A convivência com a alteridade é um desafio bastante presente na instituição escolar. Sendo um contexto tanto de coexistência, como de produção de diferentes modos de vida, a escola configura-se como um território de disputas entre visões de mundo divergentes e, consequentemente, de reflexão a respeito de quais princípios éticos podem orientar a convivência social.
A escrita deste texto parte de uma inquietação a respeito de alguns grupos e movimentos que têm pensado as políticas educacionais no Brasil e sobre como seus discursos e práticas ocupam a escola pública, modulando possibilidades de interação entre os atores que dela participam. Esses movimentos produzem uma multiplicidade de demandas e de realidades acerca da educação, de como ela deve operar e de qual deve ser a função da escola em sua relação com a sociedade e outras instituições, como a família. Alguns desses movimentos definem suas bandeiras a partir de enunciados relacionados à construção de uma certa justiça social, outros vinculam-se a forças ao mesmo tempo neoliberais no que se refere ao papel do Estado (Macedo, 2017) e conservadoras no que tange aos modos de convivência e às liberdades individuais.
Neste contexto, tomamos como analisador para pensar a produção de modos de vida na escola e sua função na produção de formas de convivência com a alteridade dois movimentos políticos: o Movimento Escola Sem Partido (MESP) e o movimento de ocupação de escolas empreendido no Brasil entre 2015 e 2016. Este segundo movimento estabelece formas de contestação ao primeiro e foi inicialmente abordado de forma mais ampla pela primeira autora em sua pesquisa de mestrado (Ramm, 2018).
O movimento nacional de ocupações das escolas no Brasil teve início em São Paulo, como protesto contra a proposta de reorganização do sistema de ensino, que visava fechar escolas e reduzir o quadro docente. No Rio Grande do Sul, as ocupações iniciaram-se em maio de 2016, tendo como principal motivação opor-se ao projeto de lei 44/16, que visava permitir a caracterização de instituições privadas como organizações sociais a fim de efetuar parcerias público-privadas para que tais organizações realizem atividades de ensino, desenvolvimento científico e tecnológico, entre outras. Também era pauta das ocupações a falta de repasses do governo do estado para a área da educação, a possibilidade de proibir as discussões a respeito de gênero em sala de aula, questão que passou a ser pautada no Brasil a partir da solicitação, por parte de alguns deputados, da retirada da discussão a respeito de gênero e sexualidade do relatório final da Conferência Nacional da Educação (CONAE), realizada em 2014, e os projetos de lei que surgem a partir do MESP, que pretendem tipificar e criminalizar o assédio ideológico.
O MESP compreende um arranjo complexo, que envolve propostas legislativas nas esferas estaduais e municipais chegando a seis projetos de lei na câmara dos deputados (Miguel, 2016) que circulam em torno de dois temas principais. São eles: o combate à chamada ideologia de gênero, que é uma forma simplificada e pejorativa de se referir aos estudos que visam desnaturalizar os papéis de gênero e o combate à denominada “doutrinação marxista”, alimentada por uma perspectiva anti-comunista que em diferentes momentos históricos ressurge no Brasil, situando o pensamento crítico como uma ameaça à sociedade e sobrepondo-o à uma ideia vaga de comunismo (Miguel, 2016).
Propomos neste texto, a discussão de práticas relacionadas a heteronormatividade na escola e formas de abordá-la, neste cenário de disputas políticas. Partimos de uma perspectiva incorporada da ética a fim de discutir a produção dos modos de vida e convivência com a alteridade na escola. Para isso, consideramos os estudos desenvolvidos por Francisco Varela (1992) sobre a competência ética, a compreensão do desenvolvimento de expertise de Dreyfus e Dreyfus (2000) e o conceito de controvérsia de Bruno Latour (2000). A estratégia metodológica da pesquisa compreende a realização de entrevistas com seis estudantes e uma professora que participaram da ocupação de uma escola pública no município de Canguçu (RS) entre maio e junho de 2016. Analisamos os recortes destas entrevistas compostos por cenas relatadas pelos estudantes que abordam situações de homofobia na escola. A partir desta análise, consideramos que a produção de narrativas no contexto escolar é uma estratégia importante para o desenvolvimento de uma competência ética relacionada à legitimação da alteridade e que envolve aspectos reflexivos e pré-reflexivos, compreendendo a problematização da heteronormatividade como um aspecto crucial dos processos de subjetivação relacionados à convivência social na instituição escolar.
A ação ética e o desenvolvimento de expertise
O estudo da ética na tradição filosófica ocidental, geralmente, admite que os preceitos morais sejam o principal fundamento da ação ética na relação com a alteridade (Varela, 1992). Como consequência disso, o estabelecimento de princípios éticos costuma ser confundido com a elaboração de regramentos sociais de convivência. Nesta perspectiva, a ética tende a configurar-se como algo abstrato e transcendente ao sujeito. Propondo uma visão alternativa, Varela (1992) compreende a atuação ética como um efeito da produção de um corpo sensível às contingências dos modos de vida que são produzidos coletivamente momento a momento. O papel atribuído à corporeidade, desta forma, reposiciona a emoção no fazer ético.
Compreendida de modo não dicotômico em relação à razão, a emoção é um modo de fazer-fazer e de produzir distinções (Kroeff, Maraschin & Capella, 2019). É segundo esta perspectiva que Vinciane Despret (2001), propõe abordar as emoções como modos pelos quais agimos, avaliamos e justificamos nossos mundos. A autora problematiza a noção de emoção como algo que emana do corpo e a situa mais próxima do afeto, como uma co-produção sujeito-meio, que atua na especificação de um mundo. Nos tornamos hábeis no agir ético, portanto, também a partir das emoções que nos permitem afetar e ser afetados pelas contingências do contexto em que estamos inseridos. Assim, a expertise no campo ético se constitui como uma competência à ação que compreende processos reflexivos e, principalmente, pré-reflexivos. Essa forma de compreender a ética também está presente na teoria enativa (Varela, Thompson & Rosch, 2003), cuja proposta central é que fazemos emergir um mundo a partir de ações concretas.
Para Varela (1992), a competência ética, diferentemente do julgamento moral, consiste no reconhecimento progressivo da virtualidade do “si mesmo” e uma disposição às transformações que acontecem em constante acoplamento com o meio. Varela (1992) afirma que apesar da tradição filosófica ocidental conferir grande importância às regras explícitas, o desenvolvimento ético se baseia mais nas capacidades que conseguimos evocar em cada situação do que em seu reconhecimento declarativo. Ou seja, para a discussão da ação ética é mais importante pensar a produção de uma prontidão para a ação - uma tendência incorporada de agir de um determinado modo no mundo - do que a definição teórico-conceitual a respeito do comportamento mais adequado. O autor, tomando como inspiração as práticas de meditação da tradição budista, propõe que o primeiro movimento que fazemos ao tentar empreender um comportamento é a extensão. Procuramos estender a uma nova situação a postura que tivemos em uma situação anterior e que consideramos correta. Além da extensão, Varela (1992) cita outros dois movimentos: a atenção e a consciência inteligente. A atenção à uma nova situação permite que não se faça uma simples transposição, mas se possa criar algo novo e compor com a imediatidade da situação que se apresenta, por meio da consciência inteligente. Este terceiro movimento implicado na produção de comportamentos adequados ao contexto e na valoração ética do sujeito que Varela define como a consciência inteligente, compreende o uso da razão.
Embora a maior parte de nossas ações éticas seja de natureza pré-reflexiva, o sujeito pode articular uma explicação ou justificativa que pode ser tomada como aprendizado, ampliando, desta forma, o repertório de possibilidades de ação ética. Essas explicações, que se traduzem em juízos racionais, participam também na produção das ações pré-reflexivas posteriores, de modo que ocorre um processo de retroalimentação entre o uso da razão e o confronto imediato com as situações cotidianas. Estes movimentos se constituem articuladamente e podem ocorrer em ordens distintas, dependendo da situação. A crítica de Varela aos estudos ocidentais sobre ética não é no sentido de que a relação do sujeito com a moral não seria relevante, e sim de observar que na maior parte do tempo agimos de forma pré-reflexiva e, por isso, a produção dessas tendências de ação é um enfoque importante aos estudos da ética.
Articulamos às proposições enativas a respeito da ética o conceito de normatividade, compreendido como um processo distinto de normalização (Canguilhem, 2009) e que se refere a uma potência de criação de novas formas de vida e não a uma adequação às normas socialmente estabelecidas. A vida é normativa, pois a cada momento estamos atualizando nossa forma de relação consigo e com a alteridade, mantendo e modificando padrões de atividade. Embora o termo “heteronormatividade” possa parecer remeter à ideia de normatividade, trata-se, ao contrário, de práticas e discursos normalizadores (de reiteração de uma norma).
Quando consideramos a produção de uma competência ética nos termos propostos por Varela (1992), centrada no estabelecimento de normatividade e não em juízos morais, encontramos ressonâncias com a proposta de Dreyfus e Dreyfus (2000) a respeito do desenvolvimento de expertise. De acordo com essa teoria, nos movemos de novatos a experts através de três transições: (1) da dependência de princípios abstratos para o uso de experiências concretas; (2) de considerar todos os elementos de uma dada situação como igualmente significativos, para poder identificar os mais relevantes; e (3) de "observador imparcial" para "ator envolvido". Na primeira transição, fazemos um deslocamento do conhecimento conceitual para a aplicação prática na experiência presente. Na segunda, gradualmente, uma hierarquia de relevância vai sendo construída. A terceira pode ser compreendida como a consolidação de um saber-fazer incorporado, que organiza um modo de estar no mundo. Nessa última transição, o observador não vê a si mesmo como estando fora da situação, e sim implicado em seu desenvolvimento. Tornar-se hábil nesse modelo significa, assim, afastar-se da dependência de regras, que caracterizam um saber intencional ou saber-sobre (know what), em direção à compreensão de um campo de prática como uma totalidade, que pode ser apreendida sem reflexão autoconsciente, um saber pré-reflexivo ou saber-como (know how).
Em relação ao aprendizado das práticas éticas, acreditamos que as transições propostas por Dreyfus e Dreyfus (2000) não acontecem necessariamente de forma linear. Alguns aprendizados parecem acontecer de forma semelhante ao esquema proposto por Dreyfus e Dreyfus (2000), demandando um maior esforço inicial deliberado e, posteriormente, sendo transformado em um certo tipo de prontidão para a ação. Um exemplo desses comportamentos são as regras sociais ensinadas às crianças, que podem gerar algum estranhamento inicial, mas com o tempo incorporam-se ao que na experiência vivida do sujeito é descrito como seu self, seu modo de ser e estar no mundo. Adquire-se, portanto, a capacidade de extensão de comportamentos (Varela, 1992). Outras condutas éticas, por sua vez, não chegam a passar pelo regramento moral declarativo ou por uma experiência direta de ensino e, desta forma, o corpo do “expert ético” é produzido diretamente através do confronto imediato com as situações de encontro com o outro.
Controvérsias
Na escola, estão presentes uma série de discursos e práticas, que compõem os modos de convivência, que podem ser pensados utilizando a ideia de controvérsia. O termo controvérsia é utilizado por Bruno Latour (2000) para definir o momento em que as ideias ainda não são “caixas-pretas” prontas. Caixas-pretas são as ideias consideradas fatos, que não são discutidas ou questionadas, apesar de muito utilizadas. O termo caixa-preta foi empregado na cibernética para substituir algo considerado complexo demais e que não precisa ser entendido. “Ou seja, por mais controvertida que seja sua história, por mais complexo que seja seu funcionamento interno, (...) a única coisa que conta é o que se põe nela e o que dela se tira” (Latour, 2000, p. 14). Assim, a caixa preta é tomada como pronta e fixa, sendo difícil questionar sua história ou pensar em outras alternativas.
Para Latour, antes de uma caixa preta se fechar, ela passa por um momento de controvérsia, no qual se pode perceber diferentes posicionamentos em disputa. Abrindo caixas-pretas, ou seja, acompanhando as controvérsias, podemos perceber quais são as associações que as tornaram o que são. Notamos que a “verdade”, então, é o resultado do fim de uma controvérsia e fechamento de uma caixa-preta, a qual não será mais questionada até que outra controvérsia emerja ou esta seja retomada. Não se pressupõe uma verdade prévia que pode ser acessada para resolver a controvérsia, pois o estatuto de verdade é adquirido apenas após a resolução, sendo seu efeito.
Solucionar uma controvérsia é criar uma verdade, não sendo possível utilizar a verdade para explicar o fim da controvérsia. Uma caixa preta é algo que tomamos como verdadeiro, mas não há caráter transcendental nesta verdade, ela é apenas uma estabilização das controvérsias, as quais podem sempre ser retomadas. A ideia de controvérsia apresenta, assim como a enação, uma crítica à visão objetivista do mundo.
As controvérsias acontecem entre os diversos atores em uma rede, considerando rede não como um objeto ou uma infraestrutura, mas como o próprio conjunto daquilo que é produzido entre os humanos e não-humanos (Lemos, 2013; Latour, 2005a). A rede é “mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a de estrutura, mais empírica que a de complexidade” (Latour, 2005b, p. 9). É um conjunto dinâmico, não o que conecta, mas o que é gerado nas associações. "Não há um global agindo sobre o local, nem um local independente do global. Há conjuntos mais ou menos estáveis que se interpenetram e constituem associações para determinada ação” (Lemos, 2013, p. 61). A partir deste conceito de rede, não se trabalha com ideias de local e global, mas com conexões que possibilitam certas produções.
Latour (2005b) coloca que a pesquisa que se propõe a pensar a partir do conceito de rede não busca explicar a natureza, as coisas em si, mas sim nossos coletivos. Assim, buscamos evidenciar elementos que compõem um conjunto, dar visibilidade às relações que constituem determinado objeto que não existe independente da ação de conhecer do pesquisador. Pensar as controvérsias através da rede é pensar suas formas de produção em nossa sociedade e o papel de cada ator na forma como se manifestam. Não se busca uma generalização de técnicas ou conhecimentos, ou uma descrição singular, mas a descrição de uma rede de atores que agencia, em suas práticas, a existência daquilo que observamos. As redes "não são nem objetivas, nem sociais, nem efeitos de discurso, sendo ao mesmo tempo reais, e coletivas, e discursivas" (Latour 2005b, p. 11). Enquanto os assuntos se mantêm controversos, “podemos apreender um coletivo de mediações, negociações de interesses que mantêm articulados humanos e não-humanos” (Nobre & Pedro, 2010, p. 54). Mesmo quando encontramos soluções, o problema não deixa de subsistir como aquilo que organiza a gênese dessas soluções, como um horizonte daquilo que acontece e aparece, estabelecendo o seu sentido (Deleuze, 1998). Com isso, as soluções não suprimem os problemas, mas encontram neles as condições sem as quais não teriam sentido.
Quando descrevemos uma controvérsia no contexto escolar estamos apontando para uma situação em disputa, que pode ser resolvida de diversas formas. Não há uma verdade pronta “lá fora” para ser alcançada, mas uma negociação a ser realizada. Por não tratarmos como uma caixa preta, um assunto não está “pronto” ou “resolvido”, pode haver uma construção coletiva sobre ele. Assim, propomos pensar a convivência com a alteridade como uma controvérsia, sobre a qual se pode buscar soluções coletivas.
Estratégia Metodológica
Os estudos de Varela (1992) e Dreyfus e Dreyfus (2000) apontam para a constituição de modos de convivência por meio da articulação entre ações reflexivas e pré-reflexivas. A partir das proposições destes autores, consideramos que a produção de narrativas, que não se configurem como registro moral, e sim como dispositivos de competência ética seja um modo interessante de colocar em análise práticas do cotidiano escolar. Estas experiências podem evidenciar o caráter controverso de certas práticas (Latour, 2000). Tal prática é compreendida por nós como a efetivação de uma política da narratividade por compreender a posição que se assume ao constituir formas de expressão a respeito do que acontece em relação ao mundo e a si mesmo (Passos & Barros, 2009). As formas de narrar, enquanto exercício ético de virtualidade de si e dos coletivos, podem ser diversas, tanto a partir da escrita como por meio da oralidade.
Neste estudo, foram realizadas, no período de aproximadamente dois anos após a finalização do movimento de ocupação, três entrevistas, sendo uma individual - com uma estudante - e duas coletivas - a primeira com quatro estudantes e a segunda com a participação de uma professora e uma estudante. Os alunos participantes cursavam ensino médio na escola e tinham idades entre 15 e 19 anos. A opção pelas entrevistas coletivas se configurou após a realização do encontro com a primeira entrevistada, por solicitação dos demais entrevistados. As três entrevistas ocorreram na Escola Técnica Estadual de Canguçu (ETEC), no Rio Grande do Sul, Brasil, onde aconteceu uma ocupação. O movimento foi deflagrado em maio de 2016, com apoio da ampla maioria dos estudantes da escola que participaram das assembleias que o deliberaram. Obteve também apoio de vários professores e da direção, com a qual os estudantes conversaram antes de dar início à ocupação. A escola, de ensino médio e técnico em agricultura e contabilidade, permaneceu ocupada por cerca de um mês, com a participação efetiva de aproximadamente 30 estudantes.
A ETEC existe desde 1964, primeiramente como Escola Técnica de Comércio José Bonifácio, ofertando o Curso Técnico em Contabilidade. Em 1974, foi criada a primeira turma do Curso Técnico em Agricultura. Hoje a escola oferta ao público Ensino Médio Politécnico, Técnico em Contabilidade (Subsequente), Técnico em Agricultura (Subsequente e Integrado ao Ensino Médio). Ao todo, conforme informações presentes em seu website (https://www.escolaetec.com.br), a escola conta com, aproximadamente, 650 alunos, 55 professores e 20 funcionários.
O assunto principal abordado nas entrevistas foram as reverberações posteriores do movimento de ocupação da escola - realizada entre maio e junho de 2016 - nas práticas escolares e nas relações ali estabelecidas, entre pais, professores, gestores, estudantes e comunidade. A condução das entrevistas ocorreu de forma aberta, atentando à experiência presente do relato do acontecimento da ocupação. Com esse procedimento, a metodologia alia-se à abordagem enativa, procurando distanciar-se do paradigma representacional (Tedesco, Sade & Caliman, 2013).
Os extratos utilizados na presente discussão estão numerados ao longo do texto, bem como estão identificadas as entrevistas de que foram oriundos. Os estudantes não recebem qualquer tipo de identificação individual, devido ao seu interesse em produzir uma narrativa coletiva. As entrevistas foram realizadas após assinatura de consentimento livre e esclarecido dos estudantes e dos pais em casos em que eram menores de idade. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo comitê de ética e pesquisa do Instituto de Psicologia da UFRGS sob número CAAE 71661517.7.0000.5334, após ser encaminhado via Plataforma Brasil. O registro das entrevistas foi feito através de gravação em áudio e posterior transcrição.
Resultados e Discussão
O movimento de focar a controvérsia possibilita desnaturalizar algumas visões sobre o tema, que assumem que ele está bem definido, demonstrando outras posições possíveis. Além disso, ao demonstrar uma controvérsia se gera responsabilidade sobre o seu resultado, algo que não é claro quando se toma uma resposta como a única possível. Acreditamos que demonstrar controvérsias pode contribuir para produzir a reflexão e a prontidão para a ação necessárias à expertise no campo ético como descrito por Varela (1992). Este movimento aconteceria em contraposição aos julgamentos baseados em uma caixa-preta moral.
Para que se caminhe de uma reiteração de comportamentos discriminatórios para a produção de novas formas de conviver abertas à diferença, é necessária a disposição (pré-reflexiva ou reflexiva) ao exercício de virtualidade de si e dos coletivos. Especificamente em relação à heteronormatividade e suas atualizações enquanto norma, a mesma pode ser compreendida - em uma perspectiva enativa - como um conjunto interconectado de práticas e pressuposições que constrói todos e todas como heterossexuais a menos que o contrário seja demonstrado, assumindo a heterossexualidade como a orientação sexual não apenas preferida, mas desejável (Beagan, Fredericks & Goldberg 2012). Em outras palavras, a heteronormatividade age como um senso comum (Maturana & Varela, 1995; Varela et al., 2003) ou como uma caixa-preta (Latour, 2000), um conjunto de relações que tomamos como garantidas, tipicamente produzidas a partir da participação de um grupo cultural. O senso comum pode ser pensado simultaneamente como a produção de uma maneira de ver e agir no mundo, e também como uma maneira de ocultar, uma vez que essas regularidades do agir se baseiam em um histórico de formas de relação bem difundidas e, portanto, tomadas como estáveis, regulares ou óbvias. Esta suposta obviedade esconde controvérsias existentes sobre o assunto, mas elas não deixam de acontecer. As controvérsias não são sempre iguais, e podem surgir diferentes discursos ou posições, que podem ser constrangidas ou ampliadas dependendo da abertura do coletivo em relação aos temas. É parte da construção de um comum na escola não apenas estudar a respeito daquilo que é considerado o outro, a diferença, mas visibilizar as operações que produzem uma norma (Kumashiro, 2000). Na segunda entrevista, os estudantes contaram uma situação vivida na ocupação na qual a heterossexualidade como norma adquiriu maior visibilidade:
No dia que a gente ocupou a gente foi pegar colchões no alojamento pra gente levar pras salas pra gente dormir, e aí numa das salas onde eles dormiam, entre os colchões a gente encontrou um pedaço de pau com alguns nomes de alguns alunos e escrito bem grande assim “cura gay”, aí tinha o nome dos alunos que fizeram, a gente entregou pra direção, mas não sei, acho que não tomaram nenhuma providência, mas todo mundo que tava na ocupação viu (Extrato 01, entrevista 2).
Percebemos diferentes ações sendo produzidas em relação à heteronormatividade no contexto escolar: um grupo de estudantes assumindo a heterossexualidade como a norma desejável, outro grupo questionando este posicionamento e a direção da escola não se pronunciando. A reflexão sobre a norma ocorre quando a regularidade das ações passa por alguma perturbação. A postura de abstenção da gestão promove a não transformação das práticas sociais relacionadas à heteronormatividade, pois incide nas relações cotidianas como reiteração da norma, uma vez que o estabelecido no senso comum é a heterossexualidade e outras orientações sexuais são sentidas como desvio, defeito ou anormalidade a ser curada pelo primeiro grupo de estudantes.
O senso comum constitui-se como um pano de fundo - e critério de pertinência - para todas as ações realizadas em um determinado grupo, permitindo a emergência de um sentido compartilhado. Entendida como senso comum, a heteronormatividade configura a heterossexualidade não apenas como descritivamente normal - um termo estatístico - mas prescritivamente normal, isto é, todas as demais orientações sexuais são desvios da heterossexualidade, hierarquicamente inferiores, e requerem uma explicação. Em outro momento da entrevista, vemos o relato de uma cena entre dois estudantes permeada por crenças de perspectiva religiosa.
Teve um (caso de homofobia) ano passado (...) um amigo nosso que teve junto na ocupação também, ano passado ele estudava numa turma que tinha uma menina muito religiosa e aí ela falou pra ele que ele ia pro inferno porque ele era gay, mas além disso eu nunca fiquei sabendo, claro, tem muita coisa que acontece e eu não fico sabendo (Extrato 02, entrevista 2).
Na cena descrita acima, a religiosidade da estudante constitui o senso comum a partir do qual suas ações em relação à homossexualidade se baseiam. Este relato nos remete ao embate operado entre os movimentos de ocupação e o MESP em relação à abordagem do tema na escola. Segundo as proposições do MESP, as discussões sobre gênero e orientação sexual na escola são compreendidas como doutrinação ideológica. O movimento defende que seja resguardado o direito à educação moral aos pais e que todo o conteúdo moral seja circunscrito, caso for ofertado, como disciplina optativa. A discussão das práticas sociais é indesejada por considerar-se que possui caráter moralizante e que a orientação moral do sujeito, durante a infância e adolescência, pertence à família. Além disso, o MESP pressupõe também uma visão de ciência e de realidade pautadas por uma espécie de neutralidade, que na prática, reitera as posições de poder constituídas socialmente e, desta forma, dificulta o estabelecimento de normatividades, ou seja, de modificações das práticas a partir do encontro singular com o outro.
A possibilidade de reflexão a respeito de como conviver com o outro e o entendimento da alteridade fica circunscrito ao âmbito privado, sendo a discussão a respeito da vida em sociedade deslocada do caráter público, que lhe é constituinte. É importante ainda observar que isso ocorre em torno da vida escolar, sendo que a escola é tradicionalmente considerada como uma das principais instituições no processo de socialização do indivíduo ao longo da infância e juventude.
Uma das questões que emergem nesse cenário é o desafio de como estabelecer relações de convivência para além de pequenos grupos dos quais o sujeito participa e que possuem sistemas de crenças e valores controversos, quando se passa a interações em contextos sociais mais abrangentes. A convivência com a diferença em qualquer configuração social não pressupõe a inexistência de conflitos, mas quanto mais fechadas as ideias existentes em um grupo social, mais imperativo pode tornar-se o esforço para o reconhecimento de uma norma como legítima. Ao conviver, temos o senso comum como “pano de fundo” produzido local e historicamente a partir de valores e emoções relacionadas às formas consideradas desejáveis de viver. É a partir deste “fundo” que realizamos nossas ações e que cada interação social pode desencadear embates.
Por ser compreendida como senso comum, podemos pensar a heteronormatividade como configurada por ações concretas, constituindo um plano coletivo de experiências, podendo ser reconfigurada continuamente e, portanto, também servindo como ponto de partida para a produção de novos sentidos. Compreendemos que os modos de enfrentamento às situações de homofobia, citados pelos estudantes, são exemplos interessantes para pensar a condição incorporada do aprendizado dos comportamentos éticos e de seu progressivo desprendimento de regras, como apontado por Dreyfus e Dreyfus (2000).
Acho que comparado a outras escolas que a gente vê aí, pelo menos na questão de homofobia acho que a nossa é mais de boas porque já teve debate, já foi organizado bastante debate fora da ocupação até, então tudo isso contribui (Extrato 03, entrevista 2)
A estudante relaciona o que na sua avaliação é uma baixa incidência de situações de homofobia, em comparação a outras escolas, a uma cultura já existente de abertura para este tipo de debate. Durante a ocupação, houve uma atividade sobre o tema e outros debates já haviam sido promovidos na instituição. Ao mesmo tempo, na entrevista, os estudantes relatam que têm liberdade para colar cartazes na escola que expressam ideias e que já aconteceu de serem espalhados cartazes com conteúdo lgbtfóbico. Nesta ocasião, estes estudantes removeram os cartazes e colocaram outros com conteúdo que lhes parecia mais adequado ao objetivo de produzir respeito às diferenças na escola. O fato de os cartazes terem conteúdos divergentes demonstra a controvérsia existente sobre o tema, que poderia ser tomada como uma caixa preta em outros contextos. Demonstrar a controvérsia removendo e trocando os cartazes desestabiliza o senso comum heteronormativo.
Segundo os estudantes, os debates, que articulam conhecimentos intencionais em relação à diversidade sexual, foram considerados importantes para que a escola não seja um espaço hostil a quem escapa à heteronormatividade. Neste sentido, a inserção de discussões a respeito de gênero e sexualidade é especialmente importante para disparar novas possibilidades de convivência. Conforme proposto por Dreyfus e Dreyfus (2000), a ação ética sucede da necessidade de observar conceitos do campo da diversidade até a construção de práticas de respeito às diferenças na escola que dispensam a evocação constante de um know-what, um saber sobre o tema. Esta é uma questão bastante sensível e que exemplifica bem as situações nas quais o desenvolvimento da competência ética depende também da construção de explicações e da articulação de conhecimentos declarativos. Tais discussões, no entanto, se não conectadas a práticas concomitantes e posteriores de validação da alteridade, tendem a produzir poucas reverberações nas coordenações de ação na convivência social. Além disso, a abordagem declarativa dos marcadores sociais da diferença - classe, gênero, orientação sexual e raça - na escola de Canguçu, não se restringiam a debates e palestras, mas tem uma participação na própria organização do espaço coabitado. Pode-se observar diversos muralismos nos espaços da escola, articulando a expressão artística com temas importantes para os estudantes, de forma que se incluem nos desenhos a bandeira LGBT e alusões a pautas de direitos trabalhistas. Os cartazes, já mencionados anteriormente, também são uma forma de imprimir, no espaço, a cultura de disputar politicamente a expressão de modelos distintos de convivência.
O lugar do conhecimento intencional aparece com significativa relevância nas práticas da ocupação da escola. Em uma das entrevistas, quando falávamos de como os estudantes tratavam dos temas relativos aos marcadores sociais, uma estudante disse “a gente conversava sobre todos esses temas e mais temas porque a gente tinha que conversar pra fazer, a gente ia trocando ideia, né?” (Extrato 04, entrevista 1). O lugar da troca de ideias, das rodas de conversa não está relacionado a um tipo de aprendizado somente teórico ou à troca de informações dissociada da prática. “Conversar para fazer” indica que a discussão de questões relacionadas à diversidade funcionava como uma estratégia para que as práticas na ocupação tivessem coerência com a lógica de respeito a que se propunha o movimento.
Na terceira entrevista, uma estudante menciona que ocorreram situações de machismo com colegas na escola, embora nunca tenham ocorrido com ela. Em sua avaliação, quando as turmas vão adquirindo a capacidade de questionar e responder a falas machistas de professores, essas situações tendem a diminuir. Por vezes, o avanço na construção de relações com a alteridade se dá justamente por meio do questionamento da autoridade. A professora, participante da pesquisa, concordando com a avaliação de que o questionamento dos discursos discriminatórios contribui para o enfraquecimento dos mesmos, atribui às aulas de teatro um papel significativo na melhora do vínculo da turma, de forma que esta coletivização, este estreitamento de relações, possibilita o enfrentamento dos discursos e práticas discriminatórias na escola:
Eles já são uma turma massa e eu acho que a organização deles pro teatro deixou eles mais unidos assim, mais amigos sabe? Até que eles se chamam pelos apelidos dos personagens do livro que eles encenaram (...) e eu acho que isso uniu mais eles assim, então eles são uma turma que a maioria é amigo assim, que consegue ter uma relação. Embora toda a diferença eles conseguem ter uma relação louca de zuada, eles se respeitam. (Extrato 05, entrevista 3).
O estabelecimento da relação entre o teatro e o enfrentamento ao machismo na escola - que não é direta, mas está associada à emergência de uma coletividade bem articulada - é uma pista interessante tanto no que se refere ao papel do corpo nas práticas educativas, quanto no interjogo existente entre know-how e know-what. As diferentes formas de conhecimento são produções incorporadas, de modo que é bem ilustrado na prática do teatro, que permite aprendizados para além da atuação de personagens, mas também na produção mais abrangente de práticas éticas no campo escolar.
Para além da construção de uma escola mais comprometida com a diferença, as ações éticas empreendidas pela ocupação também atuam na produção de subjetividade dos agentes implicados com a escola, na ampliação das conexões que estabelecem e na transformação dos coletivos através da abertura das caixas-pretas da convivência.
Considerações Finais
Percorremos aqui a proposta de Varela (1992) a respeito da ética como uma competência, algo que podemos aprender e aprimorar na prática. O que emerge nesse processo é um tipo de normatividade. Articulamos com esta proposta os estágios de transição para a expertise, de Dreyfus e Dreyfus (2000), que permeiam o aprendizado dos comportamentos éticos. Atentar a estes estágios é relevante para pensar as práticas escolares, aqui exemplificadas no contraste entre o movimento Escola Sem Partido e as ocupações realizadas no Brasil em 2016.
É importante salientar que embora os estudos de Varela (1992) tenham como analisadores práticas religiosas, o que interessa reter aqui é o processo incorporado através do qual se dão os aprendizados éticos. A relação com a religiosidade, que no Brasil atual certamente ocorre de maneiras diferentes a dos estudos citados, não se constituiu como nosso principal enfoque e merece atenção em estudos futuros. O imbricamento entre as vivências cis e a heteronormatividade, de modo que gênero e orientação sexual não se sobrepõem, mas se articulam, também poderia gerar novas análises. A questão da heteronormatividade, por sua vez, não era o enfoque principal das entrevistas, mas um tema que emergiu durante a pesquisa. Desta forma, sugere-se a realização de estudos posteriores que abordem especificamente este tema na escola, para aprofundá-lo.
A articulação entre o desenvolvimento da expertise proposta por Dreyfus e Dreyfus (2000) e competência ética conforme discutida por Varela (1992) nos permite compreender que a emergência de novos modos de agir - que envolve a produção de uma ação pré-reflexiva e não representacional - não se dá de modo imediato. Não se passa do não respeito às diferenças para o respeito em um único salto sobre um abismo ontológico. É um processo com idas e vindas, que vão gradualmente formando uma nova rede que constitui uma atualização da normatividade do sujeito e dos sistemas sociais. Desta forma, a reflexão teórica desenvolvida nos permite contrapor uma das teses principais da escola sem partido: a interdição da reflexão sobre gênero na escola. Conforme apontamos, para o MESP a discussão de temas como gênero e sexualidade na escola é uma espécie de doutrinação ideológica, ao passo que os estudantes que compõem o movimento de ocupação afirmam a importância do debate - inicialmente teórico - para a diminuição do preconceito e dos comportamentos discriminatórios na escola. Tanto a partir dos processos implicados na compreensão da ética a partir de Varela (1992), quanto em Dreyfus e Dreyfus (2000) identificamos a importância de que haja na escola espaços em que estudantes e professores possam debater questões relacionadas aos marcadores sociais da diferença, de forma que padrões violentos de comportamento sejam interrompidos.
A ideia de que poderia não acontecer a discussão sobre gênero e sexualidade nas escolas toma o assunto como uma caixa-preta, como se já fosse decidido e houvesse uma verdade a ser utilizada. O que percebemos, entretanto, é que este senso comum é em si um discurso que se reitera, não ausência de discurso. Ao abrir a caixa-preta e demonstrar controvérsias o que se está fazendo é abrir espaço para outros discursos e para que se produza uma nova estabilização das formas de agir a partir da negociação coletiva.
Uma política da narratividade implicada em explicitar as dúvidas, inquietações, desconfortos e até de situações de violência vivenciadas pelos alunos, tende a oportunizar ao mesmo tempo virtualização do coletivo e formas de convivência em que o debate seja parte do fazer cotidiano/incorporado da escola. Trata-se de uma política da narratividade, que vai possibilitando um interjogo entre os saberes intencionais e a aprendizagem de novos comportamentos, sem necessariamente hierarquizar teoria e prática ou tomar a ética como algo a ser aprendido apenas por meio de instruções, mas tomá-la como virtualidade dos agentes implicados, que se atualiza em ações reflexivas e pré-reflexivas. Esta virtualidade é ligada ao fato de haver controvérsias em torno do tema, não sendo uma abertura apenas individual, mas produzida no coletivo. Sempre surgem novas estabilizações, novas caixas-pretas, mas pode-se continuar apontando as controvérsias que as geram para produzir espaços acolhedores a uma diversidade de experiências no coletivo.