Traduções, fronteiras e articulações
A o propor como objetivo deste artigo discutir os caminhos e perspectivas adotadas em uma pesquisa TAR- Teoria Ator Rede - e suas possibilidades de composição de outros desenhos de pesquisa faz-se importante apresentar algumas reflexões feitas por Bruno Latour e que podem influenciar sobremaneira o posicionamento do sujeito enquanto pesquisador. Latour (2012a), em “Cogitamus”, oferece uma importante contribuição à forma de se perceber o trabalho de pesquisa, analisando-o como esforço de tradução, ou seja, um movimento de tradução e negociação em um curso de ação composto por agentes diversos, cada qual vinculado a suas próprias traduções. Para o autor, o curso de ação seria o “objeto” a ser investigado. Seguir seu fluxo seria o “método”, percorrendo registros e inscrições, e o “resultado” seria o “deixar falar” tudo aquilo que cruza o caminho e ajuda a compor a realidade em questão.
O autor fala da necessidade de se contar a história das ciências atrelada a das técnicas, da religião, da filosofia e da política, ou seja, relacionando-a aos demais saberes; e, com isto, devolver a “Ciência” à sua pluralidade, suas circunstâncias de produção e sua possibilidade de indagação e diálogo. Para o autor, os movimentos de produção de conhecimento são descontínuos, cheio de deslocamentos (desvios, substituições, interrupções) e composições (vínculos, articulações, associações), não o caminho linear dentro de fronteiras bem estabelecidas que se é suposto seguir para que algo seja considerado verdadeiramente científico. A partir desta perspectiva, devemos considerar que as ciências não estão recortadas do resto dos acontecimentos dispersos no mundo, que a explicação científica de uma ação não é plena garantia ou símbolo unânime da manifestação da verdade e que o cientista pode dar-se a percorrer uma infinidade de possibilidades de intervenção ao seguir as ações e seus agentes.
Outra reflexão de Latour (1999), presente em “How to talk about the body”, traz uma importante contribuição para se pensar o método, ou seja, a forma de se prosseguir na pesquisa. Latour se utiliza de algumas diretrizes para descrever, a partir de Stengers e Despret, uma proposta normativa de posicionamento em pesquisa denominada como “epistemologia política normativa”. Descreve, deste modo, o ato de conhecer, independentemente de uma metodologia geral, e apresenta o risco como necessário à realização de articulações no decorrer da pesquisa, adentrando por meio dele em um campo de indeterminações. Entretanto, alerta para a importância da produção de boas generalizações no intuito de não agir de maneira eliminacionista, desconsiderando versões alternativas do que seria o multiverso. É neste sentido que o pesquisador deve prosseguir, questionando a submissão aos enquadres científicos e a tendência às estabilizações de verdades, preocupando-se com o seu papel do pesquisador na composição de um mundo comum.
Estas e outras considerações trazidas por Latour podem servir de inspiração para demais pesquisadores no sentido de experimentar este modo de pensar e de atuar na atividade de pesquisa em humanidades científicas; compartilhando deste anseio de construção de outro lugar para o pesquisador, outros caminhos de pesquisa, outros olhares para aquilo que é pesquisado e, principalmente, tendo em conta a pluralidade de traduções e verdades.
Latour (2012a) utiliza o termo “interesse” para tratar da capacidade de articulação das ciências com temas para além de suas fronteiras, compondo então outras traduções, mais amplas e inclusivas daquilo que as cercam. É neste sentido que temas que tratam de uma dimensão pouco analisada, e mais ainda, traduções, muitas vezes contadas por seres não alcançáveis diretamente pelo pesquisador, toda esta composição aponta para uma região de fronteiras, sem localização determinada em qualquer área científica. Desta maneira, enquadrar um conjunto de acontecimentos em esquemas explicativos médicos, psicológicos, religiosos, sobrenaturais ou culturais, por exemplo, seria reduzir suas articulações e apagar suas contradições.
Ao seguir as pegadas de Latour, busca-se alcançar traduções daquilo que elegemos como objeto de interesse e não a verdade derradeira; busca-se falar daquilo que se tem diante dos olhos de maneira atenta, mas sem julgar a partir de uma única fonte de verdade ou medir a sua funcionalidade sob um olhar restritivo, indagando a dignidade das ações ou e de seus agentes; busca-se, por fim, respeitar os desarranjos como parte do curso de ação. A este respeito tem-se que: “(...) dado curso de ação está sempre composto por uma série de desvios cuja interpretação, logo, define um desajuste que proporciona a medida da tradução. E uma tradução, por conseguinte, sempre é fonte de ambiguidade (esta é a vantagem do termo)” (Latour, 2012a, p.31).
Seguir por este caminho, seria, conforme aponta o próprio autor, trazer o multiverso ao universo e abrir as discussões científicas para vários temas para além de suas fronteiras, sem priorizar uma dada tradução ou diminuir uma manifestação definindo-a como “crença”. Latour se utiliza da palavra multiverso para explicar o movimento de descrever as distinções de composições de mundos, cabendo a cada parte envolvida neste trabalho a tradução, a explicitação de seu cosmos. Existe, assim uma sobreposição de cosmogramas que devem ser descritos e tornados públicos.
Negociações, composições e afetações no campo
Ao refletir sobre o modo de estar no campo de pesquisa e, sobretudo, em relação ao fato de se deparar com situações que exijam a constante revisão do lugar do pesquisador, temas como o de negociação e composição emergem como ferramentas de auxílio neste encontro com os demais atores da pesquisa, tentando se conciliar com o espaço, ao invés de se enveredar na constante produção de estranhamentos como técnica mais conhecida e habitual. A proposta passa por um modo de condução na pesquisa não apenas propiciador de um desempenho de observação e descrição do contexto, mas sim de ocupação de lugares de “agência”, atravessando e dividindo as mesmas atividades, questões, conflitos e expectativas dos sujeitos presentes. É preciso assim ser atravessado pelo campo ao mesmo tempo em que o atravessa.
Em certa altura de minha inserção pessoal no contexto de pesquisa - realizada em centros de tratamentos espirituais no Brasil, junto a médiuns e seus pacientes que se submetiam a diversas técnicas curativas, dentre elas cirurgias espirituais, e a partir das influências acadêmicas, algumas importantes questões foram se tornando prioritárias no processo de pesquisa. Surge em decorrência disto, a indagação, inspirada em Despret (2011a) em relação a como fazer perguntas de modo a fortalecer e colaborar na elaboração por parte dos interrogados de suas próprias convicções e identidade. Buscava com esta inspiração, uma forma de acercar-se destas práticas de maneira que se pudesse ampliar a atenção, ou seja, aumentar a sensibilidade sobre o assunto, colaborando para a pesquisa e suas perguntas, mas ao mesmo tempo contribuindo para que os pesquisados pudessem reforçar sua identidade e o discurso sobre suas próprias práticas.
Neste sentido, o foco estaria não na ilusão de neutralidade ou de um olhar revelador, mas na tentativa de fugir das assimetrias, construindo em conjunto com os envolvidos um diálogo sobre suas práticas e uma percepção mais situada daquele cenário - o termo situado remete à contribuição de Haraway (1995) ao discutir sobre uma prática de objetividade onde os saberes são localizados, específicos, particulares, abordados a partir de uma perspectiva parcial, ou seja, através de pontos de vista menos organizados por eixos de dominação. Aos poucos, como se dá corriqueiramente nas relações entre iguais, pode-se desenvolver um processo de identificação e de confiança entre pesquisador e pesquisado. Um dos pontos principais na criação deste contexto de confiança e reciprocidade foi deixar visível o interesse real pelo que ocorria naquele contexto, não apenas como objeto de pesquisa, de crítica ou de análise, mas como modo de relação que interessava pessoalmente e como real possibilidade de entrega àquela verdade. Em outras palavras, em um primeiro momento, ao afinar a minha própria percepção daquilo que se passava em campo com a percepção dos demais, ao demostrar de maneira clara e sincera abertura e credibilidade em relação aos vários temas ali tratados, um canal de trocas pouco a pouco foi se estabelecendo. Assim, pude compreender que ao estabelecer um diálogo sincero e interessado a presença do pesquisador poderia ir se tornando comum e bem vinda.
Em relação às negociações no decorrer da pesquisa, um fato chamou a atenção; do mesmo modo como as expectativas dos pesquisados lançam sobre o pesquisador um ideal de pesquisador ou de dever para com os pesquisados, as próprias expectativas do observador/pesquisador destinam certas histórias aos observados/pesquisados; ou seja, observador/pesquisador e observado/pesquisado nutrem expectativas uns sobre os outros, projetando histórias e imagens ideais. Sob a influência de Despret, Latour, Favret Saad, dentro outros, buscamos nos desvencilhar da tendência de, durante o processo de pesquisa, tentar se separar a todo custo daquilo que é pesquisado, construindo um objeto onde se deposita a ilusão de um olhar descompromissado. Sob a inspiração específica de Despret (2011b), podemos pensar em como pesquisar em campo de uma forma que não apenas descreva uma realidade que impõe seus constrangimentos ao discurso. Ou seja, como dialogar com uma realidade com a qual não se concorda plenamente e às vezes nem em partes, destoando assim da teoria prévia sobre o que é pesquisado? Assim, pode-se pouco a pouco ir se desvencilhando do compromisso com a entidade “verdade científica”, dando visibilidade e voz àquelas tantas pequenas e úteis verdades (no sentido de producentes) que dão materialidade a um conjunto de práticas que se demonstram paulatinamente mais articuladas. Assim, dentro desta rede, pode-se deixar ser levado pelo fluxo dos encontros e realizar vivências, dialogar e ser influenciado pelos movimentos buscando apenas “estar- ser” presente.
Despret (2011b) fala de um “espaço de equilíbrio” entre observador e observado, ou o que seria para Latour “ocasião” - encontro que ensina acerca daquilo que se tem a dizer - em que o observador deve se colocar entre essas duas histórias, a do observador e do observado, criando deste encontro uma articulação nova. Em outro texto, Despret coloca ao pesquisador a questão de “que valor poderia ter um saber se ele não agrega ao mundo e àqueles que o compõe um pouco mais de interesse? (Despret, 2011c, p. 25)”, levando a considerar o compromisso do pesquisador não com a crítica e análise sem inserção adequada, mas com a tentativa de buscar soluções concretas para problemas reais. A autora convida assim a repensar de maneira produtiva o mundo pesquisado, seus atores, determinadas práticas, suas repercussões, a si mesmo e sua inserção no mundo. Colocações que levam a refletir sobre como determinadas práticas podem estar articuladas em uma rede, ampla ou mesmo pequena, e assim contribuir para formação de identidades para aquele grupo, estabelecendo-se como um modo de resistência a um imperativo de saúde, por exemplo, de cuidado, de comportamento, ou ainda criando saídas para algo antes problematizado e sem vias de solução.
Sendo assim, seguindo os passos de Despret (2011d), devemos estar atentos ao fato de que um posicionamento em pesquisa implica em afirmar certos regimes de existência, certos modos de presença, mesmo que presenças aparentemente imateriais, tendo em vista que a forma através da qual se vive uma experiência está ligada às teorias que descrevem esta experiência e que estas teorias encontram-se articuladas a dispositivos sociais, históricos e culturais.
Estar presente neste contexto estudado implica assim tentar compreender como as convicções do pesquisado atuam na construção de suas próprias práticas, algo que é ao mesmo tempo coletivo e individual. A este respeito, Despret (2011d), ao apresentar a teoria do luto descrita por Tobie Nathan, expressa que se deve ter em mente que todas as teorias precisam ser consideradas, mesmo que se contraponham à interpretação que normalmente somos habituados a dar a um dado fato. Abrir-se a outras traduções seria assim estender ao infinito as possibilidades de intepretação de um mesmo fato, mesmo que, a princípio e dentro daquilo com o qual estamos habituados, pareça bizarro.
Despret (2011b), ao abordar a questão de se pesquisar “com o outro” e não “o outro” descreve o processo de passagem que decorre da emergência da compreensão moderna de que uma determinada coisa antes vista como obra do invisível possa agora ser reconhecida como algo natural. Deste modo a autora nos leva a refletir sobre a possibilidade da teoria criar outra relação com aquilo antes desconhecido, trazendo em decorrência deste saber a possibilidade de reconhecimento de si como outro. A este respeito Despret (2011b) nos fala que:
(...) a cultura não apenas propõe o cuidado, mas vai guiar, influenciar inclusive a maneira como as pessoas experienciam seus problemas. Lá onde a cultura multiplica os seres que intervêm de maneira invisível na vida das pessoas, as pessoas querem se deixar capturar por estes seres para dar um senso e um conteúdo a seu mal-estar; lá onde a psichè, os pensamentos inconscientes, a culpabilidade são considerados responsáveis pelos problemas, as pessoas vão orientar suas experiências do mal-estar como uma experiência psíquica, de problemas mentais, de efeitos de culpabilidade, de desejo, etc. Eu digo a cultura no seu conjunto, cultura de demônios ou cultura de psichés, sabendo que as proposições terapêuticas vão participar da maneira como as pessoas vivem a experiência do sofrimento (Despret, 2011b, p. 7).
Goldman (2005), em texto que discute a etnografia e algumas contribuições de Jeanne Favret-Saada, fala da importância de deixar aqueles que são pesquisados falar, mesmo em ato, como sujeitos de um discurso autônomo, em contraposição à tendência de falar o pesquisador e assim fazer reverberar um discurso muitas vezes de dominação. De acordo com o autor, para uma inserção sensível do pesquisador no campo seria necessário conceber o tempo como relação, como oportunidade de afetação, ou seja, ser afetado para além ou aquém da representação, no decorrer dos encontros pelas situações com as quais se depara: “Foi apenas quando alguém diagnosticou que a etnógrafa fora ‘pega’ (prise) pela feitiçaria que passou a fazer algum sentido falar com ela sobre o assunto (Goldman, 2005, p. 150)”. Desta maneira, segundo o autor, uma diferente disposição em relação ao tempo pode permitir ao pesquisador se deixar afetar pelas mesmas forças que afetam os demais, estabelecendo então certa comunicação involuntária, não verbal.
Deste modo, para que se possa ter um bom encontro entre pesquisador e pesquisado faz-se necessário que haja a afetação do pesquisador, permitindo que o próprio campo fale por si só através dele, que o atravesse com seu discurso. Goldman (2003), em seu texto “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos”, fala sobre a vivência de determinadas situações consideradas de causas místicas, uma vez que o pesquisador esteja em contato (e em sintonia) com o campo, possibilitando outras afetações e compreensões advirem. Neste texto Goldman relata sua experiência como pesquisador, ao passar a ouvir os tambores dos mortos, mesmo sem ainda compreender porque aquilo ocorria. Experiência esta que colocou em ação algo ainda não explorado por ele e que o permitiu acessar aquela manifestação reservada outrora apenas aos membros daquele grupo. Seria como estender as margens da verdade e deixar-se levar pelo fluxo das sensações, das palavras, das emoções oferecidas no campo e como em uma espécie de “contágio” ir se conectando aos presentes para poder então adentrar naquela experiência.
Sendo assim, o pesquisador ao adentrar na dinâmica da pesquisa deve por ela ser afetado, se abstendo de uma discussão sobre a veracidade daquilo ali proposto, para poder então adentrar no fluxo da rede, movendo-se de modo a acionar em si algo que o permita sentir em seu próprio corpo, em seus pensamentos, em suas emoções os fenômenos ali experimentados. Com isto, as causalidades ali vividas e revividas nas práticas seguidas podem pouco a pouco passar a ser vias capazes de conduzir a um estado de compartilhamento, em que conversas, olhares e expectativas se encontrem, adquiram certa naturalidade, reconhecendo o pesquisador que em si mesmo ressoa algo daquele lugar. Todavia, como alerta Goldman (2005) ao citar Favret-Saada, ser afetado pelos efeitos reais do campo não implica necessariamente em se identificar com o ponto de vista dos pesquisados, mas sim em um “alinhamento entre programas de verdade”, reconhecendo as potencialidades abertas.
Favret-Saada (2005), em seu texto “Ser afetado”, fala sobre a aceitação por parte do pesquisador das expectativas dos pesquisados, se tratando assim de um passo fundamental para a entrada na experiência, não engessado em uma forma convencional de “cientista”, mas investindo os próprios problemas em relação com os demais. A autora nos fala que de início se trata de uma difícil escolha metodológica, mas que mais tarde se pode ver com maior clareza que há diante de si um instrumento de conhecimento, a que se referiu como ‘participação’:
No começo, não parei de oscilar entre esses dois obstáculos: se eu ‘participasse’, o trabalho de campo se tornaria uma aventura pessoal, isto é, o contrário de um trabalho; mas se tentasse ‘observar’, quer dizer, manter-me à distância, não acharia nada para ‘observar’. No primeiro caso, meu projeto de conhecimento estava ameaçado, no segundo arruinado (Favret-Saada, 2005, p. 157).
A respeito da dificuldade inicial perante a operação de conhecimento e a sensação de desviar-se da pesquisa quando eventos da vida pessoal parecem ser evocados, suscitados nos enlaces desta rede de comunicação, Favret-Saada (2005) ressalta que aceitar participar e ser afetado junto aos pesquisados pelas práticas do campo não tem nada a ver com uma operação de conhecimento por empatia vista como distanciamento e representação do lugar do outro ou mesmo como comunhão afetiva e fusão com os demais, mas sim empatia no sentido de deixar-se adentrar nestas intensidades específicas:
Se afirmo que é preciso aceitar ocupá-lo (o lugar do nativo, agitado por sensações, percepções e pelos pensamentos), em vez de imaginar-se lá, é pela simples razão de que o que ali se passa literalmente inimaginável, sobretudo para um etnógrafo, habituado a trabalhar com representações: quando se está em um tal lugar, é-se bombardeado por intensidades específicas (chamemo-las de afetos), que geralmente não são significáveis. Esse lugar e as intensidades que lhes são ligadas têm então que ser experimentados: é a única maneira de aproximá-los (Favret-Saada, 2005, p. 158).
Sendo assim, de acordo com a autora, afetar-se fala mais de si em abertura a esta tal experiência do que dos próprios pesquisados, pois não se permite o acesso ao conjunto de imagens destes outros. No entanto, uma vez que o pesquisador se abra para esta comunicação específica, se mobiliza um repertório próprio de imagens. Nesta comunicação entre pessoas igualmente afetadas por estarem ocupando estes lugares, experimenta-se as intensidades específicas ligadas àquele lugar. Assim, para Favret-Saada (2005), o bom andamento da pesquisa requer que o pesquisador possa conferir estatuto epistemológico a situações de comunicação involuntária e não intencional, discursos espontâneos e não verbais; que o pesquisador tolere se dividir entre estar atento àquilo que o afeta e em outros momentos também se dedicar àquilo que nele quer registrar esta experiência como objeto da ciência; que o pesquisador possa compreender que as operações de conhecimento se dão de forma dispersa e que o tempo de análise virá posteriormente; e, por fim, que o pesquisador tenha em mente que as análises realizadas devem tentar quebrar certezas científicas ao invés de corroborar com elas.
Bruno Latour (2012b), em suas reflexões metodológicas, apresenta diferentes modos de se atentar à pluralidade das ontologias, uma vez que se deixa de seguir a repartição entre sujeito e objeto, advinda do pensamento moderno, e se atribui possibilidade de existência a outras formas de relação com o saber, com as práticas, com as técnicas, para além das engessadas formas de desqualificação como “não científico”, “crença” ou superstição. Desta forma, seres invisíveis poderiam ser considerados em sua materialidade, como modos de existência, ao invés de destiná-los à mente, ao interior do sujeito, como no caso da Psicologia (subjetividade, subjetivo) ou à Epistemologia (objetividade, objeto), destinando a estes a condição de inexistência por não serem aceitos no sistema de provas. De acordo com o autor, o caminho seria:
(...) que nos disponhamos a verificar se não existem entre os Modernos redes de produção de “interioridades” e “psiquismos” que tivessem uma materialidade, uma forma de seguir seus traços, uma solidez semelhante àquelas das redes já referenciadas para a produção de “objetividades”. Certo, é preciso admiti-lo, não há instituição ‘positiva’ que permita como nos outros povos de acolher os seres invisíveis, mas é bem possível que os Modernos se iludam sobre si próprios quando eles se dizem inteiramente liberados (ou privados, depende!) de tais dispositivos e tais tomadas. A violência mesmo pela qual os informantes destituem os invisíveis de toda experiência a ele exterior e insistem para não situá-los senão nas circunvoluções do eu, do inconsciente ou dos neurônios, revela um mal-estar tão profundo, uma angústia tão intensa, que é necessário ir e ver mais de perto (Latour, 2012b, pp. 4-5).
Como nos aponta Latour (2012b), de certa forma fomos ensinados a deslocar para o interior do sujeito aqueles fenômenos que não trazem a medida da objetividade, causando assim uma assimetria. No entanto, a crise vivida pelo sujeito como arrebatamento e transformação, a experiência de sentir-se tomado por algo externo que lhe tira o juízo evidencia a possibilidade de mudança de posicionamento que dá “ao fora” aquilo que habitualmente delegamos “ao dentro”, um lugar ao externo como produtor de interioridade. E assim a busca por uma perspectiva que permita vislumbrar caminhos de produção de interioridades poderia auxiliar a compreender o sujeito como “constituição”, como efeito de um processo que se dá a partir do entrelaçamento numa rede de múltiplas forças e agentes, e, sobretudo, por meio de práticas de si. Por fim, este movimento do pesquisador não visar tornar-se o “objeto” pesquisado, coincidir-se com ele, mas dar condições de, a partir desse lugar, poder enunciar com maior conhecimento (devido à sua experiência) o que seriam estas verdades que o toma e que de certo modo o faz sujeito.
Pesquisa em ação - incursões no método
Tendo em vista as considerações de Despret (2011b), sobre a dimensão política da intervenção em pesquisa, e levando em consideração o que nos sugere Latour (2012a), ao compreender um determinado contexto de pesquisa como parte de uma rede produtora de interioridades, podemos conferir materialidade e, portanto, visibilidade a uma série de forças que operam na construção de certos modos de existência. Ou ainda, partindo de uma abordagem foucaultiana, podemos dizer da percepção do campo de experiências do sujeito a partir de suas escolhas éticas correlatas a um determinado modo de subjetivação (racionalidade específica), com a construção de um ideal de sujeito a ser alcançado (teleologia do sujeito moral), dedicando-se a determinados aspectos a serem privilegiados em seu trabalho de auto constituição (a substância ética) e a partir de práticas de si a serem desenvolvidas para alcançar este estado almejado. Partindo destas óticas podemos então ampliar a forma de se conceber pesquisa, a forma de se estar no campo e ainda a forma de se pensar a produção de uma experiência de subjetividade ou produção de interioridades.
Analisando deste modo, aquilo que convencionalmente seria depositado no “subjetivo”, no interior do sujeito, em uma parte obscura destinada apenas aos olhares psicológicos, podemos então analisar a partir de uma abordagem em termos de práticas e de efeitos em relação a um processo de constituição de um sujeito a partir de uma dada experiência. O que não implica em linearidade, rigidez e meta inabalável para o pesquisador, mas sim a disposição para seguir a rede em seus desvios e imprevistos de acordo com os fluxos reais e não impostos pelo exercício da pesquisa.
Este exercício do olhar acerca de uma rede produtora de interioridades seria, se nos inspirarmos nos termos deleuzianos, estar atento aos diferentes "devires" do sujeito que comportam outras respostas às perguntas do mundo, às questões sobre si mesmo. Partindo da inspiração no trabalho de Tobie Nathan (1996), podemos refletir que, ao darmos visibilidade a redes de produção de interioridade, este movimento seria para o autor como estender a validade do objeto e de um tema para além da psichè, do corpo ou da cultura, englobando o não humano, o não visível, o não real.
Goldman (2005), em sua leitura de Fravet Saada a partir do livro “Le mots, le mort, le sorts” tendo diante de si a problemática das práticas terapêuticas não convencionais (lidas então como primitivas), nos adverte que dada prática desconhecida para o pesquisador não deve ser tomada apenas através do parâmetro de validação cientifica, mas sim como um dispositivo único capaz naquela cultura de fazer funcionar como algo em nível individual e coletivo, algo que se movimenta através do próprio sujeito em suas relações, inserindo-se em praticas e saberes.
Como nos aponta Nathan (1996), o que devemos ressaltar é o grau de implicação e transformação que o encontro entre pesquisado e pesquisador pode trazer a estes sujeitos, afetando-os no sentido de produção de algo a partir disto. Cabe ressaltar que não é o conteúdo das novas interpretações o aspecto principal a ser considerado neste dispositivo, mas o processo que esta nova versão pode desencadear, levando o pesquisado não apenas ao encontro da teoria do pesquisador, mas ao encontro de um grupo e de suas práticas. Seria assim uma espécie de procura e abertura para outras formas de negociação que torna possível a construção de uma nova versão para uma dada experiência e potencialmente uma nova versão para si.
Ordenar de modo explicativo e linear toda uma série de acontecimentos dispersos, casuais ou produzidos em torno de um tema pesquisado não é tarefa fácil. As percepções acumuladas no decorrer de uma pesquisa pedem constantemente revisão no contato com novas influências teóricas e acontecimentos no campo, dando origem a reinterpretações. De maneira dinâmica suscita-se então esta tarefa constante de reformulação, redesenho das impressões no contato fluido com a rede.
Na perspectiva de Latour (2012a), seguir as pistas de uma rede conduziria a um destino pouco provável enquanto resposta geral (no sentido de generalizante), porém rico em relação a um espectro de possíveis agenciamentos. Como modo de adentrar melhor nos fluxos desta possível rede produtora de interioridade faz-se necessário colocar-se como sujeito da experiência, à disposição dentro do próprio trabalho investigativo, deixando em aberto a sua história, medos e segredos e desconstruindo os lugares comuns de separação entre sujeito da pesquisa e pesquisador.
A decisão por tal posicionamento decorre assim da tentativa de superar como problema aquilo até então considerado pelas ciências como entrave para o acesso à verdade - a manifestação de “vestígios de subjetividade” do pesquisador junto ao “material” da pesquisa e o temor de realizar uma autobiografia, ou seja, um autorretrato subjetivo e parcial de uma história geral. O “por que não?” torna-se então o incentivo necessário a auxiliar na tomada de decisão e consequente inclusão das próprias vivências como parte da pesquisa. Deste modo, aquilo antes considerado um obstáculo poderá vir a ser analisado como amostra das afetações possíveis de serem vividas a partir da imersão em um dado contexto capaz de instaurar certa linguagem, propiciando experiências específicas, um diálogo particular com o campo.
Assim, o pesquisador ao tentar se conduzir sem tantas resistências diante das situações oferecidas pelo contexto pesquisado, estando atento aos chamados e às expectativas oriundas de várias fontes materiais ou imateriais, negociando as funções, manifestando as afetações, acompanhando os conflitos, ou seja, estando presente por meio de um enlace mais flexível, pode enfim, apreciar de modo mais aproximado aquilo experimentado conforme uma “micro sociedade”, local de “intercâmbio entre mundos”.
Considerações Finais
A partir da discussão proposta neste artigo podemos então vislumbrar o caminho metodológico realizado ao longo de uma pesquisa como uma aventura de abertura para perspectivas diversas, devires múltiplos e também um trabalho sobre “si mesmo”, sendo o próprio sujeito eleito como lugar de intervenções, caminho de elaboração de dada experiência através da sua vivência e da elaboração escrita desta vivência, algo para além da simples tentativa de apreensão de uma realidade contextual.
Deste modo o pesquisador poderá ter diante de si caminhos que se complementam e que visam à possibilidade de uma experiência potencialmente transformadora, seja através do contato com o mundo pesquisado, seja através do ato de lançar-se em uma prática de escrita que suscita uma crise diante da opacidade do sujeito e que impele a determinados exercícios de ruptura.
A busca por uma perspectiva que permita vislumbrar caminhos de produção de interioridades poderia assim auxiliar a compreender o sujeito como “constituição”, como efeito de um processo que se dá a partir do entrelaçamento numa rede de múltiplas forças e agentes, e, sobretudo, por meio de práticas de si.
No decorrer deste trabalho com a verdade - em um sentido múltiplo do termo, o sujeito em sua multiplicidade de experiências pode ser então interpelado por várias agências, uma vez que somos habitados por formas de subjetividade que concorrem entre si, dispondo ainda de linhas de fuga, linhas contrárias e mesmo modos de subjetividades que se chocam. Deste modo, no tocante à problematização da experiência de se lançar no campo de pesquisa, ao analisarmos o porquê do pesquisador ser afetado durante a pesquisa, muitas vezes, independente das técnicas adotadas, sejam elas científicas ou não, devemos nos atentar quanto ao significado e às funções postas em ação por cada experiência, ou seja, o que está em jogo para cada sujeito.
Assim, na comoção dos encontros entre pesquisador e pesquisado, encontro e comoção no sentido de algo ser posto em movimento - cada qual passa a construir sua história mítica, sua interpretação dos fatos, sua narrativa do desenrolar do processo, enredando histórias, revisando emoções, condutas e pensamentos e deixando-se atravessar, tomar, pertencer (ou resistir) em níveis diversos - quer se saia ileso, transformado ou mesmo recriado no decorrer desta experiência, cabe assim a cada qual um produto final destes entrelaçamentos.