Introdução
O Câncer representa a principal causa de morte em todos os países do mundo e há estimativas de 28,4 milhões de casos em 2040, um aumento de 47% em relação a 20201. Quando estratificado por sexo, o Câncer de Próstata (CP) é apontado como o segundo câncer mais prevalente no sexo masculino e a quinta causa de morte. Estimam-se em 1.414.259 novos casos e 375.304 mortes em 20202, representando um dos principais desafios para a saúde pública global. No Brasil, ocorreram 65.840 novos casos e 15.983 óbitos, correspondendo por 29,2% dos tumores incidentes no sexo masculino3.
Não existe prevenção específica para o CP, mas sabe-se que a etiologia está claramente associada à idade avançada (> 65 anos), etnia, fatores genéticos e história familiar. Todavia, nos últimos anos outros fatores têm sido relacionados, incluindo obesidade, sedentarismo, dieta rica em gordura animal saturada, carne vermelha e ingestão insuficiente de frutas, legumes, café e vitaminas. Ainda, hiperglicemia, inflamação, infecções e exposição ambiental a produtos químicos ou radiação ionizante têm sido estudadas4.
Até o momento, não há consenso sobre os riscos e benefícios da detecção precoce do CP, embora haja ampla discussão e pesquisas sobre a temática. Nada obstante, considerando que a carcinogênese prostática arrasta muitas décadas, a maioria dos países recomenda que o rastreamento deva ocorrer após os 50 anos, exceto para os casos em que há maior incidência do câncer, como em homens acima de 45 anos afro-americanos e com histórico familiar da doença5.
Dados epidemiológicos atualizados sobre a ocorrência e desfechos do CP, associado a evidências robustas da etiologia e dos fatores de risco causais são essenciais para a prevenção primária desta doença que representa uma barreira importante para o aumento da expectativa de vida em todos os países do mundo, principalmente os em desenvolvimento2)(5.
Realmente, muito se tem avançado na atenção a população masculina heterossexual cisgênero, ou seja, aqueles homens que possuem consonância entre o sexo biológico e a expressão de gênero imposta pelo modelo biomédico ao nascimento6. Entretanto, o mesmo não acontece com as minorias sexuais, população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travesti, Transexuais, Queer, Intersexuais, Assexuais e mais (LGBTQIA+), e menos ainda na População Transgênero (Trans), indivíduos cuja identidade de gênero é diferente de seu sexo atribuído no nascimento, tornando-os vítimas de mais uma iniquidade em saúde7)(8.
Assim, a População Trans (PT) não é incluída nos inquéritos epidemiológicos e programas de detecção precoce e rastreamento, e as informações são, em sua grande maioria, restritas a clínicas especializadas em cirurgia, mantendo o ciclo de disparidade de sexo, gênero e identidade sexual. Nesse sentido, é premente que haja investimentos em políticas públicas voltadas para esse segmento, haja vista que as Mulheres Trans (MT) e Travestis (T) possuem a glândula prostática; ainda que atrofiada, por intermédio da estrogenioterapia (terapia hormonal estrogênio) a base para o processo de feminização, e, portanto, estão vulneráveis ao CP9)(10.
No Brasil, a Portaria nº 2.836, de 1° de dezembro de 2011, institui em âmbito nacional, a Política Nacional de Saúde Integral LGBT, e em 2013 após promulgação da referida lei, ainda permanece indeterminado um conjunto de articulação e diretrizes que se retrate ao CP em Mulheres Trans8.
Na ausência de uma legislação específica, escassez de estudos e idéias preconcebidas, permanece uma enorme fragilização no atendimento às pessoas cuja identidade de gênero difere do sexo biológico disposto pela medicina, o que contribui para a violação dos direitos humanos básicos. Destarte, há violação ao direito a um atendimento humanizado, não realização periódica de exames por ausência de fluxogramas específicos, assim como, desconhecimento ou mesmo desconforto prático de avaliação ao corpo feminino Trans, observando-o como patologização10.
É consenso que programas e ações preventivas contribuem significativamente para a melhoria das condições de vida e de saúde das populações. Em se tratando do CP, a educação em saúde possui o potencial de desmistificar estigmas, diminuir a morbimortalidade decorrente de diagnósticos tardios e tornar o sujeito agente principal e provedor da sua saúde e autocuidado11).
Embora existam diversos programas voltados ao CP, seu alcance ainda é limitado devido à iniqüidade de sexo, gênero e orientação sexual, o que aponta para a necessidade de ações que alcancem tanto os homens cis quanto as mulheres trans, através do mecanismo de busca ativa de casos visando à detecção precoce desta patologia. Portanto, pesquisas que permitem associar o agravo à qualidade da assistência prestada contribuem para melhoria e intensificação das políticas voltadas para a prevenção do CP em homens cisgênero(heterossexual) e por consequência nas mulheres transgênero12.
Ante ao exposto, objetivamos com este, refletir de forma crítica acerca de campanhas preventivas sobre Câncer de Próstata no homem cisgênero e mulher transgênero.Adotou-se como método a reflexão teórica, inicialmente pela busca e leitura de artigos, seguida da problematização dos achados, com ênfase aos principais conceitos e ações desenvolvidas no Brasil sobre a temática.
Identidade de gênero e câncer de próstata
Identidade de Gênero se refere ao gênero que a pessoa se reconhece ou se apresenta para a sociedade, o que pode ou não corresponder ao seu sexo biológico. O Termo Cisgeneridade (cisgênero ou cis) é utilizado para se referir à pessoa que está em concordância entre o seu sexo de nascimento e os aspectos anatomofisiológicos em seu corpo. Já a Transexualidade (transgênero ou trans) é marcada pela discordância entre o gênero autodeclarado, com ou sem busca de adequação do seu corpo ao gênero com o qual se identifica7)(8.
Entre a população trans, especialmente as mulheres trans, essas, podem experimentar uma transição social, hormonal ou cirúrgica, dependendo do seu nível de autoaceitação, autocuidado e disponibilidade de apoio e recursos. Tais aspectos devem ser considerados nas investigações, que permanecem limitadas, em particular as que analisam os aspectos epidemiológicos do CP9)(10.
Convém destacar que mulheres trans também apresentam risco de desenvolver câncer em outros órgãos relacionados ao sexo biológico, algo emergente atualmente e que merece pesquisas prospectivas adicionais para melhor caracterização dos preditores do câncer de mama (CM), por exemplo1)(10.
É premente reflexões acerca do CP tanto na população cisgênero, quanto no transgênero com vistas a garantir isonomia nas pesquisas e vigilância em saúde pública, de forma que todas as necessidades de saúde sejam atendidas na relação biopsisocioespiritual dos indivíduos. Para tanto, acredita-se ser necessário padronização universal da terminologia transexualidade com investimentos financeiros em pesquisas multisetoriais e interdisciplinares articuladas às ciências da saúde, ciências sociais, direitos humanos e organizações da sociedade civil13.
Os registros a nível nacional e interacional do CP não abarcam identidade de gênero; de tal modo, a problemática dessa doença depende, em grande parte, dos relatos de caso e séries de casos. Importante estudo europeu estimou prevalência para o câncer de próstata de 0,04 % em coorte de 2306 mulheres transexuais, porém, deve-se considerar que os dados foram coletados em prontuários e, por conseguinte, é muito provável que os casos subclínicos não tenham sido identificados10).
Devido à ausência de achados com altos níveis de evidências científicas, até o presente momento, as mulheres trans teoricamente deveriam ser rastreadas com os mesmos padrões do homem cis, porém, os documentos oficiais são desprovidos de diretrizes específicas para esse público, e assim sendo, não é recomendado que os profissionais de saúde examinem regularmente mulheres transexuais em busca dessa neoplasia, nem mesmo sua rastreabilidade(8).
Campanhas de prevenção ao câncer de próstata e o “Novembro Azul”
No anseio de contribuir para a prevenção do câncer de próstata, emergiu na cidade de Melbourne - Austrália, um movimento denominado de Movember, pela união das palavras mo, gíria australiana para moustache (bigode) e november (novembro), onde os amigos Travis Garone e Lucas Slatttery, desafiaram seus colegas a deixarem o bigode, que na época não estava em moda, como forma de chamar a atenção para assuntos relacionados com a saúde do homem14.
Esse movimento se ampliou e atualmente faz parte das agendas governamentais de inúmeros países, incluindo o Brasil. O Ministério da Saúde, através do calendário da saúde, disponibiliza anualmente campanhas preventivas por traços de tonalidades de cores conforme os meses do ano, com o intuito de chamar a atenção dos indivíduos e coletividade sobre a importância do cuidado à saúde, e a população a que se destina15.
Nesse contexto, o mês de novembro é intitulado como “Novembro Azul”, e destina-se a atenção à saúde do homem, principalmente estimulando os homens cisgênero a refletirem acerca do CP e em alguns casos a busca por cuidados com a saúde.
Todavia, é necessário refletirmos se esse modelo de campanha consegue atender as especificidades e completude do indivíduo de forma romper com o modelo biomédico e ainda, se fortalece conceitos marcados por uma masculinidade tóxica. É preciso considerar que somos identificados, desde o nascimento, como indivíduo/pessoa do sexo masculino ou feminino e criado de acordo nosso o gênero e, consequentemente, passamos a ser identificados por cores, azul celeste para identificar o menino e rosa pink para meninas16.
Nesse contexto, associar a cor ao gênero é algo clássico. Por conseguinte, a campanha de “Novembro Azul - Saúde do homem” deveria repensar a cor e buscar articular uma confluência estratégica para atingir homens cis e mulheres trans. Acreditamos que a efetividade das campanhas educativas voltadas a prevenção do CP está em reconhecer a mulher trans como também susceptível e criar ferramentas para atender melhor as especificidades dessas mulheres.
Caso não haja um novo olhar, a saúde não conseguirá atender integralmente os indivíduos com próstata em toda a sua complexidade, e acabará levando em consideração apenas o sexo biológico dos indivíduos.
Considerações finais
Como o tratamento e manejo clínico do CP em mulheres trans ainda não estão definidos, é premente investimentos em estudos futuros para examinar esses fatores e moldar o regime de tratamento e triagem dessas pacientes. Nessa conjuntura, é preciso investimentos em políticas voltados a esse importante grupo social, considerando que a saúde da população trans é um campo em desenvolvimento que inclui considerações fisiológicas e psicossocioculturais para a otimização da saúde, e consequente prevenção do CA.
Destarte, campanhas considerando grupos específicos devem ser incentivadas, desde que aconteçam de forma permanente e não pontual como geralmente tem ocorrido, e que tragam em sua essência a integralidade do cuidado, conseguindo atingir a plenitude dos indivíduos.
Espera-se que novas pesquisas e estratégias de cuidado forneçam, a nível global, recomendações baseadas em evidências para o câncer de próstata na saúde cisgênero e transgênero com foco na colaboração e na superação das disparidades de saúde nesse grupo. Ainda, a discussão deve ser contemplada nos Projetos Políticos Pedagógicos dos Cursos da área da saúde e nos documentos oficiais, haja vista que os profissionais da saúde devem ser qualificados para assumirem a liderança das estratégias que visam melhorar o atendimento de mulheres trans.
Em suma, os achados ilustram a dicotomia na construção identitária das estratégias de prevenção e controle do câncer de próstata nos indivíduos cisgênero e transgênero, segundo concepção de cores, indicando a necessidade de abordagens distintas para os dois grupos em questão.