1. Introdução
O casamento, assim como tudo o que envolve as relações humanas, é um complexo produto social que foi construído ao longo da história da humanidade.
Influenciada por questões políticas, ideológicas e culturais, essa instituição se transformou ao longo do tempo, acompanhando os avanços das sociedades em todo o mundo (ou, pelo menos, fazendo-o segundo os interesses do dominante).
Especificamente no Brasil, os casamentos estiveram por muito tempo sob o comando da Igreja Católica, que foi a religião oficial do país até 1889. Nesse ano, houve a proclamação da Primeira República que trouxe diversas consequências para o país, sobretudo no cenário jurídico, dentre as quais destacamos a separação entre Estado e Igreja. Em 1890, a legislação brasileira cunhou o termo casamento civil e criou a certidão de casamento civil como o documento que passou a oficializar esse tipo de união perante o Estado e a sociedade. Assim, os casamentos religiosos tornaram-se opcionais e não tiveram mais validade oficial.
Desde então, o Código Civil, que rege os casamentos civis, sofreu várias alterações a fim de atender às mudanças vividas pela sociedade brasileira, o que acarretou na evolução conceitual do termo casamento civil, a qual nos interessa particularmente neste trabalho.
Considerando que identidade e diferença são invenções sociais e culturais criadas pela linguagem (Silva et al. 2012), buscamos1 analisar especificamente o modo segundo o qual os conceitos denominados pelo termo casamento civil traduzem a(s) identidade(s) da mulher2 ao longo da história da legislação brasileira de 1890 (ano em que se instituiu o casamento civil) a 2002 (ano em que ocorreu a última alteração relacionada aos direitos da mulher no contexto dos casamentos).
Para tanto, baseamo-nos nos estudos de Silva et al. (2012), Hall (2001) e Crépon (2004), dentre outros, que tratam sobre a identidade cultural na pós-modernidade, relacionando-os às formas de dominação simbólica (Bourdieu 2016), ao feminismo (Miguel e Biroli 2014) e à questão da linguagem na perspectiva feminista (Figueiredo 2013).
2. Identidade e diferença na pós-modernidade: questões de linguagem
No campo dos Estudos da Tradução, o pensamento crítico da pós-modernidade consiste, de acordo com Arrojo (1996), em desconstruir (ou desnaturalizar) o que embasa “nossas rotinas, concepções e visões de mundo, mostrando que tudo aquilo que nos acostumamos a encarar como natural é, na verdade, cultural e histórico e, portanto, determinado pelas circunstâncias e pelos interesses que o produzem” (Arrojo 1996: 54-55).
A percepção segundo a qual tudo o que julgamos é “natural” resulta de uma construção humana que carrega consigo marcas e limitações (Arrojo 1996). É, nesse sentido, que Rorty (1982) afirma:
não há nada no fundo de nós, exceto aquilo que nós mesmos lá pusemos; não há nenhum critério que não tenhamos criado ao criarmos uma prática, nenhum padrão de racionalidade que não seja nossa referência a tal critério, nenhum argumento rigoroso que não seja uma obediência a nossas próprias convenções (Rorty 1982: 13 apudArrojo 1996: 57).
No entanto, a ideia de que tudo é criação humana e segue convenções historicamente estabelecidas é fruto da pós-modernidade. De acordo com Hall (2001), as velhas identidades entraram em colapso, o que fez surgir novas identidades que fragmentaram o indivíduo moderno, anteriormente visto como um sujeito unificado. Dessa crise de identidade surge, então, a noção de sujeito pós-moderno, concebido como aquele que não tem uma “uma identidade fixa”. Tomada em seu movimento e no fluxo das transformações, a identidade torna-se, segundo o autor, uma “‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (Hall 2001: 12-13).
Para Silva et al. (2012), que segue uma via semelhante de pensamento, mas introduz a noção de diferença no cerne da discussão, identidade e diferença são determinadas de forma mútua: “a afirmação ‘sou brasileiro’, na verdade, é parte de uma extensa cadeia de ‘negações’, de expressões negativas de identidade, de diferenças” (Silva et al. 2012: 75). Nesse sentido, segundo o autor, a diferença também depende de uma cadeia (geralmente oculta) de declarações negativas acerca da identidade.
Além de serem interdependentes, identidade e diferença são, para Silva et al. (2012), o resultado de atos de criação linguística. Dessa forma, elas “não podem ser compreendidas, pois, fora dos sistemas de significação nos quais adquirem sentido. Não são seres da natureza, mas da cultura e dos sistemas simbólicos que a compõem” (Silva et al. 2012: 78). Contudo, a linguagem, entendida como sistema de significação, é uma estrutura instável. Segundo Silva et al. (2012), uma vez que o conceito ou a coisa não estão presentes no signo, “a impossibilidade dessa presença (...) obriga o signo a depender de um processo de diferenciação, de diferença” (Silva et al. 2012: 79). Assim, de acordo com o autor, a identidade (mesmidade) carrega em si mesma o traço da diferença (outridade).
Conceber a identidade nessa perspectiva, leva-nos na direção oposta à de um suposto discurso da apropriação linguística. Tal discurso foi sustentado politicamente para perpetuar a grande ilusão de pertencimento a uma determinada língua, geralmente a língua do dominador, e esteve na origem do colonialismo linguístico como um gesto político que dividiu dominadores e dominados. O discurso da apropriação linguística considera como fato a ilusão de que a identidade está atrelada a “uma” língua e de que é possível haver comunidades linguísticas/culturais homogêneas em si mesmas.
Marc Crépon (2004), filósofo francês, desconstrói o discurso da apropriação linguística ao defender que não há culturas (nem línguas) homogêneas. Para o autor, “toda cultura é, em sua identidade, de forma constitutiva, o resultado de uma tradução3” (Crépon 2004: 75, tradução nossa), o que revela a impossibilidade de uma cultura ser idêntica a si mesma, já que em sua suposta origem é pura diferença.
Nesse contexto de ressignificações e de reconsiderações políticas e identitárias, vários movimentos tiveram influência direta em nossas práticas cotidianas e implicaram novas formas de “pensar sobre a cultura, o conhecimento e arte” (Arrojo 1996: 59) e, dentre eles, como afirma Arrojo, deve-se destacar o movimento feminista.
Seguindo esse viés, Hall (2001) defende que o feminismo questionou a distinção entre “dentro” e “fora”, “privado” e “público”, abrindo, consequentemente, espaço para a contestação política da família, da sexualidade, do trabalho doméstico, do cuidado com os filhos, dentre outros. Além disso, o feminismo politizou a subjetividade, a identidade e o processo de identificação (como homens/mulheres, por exemplo) e também substituiu a noção de que homens e mulheres são parte de uma mesma identidade (a “Humanidade”) pela questão da diferença sexual (Hall 2001: 45).
Assim, é possível constatar que cultura e identidade são influenciadas e perpassadas por questões ideológicas e, sobretudo, políticas. Essas relações de poder se refletem também na linguagem. No caso do feminismo especificamente, a reflexão com relação ao processo de libertação da mulher passa pela questão da linguagem (Figueiredo 2013). Para a autora, pelo fato de a língua funcionar como um filtro por meio do qual se pensa, se vê e se exprime, ela é um verdadeiro “espelho cultural que fixa as representações simbólicas e se torna o eco dos estereótipos, ao mesmo tempo que os alimenta e os mantém” (Yaguello 1978: 8 apudFigueiredo 2013: 88-89). Desse modo, Figueiredo (2013) considera que a língua não é neutra, uma vez que participa dos conflitos sociais e transmite, por conseguinte, todo o sexismo existente.
Com base no exposto, buscamos, neste trabalho, verificar a(s) identidade(s) da mulher que são traduzidas pelos e nos conceitos denominados pelo termo4casamento civil desde o seu surgimento na legislação brasileira até os dias atuais. Desse modo, relacionamos essa(s) identidade(s) a aspectos socioculturais e históricos do Brasil, bem como à não neutralidade da língua.
3. A evolução conceitual de casamento civil e a(s) mulher(es) na história do Brasil
Durante muito tempo na história do Brasil, os casamentos oficiais eram aqueles celebrados pela Igreja Católica, que era a religião oficial de nosso país até a mudança de regime para a República.
Após a Proclamação da República em 1889, veio a separação entre Igreja e Estado. Em 1890, o Decreto nº 181 estabeleceu as diretrizes para a realização dos casamentos oficiais (e laicos) e apresentou um novo termo, casamento civil, que até então não existia na legislação brasileira.
Segundo esse decreto, os efeitos do casamento eram os seguintes naquela época:
Art. 56. São efeitos do casamento:
§ 1º Constituir familia legitima e legitimar os filhos anteriormente havidos de um dos contrahentes com o outro, salvo si um destes ao tempo do nascimento, ou da concepção dos mesmos filhos, estiver casado com outra pessoa.
§ 2º Investir o marido da representação legal da familia e da administração dos bens communs, e daquelles que, por contracto ante-nupcial, devam ser administrados por elle.
§ 3º Investir o marido do direito de fixar o domicilio da familia, de autorizar a profissão da mulher e dirigir a educação dos filhos.
§ 4º Conferir á mulher o direito de usar do nome da familia do marido e gozar das suas honras e direitos, que pela legislação brazileira se possam communicar a ella.
§ 5º Obrigar o marido a sustentar e defender a mulher e os filhos.
§ 6º Determinar os direitos e deveres reciprocos, na fórma da legislação civil, entre o marido e a mulher e entre elles e os filhos. (...)
Art. 80. A acção do divorcio só compete aos conjuges e extingue-se pela morte de qualquer delles. (...)
Art. 93. O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos conjuges, e neste caso proceder-se-ha a respeito dos filhos e dos bens do casal na conformidade do direito civil (Brasil 1890, grifos nossos).
Com base nesse decreto, o casamento civil denominava a “única possibilidade de união legítima, civil, laica e indissolúvel entre um homem e uma mulher com o propósito de se reproduzirem e formarem uma família, atribuindo-lhes direitos e deveres específicos, e que pode ser rompida legalmente mediante divórcio” (Curti e Barros 2018a: 91-92).
Como se pode observar, a vida conjugal girava em torno do marido, o que evidencia o caráter patriarcal da família nessa época.
Nesse sentido, o conceito denominado pelo termo casamento civil revela os papéis do homem e da mulher na sociedade brasileira daquele momento. A legislação reconhecia uma relação de hierarquia entre eles que era legitimada pelo casamento e que foi traduzida por esse termo.
Assim, o conceito denominado pelo termo casamento civil mostra uma mulher totalmente submissa ao marido e sem nenhum respaldo legal para ter autonomia em suas escolhas pessoais e profissionais. Cabia à mulher apenas obedecê-lo, dar-lhe filhos legítimos e ter o direito de usar o nome de família dele, usufruindo “das honras e dos direitos” que ela ganharia com isso.
Observamos ainda uma forte influência dos princípios cristãos com relação à família patriarcal, a ideia de filhos legítimos (nascidos dentro de um casamento) e à indissolubilidade do vínculo matrimonial, que só era possível acabar após o falecimento de um dos cônjuges5. Embora o Estado e a Igreja tenham se separado quando da instituição da República no Brasil, a ideologia cristã com relação ao matrimônio permaneceu e foi traduzida (ainda que de forma contraditória, visto que o casamento se tornara laico) pelo conceito do termo casamento civil.
O primeiro Código Civil brasileiro, estabelecido pela Lei Nº 3.071 promulgada em 1916, reforçou todas essas questões. Um exemplo pode ser citado nesse sentido: um dos motivos que levaria à anulação do casamento civil era “o defloramento da mulher, ignorado pelo marido” (Brasil 1916). Além disso, a mulher assumia “pelo casamento, com os apelidos do marido, a condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos encargos da família (art. 324)” (Brasil 1916), ou seja, a direção do matrimônio ainda estava sob os cuidados do marido, uma vez que a mulher era apenas sua “auxiliar”.
Essa lei substituiu ainda divórcio por desquite, o qual “era utilizado para diferenciar a separação judicial de corpos e de bens do divórcio com dissolução do laço conjugal (dado que tal) possibilidade era consagrada em outros países, exceto no Brasil” (Stella 2011). Desse modo, o conceito de casamento civil sofreu uma pequena alteração uma vez que passou a denominar a
única possibilidade de união legítima, civil, laica e indissolúvel entre um homem e uma mulher com o propósito de se reproduzirem e formarem uma família, atribuindo-lhes direitos e deveres específicos na manutenção da sociedade conjugal igualitária sob direção do marido que pode ser rompida legalmente mediante desquite (Curti e Barros 2018a: 92).
Esse conceito também traduz a concepção do homem como o único representante legal da família e o único administrador dos bens, e a noção da mulher como submissa a ele.
Como o matrimônio poderia ser rompido pelo desquite, mas não dissolvido, ou seja, os ex-cônjuges não poderiam se casar com outras pessoas novamente, os relacionamentos advindos após o término do casamento civil não eram legalizados - eram, por conseguinte, ilegítimos. Desse modo,
as mulheres desquitadas ou as que viviam concubinadas com um homem desquitado sofriam com os preconceitos da sociedade. Frequentemente consideradas má influência para as “bem casadas”, recebiam a pecha de “liberadas” e ficavam mais sujeitas ao assédio desrespeitoso dos homens. A conduta moral da mulher separada estava constantemente sob vigilância, e ela teria de abrir mão de sua vida amorosa sob o risco de perder a guarda dos filhos. Estes já estavam marcados com o estigma de serem frutos de um lar desfeito. Apenas para o homem desquitado o controle social era mais brando, o fato de ter outra mulher não manchava sua reputação (Rolnik 1996: 636).
Assim, a mulher continuava sendo identificada como totalmente submissa ao marido e, na ausência de um, “má influência” para as casadas. Naquela época, ter um marido atribuía uma “boa estima” à mulher, o que lhe faltaria caso não fosse casada - ou ainda fosse desquitada. Todas essas questões foram traduzidas pelo conceito denominado por casamento civil nessa época - mesmo que de forma implícita.
Até a Lei Nº 6.515 de 1977, a “mulher submissa” continuou presente em nossa legislação. Essa lei veio para regulamentar os casos de dissolução da sociedade conjugal, bem como do vínculo matrimonial. Nos termos dessa lei,
Art 2º - A Sociedade Conjugal termina:
I - pela morte de um dos cônjuges;
II - pela nulidade ou anulação do casamento;
III - pela separação judicial;
IV - pelo divórcio.
Parágrafo único - O casamento válido somente se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio (Brasil 1977, grifo nosso).
Diante dessa nova realidade, que reflete uma outra concepção de casamento civil em uma sociedade brasileira que pouco a pouco se tornava mais “moderna”, novos termos foram criados, tais como separação judicial, que substituiu desquite, e divórcio, por exemplo. Essa lei previa que o casal deveria primeiro dar entrada à separação judicial e, ao término de um prazo específico, solicitar a conversão em divórcio, que os tonaria livres para contrair novas núpcias.
Além disso, “a mulher, com o casamento, assume a condição de companheira, consorte e colaboradora do marido nos encargos de família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta” (Brasil 1977). Essa lei também tornou facultativo para a mulher acrescentar o sobrenome do marido em seu nome (Brasil 1977).
Com base no exposto, o termo casamento civil passou a denominar o conceito de “única possibilidade de união legítima, civil ou religiosa6, entre um homem e uma mulher com o fim de se reproduzirem e formarem uma família, atribuindo-lhes direitos e deveres específicos na manutenção da sociedade conjugal igualitária” (Curti e Barros 2018a: 92) que poderia ser rompida pela separação judicial e dissolvida por meio do divórcio.
Assim, tal conceito traduz uma “nova” identidade da mulher. Embora nessa época a legislação ainda não reconhecesse a igualdade de direitos entre homem e mulher na sociedade brasileira, a mulher podia finalmente ter sua profissão e independência com relação ao marido.
Essas alterações legislativas são um reflexo das manifestações feministas que aconteceram na década de 1970 no Brasil, apesar de, nesse momento, o país estar sob o regime militar. Nesse sentido, houve, em 1975,
uma semana de debates sob o título “O papel e o comportamento da mulher na realidade brasileira”, com o patrocínio do Centro de Informações da ONU. No mesmo ano, Terezinha Zerbini lançou o Movimento Feminino pela Anistia, que terá papel muito relevante na luta pela anistia, que ocorreu em 1979 (Pinto 2010: 17).
Em 1984, foi criado o Conselho Nacional da Condição da Mulher (CNDM), “que, tendo sua secretária com status de ministro, promoveu junto com importantes grupos - como o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), de Brasília - uma campanha nacional para a inclusão dos direitos das mulheres na nova carta constitucional” (Pinto 2010: 17).
Nos anos 1980, a democracia retorna ao Brasil e os movimentos feministas intensificam a luta pelos direitos das mulheres: “há inúmeros grupos e coletivos em todas as regiões tratando de uma gama muito ampla de temas - violência, sexualidade, direito ao trabalho, igualdade no casamento”, dentre outros (Pinto 2010: 17). Por conseguinte, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 mudou ainda mais esse cenário ao reconhecer que
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição (Brasil 1988, grifos nossos).
Dessa forma, há uma nova relação entre homem e mulher prevista pela lei brasileira que difere da hierarquia existente até então. Cumpre dizer que essa Constituição “é uma das que mais garante direitos para a mulher no mundo” (Pinto 2010: 17) e que foi uma conquista no campo dos direitos da mulher e da igualdade de gênero.
Na década de 1990, Organizações Não-Governamentais (ONGs) foram criadas para “pressionar” o Estado a “aprovar medidas protetoras para as mulheres e (a) buscar espaços para a sua maior participação política” (Pinto 2010: 17). Nesse sentido, Pinto (2010) afirma que a luta contra a violência, de que é a mulher é vítima, é uma das questões centrais dessa época.
Em 2002, o Código Civil Brasileiro foi atualizado como consequência da Constituição de 1988. Assim, o casamento civil tornou-se a “comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges” (Brasil 2002). No que tange aos efeitos do casamento, temos que,
Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família.
§ 1oQualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro.
§ 2o O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas.
Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:
I - fidelidade recíproca;
II - vida em comum, no domicílio conjugal;
III - mútua assistência;
IV - sustento, guarda e educação dos filhos;
V - respeito e consideração mútuos.
Art. 1.567. A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.
Parágrafo único. Havendo divergência, qualquer dos cônjuges poderá recorrer ao juiz, que decidirá tendo em consideração aqueles interesses.
Art. 1.568. Os cônjuges são obrigados a concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos do trabalho, para o sustento da família e a educação dos filhos, qualquer que seja o regime patrimonial.
Art. 1.569. O domicílio do casal será escolhido por ambos os cônjuges, mas um e outro podem ausentar-se do domicílio conjugal para atender a encargos públicos, ao exercício de sua profissão, ou a interesses particulares relevantes (Brasil 2002, grifos nossos).
Nesse contexto, a vida conjugal deixou de girar em torno do patriarca da família. Por lei, mulher e homem tornaram-se iguais e colaboradores entre si na manutenção da família, seja na educação dos filhos, seja no seu sustento.
Assim, o termo casamento civil passou a denominar a união “entre um homem e uma mulher que estabelece os mesmos direitos e deveres para ambos, celebrada com o intuito de formar uma família, podendo ser dissolvida pelo divórcio” (Curti e Barros 2018a: 91). Esse conceito traduz a ideia de não haver mais hierarquia entre gêneros (masculino e feminino), entre homem e mulher, na sociedade conjugal.
4. A mulher na atualidade do Brasil
Com base na legislação brasileira atual, não há mais hierarquia entre os cônjuges na manutenção da família: como vimos, ambos têm os mesmos direitos e deveres, bem como devem respeito mútuo entre si. Contudo, questionamo-nos se, de fato, na prática, as relações conjugais acompanharam as transformações legislativas de nosso país.
Em pesquisa divulgada pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil tem mais de 1 milhão de processos de violência doméstica contra a mulher em tramitação. De acordo com esse estudo, houve um aumento de 16% nesses processos no ano de 2017 em relação a 20167.
Além desses dados, Scardoelli (2019) traz um estudo feito pelo IBGE em 2018 que mostra que
no Congresso, as mulheres ainda são minoria; no trabalho, é raro ocuparem cargos importantes que exigem mais responsabilidade; precisam ser mais qualificadas que os homens para serem respeitadas e, muitas vezes, recebem menos pelo mesmo tipo de serviço; em casa, continuam fazendo a maior parte do trabalho doméstico, além de serem as maiores responsáveis pelo cuidado e educação das crianças (Scardoelli 2019: 36).
Assim, “apesar dos progressos obtidos com a luta feminista, (...) podemos constatar que a dominação masculina ainda age de outras formas, em conformidade com o modo de vida contemporâneo” (Scardoelli 2019: 36). É possível notar, então, que as mudanças relativas à identidade da mulher do final do século XIX e início do século XX para o século XXI não acompanharam a evolução conceitual do termo casamento civil dentro do domínio do Direito.
De acordo com Bourdieu (2016), o público (Estado) e o privado (vida doméstica) se correlacionam, na medida em que são perpassados por princípios de dominação. Para o sociólogo, a dominação masculina é o exemplo por excelência do paradoxo da doxa, que representa uma série de exigências e de condições de existência que, embora não devessem ser aceitáveis, passam-se por toleráveis ou até mesmo naturais. Essa submissão paradoxal é, para Bourdieu (2016), resultante daquilo que ele chama de “violência simbólica, uma violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento” (Bourdieu 2016: 11-12).
Seguindo essa perspectiva, podemos retomar, por exemplo, as determinações estabelecidas pelo Código Civil de 1916 com relação aos papéis da mulher e do homem na manutenção da família, as quais expusemos anteriormente. Elas funcionaram como uma das formas de perpetuação da dominação masculina sobre as mulheres na sociedade.
E, durante muito tempo, essas determinações eram tomadas como aceitáveis, naturais - apesar de constituírem dispositivos de violência simbólica.
Embora a legislação brasileira tenha reconhecido mulheres e homens como iguais perante a lei, outras formas de dominação masculina ainda estão presentes em nossa sociedade, uma vez que os mecanismos de exclusão vão além do disposto em lei (Miguel e Biroli 2014). Por isso, as lutas feministas tomaram várias frentes, dentre as quais figurava a exigência de cidadania igual. Contudo, “o deciframento do sentido dessa igualdade implicava ir além da isonomia legal e inquirir as condições reais de existência delas e deles, questionando premissas básicas das hierarquias sociais e do funcionamento das instituições” (Miguel e Biroli 2014: 9).
Sob essa perspectiva, Miguel e Biroli (2014) apontam que, nos últimos anos, embora as mulheres apresentem maior tempo de escolaridade do que os homens no Brasil, esse tempo de estudo a mais não tem correspondido a posições e rendimentos melhores ou iguais para elas no mercado de trabalho.
Desse modo, “a taxa de ocupação entre as mulheres, que era de 45,2% em 2002, chegou a 49,2% em 2013, mas permanece mais de quinze pontos abaixo da dos homens. O rendimento mensal médio dos trabalhadores homens é, por sua vez, quase o dobro do das mulheres” (Miguel e Biroli 2014: 10).
No que tange à manutenção da família de modo mais específico, os autores atestam que houve um crescimento no percentual de famílias chefiadas por mulheres: de 1987 a 2009, esse percentual quase dobrou, passando de 17% para 35,2%.
No entanto, “a renda per capita média nas famílias chefiadas por mulheres, sobretudo por mulheres negras, é bastante inferior à das famílias chefiadas por homens” (Miguel e Biroli 2014: 11).
Com base nesses dados, Miguel e Biroli (2014) defendem que
as mudanças nos arranjos familiares podem ser expressivas de redefinições nas relações de gênero, com deslocamentos nos papéis convencionais, em que a domesticidade feminina corresponderia à posição do homem como provedor. Coexistem, no entanto, com a permanência do machismo, com a ausência de políticas públicas adequadas para reduzir a vulnerabilidade relativa das mulheres e, justamente por isso, com uma dinâmica em que elas acumulam desvantagens em comparação aos homens (Miguel e Biroli 2014: 11).
Em sociedades cujas compreensões convencionais do feminino e do masculino permanecem, como no Brasil, a falta de creches e de políticas que ajudem a mulher a conciliar o trabalho e o cuidado com os filhos pequenos a penaliza, uma vez que ela continua a ser responsável pelos cuidados da casa e pela educação dos filhos (Miguel e Biroli 2014: 11). Desse modo, os autores afirmam que “o impacto dessa divisão desigual do trabalho e do usufruto do tempo (...) se desdobra em injustiça distributiva e barreiras à igualdade nas oportunidades” (Miguel e Biroli 2014: 12).
5. Considerações finais
A partir das considerações esboçadas neste trabalho, verificamos que a evolução conceitual do termo casamento civil traduziu, ao longo dos anos, diferentes identidades da mulher no contexto específico da legislação brasileira. Nesse sentido, a mulher passou de “auxiliar” e “submissa” à “igual ao homem” no que tange a seus direitos e deveres na manutenção do casamento. Essas identidades se relacionam a aspectos socioculturais e históricos do Brasil, sobretudo comrelação ao fato de nossa sociedade ser fortemente marcada pelo patriarcado e pelo machismo.
Para Silva et al. (2012), a identidade e a diferença não foram criadas pelo mundo natural ou por um mundo transcendental, mas sim pelo mundo cultural e social, uma vez que elas existem por meio de atos de linguagem. Assim, entendemos que a definição da(s) identidade(s) da mulher “é o resultado da criação de variados e complexos atos linguísticos que a definem como sendo diferente de outras identidades” (Silva et al. 2012: 77).
Com efeito, as identidades são (e sempre foram) fragmentadas, ou seja, elas não são fixas e imutáveis. Com base em Hall (2001), consideramos que a(s) identidade(s) da mulher foram, ao longo da história do Brasil, formadas e transformadas a partir dos sistemas culturais vigentes. Assim, não podemos ignorar que, ao mesmo tempo em que o conceito atual de casamento civil abarca a suposta igualdade entre mulheres e homens, ele também é atravessado por outras questões que estão relacionadas a mecanismos de dominação - ainda que esse atravessamento se dê de forma implícita.
Nesse sentido, há uma diferença entre a mulher da atualidade no Brasil e o modo como o conceito mais atual de casamento civil traduz a sua identidade. Esse conceito não compreende a coexistência de mudanças e permanências com relação aos papéis da mulher e do homem na sociedade contemporânea (talvez porque se insira em um campo de especialidade, o do Direito, mais especificamente o do Direito Civil que trata dos casamentos).
Ainda que nossa legislação tenha sofrido alterações e reconheça atualmente mulheres e homens como cidadãs e cidadãos de direitos e deveres iguais, há outras formas de dominação que são consequência do machismo e do patriarcado que sustentaram (e ainda sustentam) as relações em nossa sociedade. Existe uma internalização dos discursos machistas e sexistas por parte das mulheres e, consequentemente, uma reprodução (quase imperceptível) desses mecanismos de violência, os quais acabam por gerar a naturalização das opressões e a manutenção da desigualdade.
Nessa perspectiva, os dados estatísticos sobre a violência doméstica contra a mulher e sobre sua atuação no mercado de trabalho podem ser considerados uma prova de que mulheres e homens ainda não estão em pé de igualdade. Isso porque os mecanismos de exclusão e de dominação são bem mais profundos do que aquilo que é estabelecido pela lei (Miguel e Biroli 2014).
Se todas essas questões passam inevitavelmente pela linguagem e se essa cria identidades e diferenças (Silva et al. 2012), não se pode negar que tal processo de criação é também um processo de reprodução; pois ao mesmo tempo em que instituem novos discursos, identidade e diferença são também influenciados por suas produções.
Desse modo, consideramos que os conceitos do termo casamento civil que traduziram a(s) identidade(s) da mulher funcionaram como mecanismo de dominação e de reprodução de uma condição sócio-histórica e política, na medida em que retrataram e transmitiram todo o patriarcado e o machismo subjacentes às relações em nossa sociedade.