Introdução
A família consiste no primeiro nicho social do qual a criança participa, com quem ela aprende regras, modos de se relacionar com os outros e formas de resolução de conflitos (Feldman, Masalha, & Derdikman-Eiron, 2010). Os conflitos fazem parte das relações humanas (Straus, Hamby, Boney-McCoy, & Sugarman, 1996), e o sistema familiar costuma ser um contexto propício para a emergência de brigas e desentendimentos, em virtude das discordâncias cotidianas que inevitavelmente ocorrem entre seus membros (Goeke-Morey, Cummings, Harold, & Shelton, 2003). As interações conjugais conflitivas entre o subsistema conjugal (casal) podem ser positivas ou negativas para o subsistema parental (pais-criança) e para o desenvolvimento infantil, dependendo da maneira como essas são manejadas e de seu desfecho (Bergman, Cummings, & Warmuth, 2016).
Conflitos, do ponto de vista das suas repercussões para os membros da família, podem ser classificados em duas dimensões: destrutivos e construtivos (Bergman et al., 2016; Goeke-Morey et al., 2003). Conflitos conjugais destrutivos incluem táticas que envolvem agressão ou violência (com ou sem uso de objetos), hostilidade verbal e não verbal (expressar irritação ou insatisfação através de gestos), retirada abrupta da cena de conflito, deixando o cônjuge sozinho e sem resolver a desavença, ameaças à integridade da família e conflitos sobre temas relacionados à criança. Conflitos conjugais construtivos compreendem táticas de resolução de conflitos bem-sucedidas, permeadas por comprometimento, suporte emocional, afeto físico e verbal, pedido de desculpas e uso de humor na resolução das interações conflitivas (Bergman et al., 2016; Coln, Jordan, & Mercer, 2013; Goeke-Morey et al., 2003).
A criança, por meio de observação, convivência e interação, aprende com seus genitores táticas de resolução de conflitos (Feldman et al., 2010). Dependendo de como o conflito conjugal se expressa e é manejado pelo casal, este terá efeitos diferentes sobre as crianças, podendo ser benéfico ou deletério para o seu desenvolvimento (Bergman et al., 2016). Quando os pais1 lidam com conflitos de maneira positiva, exibindo comportamentos permeados pela expressão de afeto verbal e físico, resolução de problemas e apoio, o conflito é visto como construtivo e promove a segurança emocional da criança (Goeke-Morey et al., 2003). Por outro lado, conflitos que envolvem hostilidade, raiva e táticas de agressão física e verbal, com uso de ameaças e insultos, são descritos como destrutivos, podendo causar angústia e afetar negativamente o funcionamento psicológico da criança (Goeke-Morey et al., 2003). Além disso, as táticas que os pais utilizam para solucionar seus conflitos conjugais influenciam diretamente na maneira como a criança resolverá seus conflitos com seus pais, irmãos e pares, pois servem como modelos de funcionamento social (Gerard, Krishnakumar, & Buehler, 2006) e estão ligadas às formas pelas quais ela negociará desavenças com relacionamentos íntimos, ao longo da vida (Hare, Miga, & Allen, 2009).
Uma das maneiras de se compreender essa relação entre as táticas de resolução de conflitos conjugais e parentais pode ser através do conceito teórico do efeito spillover2, o qual propõe que a relação conjugal percebida como positiva e de qualidade pode ser associada à relação pais-filhos3 positiva e de qualidade, enquanto a relação conjugal negativa pode ser associada ao relacionamento negativo entre pais-crianças (Erel & Burman, 1995). Assim, conflitos entre o casal tendem a transbordar, visto que as práticas utilizadas pelos cônjuges no trato com a prole são influenciadas pela vivência da conjugalidade, podendo resultar em disfunção nas interações pais-filhos (Hameister, Barbosa, & Wagner, 2015).
Esse extravasamento do clima conjugal tenso para a relação parental pode desencadear, por exemplo, o uso de práticas parentais negativas e, consequentemete, levar a problemas de comportamento internalizado, tais como culpa e depressão, e externalizado, como agressividade na criança (Coln et al., 2013; Hameister et al., 2015). Práticas parentais negativas podem englobar disciplina punitiva ou inconsistente, desengajamento ou baixo monitoramento parental, negligência, castigos corporais e interações negativas ou destrutivas entre pais e filhos (Coln et al., 2013; Gerard et al., 2006; Schmidt, Staudt, & Wagner, 2016). Cabe ressaltar que o conflito conjugal tem uma influência estável na performance parental, aumentando a probabilidade de tentativas de controle coercitivo e de contenção nas interações com a criança (Gerard et al., 2006).
No que se refere a interações conflitivas conjugais e parentais, estudos apontam para a associação entre hostilidade e/ou violência na relação de casal e uso de táticas de disciplina severa com a criança, incluindo agressão psicológica e punição corporal (Bhona, Gebarab, Noto, Vieira, & Lourenço, 2014; Gerard et al., 2006; Liu & Wang, 2015; Reichenheim, Dias, & Moraes, 2006). Táticas destrutivas conjugais também estão ligadas à disciplina inconsistente praticada pela mãe e pelo pai, caracterizada, por exemplo, por condutas parentais incongruentes, tais como ameaçar e não punir ou liberar a criança do castigo, antes do tempo predeterminado (McCoy, George, Cummings, & Davies, 2013). De modo geral, o uso de táticas destrutivas na resolução dos conflitos conjugais, permeadas por hostilidade, agressões ou evitação, está relacionado às piores práticas parentais e ao comprometimento do desenvolvimento infantil pleno (Coln et al., 2013; Hameister et al., 2015; Marchand-Reilly, 2015).
Em situação de conflito com a criança, a punição corporal, especificamente, é usada em diferentes países como prática parental com a justificativa de ser um ato disciplinatório (Gershoff et al., 2010; Runyan et al., 2010). No Brasil, particularmente, aponta-se para o predomínio de práticas parentais positivas na faixa etária de 24 a 72 meses, sendo as práticas negativas, principalmente as que envolvem coerção, usadas como último recurso em situações de maior conflito com a criança (Marin, Piccinini, & Tudge, 2011). Entretanto, o uso de práticas negativas como agressões psicológicas e físicas também parece comum na criação de crianças brasileiras (Peruhype, Halboth, & Alves, 2011; Rocha & Moraes, 2011; Runyan et al., 2010), com diferenças dependendo de níveis socioeconômicos, sendo que táticas mais punitivas e coercitivas estão associadas a famílias provenientes das camadas mais pobres da população (Carmo & Alvarenga, 2012; Marin, Piccinini, Gonçalves, & Tudge, 2012).
A literatura internacional apresenta, de forma consistente, a associação entre conflito conjugal e consequências diretas e indiretas à criança, tais como dificuldades comportamentais, emocionais e de ajustamento social (Coln et al., 2013; Feldman et al., 2010; Gerard et al., 2006; McCoy et al., 2013; Tavassolie, Dudding, Madigan, Thorvardarson, & Winsler, 2016). Entretanto, no Brasil, os estudos que apresentam essa associação ainda são escassos, bem como os que buscam ampliar o conhecimento das variáveis envolvidas na complexa dinâmica do efeito spillover na família (Hameister et al., 2015). Desse modo, constata-se que investigar a relação entre táticas de resolução de conflitos entre os subsistemas conjugal e parental parece ser necessário na literatura nacional (Bhona et al., 2014; Reichenheim et al., 2006), em particular, levando-se em conta estudos que contemplem relatos de mulheres e de homens a esse respeito (Bhona et al., 2014).
Logo, considerando a reverberação das interações conjugais nas práticas parentais, hipotetiza-se que as táticas de resolução de conflitos utilizadas por casais estão associadas às táticas de resolução de conflitos utilizadas pelos pais com a criança. Assim, o objetivo do presente estudo é investigar a relação entre táticas de resolução de conflitos conjugais e parentais, reportadas por mães e pais, em famílias com crianças de 4 a 6 anos.
Materiais e Métodos
Participantes
O estudo contou com uma amostra comunitária (não clínica), de conveniência, composta por 300 participantes (150 mulheres e 150 homens), provenientes do sul do Brasil, os quais formavam casais heteroafetivos. Foram incluídos casais cuja união ocorreu de maneira formal (por meio do casamento civil e/ou religioso) ou informal (mediante o que se denomina juridicamente no Brasil por “união estável”), e que tivessem pelo menos um filho, biológico ou não, com idade entre 4 e 6 anos (criança focal, sobre a qual os pais responderam os questionários). Para serem incluídos na amostra, os casais deveriam estar residindo no mesmo domicílio por um período mínimo de seis meses.
A maioria dos casais participantes (92%) constituía família nuclear composta por pais biológicos de todos os filhos. Das crianças focais, 80 eram meninas (53.3%) e 70 eram meninos (46.7%). A média de idade da mãe foi 33 anos (DP = 6.31) e a do pai foi de 36 anos (DP = 7.70). A média de escolaridade feminina foi de 12 anos (DP = 4.19) enquanto que a masculina foi de 11 anos (DP = 4.38). A renda mensal média das mulheres foi R$ 1.260.35 (DP = 1.129.28) e dos homens foi R$ 2.091.00 (DP = 1.628.14). A renda familiar média foi de R$ 3.185.54 (DP = 2.027.13). No que se refere à carga horária de trabalho, a maior parte das mulheres (59.3%) e dos homens (85.3%) relatou exercer atividades laborais de 20 a 40 horas semanais (h/s). O tempo médio de união conjugal foi de 11 anos (DP = 5.37).
Instrumentos
Para investigar aspectos como local e tipo de residência, idades, composição familiar, escolaridade, profissão, renda e carga horária de trabalho dos pais, aplicou-se o Questionário Sociodemográfico. Esse instrumento foi elaborado para o projeto A transmissão intergeracional da violência: a relação do conflito conjugal e parental com a agressividade entre pares de crianças de 4 a 6 anos de idade (TIV), do qual faz parte o presente estudo.
As táticas de resolução de conflito foram acessadas por meio de dois instrumentos: o Revised Conflict Tactics Scales - CTS2 (Straus et al., 1996) e o Parent-Child Conflict Tactics Scales - CTSPC (Straus, Hamby, Finkelhor, Moore, & Runyan, 1998), ambos adaptados transculturalmente para o português (Moraes, Hasselmann, & Reichenheim, 2002; Reichenheim & Moraes, 2003). Os dois questionários se configuram como escalas do tipo likert, de oito pontos, que investigam a frequência com que determinada tática de resolução de conflito foi utilizada, ao longo do último ano. As opções de resposta vão de 1 (uma vez durante o último ano) a 6 (mais de 20 vezes ao longo do último ano). O respondente também pode escolher a resposta 0 (isso nunca aconteceu) ou 7 (não no último ano, mas isso já aconteceu antes).
No que diz respeito ao CTS2, foram utilizadas as escalas Negociação, Agressão Psicológica e Violência Física, as quais, no presente estudo obtiveram, respectivamente, alfas de Cronbach de .82, .71 e .74 para as mulheres (mães) e .80, .64 e .73, para os homens (pais). A Negociação envolve a discussão para tentativa de resolução de um problema ou situação de discordância entre o casal, priorizando o diálogo. A Agressão Psicológica abarca ações praticadas para ofender, ferir a identidade ou a autoestima do cônjuge. A Violência Física engloba situações nas quais um dos membros do casal causa ou tenta causar dano ao outro, por meio de força física ou ao utilizar algum tipo de instrumento que possa machucar ou causar lesões.
Para a presente pesquisa, por não serem passíveis de parametrização, as escalas do instrumento foram dicotomizadas. Desse modo, os participantes foram separados por sexo e divididos em grupos, conforme a frequência de ocorrência de cada tática, da seguinte forma: a) Baixa Negociação (ocorreu de zero a cinco vezes, durante o último ano) e Alta Negociação (ocorreu de seis a mais de vinte vezes, durante o último ano); b) Baixa Agressão Psicológica (ocorreu de zero a cinco vezes, durante o último ano) e Alta Agressão Psicológica (ocorreu de seis a mais de vinte vezes, durante o último ano); e c) Ausência de Violência Física (nunca ocorreu) e Presença de Violência Física (ocorreu de uma a mais de vinte vezes, durante o último ano).
Com relação ao CTSPC, é composto pelas escalas Disciplina Não Violenta, Agressão Psicológica e Violência Física, sendo a última subdividida em três, cada uma abrangendo atos de distintas gravidades, quais sejam Punição Corporal, Maus-tratos físicos e Maus-tratos físicos graves. Para a presente pesquisa, utilizaram-se as seguintes escalas: a) Disciplina Não Violenta: práticas disciplinares que envolvem explicações, deixar a criança em um cômodo temporariamente, privações de privilégios e substituição de atividades; b) Agressão Psicológica: atitudes como falar alto, berrar, gritar, xingar, rogar praga, ameaçar, dizer que vai expulsar a criança de casa ou chamá-la com expressões depreciativas; e c) Punição Corporal: atitudes tais como sacudir, dar tapas no rosto e em diversas partes do corpo da criança, beliscões e palmadas no bumbum com ou sem uso de objetos. Por não obedecer à distribuição normal, houve necessidade de transfomar a escala Punição Corporal através de um cálculo de logaritmo de base 104 - log 10 (x+1). Nesse estudo, os alfas de Cronbach foram, respectivamente, .71, .55 e .77, para as respostas maternas, e 56, .49 e .59, para as paternas.
Procedimentos de Coleta de dados
A coleta ocorreu, predominantemente, nas residências das famílias. A aplicação dos instrumentos foi realizada por estudantes de graduação, de mestrado e de doutorado em Psicologia, os quais passaram por treinamento específico para a coleta de dados. As visitas domiciliares eram previamente agendadas e efetuadas por uma dupla de pesquisadores, de modo que fosse possível entrevistar a mãe e o pai ao mesmo tempo, em cômodos separados, para que as respostas de um cônjuge não interferissem nas respostas do outro.
Procedimentos de Análise dos dados
Os resultados obtidos na pesquisa foram tabulados e submetidos a análises por meio do Software Statistical Package for Social Sciences (SPSS) - versão 18.0. Foram conduzidas análises descritivas e relacionais, variadas e multivariadas, as quais incluíram análise de correlações de Pearson, teste t e MANOVAS. As MANOVAS foram conduzidas separadamente para os grupos de mãe e pai e rodadas através de seis modelos, sendo três para os grupos femininos e três para os masculinos. As variáveis dependentes de cada grupo (Disciplina Não Violenta, Agressão Psicológica e Punição Corporal na relação pais-criança) permaneceram constantes nos seis modelos. As variáveis independentes (Negociação, Agressão Psicológica e Violência Física na relação conjugal) seguiram o critério de dicotomização descrito anteriormente. Calculou-se, também, a proporção de cada uma das variáveis dependentes, dentro de cada grupo de mãe e pai das variáveis independentes. Para tanto, cada grupo foi calculado separadamente, e cada variável dependente foi dividida pela soma desta com as demais variáveis dependentes.
Resultados
Táticas de Resolução de Conflitos Pais-Criança
As táticas de resolução de conflitos entre mãe-criança e pai-criança apresentaram-se correlacionadas de um grau de fraco a moderado (Tabela 1). Entre as correlações das táticas de resolução de conflitos referidas por cada genitor, constatou-se que quanto mais um dos pais disse utilizar Disciplina Não Violenta, Agressão Psicológica e Punição Corporal com a criança, mais o outro também o fez. Ressalta-se, ainda, que a Disciplina Não Violenta exercida pelo pai se correlacionou positivamente em um grau moderado à Agressão Psicológica e à Punição Corporal praticada por ele. O mesmo ocorreu para correlações da mãe. Assim, quanto mais a mãe e o pai referiram uso de explicações para a criança sobre o que é certo e errado, retirada de regalias, substituição de atividades e castigos (Disciplina Não Violenta), mais ambos mencionaram o uso de gritos, xingamentos e ameaças (Agressão Psicológica), bem como agressões físicas tais como tapas e palmadas (Punição Corporal).
No que se refere às médias gerais maternas e paternas por dimensões do CTSPC (Tabela 2), identificou-se que a Disciplina Não Violenta foi a tática de resolução de conflitos parentais mais referida pela mãe (entre 52 e 60%) e pelo pai (entre 50 e 65%). O resultado do teste t para amostras pareadas indicou que a mãe, em média, costuma praticar mais Disciplina Não Violenta do que o pai, e essa diferença foi estatisticamente significativa, t(149) = 2.31, p < .05. Da mesma forma, a mãe também referiu praticar, em média, mais Punição Corporal do que o pai, e essa diferença mostrou-se significativa, t(149) = -3.23, p < .01. Não houve diferença significativa entre as médias de mãe e pai para a tática de Agressão Psicológica, t(149) = -1.90; p = .06. Os valores correspondem à frequência média de ocorrência de cada tática praticada pelos genitores, durante o último ano, sendo que Disciplina Não Violenta ocorreu de 10 a 20 vezes, Agressão Psicológica, de cinco a 10 vezes, e Punição Corporal de duas a cinco vezes, tanto para a mãe quanto para o pai.
Táticas de Resolução de Conflitos Pais-Criança Conforme Uso de Tática de Negociação na Relação Conjugal
A maior parte dos casais afirmou excercer alta Negociação na relação conjugal (83% das mulheres e 77% dos homens e com uma frequência de ocorrência de seis a mais de 20 vezes, durante o último ano). O resultado do teste do traço de Pillai da MANOVA mostrou-se significativo para os grupos de mãe, V = .07, F(3,146) = 3.83, p <.05, ηp 2 = .07, e pai, V = .09, F(3,146) = 4.85, p <.01, ηp 2 = .09, com relação à tática de Negociação na relação conjugal (Tabela 3). As análises univariadas apontaram que a maior dimensão do efeito ocorreu na tática de Disciplina Não Violenta, cujo resultado foi F(1,148) = 10.49, p < .01, ηp 2 = .07, e F(1,148) = 10.98, p < .01, ηp 2 = .07, respectivamente, para os grupos de mãe e pai. Desse modo, os resultados sugerem que mãe e pai que relataram alta frequência de negociação, na tentativa de resolução de problemas ou de discordâncias na relação de casal, também referiram, na relação parental, terem se utilizado mais de atitudes tais como explicações, isolamento temporário da criança em um cômodo da casa, privações de privilégios e substituição de atividades.
Proporcionalmente, a Disciplina Não Violenta foi a tática de resolução de conflitos mais utilizada com a criança, independente de os grupos referirem, na relação conjugal, baixa Negociação (55% das mulheres e 66% dos homens) ou alta Negociação (58% das mulheres e 61% dos homens). Entretanto, destaca-se que os homens que referiram baixa Negociação com a esposa citaram mais uso de Disciplina Não Violenta com a criança (66%). Ao contrário, com relação às respostas das mulheres, a porcentagem de Disciplina Não Violenta foi mais alta para o grupo que mencionou alta Negociação com o cônjuge (58%). Entretanto, a mãe, apesar de também ter referido Disciplina Não Violenta em maior proporção, ainda reportou a prática de Agressão Psicológica e Punição Corporal, as quais juntas corresponderam a 42% das táticas usadas pelas mulheres do grupo de baixa Negociação e a 45% do grupo de alta Negociação. Desse modo, identificou-se que quase metade das táticas de resolução de conflitos maternos envolve atos verbais e simbólicos que objetivam causar dor ou medo psicológico à criança ou, ainda, dar palmadas nas nádegas com ou sem uso de objetos, além de sacudidões, beliscões e tapas no rosto, mãos, braços ou pernas.
Táticas de Resolução de Conflitos Pais-Criança Conforme Uso de Tática de Agressão Psicológica na Relação Conjugal
A baixa Agressão Psicológica (ocorrida de uma a cinco vezes, durante o último ano) foi referida por 74% das mulheres e 87% dos homens. No entanto, a frequência de ocorrência de Agressão Psicológica perpetrada na relação conjugal de seis vezes a mais de 20 vezes, durante o último ano, foi reportada por 26% dos participantes do sexo feminino e 13% dos participantes do sexo masculino. A análise multivariada, evidenciada pelo teste do traço de Pillai, mostrou-se significativa para os grupos de mãe, V = .20, F(3,146) = 12.13, p <.001, ηp 2 = .20, e pai, V = .10, F(3,146) = 5.63, p <.01, ηp 2 = .11, que utilizavam Agressão Psicológica no casamento (Tabela 3). As análises univariadas evidenciaram que a maior dimensão do efeito também ocorreu na tática de Agressão Psicológica com a criança, conforme F(1,148) = 35.93, p < .001, ηp 2 = .20, para os grupos de mãe, e F(1,148) = 16.25, p < .001, ηp 2 = .009, para os grupos de pai. Isso indica que atitudes de um dos cônjuges que objetivam causar dano à autoestima e/ou à identidade do outro através de insultos e xingamentos estão associadas a práticas parentais que envolvem falar alto, berrar, gritar, xingar, rogar praga, ameaçar, dizer que vai expulsar a criança de casa ou chamá-la com expressões depreciativas.
Ao se compararem os grupos de mãe e pai que exerceram baixa e alta Agressão Psicológica na relação conjugal, verificou-se que, novamente, a Disciplina Não Violenta foi a tática de resolução de conflitos mais utilizada na relação com a criança, independente do grupo ao qual pertenciam (61% das mulheres e 65% dos homens no grupo de baixa Agressão Psicológica, bem como 52% das mulheres e 50% dos homens no grupo de alta Agressão Psicológica).
Entretanto, o cálculo de proporção também indicou que os grupos de mãe e pai que referiram o uso de alta Agressão Psicológica com o cônjuge, exerceram esse tipo de atitudes com o filho, representando 30% (mãe) e 37% (pai) do total de táticas utilizadas com a criança. Ressalta-se, ainda, que dos casais que referiram ser praticantes de alta Agressão Psicológica na relação conjugal, o uso de Agressão Psicológica e Punição Corporal, juntas, representou 48% e 50% das táticas de resolução de conflitos usadas pela mãe e pelo pai, respectivamente.
Táticas de Resolução de Conflitos Pais-Criança Conforme Uso de Violência Física na Relação Conjugal
A maioria das mulheres (73%) e dos homens (75%) afirmou não ter perpetrado nenhuma atitude de Violência Física contra o cônjuge, durante o último ano. Entretanto, alguns participantes do sexo feminino (27%) e masculino (25%) referiram ter cometido, pelo menos, um ato de agressão física contra o(a) companheiro(a), no mesmo período. O resultado da MANOVA, auferido pelo teste do traço de Pillai, indicou que as variáveis dependentes juntas diferiram os grupos de mãe, V = .11, F(3, 146) = 5.92, p < .01, ηp 2 = .11 e de pai, V = .14, F(3,146) = 8.21, p < .001, ηp 2 = .78, que exerceram Violência Física na relação conjugal. As análises univariadas mostraram que a maior dimensão do efeito ocorreu na tática de Punição Corporal com a criança (Tabela 3), cujos resultados para os grupos de mãe foram F(1,148) = 14.66, p < .001, ηp 2 = .09, e de pai, F(1,148) = 19.18, p < .001, ηp 2 = .67. Assim, comportamentos tais como dar uma palmada nas nádegas da criança, com ou sem objetos, sacudir, dar tapas ou beliscões podem ser associados a pais que utilizaram força física contra o cônjuge, com o intuito de causar dano a esse, por meio de empurrões, puxões de cabelo, surras, socos, chutes, entre outros.
Os resultados dos cálculos de proporção indicaram que a Disciplina Não Violenta foi a tática parental mais utilizada, tanto pelo grupo que exerceu Violência Física na relação com o cônjuge (52% para a mãe e 52% para o pai) quanto por aquele que não o fez (60% para a mãe e 65% para o pai). Entretanto, quase metade (48%) das mulheres e dos homens que relatou perpetração de Violência Física na relação conjugal referiu utilizar com a criança Agressão Psicológica ou Punição Corporal, sendo que essa última abrangeu 17% do total de comportamentos reportados, tanto pela mãe quanto pelo pai. Desse modo, constata-se que os grupos de mãe e de pai que referiram alguma situação de Violência Física com o parceiro, também usavam mais de táticas agressivas com a criança, em comparação aos grupos considerados não agressivos.
Em síntese, os resultados indicaram que as variáveis dependentes combinadas diferiram com êxito os grupos de mãe e pai, no que se refere às táticas de Violência Física, Agressão Psicológica e Negociação na relação conjugal. Mesmo controlando as variáveis sexo da criança (feminino ou masculino), rendimento mensal, escolaridade em anos e carga horária de trabalho em horas semanais (até 20h/s ou mais até 40h/s ou mais) de mãe e pai, constatou-se que os efeitos dos grupos de táticas de resolução de conflitos na relação conjugal continuaram significativos sobre as três variáveis dependentes (Disciplina Não Violenta, Agressão Psicológica e Punição Corporal).
Discussões
Considera-se que o principal resultado do presente estudo é que casais que utilizam táticas de Negociação, Agressão Psicológica e Violência Física de forma mais frequente na relação conjugal praticam, respectivamente, mais Disciplina Não Violenta, Agressão Psicológica e Punição Corporal na relação com a criança. Desse modo, no que se refere a táticas de resolução de conflitos, os resultados sugerem que o clima emocional que emerge das interações conflitivas conjugais extravasa e afeta as relações parentais, corroborando a ideia de efeito spillover (Erel & Burman, 1995) e os achados de outros estudos relacionados (Coln et al., 2013; Gerard et al., 2006; Grasso et al., 2016; Hameister et al., 2015).
Ressalta-se que a Disciplina Não Violenta foi a tática de resolução de conflitos mais utilizada pela mãe e pelo pai com a criança, fato compreendido como positivo, por se tratar da tática mais construtiva dentre as que foram avaliadas. Esse resultado confirma o que já é apontado por outros estudos (Peruhype et al., 2011; Rocha & Moraes, 2011; Runyan et al., 2010), que práticas parentais positivas tendem a preponderar em detrimento das negativas (Marin et al., 2011), em particular, na faixa etária que o presente estudo investiga.
Entretanto, a Disciplina Não Violenta mostrou-se correlacionada positivamente com o uso de Agressão Psicológica e Punição Corporal. Esse resultado também foi descrito pelos autores do CTSPC na ocasião de sua validação, os quais explicaram que pais tendem a usar de múltiplas táticas para controlar o comportamento da criança e que a punição corporal, por exemplo, é uma prática socialmente aceita para esse fim (Straus et al., 1998). Assim, apesar da preponderância de Disciplina Não Violenta, entende-se que há uma mescla de práticas parentais no que se refere às táticas de resolução de conflitos com a criança. Desse modo, é possível hipotetizar que quando as tentativas de disciplinar de forma não violenta não surtem o efeito desejado, os pais lançam mão de outras táticas que envolvem agressão psicológica e punições corporais, conforme apontado por outras pesquisas (Peruhype et al., 2011; Rocha & Moraes, 2011).
Da mesma maneira, os resultados mostraram que as médias de Disciplina Não Violenta, na relação parental, são maiores para os grupos de pai e mãe que se caracterizaram por maior uso de Violência Física, Agressão Psicológica e Negociação na relação conjugal. Pondera-se que a Disciplina Não Violenta é compreendida como uma tática construtiva; entretanto, quando usada em demasia, ela pode sinalizar o excesso de controle que os pais exercem sobre a criança. Além disso, a desejabilidade social deve ser especialmente considerada nessa escala, pois seus itens oferecem aos pais a oportunidade de mostrar o quanto eles exercem táticas socialmente adequadas nas situações de desobediências da criança (Straus et al., 1998). Com relação à associação entre a maior Negociação conjugal e o aumento da Disciplina Não Violenta, é possível que casais que têm a necessidade de negociar com frequência ou com maior intensidade as desavenças da relação conjugal podem envolver a criança no conflito, de maneira direta ou indireta, a qual pode agir de tal forma que demanda maior imposição de disciplina do que filhos de casais que referem convivência mais harmônica.
Ao se comparar a perpetração de cada tática de resolução de conflitos com a criança, por sexo do genitor, os resultados evidenciaram que a mãe, em média, praticava mais Disciplina Não Violenta, Agressão Psicológica e Punição Corporal com os filhos do que o pai, sendo a diferença estatisticamente significativa para Disciplina Não Violenta e Punição Corporal. Com relação a esse aspecto, identifica-se que, no Brasil, as mulheres ainda são as principais responsáveis pelas tarefas domésticas e pelos cuidados dos filhos (Borsa & Nunes, 2011; Jablonski, 2010). Assim, é possível que por estarem mais próximas da criança e por um tempo maior, pela necessidade de manejar as decisões cotidianas, as mães exercem mais práticas parentais de modo geral e vivenciam com maior frequência situações conflitivas com a criança.
Torna-se relevante destacar o uso da Punição Corporal como tática de resolução de conflitos com a criança, exercido de maneira preponderante pela mãe, e, também, referida pelo pai como uma estratégia utilizada. Outros estudos brasileiros com foco na violência e nos maus-tratos infantis indicam a mãe como principal agressora, embora o pai também seja identificado como perpetrador de abusos físicos (Nunes & Sales, 2016; Rocha & Moraes, 2011), corroborando a justificativa de que isso ocorre por elas serem as principais responsáveis pelos cuidados dos filhos.
Salienta-se que uso da Violência Física na relação conjugal, apesar de ter sido pouco reportado, está associado à utilização da tática de Punição Corporal, na resolução de conflitos com a criança. Esse resultado está em consonância com outros estudos que apresentam associação entre hostilidade conjugal e disciplina severa ou punitiva (Liu & Wang, 2015; Marchand-Reilly, 2015), inclusive aqueles que utilizaram os instrumentos CTS2 e CTPSC, apontando a coocorrência de violência nas interações conjugais e parentais (Bhona et al., 2014; Grasso et al., 2016; Reichenheim et al., 2006).
A Agressão Psicológica, segunda tática de resolução de conflitos mais utilizada com a criança, também foi associada a táticas usadas na relação conjugal que envolvem condutas depreciativas tais como ofensas, humilhações, críticas, xingamentos e ameaças. Esse resultado alinha-se aos de outras pesquisas que identificam a Agressão Psicológica como o tipo mais prevalente de tática destrutiva de resolução de conflito entre casais (Bolze, Schmidt, Crepaldi, & Vieira, 2013) e entre pais-filhos (Carmo & Alvarenga, 2012), bem como a associação de seu uso nos dois subsistemas familiares (Grasso et al., 2016).
Aponta-se para a possível naturalização da violência psicológica nas relações conjugais (Razera, Mosmann, & Falcke, 2016), o que gera o não reconhecimento desta como uma tática de resolução de conflitos disfuncional e/ou destrutiva, nas interações entre os subsistemas conjugal ou parental. Esse dado merece especial atenção, visto que altos níveis de agressão psicológica entre o casal estão associados a problemas externalizantes e internalizantes nos filhos (Pendry, Carr, Papp, & Antles, 2013), além de dificuldades de ajustamento escolar (McCoy et al., 2013), apontando para a necessidade de elaboração de estratégias preventivas para o problema (Bhona et al., 2014).
Destaca-se que a utilização de táticas de resolução de conflitos que envolvem práticas parentais negativas, principalmente coercitivas, está associada a problemas de comportamento infantis, principalmente de externalização (Marin et al., 2012). Peruhype et al. (2011) pontuaram que violência contra a criança é interpretada socialmente como uma prática rotineira e banal, a qual se constitui em um instrumento aceitável de disciplina. Esses resultados corroboram dados do relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2014), o qual indica que em metade dos países cujos dados estão disponíveis, mais de 80% das crianças entre dois e 14 anos são submetidas à disciplina violenta. O relatório também enfatiza que pais e cuidadores que usam punição física ou agressão psicológica como uma forma de corrigir problemas de comportamento dos filhos estão violando direitos humanos das crianças. A punição corporal, apesar dos estudos que evidenciam suas consequências para o desenvolvimento infantil, é usada por pais de várias culturas ao redor do mundo (Runyan et al., 2010), fato que deve ser enfatizado, para se desenvolver estratégias de intervenção e prevenção.
Conclusões
O presente estudo evidencia que as táticas de resolução de conflitos usadas pela díade conjugal estão relacionadas às táticas utilizadas pela mãe e pelo pai com a criança. Enfatiza-se que táticas destrutivas conjugais estão associadas a táticas destrutivas parentais. Esse resultado remete ao efeito spillover, no sentido de que a tensão das interações conflitivas do casal reverbera ou extravasa, atingindo a forma como os pais lidam com a criança, em situação de conflito ou desacordo e vice-versa.
Nesse sentido, considerando a influência mútua entre os subsistemas conjugal e parental na manutenção de dinâmicas familiares destrutivas, assinala-se que a importância desse estudo se sustenta em demonstrar a ocorrência de tal processo, mesmo em amostras comunitárias (não clínicas). Do ponto de vista de aplicação, tais achados oferecem subsídios para a prática de psicólogos e demais profissionais que atendam famílias (p.ex., em contextos de saúde, assistência social e educação), de modo que possam ajudá-las a construir e fortalecer outras táticas de resolução de conflitos, com vista a interferir no ciclo disfuncional na criação dos filhos, para a prevenção de problemas emocionais e comportamentais.
Desse modo, sugere-se a elaboração de programas de intervenção ou psicoeducativos que ajudem o grupo familiar a desenvolver táticas construtivas de resolução de conflitos, para promover o desenvolvimento saudável de todos os envolvidos. Recomenda-se que casais em conflito possam ser ajudados a realizar mudanças, por meio do aprimoramento comunicacional e do automonitoramento das emoções, para minimizar o efeito spillover sobre os filhos e desenvolver táticas construtivas de resolução de conflitos conjugais, com o intuito de prevenir a emergência de problemas de ajustamento.
Uma das limitações do presente estudo foi a amostra por conveniência e não aleatória. Desse modo, compreende-se que os achados aqui obtidos não podem ser inferidos para a população em geral e apenas indicam uma tendência de resultados, se a pesquisa fosse aplicada a uma amostra probabilística. Além disso, a amostra não foi constituída por casais que se caracterizavam por vivenciar intenso conflito conjugal ou por histórico de violência doméstica. Por isso, é possível que a Disciplina Não Violenta tenha sido indicada como a tática mais utilizada para resolução de conflitos com a criança. Ademais, reconhece-se, também, que os alfas de Cronbach foram baixos em determinadas escalas. Com relação a esse aspecto, compreende-se que isso ocorreu porque algumas questões eram de cunho muito íntimo ou tratavam de práticas de violência severa, fato que pode ter inibido os respondentes ou não foram condizentes com suas vivências. Outra limitação do estudo foi que este, por estar inserido em um projeto maior, não contou com a aplicação de um questionário que investigasse práticas parentais, o qual poderia ter avaliado, de forma mais abrangente, o uso de práticas positivas e negativas na educação dos filhos e não apenas as táticas de resolução de conflitos com a criança. Indica-se, ainda, que estudos futuros busquem investigar, além da relação das táticas de resolução de conflitos conjugais e parentais, o impacto da reverberação dessas variáveis no comportamento infantil, competências sociais e desempenho escolar.
Considerando a complexidade que envolve as relações conjugais e parentais, sugere-se que futuros estudos possam ampliar o fenômeno através de abordagem multimétodo, os quais incluam delineamentos longitudinais e a investigação de variáveis tais como a dinâmica relacional das famílias, características de personalidade de cada integrante do sistema familiar, qualidade e satisfação conjugal, além de fatores intergeracionais e contextuais.