Introdução
Nos últimos 14 anos, o Brasil registrou mais de 380 mil casos de infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), concentrados principalmente nas regiões Sudeste (43,3%), Nordeste (19,8%) e Sul (19,7%)1. Para o controle eficiente da infecção, de caráter crônico, demanda-se dos serviços de saúde ações de cuidado contínuas, proativas e integradas2.
No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), é estabelecida a oferta de atenção continuada para as pessoas que vivem com HIV (PVHIV), a qual ocorre por meio de um processo envolvendo diagnóstico oportuno, vinculação do indivíduo a um serviço, retenção no seguimento, início da terapia antirretroviral (TARV), supressão da carga viral e alcance de melhor qualidade de vida3)(4.
Apesar dos avanços programáticos conquistados na atenção às PVHIV, os índices de morbimortalidade ainda são altos5)(6. No Brasil, só em 2019, foram registrados mais de dez mil óbitos tendo a Aids como causa básica1. Esse cenário corresponde a uma complexa problemática que requer investigação e planejamento, visando estratégias para sua superação7.
Existem inúmeros desafios de ordem moral, ética, técnica, organizacional e política a serem superados no sentido da aplicação do acesso e aperfeiçoamento da qualidade do cuidado às PVHIV8. Para isso, enfatiza-se o fortalecimento das políticas de oferta universal da TARV, métodos de prevenção combinada e ampliação da testagem precoce no âmbito do SUS9).
Em anos recentes, a proposta programática para o manejo do HIV na Rede de Atenção à Saúde (RAS), pressupõe que o cuidado deve ser compartilhado entre Atenção Primária à Saúde (APS) e atenção especializada8. Contudo, esse modelo ainda não está plenamente consolidado no Brasil, suscitando o enfrentamento dessa problemática como meio para ampliar o acesso e a qualidade do cuidado às PVHIV8.
Entretanto, países com numeroso quantitativo populacional e proporções continentais, como o Brasil, enfrentam grande disparidade social, com recursos de saúde deficitários e desigualmente distribuídos10. Sendo assim, o país enfrenta um desafio ainda maior no âmbito da saúde pública e controle do HIV, uma vez que o fator geográfico surge como possível dificultador do acesso das PVHIV aos serviços e ações de saúde, bem como a continuidade do cuidado pela vinculação do usuário à rede de atenção.
Nessa perspectiva, entende-se que os aspectos epidemiológicos das condições de saúde devem ser avaliados em consonância com as características, delimitações geográficas e conformação da rede de atenção, sobretudo em países nos quais a qualidade da oferta de ações e serviços pode ser afetada por questões socioeconômicas de suas regiões. Destarte, o presente estudo se propôs a analisar os coeficientes de internação hospitalar e de mortalidade por HIV, segundo regiões do Brasil, de 2016 a 2020.
Métodos
Estudo ecológico das regiões brasileiras, com dados extraídos das plataformas digitais: Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM/SUS) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), disponibilizadas pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) do Ministério da Saúde. Para este estudo, foram considerados os dados registrados no período de 2016 a 2020.
O sim e o SIH são sistemas públicos e congregam dados derivados das notificações realizadas pelos serviços de saúde nacionais, portanto, são importantes fontes de dados sobre mortalidade e morbidade, cujo objeto de registro corresponde ao óbito e à internação vinculados aos serviços do SUS. O desenvolvimento e a aplicabilidade dos sistemas acompanham o modelo organizativo-assistencial da RAS, fundamentando o elo entre vigilância epidemiológica e planejamento do cuidado para o controle de agravos e atendimento às necessidades individuais e populacionais.
Com relação ao universo dos dados relativos às internações hospitalares, foram analisadas as internações de acordo com local da residência, por região do Brasil, a partir das categorias da lista de morbidade da 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), a saber: Doença pelo vírus da imunodeficiência humana e Estado de infecção assintomática pelo vírus da imunodeficiência humana.
No que tange a mortalidade, consideraram-se os óbitos por residência, segundo região, considerando o grupo da CID-10: Doença pelo vírus da imunodeficiência humana. Para o quantitativo populacional nas regiões, utilizou-se a estimativa populacional intercensitária do Ibge (2000-2021). A coleta e a análise dos dados ocorreram na primeira quinzena de maio de 2022.
Os dados foram exportados para o software MICROSOFT EXCEL 2016, no qual se procedeu a análise por meio de estatística descritiva. Para o cálculo das freqüências relativas, ancorou-se na distribuição das freqüências absolutas das internações hospitalares e mortalidade. O cálculo dos coeficientes de internação hospitalar se deu pela razão entre o número de internações e a estimativa da população geral, no mesmo período e região, e o resultado multiplicado por 100 mil.
Do mesmo modo, para os coeficientes de mortalidade, calculou-se a razão entre o número de óbitos e a estimativa da população geral, no mesmo período e região, e o resultado multiplicado por 100 mil. Com os coeficientes regionais, calculou-se a média aritmética para o país. Para estimar a variação percentual (VAR) entre o início e o final da série histórica, a partir dos valores dos coeficientes do primeiro e do último ano considerados, empregou-se a expressão:
Baseado nos coeficientes de internação hospitalar e mortalidade para cada região nos anos de 2016 e 2020, foram derivadas ilustrações geográficas por meio do software QGIS, versão 3.24, a partir de arquivo shapefile do mapa do Brasil, divisado por regiões geográficas do país (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste), atualizado e acessado em maio de 2022 no site do IBGE.
A distribuição espacial de cada ano se deu pela classificação intervalar manual entre os coeficientes de internação e mortalidade, de modo a visualizar a diferença entre os coeficientes dos anos supracitados. Foram atribuídas cores frias em uma escala de diferentes tons, de modo que os mais escuros corresponderam às maiores taxas e os mais claros representaram as menores.
Por se tratar de dados secundários de domínio público, agregados e não nominais, este trabalho dispensou apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, conforme preconizado pela Resolução n.º 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde. Entretanto, cumpre ressaltar que foram respeitadas as normas e diretrizes da legislação brasileira vigente.
Resultados
No período analisado, de 2016 a 2020, foram registradas 144.671 internações hospitalares por HIV no Brasil. A distribuição pelas regiões se deu da seguinte forma: 44.649 (30,9 %) no Sudeste, 43.909 (30,3 %) no Nordeste, 28.670 (19,8 %) no Sul, 15.024 (10,4 %) no Norte e 12.419 (8,6 %) no Centro-Oeste. Com relação à mortalidade, houve 56.850 mortes, distribuídas nas regiões da seguinte maneira: 23.146 (40,7 %) no Sudeste, 12.779 (22,5 %) no Nordeste, 10.954 (19,3 %) no Sul, 6.152 (10,8 %) no Norte e 3.819 (6,7 %) no Centro-Oeste.
Os coeficientes de internação entre 2016 e 2019 se mostraram, praticamente, estacionários ano a ano. Entretanto, quando comparados os coeficientes de internação de 2016 a 2020, foi observada redução em todas as regiões, especialmente entre os dois últimos anos, 2019 e 2020. A variação entre 2016 e 2020 mostrou maior queda na região Sudeste (-49,2 %), seguida do Sul (-45,4 %), Centro-Oeste (-32 %), Nordeste (-30 %) e Norte (-21 %), conforme Tabela 1. A região Sudeste foi a única que se manteve abaixo da média em todo o período, como demonstra a Figura 1.
Os coeficientes de mortalidade entre 2017 e 2019 se mostraram, sugestivamente, estáveis ao longo dos anos. Todavia, quando comparados os anos de 2016 e 2020, observou-se queda em todas as regiões. A variação entre 2016 e 2020 mostrou que a maior queda foi no Centro-Oeste (-22,1%), seguido do Sudeste (-21,6%), Sul (-21,5%), Norte (-10,1%) e Nordeste (-8,5%), conforme Tabela 2. As regiões Nordeste e Centro-Oeste ficaram abaixo da média nacional durante todo o período, englobando a região Sudeste a partir de 2017, como observado na Figura 2.
Em 2016, os maiores coeficientes de internação e mortalidade foram notados na região Sul, seguida da região Norte. Na comparação entre o primeiro e o último ano da série, 2016 e 2020, respectivamente, percebeu-se diminuição do coeficiente de internação hospitalar nas regiões Norte, Nordeste, Sul e Centro-Oeste. Ademais, com relação ao coeficiente de mortalidade, verificou-se queda nas regiões Norte, Sul e Centro-Oeste, conforme Figura 3.
Discussão
Os resultados apontaram que as internações hospitalares por HIV tiveram queda em todas regiões do país no período analisado, em especial na comparação 2019 e 2020, em que houve maior queda. O acesso ao tratamento adequado contribuiu grandemente para a melhora da sobrevida e, consequentemente, para a redução da morbimortalidade por HIV11)(12)(13. O acesso ao diagnóstico e tratamento precoce, a vinculação do indivíduo ao serviço de saúde e o envolvimento familiar são fundamentais para o cuidado holístico e essencial para a garantia da qualidade de vida dos indivíduos14.
A despeito das políticas de prevenção e manejo do agravo implementadas ao longo das últimas décadas, a crise social e econômica pela qual o país passa desde 2014, acrescida ao advento da pandemia da covid-19desde 2020, faz com que os serviços de saúde sofram uma sobrecarga e sérias instabilidades, obstaculizando o acesso e a continuidade do cuidado15.
Especificamente quanto à covid-19, diversas foram as repercussões na oferta de ações e serviços de saúde, em especial às estratégias direcionadas às PVHIV, tais como: dificuldade no acesso e vinculação16, redução dos recursos humanos e materiais17, sobrecarga dos profissionais que atuam nos serviços assistenciais e de vigilância em saúde, entre outros18.
Assim, a queda de internações evidenciada no período analisado pode estar associada à essas dificuldades, desvelando uma situação desfavorável com relação à implementação de ações de controle do HIV. Tais efeitos ameaçam o progresso do controle do HIV conquistado nas últimas décadas16, servindo como alerta para as autoridades sanitárias.
Aponta-se que vulnerabilidades individuais, sociais e programáticas figuram como fatores que determinam a agudização da infecção e consequentemente, a necessidade de internação19, vislumbrando, nesse cenário, a urgência de ampliação do acesso e qualidade do cuidado às PVHIV8, em especial nas regiões com maior proporção de internações hospitalares.
Nesse contexto, no que se refere à organização da rede de atenção ao HIV com centros e serviços especializados, sinaliza-se o papel fundamental que APS vem exercendo no cuidado às PVHIV no Brasil, responsabilizando-se pela ampliação das ações de promoção, prevenção, diagnóstico e pelo acompanhamento das desses indivíduos8, com o potencial de minimizar os efeitos da agudização por falta de cuidado contínuo e proximal e que podem culminar no agravamento da condição e posterior necessidade de internação.
Quando comparadas as variações percentuais de 2016 e 2020, as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul apresentaram os maiores decréscimos nos coeficientes de mortalidade, ao passo que as regiões Nordeste e Norte apresentaram as menores quedas, respectivamente. Esses achados estão em consonância com um estudo que analisou a tendência das taxas de mortalidade no Brasil, por HIV, no qual o Sul, Sudeste e Centro-Oeste apresentaram redução ou estabilidade, enquanto o Norte e Nordeste apresentaram variações crescentes7, podendo esse cenário estará trelado aos indicadores de saúde, educação e renda nessas regiões20.
Associado a isso, evidencia-se a fragilidade da assistência às PVHIV nas regiões Norte e Nordeste, que possui forte dependência dos serviços de alta complexidade posicionados nos grandes centros urbanos dessas regiões21)(22)(23, situação que pode prejudicar o acesso, uma vez que obstaculiza a busca pelo serviço pelas pessoas que residem em locais mais distantes das capitais.
Nessa configuração, infere-se que a APS pode não estar assumindo a coordenação do cuidado e se apresenta pouco qualificada e estruturada para o acompanhamento das PVHIV, operando com excesso de encaminhamentos, na contramão do preconizado pelos órgãos federais, e negligenciando o cuidado, que passa a ser centralizado21. Reforçando essa hipótese, estudo realizado no Nordeste mostrou que os profissionais de saúde locais ainda carecem de qualificação voltada para o atendimento a esse público24.
Diante do observado, é imperativa a garantia da continuidade dos serviços e ações voltadas a esse público no país como um todo, sobretudo frente à situação de sindemia vigente6. De acordo com Singer (1996, p. 99), “sindemia é um conjunto de problemas de saúde intimamente interligados e que aumentam mutuamente, que afetam significativamente o estado geral de saúde de uma população no contexto de persistência de condições sociais adversas”25.
Trata-se, portanto, do entrosamento entre doenças e contexto social vivenciado, que, ao se somarem, acentuam os malefícios em relação à ocorrência isolada desses mesmos fenômenos. Assim, é importante frisar que a pandemia da COVID-19 pode acentuar as dificuldades já enfrentadas, configurando-se como mais um fator prejudicial ao acesso e continuidade do cuidado às PVHIV, sobretudo devido aos efeitos deletérios aos serviços de saúde que atendem essa população26, sendo as repercussões a longo prazo ainda incertas, mas potencialmente catastróficas.
Por conseguinte, aponta-se a urgência de descentralização das ações de manejo e controle do HIV aos serviços da APS, sempre que possível, de modo que essa (re)organização permita à população o acesso às ações de prevenção e promoção em saúde desenvolvidas localmente12, a partir das reais necessidades e demandas dos indivíduos acometidos19.
O acesso ao diagnóstico e tratamento, bem como a adesão à TARV, podem ter especificidades regionais11.Desse modo a compreensão das particularidades e singularidades territoriais, individuais e coletivas, é fundamental para o enfrentamento do fenômeno, visando ações de saúde que articulem os diversos setores sociais em prol da transformação da realidade das PVHIV11)(12.
Este trabalho possibilitou a compreensão de aspectos inerentes à infecção pelo HIV para além dos números, entendendo o caráter histórico e dinâmico do agravo ao longo dos anos em cada região do país. Vislumbra-se a potencialidade dos dados derivados dos sistemas públicos de informação enquanto fonte para a produção do conhecimento no âmbito da vigilância epidemiológica, sendo capaz de subsidiar o desenvolvimento de políticas públicas em saúde a partir de achados científicos.
Todavia, ressalta-se que ainda existem desafios no que se refere à notificação das ocorrências de maneira correta, em tempo oportuno e integrada nas diversas fontes. Estudo realizado por linkage entre o SIH/SUS e o SIM/SUS demonstrou subnotificação dos óbitos por AIDS no Brasil, um alerta para necessidade de ações que visem registros corretos para subsidiar a vigilância, o planejamento e qualificação dos serviços27.
Frente a isso, reconhece-se que o uso de dados secundários pode ser considerado uma limitação do estudo, uma vez que erros podem ser cometidos no preenchimento das notificações e que há a possibilidade de subnotificação ou notificação por outras causas oportunistas decorrentes da infecção pelo HIV.
Conclusão
Evidenciou-se que, no cenário nacional, as internações por HIV apresentaram queda em todas as regiões ao longo do período, contudo, o Sudeste se manteve abaixo da média nacional. Salienta-se que, em 2020, houve o maior decréscimo dos coeficientes de internação por HIV no país presumivelmente em decorrência da pandemia da COVID-19, apontando a necessidade de investigação para melhor compreensão do achado.
Com relação aos óbitos, a queda dos coeficientes foi observada em todas as regiões, com menor variação no Nordeste e Norte, respectivamente. Ademais, as regiões Sul e Norte seguiram com os maiores coeficientes do país durante todo o período analisado, enquanto as demais ficaram abaixo da média nacional.
Nesse cenário, vislumbra-se a necessidade do direcionamento de estratégias que visam o enfrentamento da situação sanitária, em especial nas regiões com os maiores indicadores de hospitalização e mortalidade. Cumpre destacar a potencialidade da vigilância epidemiológica enquanto pedra angular para embasar as políticas de saúde em todas as esferas governamentais.
Sinala-se, também, o papel crucial da APS como ordenadora e articuladora do cuidado, na busca pela oferta da assistência integral, integrada e contínua, de forma compartilhada com outros serviços da rede de atenção e em maior proximidade à população. Nesse sentido, a capilaridade territorial da APS é sinequa non para a garantia do acesso universal aos serviços da RAS.
Pontua-se, ainda, a necessidade de novas investigações que melhor compreendam os aspectos intrínsecos às especificidades regionais de conformação e organização da rede de atenção no que se refere à oferta de ações e serviços de saúde, bem como das condições socioeconômicas e culturais que influem no curso da infecção pelo HIV.
Nessa lógica, espera-se, por meio do conhecimento do comportamento das internações e óbitos por HIV no país, estimular e subsidiar novos estudos voltados para a identificação das circunstâncias determinantes dessas situações, com intuito de qualificar o cuidado ofertado e o controle da infecção no Brasil.