão, assistência e ao amor. 9,11
Para o enfermeiro, o cuidado é o fundamento da profissão e está inteiramente interligado à construção do ser humano como biopsicossocial e espiritual que deve ser assistido de acordo com suas necessidades. No contexto da atenção primária, a equipe de enfermagem atuante na ESF deve assistir às múltiplas configurações de família presentes em um território, proporcionando cuidado humanizado, integral e universal aos diversos arranjos familiares. 3
Dessa forma, os múltiplos arranjos familiares assistidos pelos enfermeiros da atenção primária são lacunas do conhecimento evidenciado em literatura (inter)nacional, sobretudo ao se analisar as práticas de cuidado no interior da unidade básica de saúde e nos seus territórios. Baseado nesses temas-problemas contextualizados, emerge a seguinte questão norteadora deste estudo: quais são as práticas de cuidar promocionais da saúde produzidas pelos enfermeiros da atenção primária às famílias? Face à essas indagações, o presente estudo tem por objetivo analisar as práticas de cuidar produzidas pelos enfermeiros da atenção primária com as famílias na perspectiva da promoção da saúde.
Método
Trata-se de um estudo exploratório-descritivo com abordagem qualitativa orientada pela perspectiva fenomenológica, cuja natureza subjetiva têm por finalidade analisar o modo de ser no mundo através dos significados advindos do trabalho. Este tipo de perspectiva metodológica tem contribuído para a ação profissional da enfermagem, sobretudo para o alcance da compreensão do ser e aproximação do cuidar autêntico. 12
O referencial teórico escolhido para a análise dos dados foi orientado por Laurence Bardin, que divide a análise do conteúdo em três polos cronológicos: pré-análise, tratamento dos dados obtidos e interpretação. No conjunto das técnicas de análise de conteúdo, a análise por categorias é amplamente utilizada. Funciona por operações de desmembramento do texto em unidades, em categorias segundo reagrupamentos analógicos. O tratamento dos dados brutos ocorreu manualmente por um pesquisador independente, doutor em enfermagem que sistematizou os temas advindos dos dados para produzir uma categoria analítica incorporada a este estudo. 13
No que diz respeito ao desenho do estudo o local escolhido para realização foi a rede de atenção primária à saúde do município de Boa Vista, capital do estado de Roraima, dividida em 08 macro áreas e composta por 34 unidades básicas de saúde. Desta totalidade foram sorteadas 15 estabelecimentos.
O grupo social envolvido neste estudo foi composto por 45 enfermeiros atuantes nas unidades básicas de saúde sorteadas. Destes, 27 se recusaram a participar do estudo, 03 não atenderam aos critérios da pesquisa e 15 atenderam e aceitaram participar do estudo. Esta composição foi determinada pela saturação dos achados e orientada pelos seguintes critérios de inclusão: enfermeiro da ESF com no mínimo um ano de atuação, possuir prática clínica centrada na família, apresentar especialização ou curso de aperfeiçoamento no campo da saúde coletiva. Excluíram-se do estudo enfermeiros afastados das atividades laborais, professores de estágio, enfermeiros estrangeiros, e, que não aceitaram participar do estudo por meio da gravação de voz.
A produção dos achados foi realizada a partir de entrevista individual, entre os meses de junho a agosto de 2023 em local reservado da UBS acordado entre entrevistadora-entrevistado, representado por consultórios de enfermagem e salas de reuniões. Todas as coletas de dados foram produzidas por uma estudante vinculada ao programa de iniciação científica e regularmente matriculada no último ano do curso de Bacharelado em Enfermagem de uma universidade pública situada no extremo norte do Brasil. Cabe destacar, que a entrevistadora áudios passou por uma capacitação teórico-prático sobre técnicas de entrevistas qualitativas e não possui nenhum vínculo social com os participantes do estudo.
O desenho das entrevistas contou com treze questões gravadas em dispositivo, cujos foram dispostos em formato .mp3 produzidos por meio de um roteiro semiestruturado, com tempo médio de 30 minutos de duração, que subsidiou o acesso aos seguintes temas: atuação dos enfermeiros na UBS e as práticas de cuidar adotadas por eles às famílias. Salienta-se que houve uma aproximação do roteiro de entrevista semiestruturado com o instrumento The Strategies in Families-Effectiveness adaptado e validado para uso com famílias brasileiras.14)
Com efeito, o instrumento passou por um teste piloto orientado por este desenho de estudo e foi modificado à medida que os dados foram obtidos junto aos participantes. Além disso, todo o material empírico transcrito foi devolvido aos participantes e não sofreu modificações de conteúdo.
A pesquisa obedeceu às diretrizes da Resolução número 466 de 2012 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e aprovado sob o parecer número 4.701.055. Toda a produção dos dados foi precedida pela leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido e do Termo de Autorização de Gravação de Voz. O anonimato dos participantes desta investigação foi mantido pelo uso da sigla (E) referente a categoria “Enfermeiro”, seguida de um número ordinal sequencial crescente. Por fim, sublinha-se que o estudo está vinculado ao projeto investigativo intitulado “Rastreamento de Saberes e Práticas Assistenciais, Gerenciais e Educacionais no Âmbito da Atenção Primária à Saúde” cadastrado no Departamento de Pesquisa da Universidade Federal de Roraima (UFRR).
Resultados
Os resultados desta investigação sinalizam análises das práticas de cuidado protagonizadas por enfermeiros da atenção primária junto às famílias, numa perspectiva de promoção da saúde. Suas funções no âmbito da ESF se diferenciam em maior ou menor grau de outros profissionais no campo da promoção da saúde, pois desempenham um papel fundamental na educação em saúde das famílias, atuam com empatia e estabelecem vínculos de confiança com a comunidade; além de coordenarem o cuidado de forma integral entre os diferentes profissionais atuantes nas unidades básica de saúde.
As ações neste âmbito valorizam, e, na mesma medida, fortalecem a palavra de ordem vínculo como elemento central na educação em saúde protagonizados pelos enfermeiros com as famílias na atenção primária. Esta característica subjetiva coloca às famílias em uma posição de centralidade nas práticas dos enfermeiros sendo significadas por: acolhimento, escuta qualificada, humanização do cuidado, diálogo, fortalecimento de laços entre o enfermeiro e a família, olhar integral e holístico para as situações familiares.
Estes qualificadores funcionam como contributos para as práticas de orientações em saúde realizadas pelo enfermeiro junto a família, nas mesmas medidas que fortalecem as ações educativas e palestras preventivas com as famílias que acontecem no território, nas casas e na própria unidade básica de saúde. Tudo isso pode ser acessado nos depoimentos ilustrativos dispostos na codificação seletiva incorporadas na categoria a seguir.
Vínculo enfermeiro-família: contribuição prática para promoção da saúde na atenção primária
Construir esse vínculo com a família, prestar o cuidado e colher os frutos de você ver a comunidade realizando as orientações de promoção da saúde e prevenção de doenças (...) o enfermeiro responsável pela saúde da família, estratégia saúde da família, ele faz total diferença. Ele é reconhecido pela comunidade como um agente promotor de saúde. A gente não cuida de doença, a gente promove a saúde dentro da família, a gente acompanha, todos os nossos grupos prioritários, mas aquele também que não faz parte, ele também é acolhido (...). Porque acho que a principal característica do nosso cuidado, realmente é a humanização (E1).
O nosso atendimento de enfermagem é de grande impacto, humanizado, resolutivo (...) fazendo um aconselhamento, dar conselhos, oferecer palestras (...) o enfermeiro acaba acolhendo uma boa parte das famílias, trazendo um grande benefício à saúde da população (E2).
A gente vê dentro do consultório e vai para dentro da casa da pessoa e cria o vínculo do enfermeiro com as famílias (...) o cuidado com cordialidade, com atenção, humano. É isso, o enfermeiro vai orientando, com muita conversa, né? A gente tem que conversar muito, tem que ter muito tato para entrar na intimidade das pessoas (E3).
Olha você tendo um vínculo, um vínculo familiar bem instituído, né? (...) eu oriento tudo, eu gosto que eles saiam daqui sabendo. As estratégias, na maior parte são ações, palestra e orientações para tirar todas as dúvidas (...) a gente sempre trabalha na atenção básica em cima dos programas do Ministério da Saúde, de forma humanizada é claro, cada ser humano que entra aqui comigo ele vai ser respeitado. Entendeu? (E4).
Como um bom enfermeiro da estratégia da família a gente cria um vínculo com a família, com o paciente, então tudo é uma experiência nova, né? (...) as ações precisam ser integrais, holísticas. O cuidado do enfermeiro ele é muito voltado para a prevenção, a gente trabalha muito a questão das palestras com orientações e a visita domiciliar (E5).
O cuidado do enfermeiro com a família no meu ponto de vista é primordial. Ele é um profissional habilitado, competente para executar ações de promoção da saúde, prevenção de doenças (...) quando a gente adentra em uma família é de extrema importância criar um vínculo, costumo dizer que a formação de um vínculo na família passa por estratégias educativas que cause um impacto naquela família (...) a gente procura ser muito resolutiva, né? Então, acaba que agimos de forma integral na família (E6).
O enfermeiro faz o acolhimento, faz o acompanhamento, faz a visita, olha para o todo de forma ampla, sensível, humano (...) para que aquela família não seja desgarrada, não seja desassistida. A gente faz um acompanhamento da família como um todo, né? A gente não cuida só a mulher, o marido, a criança ou só o idoso, a gente tem que olhar todos, a gente tem que fazer um acolhimento (...) prestar nosso conhecimento, nossas orientações o nosso cuidado no geral em todos (E7).
Promoção da saúde! Eu gosto muito das palestras. Então, sempre que tenho tempo eu estou elaborando alguma coisa aqui (unidade básica de saúde) (...) o fortalecimento do vínculo entre usuário, família e população no processo de trabalho da equipe de saúde da unidade, também vai colaborar muito nas ações educativas que nós fazemos (...). É a humanização do cuidado, né? (E8).
Agente preza pelo atendimento humanizado (...) o cuidado prestado de forma adequada e com qualidade: a gente tenta promover a saúde ofertando ações de saúde com palestras e fortalecendo os laços (das famílias no território) com os agentes comunitários de saúde (E9).
Cria um vínculo muito bacana com a família, né? Porque toda semana a gente está visitando esses pacientes (...) aqui (unidade básica de saúde) a gente todo dia faz acolhimento das famílias (...) orientações gerais, às vezes chega uma família querendo ser escutada, né? Muitos vêm aqui para serem ouvidos mesmo, tem algum problema na família a gente faz a escuta inicial, orienta e se houver necessidade a gente encaminha para um psicólogo (...) isso é integralidade na atenção à saúde e a atenção primária preza por isso (E10).
O trabalho do enfermeiro é muito importante, principalmente na educação em saúde. É primordial porque a gente está lidando com a base da educação e a continuidade do atendimento, né? Tipo acompanhar a família desde que a mulher engravida até criança, a criança vai crescer e virar um homem ou mulher e aí a educação em saúde da mulher, a educação do homem, é continuidade do atendimento, é longitudinalidade. Enfim, é humanização da saúde (...) para isso, é preciso gerar, criar aquele vínculo inicial, para que a família confie na gente (E11).
Um atendimento mais humanizado para elas (famílias) serem bem atendidas (...) o vínculo que o enfermeiro tem com a família é diferente. Nós criamos um vínculo muito rápido com o usuário, ele chega na unidade de saúde, vem para o acolhimento, tem a escuta qualificada que é o enfermeiro que faz então nós já estamos aqui para ouvir tentar resolver a situação da família. Então, o vínculo que o enfermeiro cria com o paciente é diferente. É uma coisa mais sólida digamos assim. (...) então assim dependendo do que está acontecendo a gente faz educação em saúde, uma ação voltada para o tema (E12).
Na promoção de saúde é ter aquele cuidado né? É prevenção de doenças tanto no geral, quanto no homem, na mulher, na criança, no adolescente, no idoso. É buscar estratégias de prevenção e promoção saúde (...), buscar atender, é humanização, é dialogar, é tentar buscar a dificuldade da família para ajudar dentro da forma que ela está necessitando entendeu? Dentro do que ela necessita! (E13).
Acredito que o enfermeiro tem um papel muito importante no cuidado das famílias. É a questão da educação. Nós, da estratégia saúde da família, temos a questão da atenção primária que é a orientação. É antes da doença acontecer. Então é importante a orientação, ter um acolhimento e orientar é muito importante. (...) nós enfermeiras temos um olhar integral para aquela pessoa, para aquela família, né? (E14).
O enfermeiro é uma peça muito importante dentro da estratégia saúde da família. É a referência para as famílias também. A gente acaba criando um vínculo, pois tem um olhar integral para aquela pessoa, né? (...) A importância do enfermeiro na promoção, na prevenção, na identificação deste olhar que ele tem, que não é só de um sintoma mais um olhar holístico da situação, um olhar integral. Eu acho que o enfermeiro tem essa visão dentro da unidade, para promover e para mudar também a situação familiar, de sentar com a família de orientar (E15).
Discussão
A relação estabelecida entre enfermeiros e famílias, com foco na criação de vínculos, é fundamental para a promoção da saúde no campo da atenção primária. Essa relação vai além das práticas estritamente assistenciais e curativas, abrangendo aspectos da vida representados por elementos emocionais, culturais e sociais que influenciam diretamente o processo de saúde e doença das famílias acompanhadas pelos enfermeiros da ESF.
Aqui, a ação de acolher, representada pela capacidade de reconhecer o que o outro traz como legítima e singular necessidade de saúde. O escutar qualificado ofertado a família, como forma de garantir o acesso aos seus integrantes as tecnologias adequadas as situações de saúde. O diálogo como forma de possibilitar tomadas de decisões compromissadas com a autonomia e saúde das pessoas, e a própria integralidade, como princípio doutrinário do SUS, colocam na roda a dimensão política em torno do tema humanização. 15 À luz dos achados inaugura-se a primeira unidade conceitual que coloca em destaque a importância dos vínculos na relação enfermeiro-família como elemento fundamental na humanização e promoção da saúde. Tudo isso pode ser evidenciado, a seguir:
Vínculo enfermeiro-família na atenção primária: fundamentos humanísticos no campo da promoção da saúde
A busca por fundamentos que versam sobre o vínculo estabelecido entre o enfermeiro e a família convoca a pensar em aspectos humanísticos envolvidos na produção de cuidado na atenção primária. Nesse sentido, há que se considerar que a humanização nas práticas de cuidar promove uma maior satisfação das famílias e melhora os resultados de saúde. O estabelecimento de um vínculo entre o enfermeiro e a família também está associado à humanização do cuidado na atenção primária, sobretudo ao reconhecer as necessidades individuais e respeitar as particularidades culturais e sociais das famílias, demonstrando empatia e preocupação genuína pelo bem-estar dos indivíduos. 16,17
A criação de vínculos sólidos entre os enfermeiros e as famílias ao se configurar como uma prática assistencial não apenas encoraja uma maior participação das famílias no autocuidado, mas também promove um engajamento proativo na autogestão da saúde familiar. Quando as famílias se sentem conectadas e apoiadas pelos enfermeiros, elas tendem a assumir um papel mais ativo na identificação de suas necessidades de saúde, no estabelecimento de metas de autocuidado e na busca por recursos para alcançar esses objetivos. Destaca-se que a participação ativa das famílias está associada a melhores resultados de saúde e a uma maior eficácia das intervenções promocionais em saúde. 18,19
Além disso, a participação ativa das famílias no autocuidado mediada pelo vínculo com enfermeiro pode levar a uma maior responsabilização pelos próprios comportamentos de saúde e ao desenvolvimento de hábitos saudáveis aos integrantes que compõe a família. Ao fornecer informações relevantes e orientações personalizadas, os enfermeiros capacitam as famílias a tomarem decisões informadas sobre sua saúde e a adotar medidas preventivas de doenças e seus agravos. 20) A promoção da participação ativa das famílias no autocuidado não apenas melhora os resultados de saúde individuais, mas também contribui para uma cultura de saúde mais positiva e resiliente no âmbito familiar e coletivo.
Cabe, portanto, reforçar que a criação de vínculos entre enfermeiros e as famílias na atenção primária não só fortalece a integralidade no cuidado mediada pela confiança entre os envolvidos, mas também fortalece as famílias a assumirem um papel mais ativo e responsável em relação à sua saúde. 21) Ao promover uma abordagem colaborativa e centrada nas necessidades individuais das famílias, os enfermeiros podem ajudar a construir comunidades saudáveis e territórios sustentáveis, sobretudo quando ancoram em suas práticas o diálogo efetivo, a escuta qualificada, o acolhimento de necessidades singulares em saúde e a formação de laços subjetivos efetivos entre os serviços de saúde e o território onde as famílias vivem.
Diante dessas pontuações, pode-se considerar, a construção de um vínculo sólido entre enfermeiros e famílias como uma prática de cuidado fundamental para a promoção da saúde no contexto da atenção primária. Haja vista que estas ações contribuíram para estabelecer uma relação de confiança mútua, facilitando a troca de informações e o fornecimento de orientações em saúde resolutivas às famílias e emancipatórias as pessoas que as compõem.
Esse vínculo vai além da simples relação técnica entre profissional-paciente, sendo caracterizado pelo acolhimento de necessidades, humanização da assistência, confiança mútua e respeito pelas experiências e valores que circulam em cada família. O vínculo enfermeiro-família está associado a uma maior satisfação dos usuários, uma melhor adesão ao tratamento e resultados efetivos de saúde a longo prazo. 17
Um dos principais benefícios do vínculo enfermeiro-família é a criação de um ambiente de cuidado acolhedor e humanizado, onde as famílias se sentem escutadas, respeitadas e valorizadas como parceiras no processo de promoção da saúde. Isso é especialmente importante em contextos de atenção primária, onde as intervenções de saúde muitas vezes exigem uma abordagem holística e centrada nas famílias, considerando não apenas os aspectos físicos, mas também emocionais, sociais e espirituais do bem-estar humano em cada arranjo familiar. 16
Neste prisma, o vínculo enfermeiro-família emerge como uma contribuição prática para promoção da saúde na atenção primária, sobretudo ao considerar a troca de informações e a construção de conhecimentos em saúde de forma conjunta. Ao desenvolver relacionamentos próximos com as famílias, os enfermeiros estão em uma posição privilegiada para compreender suas necessidades, preocupações e aspirações de saúde, adaptando assim suas intervenções conforme as circunstâncias individuais e características de cada família. 18,21 Este nível de singularização e contextualização é essencial para o sucesso das intervenções de promoção da saúde e foi apresentado como elemento de destaque pelos enfermeiros atuantes na atenção primária.
Ademais, é preciso pensar o vínculo enfermeiro-família como uma unidade elementar para a promoção da saúde. Isso porque ele proporciona um espaço relacional de cuidado compassivo, facilita a educação em saúde pela potencialização das trocas de informações e promove uma abordagem singularizada das pessoas e das famílias. Investir no desenvolvimento e manutenção desses vínculos é essencial para fortalecer os sistemas de saúde, promover o bem-estar das comunidades atendidas e empoderar as famílias no controle da saúde. 22) Isso abre passagem para a inclusão de uma segunda unidade conceitual que convoca a busca de fundamentos sobre a educação em saúde nas práticas de cuidar que são realizadas pelos enfermeiros com as famílias. Tais proposições estão dispostas, a seguir:
Educação em saúde: fundamentos sobre o vínculo no empoderamento das famílias no controle da saúde na atenção primária
A educação em saúde ancorada no vínculo, pode ser compreendida como uma prática resolutiva no campo da promoção de mudanças de comportamento familiar e na adoção de hábitos saudáveis. Ao estabelecer uma relação de confiança e respeito mútuo, os enfermeiros podem se comunicar de forma mais eficaz com as famílias, entendendo suas aspirações, desejos valores e contextos específicos, o que permite o desenvolvimento de práticas de orientação em saúde personalizadas e adaptadas a realidade de cada família, aumentando assim a probabilidade de adesão e a eficácia das intervenções. 23
A educação em saúde baseada no vínculo promove uma maior compreensão e internalização das informações por parte das famílias. Na medida em que os diversificados arranjos familiares se sentem conectados e valorizados pelos enfermeiros, eles estão mais dispostos a participar ativamente do processo educativo, fazendo perguntas, compartilhando suas preocupações e aplicando as orientações recebidas em suas vidas diárias. 20
Além disso, a educação em saúde baseada no vínculo permite que os enfermeiros abordem questões sensíveis de maneira mais empática e respeitosa, criando um ambiente de abertura e confiança que facilita a discussão de tópicos como sexualidade, saúde mental e comportamentos de risco. Essa abordagem centrada no vínculo é especialmente eficaz para promover mudanças comportamentais sustentáveis e duradouras, uma vez que considera as necessidades emocionais e psicossociais das famílias. 18,22
Em suma, a educação em saúde baseada no vínculo enfermeiro-família é uma estratégia poderosa para promover a compreensão, a motivação e a capacitação das famílias na adoção de comportamentos saudáveis e na prevenção de doenças. Ao aprender, reconhecer e valorizar as experiências e perspectivas das famílias, os enfermeiros podem criar intervenções educativas mais relevantes, significativas e culturalmente sensíveis capazes de promover uma maior adesão e sustentabilidade das práticas de saúde recomendadas. 24
De forma ampliada, é importante ressaltar a relevância da construção de vínculos significativos entre os profissionais de saúde da ESF e as famílias. Isso porque as interações educativas afetivas criam espaços subjetivos seguros, inclusivos, dialógicos e integrais em que todos os envolvidos no processo de cuidar são valorizados. Diga-se que afetividade consciente, o interesse, a boa disposição, a empatia são variações pedagógicas do princípio do afeto que articula a cabeça com o coração, razão com o sentimento e cognição com afetividade, potencializando a educação em saúde e o por conseguinte o empoderamento familiar no controle da saúde. 25
Por fim, há que se considerar que este estudo inovador beneficia a prática de enfermeiros, sobretudo por abordar por meio da experiência diária a descoberta do vínculo enfermeiro-família como cuidado fundamental na atenção primária. Ao destacar a importância desse vínculo como um elemento crucial na promoção da saúde, o estudo oferece uma perspectiva renovada sobre o papel do enfermeiro no cuidado às famílias, sobretudo no plano da educação em saúde. Reconhece e na mesma medida valoriza o vínculo entre o enfermeiro e a família caracterizado pela criação de espaços promotores de um cuidado integral e centrado na família. 24,26) Assim, essa abordagem holística permite uma compreensão mais completa das necessidades familiares com vistas a atender os princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde.
Limitação de estudo
O presente estudo apresenta limitações que devem ser consideradas ao interpretar seus resultados. Inicialmente, não foi possível explorar todas as UBS’s de Boa Vista - Roraima, principalmente em virtude da recente reestruturação da atenção primária na região que implicou na contratação de novos enfermeiros e na necessidade de capacitação dos profissionais que deixaram seus postos de trabalho, fatores que influenciaram a disponibilidade e acessibilidade para participação na pesquisa. Ademais, houve um expressivo número de recusas por parte dos enfermeiros contatados, possivelmente decorrente de exigências adicionais ocasionadas pela mencionada reestruturação e por outras razões não identificadas.
Outro aspecto significativo reside no enfoque multidisciplinar do estudo, que não incluiu gestores, profissionais de saúde que compõem a equipe mínima da ESF e os usuários do SUS assistidos por eles. Isso demonstra uma perspectiva limitada sobre os processos de trabalho na atenção primária, cujo modo específico de saber-fazer dos enfermeiros não permitiu associar a gestão das ações de cuidado e implicar-se no coletivo das ações desenvolvidas no campo da promoção da saúde.
Tais lacunas no conhecimento científico ressaltam a necessidade de adotar, em estudos futuros, uma abordagem ampliada como forma de beneficiar a produção de dados subjetivos que qualifiquem práticas de cuidado singulares as famílias no campo da atenção primária. Para isso, recomenda-se a realização de estudos de campo orientados pelas pistas da cartografia, como forma de beneficiar a produção de subjetividade que considere as expressões de ordem “acolhimento”, “escuta qualificada”, “integralidade”, “humanização” e “diálogo” na relação de cuidado estabelecida entre profissionais de saúde, gestores e famílias no contexto da atenção primária.
Conclusão
Os enfermeiros da atenção primária desempenham um papel fundamental na promoção da saúde das famílias por meio de suas práticas de cuidado. A análise das práticas de cuidar protagonizadas por eles revela o vínculo sólido entre o enfermeiro e a família como uma ferramenta fundamental na promoção da saúde. Essa abordagem centrada na família não apenas fortalece a relação de confiança entre o profissional enfermeiro e os membros da família, mas também permite uma compreensão mais abrangente sobre a promoção da saúde, bem como as necessidades reais em contextos específicos de cada família no campo da atenção primária.
Ao reconhecer o vínculo enfermeiro-família como uma prática de cuidado essencial, este estudo destaca a importância de considerar não apenas os aspectos físicos, mas também os aspectos emocionais, sociais e culturais presentes no processo de cuidado em saúde. Essa abordagem holística e centrada na família pode contribuir significativamente para a promoção da saúde e prevenção de doenças, além de fortalecer os laços familiares e o apoio mútuo na comunidade.
Ademais, este estudo oferece insights valiosos sobre o papel dos enfermeiros da atenção primária no âmbito da promoção da saúde e destaca a necessidade de uma abordagem mais integral e centrada na família; principalmente quando reconhece o acolhimento, a escuta qualificada, a integralidade, a humanização, o diálogo e as relações humanas indispensáveis à produção do cuidado em saúde. Dessa forma, recomenda-se que os achados humanísticos no campo da promoção da saúde apresentados sejam analisados e praticados em outros contextos da atenção primária, sobretudo no íntimo encontro dos enfermeiros com as famílias durante as visitas domiciliares, na sistematização do cuidado familiar em consultas de enfermagem com seus integrantes, ou mesmo quando protagonizam atividades educativas em grupos de planejamento familiar.
Espera-se que esses resultados inspirem mais discussões e pesquisas na área, de tal modo a possibilitar o continuado avanço da prática de enfermagem e para a melhoria dos resultados de saúde das famílias atendidas na atenção primária. Além disso, acredita-se que os resultados fortalecem as discussões políticas sobre humanização na atenção primária, bem como convida a inclusão de conteúdos e atividades pedagógicas com caráter teórico-prático nos cursos de graduação e pós-graduação em ciências da saúde. Por fim, sugere-se que futuras pesquisas de natureza interventiva explore com especificidade as práticas de cuidado centradas na família no âmbito da atenção primária e avaliem seus impactos em termos de satisfação dos usuários e da família.