Nos últimos anos, as investigações sobre fatores associados às altas habilidades ou superdotação (AH/SD)1 têm se tornado mais frequentes no campo da psicologia (Martins & Chacon, 2016). As AH/SD (Decreto nº 7611, 2011) caracterizam-se pela presença de potencial elevado e exponencial envolvimento, de forma isolada ou combinada, com as seguintes áreas do conhecimento humano: intelectual, liderança, psicomotora, artística e criativa (Brasil. Ministério da Educação, 2009, p. 2). Já se sabe que não há um padrão de desenvolvimento para apresentar AH/SD, mas a família e o ambiente social, em especial a escola, continuam sendo indicadas como importantes no desenvolvimento de tais habilidades (Alencar, 2015). É também nesses contextos que pode se manifestar algum nível de sofrimento psíquico relacionado às AH/SD (Pilarinos & Solomon, 2017).
Nessa direção, alguns autores indicam que crianças e adolescentes com AH/SD contam com um repertório reduzido de habilidades socioemocionais para enfrentar situações cotidianas, sendo mais suscetíveis a problemas emocionais e de comportamento (Dalosto & Alencar, 2013). Segundo a definição proposta por Achenbach (1991), os problemas emocionais e de comportamento (PECs) são descritos como padrões sintomáticos e classificados em internalizantes (depressão, ansiedade, retraimento social, queixas somáticas, tristeza, preocupação exacerbada, timidez e medo) e externalizantes (impulsividade, agressividade, hiperatividade, oposição, comportamento desafiador e transgressor). Por outro lado, pesquisadores argumentam que eles apresentarão maior adequação socioemocional devido às capacidades cognitivas superiores (Francis et al., 2016). Tais discrepâncias também se evidenciam na percepção desses jovens pelos seus pais e professores. As entrevistas conduzidas por Piske (2013) demonstraram que, para os professores, os alunos superdotados apresentavam problemas nas interações sociais decorrentes da autocobrança, perfeccionismo e indicadores de ansiedade, já para os pais eles não possuíam problemas socioemocionais. Portanto, faz-se necessário aprofundar o estudo sobre o contexto familiar de adolescentes com AH/SD.
Estudos têm discutido a importância da família e de questões concernentes à dinâmica familiar no desenvolvimento dos adolescentes com altas habilidades, a exemplo do tipo de práticas educativas parentais adotadas (Hakin, 2016; Pilarinos & Solomon, 2017). As práticas educativas parentais são definidas como estratégias utilizadas para educar os filhos que objetivam criar habilidades intelectuais, sociais e emocionais, bem como prevenir e extinguir comportamentos inadequados (Macarin et al., 2010). A análise temática de entrevistas com pais de jovens com AH/SD concluiu que algumas práticas adotadas buscavam fornecer apoio, mas outras exerciam cobrança excessiva para alcançar alto desempenho (Mudrak, 2011). Sabe-se que práticas parentais definidas como intrusivas e que intencionam a alta performance podem afetar as condições de saúde emocional e comportamental dos filhos com AH/SD (Yazdani & Daryei, 2016). De modo contrário, aquelas baseadas em afeto e com o estabelecimento de limites resultam em melhores indicadores em termos de ajuste psicossocial (Rudasill et al., 2013).
Algumas evidências sugerem que famílias de indivíduos com AH/SD tendem a apresentar funcionamento similar, com foco em conquistas e expectativas elevadas de desempenho por parte dos pais, o que pode induzir estilos educativos autoritários (Peterson, 2015). Por outro lado, outros achados identificam os pais desses adolescentes como mais autoritativos e responsivos quando comparados com os demais, impactando em índices superiores de autoconceito e diminuição dos níveis de depressão, ansiedade e estresse dos filhos (Yazdani & Daryei, 2016). Desse modo, observam-se incongruências nas pesquisas na área, o que dificulta a compreensão do fenômeno e a elaboração de estratégias de prevenção direcionadas aos adolescentes e suas famílias (Chung, 2016).
Diante da escassez de pesquisas que incluam as famílias de indivíduos com AH/SD e as divergências existentes entre elas (Renati et al., 2017), destaca-se a pertinência de estudos que examinem as variáveis associadas ao desenvolvimento de adolescentes com AH/SD com vistas a fornecer subsídios para a construção de políticas voltadas para esse público (Chung, 2016). O presente estudo foi desenvolvido considerando a importância de aprofundar a discussão da temática por meio de pesquisas qualitativas devido ao seu caráter exploratório e de indexabilidade. O objetivo foi compreender a percepção de pais de adolescentes com AH/SD intelectiva a respeito da dinâmica familiar e das práticas educativas utilizadas, bem como sobre os indicadores de problemas emocionais e de comportamento e as perspectivas de futuro em relação a seus filhos e filhas.
Método
Delineamento e Participantes
Trata-se de uma pesquisa exploratória, de corte transversal e abordagem qualitativa (Sampieri et al., 2013). Participaram deste estudo três mães e dois pais, os quais foram contatados pessoalmente (n = 3) e por meio eletrônico (n = 2). O critério de inclusão foi ser pai ou mãe de adolescente, com idade entre 12 e 18 anos (Lei n. 8.069, 1990; Brasil, 1990), que apresentasse quociente de inteligência (QI) acima da média na Escala de Inteligência Wechsler Abreviada (Trentini et al., 2014), cuja aplicação e avaliação já havia sido realizada. Dentre o total de participantes, uma mãe e um pai constituíam um casal e eram pais de dois adolescentes com AH/SD, enquanto os demais participantes compunham famílias distintas, todas nucleares e com apenas um filho. O número de participantes está em consonância com as orientações de Braun et al. (2019) que indicam a realização de cinco ou seis entrevistas para um projeto com amostra relativamente homogênea e questão de pesquisa delimitada.
Os adolescentes e suas famílias contatados presencialmente foram acessados por conveniência em uma escola pública do município de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul, através da indicação da professora da sala de Atendimento Educacional Especializado. A escola foi indicada pela Coordenadoria de Educação do Estado (1ª CRE) por possuir atendimento especializado a alunos com AH/SD. Já os adolescentes e familiares contatos por meio eletrônico foram indicados.
A média de idade das mães participantes foi de 43 anos (DP = 10,4) e a dos pais de 45 anos (DP= 5,6). Quanto ao nível educacional e socioeconômico, três possuíam ensino médio completo e dois concluíram o ensino superior. Uma das mães se dedicava exclusivamente à família e as demais possuíam atividade laboral remunerada, assim como os dois pais. Eles eram técnicos ou proprietários de pequenas empresas e apresentavam nível socioeconômico médio, classificação baseada em Hollingshead (Tudge & Frizzo, 2002). Já os filhos, eram três do sexo masculino e dois do feminino e tinham idades entre 12 a 16 anos (M = 13,3; DP = 1,4).
Instrumentos
Questionário de Dados Sociodemográficos (adaptado de Núcleo de Infância e Família, 2008): obteve informações sobre os dados sociodemográficos da família (idade, escolaridade e sexo, além da configuração familiar, situação conjugal, acadêmica e profissional dos pais).
Entrevista semiestruturada: construída pelas autoras com base nos estudos realizados Casarin e Ramos (2007), Fevorini e Lomônaco (2009), Teixeira et al. (2006) e Teodoro et al. (2009) sobre funcionamento familiar, clima familiar e práticas educativas parentais. A entrevista foi constituída por 15 tópicos, adaptados com base nos trabalhos citados, que versavam sobre rotina da família, práticas educativas parentais, dinâmica e relação familiar, além de abordar preocupações e perspectivas dos pais em relação aos filhos/as. Teve duração média de 60 minutos e foi conduzida pelas primeira e última autoras, psicólogas de formação.
Procedimento éticos e de coleta de dados
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (CAAE: 66512817.0.0000.5344), garantindo o cumprimento das Diretrizes e Normas Regulamentadoras que envolvem a pesquisa com seres humanos do Conselho Nacional de Saúde (Brasil. Ministério da Saúde, 2016). Além disso, todos os participantes foram informados sobre os objetivos e procedimentos metodológicos antes de consentirem com a realização da pesquisa.
O recrutamento da amostra e a coleta de dados ocorreu em diferentes modalidades. No que se refere às coletas presenciais (n = 3), após a aprovação da Coordenadoria de Educação do Estado (1ª CRE) e da direção da escola foi realizado contato com os pais dos adolescentes identificados como tendo AH/SD para esclarecimento sobre a pesquisa, obtenção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e agendamento da entrevista. Os pais contatados pessoalmente responderam ao questionário sociodemográfico e à entrevista de forma presencial em consultório psicológico.
Nas coletas realizadas por meio eletrônico (n = 2), inicialmente contatou-se, via e-mail ou telefone, os pais dos adolescentes indicados com o propósito de apresentar a pesquisa e realizar o convite para participação. Após, foram encaminhados por correio eletrônico o TCLE e o questionário sociodemográfico para preenchimento pelos pais e posterior devolução pela mesma via. A seguir, as entrevistas foram agendadas e respondidas por meio de videochamadas. Todas as entrevistas, incluindo as realizadas de maneira remota, foram conduzidas em consultório psicológico a fim de preservar a confidencialidade das informações. Foram integralmente gravadas em áudio ou vídeo e transcritas de modo completo, considerando a linguagem verbal dos participantes.
Procedimentos de análise de dados
As informações prestadas por meio do questionário sociodemográfico foram avaliadas por meio de estatísticas descritivas para fins de caracterização da amostra. Para tratamento dos dados provenientes das entrevistas utilizou-se a análise temática dedutiva (Braun et al., 2019; Braun & Clarke, 2006), que preconiza os seguintes passos: 1) transcrição, leitura e releitura de dados; 2) codificação do material; 3) identificação dos temas; 4) refinamento de temas e geração do mapa temático; 5) definição e nomeação de temas; e 6) análise final. Os dados derivados da análise temática dedutiva foram analisados de acordo com os seguintes temas, definidos a priori, considerando os objetivos do estudo: a) dinâmica familiar; b) práticas educativas parentais; c) problemas emocionais e de comportamento do adolescente; e, d) preocupações e perspectivas de futuro do adolescente. A codificação de todo o material foi realizada por dois juízes com formação em psicologia, tendo havido 87 % de concordância entre eles, considerando o total de concordâncias, dividido pelo total de concordâncias somado ao total de discordâncias, multiplicado por 100 para se obter o percentual (Robson, 2002).
Destaca-se que as falas não foram identificadas a fim de resguardar o sigilo dos participantes. Portanto, as mães foram designadas pela letra M e os pais pela letra P, identificados com um número correspondente à ordem em que foram acessados.
Resultados
Dinâmica familiar
O tema referente à dinâmica familiar buscou compreender o funcionamento familiar do adolescente com AH/SD na perspectiva dos seus pais. Nessas famílias, muitos pais acabam se abstendo profissionalmente e comprometendo outros aspectos da vida familiar em prol de estimular e participar da vida acadêmica dos filhos com AH/SD, como se percebeu no relato de M2:
Há dois anos, quando o (filho) começou a ficar adolescente, com 13 anos, começou a vir algumas dificuldades e aí eu optei por sair da empresa na qual eu trabalhava e ser mãe, estar presente na rotina deles. Hoje a gente começa a restabelecer algumas rotinas de casa. Minha rotina é pra eles, na verdade! (M2).
Assim, observa-se através do depoimento a necessidade de realizar abdicações na vida profissional a fim de priorizar as demandas do filho. Contudo, a dedicação exclusiva aos filhos não esteve presente em todas as famílias investigadas: “Ultimamente (a rotina) tem sido um pouco corrida. Eu trabalho em esquema de escala, plantões, algumas horas extras, dependendo da necessidade da casa onde eu trabalho, então acaba sobrando pouco tempo. Tento primar, por ter pouco tempo, pela qualidade dele” (P1). Desse modo, a rotina descrita evidencia as dificuldades encontradas por algumas famílias em dispor de tempo para se dedicar aos cuidados dos filhos em função dos compromissos econômicos que precisam atender.
Além das problemáticas relacionadas à trajetória profissional dos pais e as suas responsabilidades econômicas perante à família, foram relatados conflitos familiares pelo casal que possuía outro filho em decorrência dos cuidados destinados ao irmão com AH/SD, conforme observado na seguinte fala: “Fez terapia durante cinco anos por causa da não aceitação ao irmão, agitação, falta de limite e manipulação das pessoas de sua convivência” (M3).
Práticas educativas parentais
Neste tema buscou-se abordar as práticas educativas parentais utilizadas pelas famílias entrevistadas. Em relação às práticas indutivas, os pais que participaram deste estudo mencionaram: “Eu converso, pergunto como foi o dia, o que fez e o que deixou de fazer. A gente tenta orientar o que é certo e o que é errado!” (P1); “Aviso: cuidado isso não é legal. Não se deve fazer isso porque pode ser prejudicial aos outros e a você mesmo!” (P2); “Costumo conversar e orientá-los!” (M3). Assim, é possível verificar convergências quanto ao tipo de prática educativa adotada por algumas famílias.
Por outro lado, as práticas que coadunam com estilos autoritários de parentalidade também foram relatadas por alguns participantes:
Se o que ele fez é considerado grave, deixo sem computador, sem celular: quando mente, desobedece ou bate no irmão (M3)
Quando ele faz algo errado, a gente briga mesmo! Me tira do sério assim de eu dar umas cintadas no ombro dele! (P1).
Eu sou uma pessoa que tem uma fala muito bruta, bem pouco culta. E sou muito brava. Muito áspera na maneira de falar. Então eu cobro bastante. Sempre muito autoritária e muito áspera. Sempre falando muito severa. Também não meço muito as palavras, eu sou uma pessoa bastante brava, até dura por causa da vida que a gente teve e tudo! (M2).
Outro tópico que se destacou ao longo das entrevistas foi a carência que alguns pais possuem de orientações sobre a parentalidade no contexto das AH/SD: “Eu não acreditava que existia comportamentos diferentes em função de altas habilidades. Cada um tem uma dificuldade diferente e, às vezes, a dificuldade de um é uma facilidade pro outro” (M1); “Eu percebo que essa alta habilidade quando ela chega na adolescência, quando começa a misturar sentimentos, geram muitos transtornos que poderiam ter sido evitados se nós soubéssemos como lidar com eles” (M2). Nesse sentido, falas que destacaram o desconhecimento sobre as AH/SD e a frustração decorrente disso também foram evidenciadas: “Nunca li nada. A escola não tem nada sobre isso. Seria muito bom ter algo para se informar e entender como lidar” (M1); “Tentamos conduzir ele como uma criança normal! Acho que isso foi uma falha porque a gente deveria ter proporcionado atividades diferentes pra ele!” (M2).
Problemas emocionais e de comportamento do adolescente
A percepção dos pais sobre os problemas emocionais e de comportamento dos filhos com AH/SD foi o foco deste tema. Os pais abordaram suas percepções sobre reações emocionais e comportamentais que chamavam a atenção: “Em determinadas situações fica agressivo” (M5); “Por qualquer que seja o problema ele trava. Ele tem pouca habilidade pra lidar com situações, pra lidar com pessoas, tende a demonstrar sentimentos, normalmente, de uma maneira negativa. Ele expressa sentimentos como raiva e ir.” (P1).
Adicionalmente, quadros de isolamento também foram identificados, como a tendência em permanecer sozinho, o desinteresse pela socialização com outros adolescentes, além da dificuldade em manejar as emoções, aumentando a angústia e o risco de suicídio:
Quanto mais negativo ele se sente, mais ele vai se deprimindo! (M3) Quando a gente briga, ele se tranca em casa e eu fico com medo que ele faça essas coisas: ele escreve coisas, tira sangue, mas não é profundo. Ele disse que é para aliviar a dor dele. Diz que se sente frustrado e sente tanta dor que é dessa forma que alivia! (M1).
No entanto, esta queixa não foi unânime dado que alguns pais referiram que seus filhos investiam tempo em atividades que lhes faziam bem e extraíam bons resultados dessas experiências.
Preocupações e perspectivas de futuro relacionadas ao adolescente
O último tema analisado corresponde às preocupações dos pais e suas perspectivas em relação ao futuro dos filhos com AH/SD. No presente estudo, os pais mostraram maior preocupação com as dificuldades de socialização e com o autoconceito que os filhos possuem: “Minha preocupação única e exclusiva são os estudos e o comportamento!” (M2); “Eu não quero que ele faça mal a ninguém e não quero que façam mal a ele. Seja um cidadão de bem pra sociedade. Que ele fique em paz. Que ele se resolva com essas coisas de socializar!” (M1). Nesse sentido, alguns pais expressaram a apreensão de seus filhos sofrerem bullying dos colegas e virem a ter comportamentos extremos:
Ele achou estranho aquele caso do menino que matou os colegas na escola. Ele disse que tem vontade também, porque ele sofria bullying. Diz que as pessoas não gostam dele, ninguém se aproxima dele, que não é feliz em casa com o pai e com os irmãos. Se sente rejeitado! (M1).
Entre as famílias entrevistadas, somou-se a essas preocupações o temor pelo envolvimento em condutas ilícitas: “Ele tá sempre querendo transgredir alguma coisa. Eu tenho medo de que acabe se aproximando de uma droga” (P1); “Não quero que se envolva em coisas ilícitas” (P2); “Uso de drogas ou álcool. Se envolver com coisas ilícitas” (M3). De modo geral, percebeu-se que as inquietações dos pais foram referentes às dificuldades interacionais apresentadas pelos filhos, bem como à aflição de que se envolvessem em situações de risco. Além disso, evidenciou-se uma preocupação com a postura ética dos filhos/as e com o desenvolvimento de um senso coletivo enquanto cidadãos.
Discussão
O objetivo do presente trabalho consistiu em compreender a percepção de pais de adolescentes com altas habilidades ou superdotação intelectiva a respeito da dinâmica familiar, das práticas educativas parentais utilizadas, bem como dos indicadores de problemas emocionais e de comportamento e das perspectivas de futuro em relação a seus filhos(as). Inicialmente, aspectos referentes à dinâmica familiar foram abordados tendo em vista que as AH/SD podem modificar a organização familiar, pois algumas famílias, para incentivar o desenvolvimento da alta habilidade, acompanham o filho em eventos, novos cursos e atividades sociais que envolvem gastos financeiros, tempo, etc. (Ferreira, 2012).
Em consonância com essa proposição, os resultados apresentados evidenciaram a necessidade de alguns pais realizarem abdicações na sua vida profissional a fim de priorizarem as demandas do filho. Tal dado é corroborado pelos achados de Morawska e Sanders (2009) que ressaltaram o fato de alguns jovens com AH/SD necessitarem de apoio personalizado para a condução de suas atividades, o que pode acarretar em privações pessoais e profissionais por parte dos pais. No entanto, Renati et al. (2017), em estudo com 49 pais (26 mães e 23 pais) de jovens com AH/SD da cidade de Milão/Itália, constataram os importantes indicadores de estresse que a dinâmica familiar centrada nas altas habilidades do filho pode acarretar. Dessa forma, destaca-se que ações parentais focadas nas AH/SD, como a observada no relato de M2, podem prejudicar o vínculo entre pais e filhos e dificultar o gerenciamento de rotinas familiares, o relacionamento entre irmãos e a comunicação familiar (Renati et al., 2017).
No entanto, conforme demonstrado, a dedicação prioritária aos filhos não foi uníssona em todas as famílias investigadas. Alguns pais descreveram dificuldades em dispor de tempo para se dedicarem aos cuidados dos filhos em função dos compromissos econômicos que precisavam atender. Apesar da relevância dos motivos que impedem uma convivência familiar mais assídua, pontua-se que as lacunas na interação com os filhos possuem um caráter nocivo visto que a família é responsável por proporcionar suporte para o seu desenvolvimento, bem como estimular suas habilidades (Hakin, 2016; Pilarinos & Solomon, 2017). Tal concepção é reforçada pelo estudo conduzido por Olszewski-Kubilius et al. (2014) com 1.500 jovens com AH/SD cujos resultados concluíram que ambientes familiares afetuosos são importantes para o desenvolvimento de relações interpessoais, habilidades, competências e relações entre pares para altas habilidades.
Ao se analisar o contraponto encontrado nas falas de M2 e P1 quanto ao funcionamento familiar, destaca-se a importância de as famílias buscarem um equilíbrio na relação com os filhos com AH/SD de modo que assumam uma atitude de apoio, porém pautada no incentivo à autonomia (Ayğar & Gündoğdu, 2017). Além disso, caso possuam outros filhos, como no caso do casal indicado, devem permanecer atentos para não negligenciar as suas necessidades de afeto e atenção (Renati et al., 2017).
No que concerne às práticas educativas parentais, compreendidas como comportamentos que visam à educação dos filhos (Macarin et al., 2010), pontua-se que determinadas práticas apoiam os filhos com AH/SD, enquanto outras podem sobrecarregar na busca por alto desempenho (Yazdani & Daryei, 2016). No presente estudo foi possível verificar convergências quanto à adoção de práticas educativas consideradas autoritativas. Tal evidência está em consonância com outros trabalhos que sugerem que pais de jovens com AH/SD tendem a ser mais autoritativos e menos autoritários. Por exemplo, Yazdani e Daryei (2016), que analisaram os estilos parentais e o ajuste psicossocial de 118 adolescentes com AH/SD em comparação a 115 sem a mesma habilidade, concluíram que o modo autoritativo gerou menos sintomas de depressão, ansiedade e estresse, além de maior bem-estar psicológico e melhor autoconceito.
Por outro lado, as práticas classificadas como autoritárias também foram descritas nas entrevistas. Apesar de alguns pais afirmarem que apenas utilizam as práticas coercitivas como último recurso, percebe-se nos relatos a coexistência na mesma família de estilos autoritativos e autoritários. Tal ambivalência pode estar associada às dificuldades que os pais apresentam em lidar com comportamentos específicos dos filhos com AH/SD, optando, em certos momentos, por práticas coercitivas na tentativa de controlar o seu comportamento ou expressar a sobrecarga parental (Hidalgo, 2016). Não obstante, cabe ressaltar que, assim como na população geral, estas práticas podem levar crianças e adolescentes com AH/SD a terem dificuldades de desenvolvimento, a exemplo de prejuízos no entendimento das suas instabilidades emocionais e comportamentais (Yazdani & Daryei, 2016). Em contrapartida, o uso de práticas baseadas em afeto e com limites claros implicam em melhores resultados quanto ao desenvolvimento psicossocial (Rudasill et al., 2013).
A carência que alguns pais possuem de orientações sobre variáveis associadas à parentalidade em um contexto de AH/SD também foi declarada. A insuficiência de informações pode explicar o emprego de práticas autoritárias por algumas famílias, bem como a concomitância de diferentes estilos parentais. A literatura ainda dispõe de poucos estudos que versam sobre o impacto das práticas educativas parentais no desenvolvimento de jovens com AH/SD, porém é notório que o comportamento dos pais está relacionado à autoconfiança e à autopercepção dos filhos (Fugatea & Gentryb, 2016). Nesse cenário de dúvidas, acredita-se que a oferta de programas de orientação parental poderia auxiliar as famílias a procederem adequadamente (Hidalgo, 2016).
A percepção dos pais sobre os problemas emocionais e de comportamento dos filhos com AH/SD foi explorado no tema seguinte devido a sua relevância enquanto indicadores de saúde mental na infância (Cross & Cross, 2015). Diante do exposto na fala dos participantes, percebe-se a presença de problemas na forma de lidar com as emoções entre os adolescentes com AH/SD e o consequente comprometimento das relações interpessoais. O dado encontrado está de acordo com a literatura especializada que sugere que os jovens com AH/SD tendem a apresentar dificuldades no processamento afetivo quando comparados aos pares (Eren et al., 2018). Em razão disso, é possível que sofram maior rejeição, o que pode lhes levar a focar mais em seu desenvolvimento intelectual e menos no desenvolvimento de habilidades sociais e de relacionamento (Cross & Cross, 2015). Ademais, o perfeccionismo direcionado a si e ao outro também pode afetar a construção de relações interpessoais positivas (Stoeber, 2014).
Além disso, as situações de isolamento reportadas podem estar relacionadas à autocobrança e à dificuldade, anteriormente mencionada, em lidar com as emoções (Cross & Cross, 2015). Os cenários descritos pelos pais confirmam as evidências que assinalam a maior propensão dos adolescentes com AH/SD ao isolamento, depressão, ansiedade e dificuldades empáticas (Eren et al., 2018). Eklund et al. (2015) ao investigaram 1.206 jovens com e sem com AH/SD verificaram que aqueles com altas habilidades demonstravam mais comportamentos de internalização. No que concerne ao isolamento, identificado de forma frequente no presente estudo, destaca-se o impacto negativo no processo de escolarização e os prejuízos no estabelecimento de relações interpessoais (Uzunian & Vitalle, 2015). Portanto, corrobora-se a literatura que sugere haver um descompasso entre alta capacidade cognitiva e maturidade afetiva em indivíduos com AH/SD (Cross & Cross, 2015). Tal fenômeno conhecido como desenvolvimento dessincrônico refere-se à combinação entre alto potencial cognitivo e intensidade emocional, que leva a percepção de que são qualitativamente diferentes dos demais (Eren et al., 2018).
Contudo, também existem dados que apontam para a direção oposta, sinalizando as elevadas habilidades cognitivas como um fator protetivo contra preocupações sociais, emocionais e comportamentais (Eklund et al., 2015). Nesse sentido, Francis et al. (2016), após revisarem a literatura, indicaram que crianças com AH/SD possuíam ajustes socioemocionais superiores e menores dificuldades comportamentais do que seus colegas. Assim, salienta-se a compreensão de que as pesquisas não são conclusivas quanto a maior ou menor incidência de problemas emocionais e de comportamento em indivíduos com AH/SD e mais estudos são necessários sobre o tema.
Por fim, ao se investigar as preocupações e perspectivas de futuro quanto ao adolescente, poder-se-ia supor, em um primeiro momento, a tendência de os pais se pronunciarem a respeito das aspirações de futuro de seus filhos por presumirem que devem estar predispostos a alcançar sucesso profissional na idade adulta devido às altas habilidades (Mudrak, 2011). Contudo, no presente estudo, os pais se mostraram mais preocupados com as dificuldades de interação social e com a autoavaliação que os filhos realizam de si. Os anseios descritos podem ser resultantes do receio de seus filhos serem vistos de forma negativa pelos pares em função das altas habilidades, o que pode desencadear conflitos como desesperança e depressão devido ao sentimento de incompreensão (Cross & Cross, 2015).
Nesse contexto, o bullyng sofrido por crianças e adolescentes com AH/SD, fenômeno mencionado por alguns entrevistados, pode se instalar e aumentar a probabilidade dos jovens se envolverem em condutas de risco em decorrência da angústia e conflitos gerados pela necessidade de serem aceitos pelo meio (família, pares, escola; Oliveira & Barbosa, 2012). No estudo com 57 adolescentes com AH/SD do 8º ano foi assinalado que eles eram capazes de serem vítimas e/ou agressores, além de ter sido referida uma maior resistência emocional para lidar com atos violentos, podendo sofrer em silêncio, internalizar e racionalizar a angústia. Contudo, os adolescentes também podem transformar tais sentimentos em comportamento hostil contra si ou os outros com o intuito de cessar a agressão (Peterson & Ray, 2006).
Assim, a preocupação de que os filhos se engajem em comportamentos de risco em decorrência das dificuldades intrapessoais e interpessoais é corroborada pela literatura que indica haver um número considerável de adolescentes que fazem uso de drogas com a finalidade de aliviar a angústia, lidar com as situações difíceis, melhorar as habilidades sociais e aumentar a capacidade de enfrentamento das dificuldades (Sheehan et al., 2013). Diante disso, constatou-se que as inquietações dos pais participantes deste estudo focalizaram os problemas de socialização experienciados pelos filhos, bem como o receio de que apresentem comportamentos de risco que comprometam a sua integridade física/emocional e a convivência com os demais.
Conclusões
Este estudo buscou aprofundar o conhecimento sobre a temática das AH/SD, possibilitando a compreensão sobre a percepção de pais de adolescentes com altas habilidades ou superdotação intelectiva a respeito da dinâmica familiar, das práticas educativas parentais utilizadas, bem como dos indicadores de problemas emocionais e de comportamento e das perspectivas de futuro em relação a seus filhos(as). Destacaram-se alguns desafios enfrentados pelas famílias para lidar com as particularidades relacionadas às altas habilidades, o que impacta a dinâmica familiar. Apesar de reconhecerem as capacidades cognitivas superiores de seus filhos e orgulharem-se disso, alguns pais expressaram o receio de que essa condição possa prejudicá-los por se avaliarem como diferentes dos demais. Além disso, de acordo com a percepção parental, os adolescentes com AH/SD contemplados no estudo apresentavam indicadores de problemas internalizantes, como isolamento e humor deprimido, e externalizantes, como agressividade. Tais características fazem com que os pais temam o envolvimento em atos ilícitos, o que pode contribuir para explicar o emprego de práticas educativas de caráter coercitivo em algumas famílias. Contudo, sabe-se que esse tipo de prática tende a acentuar o comportamento e, por isso, faz-se importante que as famílias com filhos com AH/SD disponham de orientações apropriadas.
Ainda, é plausível supor que os aspectos destacados tenham ganhado maior expressão em função da adolescência, etapa em que há maior vulnerabilidade socioemocional e que demanda a flexibilização das relações entre pais e filhos. Quanto às limitações deste estudo, destaca-se especialmente o fato de que não foi possível realizar todas as entrevistas pessoalmente. Constatou-se que aquelas realizadas presencialmente possibilitaram a exploração das informações e dados de maneira mais completa. Também se supõe que a voluntariedade das famílias em participar do estudo pode estar relacionada ao fato de, mesmo de forma não deliberada, estarem buscando apoio de profissionais para acolherem as dificuldades familiares que apresentavam. Salienta-se a necessidade de mais pesquisas nesta área, pois, conforme pontuam Renati et al. (2017), há poucos estudos com famílias de pessoas com AH/SD. Faz-se importante produzir conhecimento sobre as relações intra e interpessoais desses jovens a fim de fundamentar o desenvolvimento de intervenções que visem à prevenção e à promoção de saúde mental. Além disso, reforça-se a relevância de propor legislações e políticas públicas voltadas a essa população.