Introdução
No Brasil, o índice de cesáreas é considerado muito acima de qualquer parâmetro existente configurando uma “epidemia de cesáreas”. Dados atuais apontam para uma taxa de 53% de cesarianas sobre o total de partos no país, havendo distinção entre a taxa para os partos realizados no setor público (46%) em contraponto aos dos setores privados de saúde (88%) (ANS, 2008; Leal et al., 2014). A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a taxa ideal das mesmas seria de 15% dos partos no país (OMS, 2015) e mesmo reconhecendo que particularidades locais tornem difícil uma meta unificada, a entidade considera que há uma “verdadeira cultura” da cesárea no Brasil, Assim, a organização defende a necessidade de sua redução afirmando que este procedimento “pode causar complicações significativas, sequelas ou norte” nas mães e bebês (OMS, 2015).
A indicação de parto cesárea é um ponto forte de conflitos entre os médicos e as ativistas do parto humanizado. Inúmeros trabalhos buscam identificar as causas dessas taxas elevadas. As ativistas culpabilizam os médicos pela sua preferência por cesáreas sem uma verdadeira indicação clínica seja por melhor remuneração (Rattner, 1996) ou pela comodidade do procedimento em horários e dias marcados (Castro, 1999; Declercq, 2014). Nesse contexto elas referem o desrespeito à autonomia das mulheres, a não valorização de sua experiência e seus direitos de cidadã (Weidle, Medeiros, Grave e Dal Bosco, 2014) e a falta deliberada de informações sobre todos os procedimentos do parto (Tornquist, 2002, 2004; Carneiro, 2011). As ativistas defendem igualmente que os médicos devem respeitar a fisiologia feminina, não intervindo desnecessariamente, reconhecendo os processos sociais e culturais do parto e nascimento, dando suporte emocional à mulher e sua família e, sobretudo, decidir pelo parto cesárea somente diante de evidências científicas. Cientes dessas acusações, os médicos, por sua vez, acusam as ativistas do parto humanizado de basearem seus argumentos em ideologias políticas e defendem a autonomia do médico em decidir qual a via do parto de acordo com as evidências científicas. Observa-se nesse conflito um jogo de saber e poder pautados em categorias científicas (as evidências) e políticas (as ideologias).
Esse estudo visa problematizar os argumentos de representantes da entidade médica Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CREMERJ) e das ativistas do parto humanizado no que se refere às acusações dirigidas aos médicos pelas indicações de cesáreas desnecessárias com sérios prejuízos à saúde do binômio mãe-filho.
A metodologia baseou-se na observação participante de um evento protagonizado pelo CREMERJ. Foi realizado igualmente a análise de documentos e notícias publicados no site do mesmo e das declarações de seus membros à mídia.
O evento em questão foi denominado “Simpósio Parto e Aborto” aconteceu em 29 e 30 de março de 2019 na sede do CREMERJ. Esse simpósio foi um palco emblemático dessas disputas pois reuniu médicos de todo o país e deputadas federais.
Os eventos médicos são um espaço privilegiado para se avaliar representações em que os médicos interagem trocando informações sobre o seu cotidiano de trabalho, ressaltando suas habilidades e conhecimentos. Nesse raciocínio, Latour e Wolgar (1997) ressaltam que a produção da ciência deve comportar não só o entendimento das práticas realizadas nos laboratórios, como também os processos interacionais de interlocução das problemáticas onde os conhecimentos são transmitidos e atualizados entre os atores. Nesses contextos não somente aspectos técnicos estão envolvidos, como também representações de caráter simbólicos e sociais. Dessa forma, a observação desse evento tornou possível apreender as disputas inerentes aos campos científicos e políticos. Além disso vale o registro desse momento tendo em vista a configuração política que configurava no país naquele ano e para uma eventual comparação futura com o novo cenário nas políticas e direitos reprodutivos que vislumbramos no novo governo que tomou posse em 2023.
O CREMERJ como todos os conselhos regionais de medicina, é uma autarquia médica com o objetivo de promover a ética e regulamentar as ações médicas. Os conselhos regionais brasileiros são locais de elite médica com uma aura política e de cientificidade. Arvoram-se da missão de valorização da profissão e tem o poder de titular ou excluir médicos do exercício da mesma. Isso nos remete ao poder da classe médica como já referiu Freidson: “A origem do controle da Medicina sobre o seu próprio trabalho é, portanto, de caráter claramente político, envolvendo a ajuda do Estado no estabelecimento e na preservação da preeminência da profissão” (Freidson, 2009, p. 43).
A diretoria do conselho no momento do evento analisado foi eleita para o mandato de 2018 a 2023 e abarcou grande parte da gestão do governo de extrema direita do ex-presidente Jair Bolsonaro. Cabe destacar que a maioria dessa direção e conselheiros foram favoráveis ao seu governo. Da mesma forma, o golpe que destitui a presidente Dilma Rousseff, teve forte apoio das entidades médicas, dentre elas o CREMERJ, que conclamaram os médicos a se envolverem ao movimento pro-impeachment sob o slogan “corrupção faz mal à saúde”. Uma das acusações ao governo da Presidenta era suas atitudes arbitrárias relativas às decisões nas áreas da saúde sem conclamar os médicos para a discussão (Soares, Freitas, Teixeira e Paim, 2017).
A ascensão da direita ao poder reavivou as pautas neoconservadoras baseadas em valores religiosos que se opõem aos direitos à igualdade de gênero, à diversidade sexual e aos direitos reprodutivos. O combate ao aborto, por exemplo, foi uma bandeira importante do governo Bolsonaro e dessa gestão do CREMERJ.
As ativistas do parto humanizado, por sua vez, são um grupo heterogêneo de mulheres (em sua maioria) constituído de doulas, médicas, obstetrizes ou enfermeiras obstétricas, mulheres ativistas com cargo político ou de movimentos sociais voltados aos direitos reprodutivos. O seu propósito é a defesa do parto normal e da autonomia feminina para se transformarem em pacientes informadas e não serem levadas à cesárea por conveniência médica e para ter um parto respeitoso (Hugues e Heilborn, 2021).
As polarizações político-ideológicas brasileiras e suas influências nos embates científicos e morais sobre o parto
O golpe de 2016 no Brasil destituiu a primeira presidenta mulher eleita do país, Dilma Rouseff, sob a acusação de corrupção. Esse evento veio seguido de transformações neoliberais que diminuíram cada vez mais a responsabilidade do Estado no tratamento dos problemas sociais. Consequentemente houve uma redução de investimentos no setor público e o bem-estar da população foi delegado às organizações privadas. O desemprego e a pobreza aumentaram enormemente, os direitos sociais historicamente adquiridos foram perdidos e os sindicatos e os movimentos sociais se desmobilizaram (Bastos, 2017).
A mídia, alinhada fortemente com os interesses das elites, demonizou os movimentos e partidos de esquerda com pautas progressistas e defensoras dos direitos humanos. Desde então, o país vem atravessando um período onde as intolerâncias resultam em aversão às diferenças, às minorias e que se manifestam em discursos hostis. Souza (2018) procura interpretar esse fenômeno à luz dos valores essenciais ao regime democrático:
Esse caminho nos leva a pensar sobre a discursivização de relações antagônicas na sociedade brasileira atual, sobre a maneira dicotômica e hierarquizada de materializar as relações de força subjacentes a essas práticas discursivas. Pôr em questão o discurso de ódio diz respeito, sobretudo, aos limites dos direitos de liberdade de expressão; à forma como é engendrada a relação eu/outro; à forma como circulam em nossa sociedade os valores liberdade e igualdade. Diz respeito, portanto, a pensar sobre dignidade e direitos humanos (p. 930).
O fato é que as políticas públicas voltadas para as minorias nas últimas décadas geraram um sentimento de ameaça face a uma “hegemonia cultural esquerdista” e que representa um perigo às visões de mundo e modos de vida mais tradicionais devendo ser combatidas com “políticas de choque”. Nesse contexto as pautas progressistas são acusadas de “ideológicas”, sendo frequentemente associadas aos estados totalitários críticos intensos do capitalismo. Daí a acusação de “comunistas” aos defensores de pautas mais coletivas (Rocha, Solano e Medeiros, 2022).
Tais aspectos tiveram o seu apogeu após a eleição de Jair Bolsonaro que presidiu o país durante os anos de 2018 a 2023. Esse contexto repercutiu nas políticas e programas de saúde reprodutiva e sexual no Brasil, dando voz aos representantes da medicina como o CREMERJ, para invocar pautas mais conservadoras, como colocar em dúvida os benefícios do parto normal e as metas internacionais da Organização Mundial da Saúde para redução de cesarianas. Segundo eles uma “excessiva autonomia da mulher”, e de não médicos, no acompanhamento do parto e que seria prejudicial ao bebê, pois o conhecimento médico científico é que deve prevalecer no evento do nascimento.
A diretoria do CREMERJ questionava os argumentos das ativistas da humanização do parto sobretudo a defesa da redução de cesáreas. É o caso do conselheiro representante da área de ginecologia e obstetrícia e um dos principais representantes do Simpósio: Rafael Câmara. O mesmo assumiu em entrevista à BBC News Brasil que a nova diretoria “foi eleita assumidamente com uma pauta mais conservadora”. Segundo ele, “a maioria das pessoas é de direita. Então, ideologicamente, estamos mais para o lado do Bolsonaro”, afirma o médico, acrescentando ter votado e feito campanha por Bolsonaro (Alvim, 2019). O conselheiro se posiciona em diversos artigos publicados na mídia e em jornais do CREMERJ onde questiona a validade científica, o financiamento e o “conflito de interesse ideológico” que permeia debates sobre abortos e cesáreas e se manifesta abertamente contra o parto humanizado (Alvim, 2019, Constantino, 2014, Câmara, 2018). Igualmente ele declarou ser necessário “retirar todas as esquerdistas que estão na Saúde da Mulher do Ministério da Saúde há anos (Libertad, 2018). Ele também acusa profissionais de saúde de rivalizarem com os médicos no atendimento ao parto: “enfermeiras e doulas querem esse filão”, ilustrando mais uma vez as competições históricas de gênero em torno da medicalização do parto e do caráter corporativista da profissão médica.
Em contrapartida as ativistas que lutam pela humanização do parto reconhecem a importância da cesárea, mas argumentam que quando não é bem utilizada, ela põe em risco mães e bebês, matando ou deixando sequelas e acusam os médicos de serem contrários às pautas mais progressistas pois elas ameaçam o seu poder. Em relação ao CREMERJ, particularmente, houve forte crítica aos seus representantes baseada na sua aproximação dos mesmos com a família de Jair Bolsonaro e suas pautas conservadoras e autoritárias. Durante as últimas eleições presidenciais, por exemplo, a vice-presidente da entidade, fez uma foto junto a um dos filhos de Jair Bolsonaro com o gesto de “arma”, gesto que imita um revólver, e que foi emblemático de sua campanha presidencial. A foto circulou amplamente nas redes sociais e foi muito criticada por internautas e representantes de movimentos de direitos humanos pelo fato de uma médica compartilhar da ideia de adesão às armas e consequentemente do discurso de ódio e violência que a acompanha (Gois, 2018). A resposta da direção do CREMERJ quando interpelada sobre esse fato foi de “que as pessoas tem direito de votar em quem quiserem”. A postura “democrática” é ressaltada pela direção da entidade em muitos eventos, como no que analisarei abaixo. Vale destacar que o atual presidente enfatiza reiteradamente que essa é a primeira gestão “apartidária” e “não ideológica” do CREMERJ, em clara referência às gestões anteriores que “mostravam uma tendência à esquerda”.
O evento Simpósio Parto e Aborto: ajustando o foco
Conforme já destacado, o evento, promovido pelo CREMERJ, realizou-se na sede do mesmo nos dias 29 e 30 de março de 2019. O primeiro dia foi consagrado exclusivamente ao tema Parto e o segundo dia ao tema Aborto. Nesse artigo minhas reflexões voltar-se-ão exclusivamente ao parto e mais particularmente em torno das discussões relativas ao parto cesáreo.
Na plateia havia em torno de 40 pessoas, a grande maioria mulheres obstetras e jovens residentes de obstetrícia. Os expositores eram, na sua maioria, homens e suas palestras versaram principalmente sobre questões técnicas sobre parto e resoluções legais. Quanto às mulheres palestrantes, uma era médica pediatra e palestrou sobre a defesa da cesárea pelo bem-estar do Recém Nascido e uma residente em obstetrícia fez o relato de uma agressão que sofreu em um plantão. As outras mulheres foram uma procuradora geral que realizou uma exposição sobre “violência obstétrica” e duas deputadas federais que debateram sobre cesárea e parto humanizado.
As deputadas convidadas pelo CREMERJ são de partidos políticos opostos, uma de esquerda e a outra de direita. Essa escolha do CREMERJ foi explicada pelos seus diretores como proposital a fim de mostrar a “abertura da entidade às discussões democráticas”.
Uma das deputadas convidadas foi a deputada estadual de São Paulo do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), partido que se reivindica conservador culturalmente e liberal economicamente, alinhando-se aos ideais da direita e extrema-direita (Guedes, 2021). Janaína Paschoal, é conhecida por suas posturas e discursos ultraconservadores e foi convidada por sua posição em favor da cesárea. Sua palestra no evento foi intitulada “A obstinação pelo parto normal leva mulheres à norte”. O argumento da deputada foi que as mulheres de baixo poder aquisitivo e, que desejam realizar cesárea, não o conseguem no setor público. Segundo a mesma, as mulheres pobres têm que se conformar com o que preconiza a “saúde pública” motivada pelo “mantra da epidemia de cesárea”. De acordo com Janaína Paschoal essas mulheres também tem o direito do que chamamos no Brasil de “cesárea a pedido”, ou seja, a mulher poder escolher a sua via de parto com antecedência, no caso a cesárea, e negar esse direito às mulheres é violência: “são situações quase de tortura” e muitas delas e/ou os seus bebês vêm à óbito. A deputada assumiu que se embasou nos relatos que teve acesso como advogada durante a campanha do presidente Jair Bolsonaro e também em conversas com o conselheiro obstetra do CREMERJ, Raphael Câmara.
Por outro lado, o congresso contou com a presença da deputada de esquerda, Talíria Petrone, deputada federal do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) que defende o socialismo democrático, considerado um partido de esquerda ampla com pautas reformistas e revolucionárias (Oliveira, 2017). A deputada é militante das questões relacionadas ao combate da violência contra a mulher e dos direitos reprodutivos. Ela ministrou uma palestra intitulada “O parto normal como uma conquista social e a liberdade das mulheres”. O discurso da mesma foi claramente contra a cesárea sem indicações clínicas precisas acusando a banalização da mesma onde o parto é tratado como mercadoria. Segundo ela, o conhecimento médico não pode interferir nas escolhas da mulher em relação ao seu corpo, e, negar as informações à mesma é o elemento mais grave que temos nos espaços de saúde.
O debate que se seguiu foi acalorado com reações agressivas da plateia médica à deputada de esquerda, sendo necessária muitas vezes a intervenção dos organizadores para acalmar os ânimos. Essas duas posições antagônicas e polarizadas refletem os conflitos existentes no Brasil sobre a polaridade política que atravessa o país desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e que se reflete nas questões de gênero e nas intervenções sobre o corpo da mulher. O simpósio é emblemático desse aspecto pela sua representação da maioria dos palestrantes ser de mulheres defensoras do parto normal e de homens cesaristas. Esse fenômeno por sua vez reflete a relação de gênero presente na história da medicalização do parto em que eram as parteiras que realizavam o parto à domicílio e que foram perdendo espaço e legitimidade para os médicos homens realizarem partos hospitalares (Palharini e Figueirôa, 2018).
O evento foi significativo pela insistência de representes do CREMERJ e da deputada de direita, Janaína Paschoal, em relacionar o ativismo ao parto humanitário como “ideológico” pois estaria alinhado aos partidos de esquerda. A deputada de esquerda ao tentar desconstruir esse discurso de “político ideológico”, termina por reforçá-lo nessa fala:
Não entendo que seja algo ideológico, de esquerda ou de direita. É de direitos. Não podemos sair do contexto em que estamos. Temos uma polarização na qual existe uma linha política que nega e alija direitos; e outra que defende direitos conquistados historicamente
Sabemos que o termo ideologia tem vários significados e usos mas autores como Eagleton (1997) e Chauí (2001) nos mostram que há duas formas de compreensão do mesmo: a neutra e a crítica. A neutra é a que é expressa pelo senso comum em que o termo ideologia é assumido como as ideias, os pensamentos, as doutrinas e as visões de mundo que são orientadas por ações sociais e, principalmente, políticas. Já na concepção crítica, em que Marx e Engels são os principais representantes, ideologia é um sistema de ideias, seja o que legitima o poder da classe dominante (ideologia burguesa) ou o que expressa os interesses da classe dominada (ideologia proletária ou socialista). Ou seja, quando o discurso dos médicos acusa as ativistas de apoiarem-se somente em suas concepções políticas e quando a deputada de esquerda assume que as ativistas apoiam seus argumentos nos direitos das mulheres, podemos argumentar que ambos os polos, médicos e ativistas, sustentam e defendem suas ideologias.
Evidências científicas x ideologias: categorias em disputa
O principal argumento “científico” dos médicos do CREMERJ no simpósio em prol da cesárea diz respeito ao processo evolutivo. A fala do obstetra, Rafael Câmara, foi o ponto alto do evento nesse sentido. Sua palestra foi embasada em um artigo de sua autoria e colegas publicado em 2011 nos Arch Gynecol Obstet intitulado “The history of vaginal birth” (Câmara, Bergqvist, Soares e Filho, 2011). O resumo do artigo ilustra a posição dos autores:
O parto vaginal, tal como é conhecido hoje, é um produto ainda inacabado originado há centenas de milhões de anos, muito antes de os mamíferos evoluírem em terra. Neste artigo, discutiremos a maneira como nossos ancestrais diretos nasceram ao longo dos tempos até a presente data, enfocando os fatores que apresentaram mudanças substanciais na forma como o nascimento ocorreu (p. 1, minha tradução).
Uma das imagens do artigo foi apresentada no Simpósio e compara pelves de fêmeas primatas com a da mulher ocidental moderna (Figura 1). A exposição segue o argumento do artigo mostrando que a evolução das espécies originou um estreitamento do canal de nascimento nas mulheres na era pós-industrial.
Dessa forma, o artigo sustenta que as mulheres modernas podem enfrentar maiores dificuldades no trabalho de parto pelo estreitamento de suas bacias pélvicas e assim é justificado o emprego de procedimentos mais eficazes para dar à luz, leiam-se, cesáreas. Essa justificativa, que está sujeita a poderosas demandas competitivas da reprodução e da locomoção, é amplamente aceita na literatura biomédica. De acordo com esse raciocínio, em virtude do fenômeno bípede associado à postura ereta e mais tarde às mudanças alimentares, houve transformações evolutivas que alteraram as dimensões da pelve das mulheres (Rosenberg, 1992, 1995; Wittman e Wall, 2007).
O fato é que tais ideias evolucionistas ainda apresentam uma boa inserção nas ciências biológicas sofrendo críticas mais na área das ciências humanas (Waizbort e Luz, 2017). Dessa forma esse argumento foi fortemente usado como uma evidência científica incontestável justificando a medicalização crescente do parto durante o simpósio. É importante também refletir sobre como o determinismo biológico revestido de uma aura científica sempre serviu aos interesses relacionados ao poder, como é exaustivamente explorado por Stephen J. Gould (1991):
A ciência tem raízes na interpretação criativa. Os números sugerem, limitam e refutam, mas, por si sós, não especificam o conteúdo das teorias científicas. Estas são construídas sobre a base da interpretação desses números, e os que os interpretam são com frequência aprisionados pela sua própria retórica. Estão convencidos de sua própria objetividade, e são incapazes de discernir o preconceito que os leva a escolher uma das muitas interpretações que seus números admitem (p. 66).
O simpósio seguiu com os representantes da entidade acusando as defensoras do parto humanizado de seguirem uma corrente “ideológica” e que não cumpre os cânones científicos. Esses argumentos, sobretudo os posicionamentos mais enfáticos do conselheiro Rafael Câmara, muitos deles reproduzidos de suas entrevistas na mídia como o intitulado “O conflito de interesse ideológico na ciência” (Câmara, 2018) foram aclamados pela maioria do público médico.
Uma das falas do conselheiro, durante o evento, ressaltou outras “evidências científicas” e que não há indicação de via de parto “mais segura”:
É obrigação do obstetra estar atualizado sobre as melhores evidências médicas. A episiotomia é recomendada em casos selecionados. A cesariana tem diversas indicações relativas e absolutas e Guideline de 2019 do American College of Obstetricians and Ginecologists (ACOG) mostrou que no atual nível de conhecimento não se pode dizer que haja uma via de parto mais segura. É desprovido de evidência científica ser dito que o parto vaginal é melhor que a cesariana em situações que não haja indicação de cesariana: acima de 39 semanas.
Uma revisão de literatura, cuja primeira autora é médica ginecologista e obstetra conhecida ativista do parto humanizado, Melania Ramos Amorin, buscou as indicações de cesáreas baseando-se nos ensaios públicos randomizados e nas diretrizes das sociedades médicas internacionais como National Institute for Clinical Excellence, American College Obstetricians and Gynecologists (ACOG) e Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada. Foram enumeradas as seguintes situações em que a cesária tem indicação segundo as evidências científicas: distocia ou falha na progressão do parto, desproporção cefalopélvica, má posição fetal nas variedades de posição posteriores e transversas persistentes, apresentação pélvica, de face e córmica, cesárea anterior, frequência cardíaca fetal não-tranquilizadora, presença de mecônio e centralização fetal (Amorin, Souza e Porto, 2010). A mesma autora possui um blog com a finalidade de divulgação das evidências científicas e uma das postagens foi dedicada às “indicações reais e fictícias de cesarianas”. Cabe ressaltar que “bacia estreita” é apontada por Amorin como “desculpas referidas pelas gestantes e/ou utilizadas pelos profissionais para indicar uma “DESNEcesárea” mostrando assim uma posição contrária à do artigo de Raphael Câmara referida acima (Amorim, 2021).
No entanto, observa-se que tanto os autores que defendem as cesáreas mais abertamente (Câmara et al., 2016; Yeniel e Petri, 2014) como outros que são mais restritos às suas indicações (Amorim, Souza e Porto, 2010), ressaltam que não existem indicações absolutas de cesariana, ou seja, em todas essas situações podem ser tentadas alternativas e que a vontade da mulher deve ser respeitada. Isso nos mostra uma certa relatividade nessas posições e que as “evidências científicas” podem ser interpretadas segundo as subjetividades, valores e posições políticas. Melhor dizendo, as interpretações das evidências científicas igualmente podem ser ideológicas.
Quanto às deputadas convidadas, as duas apresentaram as suas posições condizentes com os seus alinhamentos políticos. Janaína Paschoal defendeu o incentivo de cesáreas com a justificativa de que mulheres da rede pública querem realizá-la e não conseguem por causa de uma “obstinação pelo parto normal”. Sua fala foi contestada somente por uma médica da plateia, ativista do parto humanizado, com o argumento que se as mulheres tivessem tanta dificuldade de realizar cesárea, não haveria tantas cesáreas sem necessidade sendo realizadas no país. Essa fala contestatória, assim como qualquer referência sobre os índices elevados desse procedimento no país, não teve nenhuma reação da plateia adepta.
Por outro lado, a fala da deputada de esquerda, pautada pela defesa do parto humanizado, condenando a excessiva medicalização do parto, obteve reações violentas. Uma frase em particular, proferida pela deputada, “Mulheres sabem parir e crianças sabem nascer”, que insinua que o médico seria um mero coadjuvante do processo de nascimento, causou reações acaloradas e agressivas tanto da plateia como das exposições que se seguiram que a acusaram de uma “postura ideológica”. Outros palestrantes retomaram essa questão trazendo “evidências científicas” de como os médicos são necessários no evento do parto reforçando a ideia das modificações pelas quais vêm passando a fisiologia feminina com o processo evolutivo e que o parto é um evento imprevisível. Uma médica, membro do conselho do CREMERJ, enfatizou que o parto seguro só pode ser aquele assistido pelos médicos onde há equipe integrada e atualizada e recursos materiais e humanos disponíveis. Já o parto “aventura” (referindo-se ao humanizado) seria aquele onde os pais estão desconfiados com tantas informações divergentes, com protocolos e recomendações médicas desprezados e questionados numa ambiência “alternativa e ideológica”.
O fato é que desde que o parto passou das mãos de parteiras aos médicos, ele foi redefinido pela biomedicina como um evento medicalizável, com a promessa da ciência obstétrica de prever e minimizar seus riscos. Um grande corpus de literatura feminista tem criticado a área biomédica com o argumento que isso enfraquece as parturientes e transforma um evento natural em evento patológico (Diniz, 2005; Davis, 2006; Leão, Riesco, Schneck e Angelo, 2013; Nakano, Bonan e Teixeira, 2015, por exemplo). No entanto, a linguagem biomédica de risco dentro de um modelo “técnico-científico” enfatizando o conhecimento baseado em evidências é dominante. Nesse sentido, para minimizar o risco, o parto deve, portanto, ser gerenciado por especialistas, constantemente monitorado e sujeito a uma série de investigações para detectar disfunções e anomalias (Davis-Floyd e Sargent, 1997).
Para as ativistas, o parto humanizado é uma resistência a esse modelo. Nas suas concepções, o corpo da mulher não pode ser objeto de uma tecnologia médica. Elas defendem uma abordagem alternativa para o nascimento onde a parturiente é o centro do processo. Isso contrasta fortemente com um modelo tecnocrático em que a parturiente e seu corpo são tomados como objetos do especialista médico. Porém, essa abordagem coexiste com o discurso do risco biomédico, uma vez que o parto humanizado assume igualmente tecnologias medicalizadas e de vigilância (Rattner, 2009). Respaldadas em evidências científicas, as ativistas buscam também legitimar seus discursos em prol da mudança nas práticas (Diniz, 2005).
Por outro lado, a literatura tem mostrado que o argumento biomédico de “risco” para a elevada incidência de cesáreas no Brasil não condiz com a realidade de sua clientela: mulheres de classe média, com melhor assistência pré-natal, bom estado de saúde e de nutrição. Os cesaristas presentes no simpósio referem que isso se deve à “cesárea a pedido”, ou seja, a cesárea realizada por indicação da gestante sem nenhuma indicação médica (Câmara et al., 2016). Tal fenômeno é defendido como legítimo pelos presentes pois a autonomia das mulheres deve ser respeitada. Uma médica da plateia questionou: “quando a autonomia da mulher deve ser respeitada? Quando vai ao encontro da opinião médica somente? E quando não é, não é levado em conta?” Essa fala deu-se pela exposição reiterada do médico conselheiro referindo-se à Resolução CREMERJ 293/2019 que dispõe sobre a proibição de adesão dos médicos a quaisquer documentos, dentre eles o plano de parto (documento feito pela gestante em que ela registra tudo o que deseja da assistência médica e hospitalar durante o seu parto) ou similares, “que restrinjam a autonomia médica na adoção de medidas de salvaguarda do bem estar e da saúde para o binômio materno-fetal” (CREMERJ, 2019). Ou seja, a autonomia da mulher é relativizada em função da autonomia do médico. Isso se coaduna com a disputa de poder na monopolização do parto, processo bastante referido nos estudos sobre medicalização do parto (Palharini e Figueiroa, 2018).
Além dos fatores cujos médicos são acusados pelo excesso de cesárea já descritos nesse estudo, como a comodidade e a remuneração médica, outros autores apontam igualmente o medo dos processos judiciais em caso de problemas no parto com a mãe e o bebê, redução do estresse de esperar longas horas para o parto normal e sobretudo, o controle total sobre o processo:
É inquestionável que os médicos tenham que lidar com uma ambiguidade: administram um processo fisiológico que, na maioria dos casos, eles mesmos reconhecem, acabaria bem, independente de sua presença. O recurso ao conceito de risco, justifica a presença do médico na assistência ao parto, mas também condiciona sua conduta, favorecendo a intervenção (Chacham, Maia e Camargo, 2012, p. 434).
Freidson (2009) diz que a prática médica é feita de incertezas e que os médicos fazem de tudo para afastá-las de seus procedimentos. De fato, tudo indica que os médicos desejam o controle nas suas ações diagnósticas e terapêuticas. Foi com esse objetivo que foi inaugurado no Canadá em 1980 o movimento médico Medicina Baseada em Evidências. As evidências seriam provas científicas fundamentadas na experimentação. Dessa forma, os médicos devem se orientar para o uso da melhor evidência atualizada para a tomada de decisões (El Dib, 2007). Já para Uchôa e Camargo (2010) a Medicina Baseada em Evidências é passível de críticas. Usando o estudo de Fleck (2010) como ponto de partida que refere como os fatos são coletivamente construídos de acordo com um estilo de pensamento, os autores argumentam:
Optamos pela hipótese que a suposta adesão à transmutação da dimensão “arte” da prática médica ―reconhecimento e valorização da experiência individual do médico― à científica (validação lógica formal do saber médico) não se dá como decorrência “natural” do progresso tecnocientífico cumulativo e linear, mas como opção da categoria de, ao mesmo tempo, diminuir o grau de incerteza de suas escolhas e reafirmar sua autonomia e status social. Partimos do pressuposto que as decisões e julgamentos dos médicos em interação com os demais “mundos sociais” que determinam, sustentam e desenvolvem seu “estilo de pensamento” determinam também o que é considerado conhecimento válido: o fato científico (Uchôa e Camargo, 2010, p. 2241).
Assim, de acordo com os autores, as evidências seriam para os médicos mais uma forma de normatização das vivências de saúde, adoecer e viver.
Outros campos de conhecimento, como a filosofia da ciência, também se dedicaram a defender que a ciência não é neutra e isenta de valores e que apresenta julgamentos de ordem política, econômica e até moral. Já dizia Kuhn (2006) que a ciência é um fenômeno histórico e só pode ser compreendida na sua dimensão histórica. Ou seja, deve-se considerar os aspectos tanto históricos, sociológicos e psicológicos na análise da prática científica, como também uma certa subjetividade e até mesmo “irracionalidade” que acaba por ter um papel decisivo na imposição de determinadas teorias em detrimento das outras. Enfim, a ciência só é ciência cercada pela margem da incerteza, da dúvida. Ainda que acumulativo, o conhecimento científico é sempre provisório e relativo. Não obstante, ele também é formado por valores, subjetividades e contexto sociopolítico e assim também é influenciado por fatores ideológicos.
Dessa forma, observamos que “evidências científicas” e “ideologias” são categorias em disputa por ativistas do parto humanizado e médicos obstetras em busca de legitimidade dos seus discursos e práticas. Nesse sentido, esse trabalho assume que as questões ligadas à medicalização do parto, tendo a cesárea como a principal protagonista, trazem à tona questões tanto científicas como políticas.
Considerações Finais
Entidades, como o CREMERJ, espelham o pensamento da categoria médica como também tem o poder de influenciá-la. Quando médicos utilizam seu poder ao estabelecer condições e limites para os seus procedimentos e para o ensino, estamos em face da ideologização das práticas e do conhecimento. Mesmo com o pretexto de combater ideologias onde elas não devam interferir, esses médicos acabam por agir e pensar sob premissas ideológicas, tornando-se assim eles mesmos, alvos do que combatem.
O trabalho científico, igualmente, é limitado pelas ideologias não científicas dos cientistas. Por exemplo, em nome da religião que eventualmente professe, um cientista pode cercear-se na pesquisa, suprimindo temas e problemas de investigação que contrariem suas convicções religiosas. Ou, em nome de determinada opção político-partidária, médicos e cientistas podem fazer interpretações que vão de encontro às evidências médicas. Assim, toda a prática médica é também limitada também por ideologias não científicas.
Do ponto de vista antropológico, os dados aqui apresentados buscaram um exercício de compreensão das posições de médicos face à acusação de serem os principais responsáveis pela “epidemia de cesáreas” no Brasil. Em sua defesa eles respaldam-se em “evidências científicas” sustentando que o parto é um evento totalmente medicalizável enquanto que profissionais não médicos como as parteiras e enfermeiras obstétricas respaldam suas técnicas por “ideologias”. No entanto, como foi demonstrado nesse trabalho, podemos observar que a excessiva medicalização do parto vai além das razões científicas respaldada também por “ideologias” de forte cunho conservador e alinhados de acordo com uma política de negação dos direitos civis.
As ativistas do movimento do parto humanizado, por sua vez, argumentam que a cesárea é uma cirurgia salvadora em caso de risco para a mãe ou bebê, porém também há evidências científicas sugerindo que a cesariana pré-agendada e sem indicação clínica causa três vezes mais mortes maternas do que o parto normal (Mascarello, Horta e Silveira, 2017), além de aumentar o risco de prematuridade e morte neonatal (Chang et al., 2013). Porém, o fato de que grande parte das cesáreas são praticadas em mulheres de baixo risco e com maior poder aquisitivo, reforça a ideia das ativistas do parto humanizado que fatores não clínicos influenciam essa escolha (Potter, Hopkins, Faúndes e Perpétuo, 2008; Freitas, Sakae e Jacomino, 2008). Essas ativistas embasam-se na literatura clínica e epidemiológica para afirmar que a relação das mortes maternas após cesarianas em países de baixa e média renda como o Brasil, são 100 vezes mais altas do que em países de alta renda, com até um terço de todos os bebês morrendo, segundo dados baseados em 12 milhões de gestações (Sobhy et al., 2019). Ou seja, ativistas do parto humanizado buscam constantemente argumentos científicos para legitimar suas convicções. Portanto, mesmo que a “ideología” dos seus discursos seja incontestável, nas lutas pelo parto humanizado, as ativistas utilizam argumentos científicos para acusar os médicos de práticas ideológicas em relação às suas “preferencias” pela cesárea. Observamos aqui que as “evidências científicas” passam a ser um argumento de defesa e que “ideología” é uma categoria de acusação entre os dois polos.
Esse artigo buscou evidenciar interpretações por parte tanto dos médicos quanto das ativistas. Foi destacado o contexto político vigente no momento do evento analisado e que teve forte influência nas posturas médicas e de ativistas. Caberá uma análise comparativa daqui a alguns anos diante da posse de um novo governo que tem na sua agenda a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos e de como isso influenciará nas tomadas de decisões e mudanças de perfil epidemiológico das escolhas das vias de parto.
Não foi intenção questionar os argumentos científicos defendidos por ambos os polos, mas sim problematizar as questões trazidas pelo campo de pesquisa. No exercício de relativização dos dois polos, uma das principais conclusões que esse estudo assume é que para os médicos a preferência pela cesárea, além dos aspectos já levantados em outros estudos como os econômicos e o conforto dos procedimentos agendados, dá-se sobretudo pela premissa do total controle do evento do parto, diminuindo assim as incertezas relacionadas à imprevisibilidade dos acontecimentos que o cercam. Essa premissa vem respaldada pela cientificidade acerca da dificuldade das mulheres modernas parirem de forma espontânea. As ativistas do parto humanizado, por sua vez, defendem uma autonomia absoluta das mulheres sobre o seu parto, podendo inclusive, através de um documento chamado “plano de parto” decidir sobre todos os procedimentos que envolverão o mesmo, incluindo realização ou não de episiotomia, anestesia, posição do parto e parto domiciliar. Pode-se inferir que alguns excessos diante de planos de parto coibindo qualquer tipo de medicalização, podem dificultar decisões necessárias na defesa da vida da mãe e do bebê face aos riscos inesperados no intercurso do parto.
Assim, o grande desafio é a necessidade de uma maior aproximação entre médicos e ativistas do parto humanizado, sem preconceitos e rechaços de ambas as partes de forma a garantir a qualidade da assistência obstétrica. Para a humanização do parto, é necessária uma melhoria das relações entre os profissionais de saúde e as usuárias dos serviços. Há necessidade igualmente de transformações significativas da formação de novos obstetras em relação à valorização de novos saberes e práticas; aquisição de uma postura mais dialógica e horizontal da equipe com as pacientes; rediscussão do modelo excessivamente biológico da medicina e adoção de maior responsabilidade política dos gestores visando o aperfeiçoamento de técnicas menos invasivas.