Introdução
A dor é definida como uma experiência sensorial e emocional, estando associada a um dano real ou potencial nos tecidos1.Pode ser resultante de muitos distúrbios, exames diagnósticos e tratamentos; além de incapacitante e causadora de angustias nas pessoas mais do que qualquer doença isoladamente2. Embora uma pessoa consiga sobreviver tendo dores, esta condição interfere diretamente no bem-estar físico, emocional e social, no desempenho das atividades laborais, influenciandodiretamente na qualidade de vida3.
A pessoa que passa por uma experiência dolorosa, em algum momento da vida, costuma buscar alívio do problema álgico por meio de orientações médicas ou pelo consumo de medicamentos por conta própria4.Os medicamentos são substâncias ou preparações elaboradas em farmácia (medicamentos manipulados) ou indústrias (medicamentos industriais), produzidas com um rigoroso controle para várias finalidades, dentre elas, diagnósticos, alívio de sintomas ou cura de doenças5.
A busca pelo alívio rápido e o choque emocional negativo que a dor causa na qualidade de vida incide no elevado consumo de medicamentos1. Os medicamentos mais utilizados para tratamentos da dor são os analgésicos não opioides6-8. Estes medicamentos são indicados para alívio de dores de ação periféricas e centrais, agindo diretamente na inibição das cicloxigenases (COX 1 e COX 2), enzima responsável pela sintetização de prostaglandinas, substância envolvida diretamente no processo doloroso e inflamatório9. Os principais analgésicos não opioides são: dipirona; paracetamol; ibuprofeno; e o ácido acetilsalicílico9.
O sucesso terapêutico depende da escolha do tratamento, medicamentoso ou não, científico e racional. O uso racional é realizado através de prescrição apropriada, disponibilidade com condições adequada, doses indicadas, intervalos de tempo prescritos e preços acessíveis. Diferente do modo racional, a prática irracional é entendida como consumo sem consentimento ou prescrição de um profissional habilitado para isso10.
Aparentemente, embora inócuos de problemas e de maneira geral, sem a necessidade de prescrição médica para o uso, os analgésicos podem levar a inúmeros problemas de saúde, tais como: constipação, náuseas, vômitos, irritação gástrica, insuficiência renal aguda, disfunção hepática, discrasias sanguíneas, urticárias, cefaleia, choque, entre outros11-12.
Na análise da população adulta em geral, estudo realizado em uma cidade do Paquistão, em que participaram 500 pessoas de ambos os sexos, mostrou que a classe medicamentosa mais consumida pela população foi a de analgésicos (28,8%), utilizados principalmente para a dor de cabeça (32,7%)13. Outro estudorealizado na Espanha com 2.700 homens e mulheres revelou alto índice de consumo desta droga (25,5%) para o tratamento da dor14.
No Brasil, um estudo de base populacional com 40.833 entrevistados de ambos os sexos, apontou que a prevalência do consumo é de 33,4%, sendo os sintomas dolorosos os principais responsáveis pelo uso (24,3%)8.
Em populações de estudantes do ensino superior, estudos conduzidos em Goiás demonstraram altas proporções de uso dos analgésicos, encontrando valores de 29,8%15 a 76%16. Avaliando os grupos de estudantes da área da saúde, pesquisa conduzida com 283 alunos dos cursos de medicina e enfermagem em São Paulo, demonstrou prevalência de 45,5% para o consumo de analgésicos1. Resultado semelhante foi encontrado em inquérito conduzido com 89 estudantes de graduação de enfermagem também de São Paulo, obtendo 39,0% de prevalência do consumo de analgésicos, utilizados principalmente para alívio da dor7. Já no Rio de Janeiro, uma investigação apontou que, entre os 50 estudantes de enfermagem de uma Instituição no interior do estado do Rio de Janeiro, 43,1% faziam consumo de analgésicos para dor17.
Diante deste cenário, observam-se discrepâncias entre os valores encontrados na literatura nacional, além de restrição de estudos que avaliem o consumo dos analgésicos principalmente entre estudantes da Enfermagem, para o principal sintoma de doenças - problemas álgicos. E considerando que o uso destes produtos pode causar problemas de saúde, tais como: alergias, intoxicações, disfunções hepáticas e renais, problemas gastrointestinais, estudos desta natureza são essenciais para garantir qualidade de vida deste grupo populacional18.
Este estudo objetivou estimar a prevalência do consumo de analgésicos não opioidespara alívio da dor entre alunos de Enfermagem de uma Instituição de Ensino Superior no interior do Estado do Amazonas.
Método
Trata-se de um estudo transversal, de abordagem quantitativa,conduzido com estudantes do curso de graduação em Enfermagem de uma Universidade Pública situada no interior do Amazonas, região norte do Brasil, investigando o uso de analgésicos para alívio da dor. O presente artigo faz parte de um projeto maior que buscou investigar o uso de medicamentos entre estudantes dos diversos cursos de graduação do campus selecionado. Como guia para condução deste trabalho, foi utilizado o STROBE (Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology)19.
O campus selecionado fica na cidade de Coari, há 363 km de distância (em linha reta) da capital Manaus, cujo acesso se dar por via fluvial ou aérea; e está ligado à Universidade Federal do Amazonas (UFAM), recebendo o nome de Instituto de Saúde e Biotecnologia (ISB) e foi fundado em 2005 por meio de política de interiorização e acrescentamento das atividades da UFAM, com a criação de cursos nas áreas de ciências exatas e da saúde. Atualmente, são ofertados os cursos superiores de Ciências: Matemática e Física; Biotecnologia; Ciências: Biologia e Química; Fisioterapia; Enfermagem; Medicina; e Nutrição. O Curso de Bacharelado em Enfermagem ofertado no município de Coari é o único do interior do Estado do Amazonas, disponibilizando 40 vagas anualmente18. Coari se localiza na região central do Estado, possuindo uma área de 57.277.090 km², sendo a quinta maior cidade do Amazonas. Tem uma população média de 83.078 habitantes, com um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) baixo (0,586) - posição 4.595º entre os municípios brasileiros e 21º no ranking estadual20.
Como o interesse deste artigo são os estudantes de Enfermagem, consideraram-se todos os matriculados (N = 231) no segundo semestre de 2017. Por meio de amostragem por conveniência, incluíram-se aqueles com matrícula ativa; com idade igual ou superior a 18 anos; e que estavam presentes no momento da coleta. Como critérios de exclusão, consideraram-se participantes que possuíam alguma dificuldade que inviabilizasse a comunicação. Assim, a amostra final deste estudo foi composta por 142 graduandos distribuídos entre todos os períodos/semestre ofertados à época - 1º, 3º, 5º, 7º e 9º.
A coleta de dados ocorreu nos meses de outubro e novembro de 2017, por uma equipe previamente treinada, durante os intervalos das aulas e após consentimento dos professores responsáveis pelas aulas no momento. Como instrumento, utilizou-se um questionário autoaplicável composto de questões objetivas e subjetivas, organizadas da seguinte forma: sociodemográficas (idade, sexo, religião, cor da pele, renda individual e familiar); escolar (período no curso); consumo de medicamentos para alívio da dor nos últimos 30 dias; localização da dor; grau de interferência da dor na realização das atividades diárias; fonte indicadora para o consumo e local de aquisição dos medicamentos18.Este questionário foi utilizado em outros estudos conduzidos pelo grupo de pesquisadores deste texto18. Destaca-se que antes da coleta, os pesquisadores explicaram os objetivos do estudo, e somente após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), os estudantes tiveram acesso ao questionário.
Os analgésicos foram classificados por meio do sistema deClassificação Anatômica Terapêutica Química (ATC), adotado pela Organização Mundial da Saúde erecomendado nos estudos de utilização de medicamentos que permitem padronização dos agrupamentos dos medicamentos, possibilitandocomparações entre os países, regiões e outras configurações de cuidados de saúde. Ainda permite comparar tendências do consumo de medicamentos ao longo dotempo e em diferentes contextos21.A estrutura de classificação da ATC é dividida em cinco níveis, sendo que, neste estudo, foi utilizado apenas o nível cinco - que são substâncias químicas utilizadas apenas para alívio da dor21.
Para análise dos dados, utilizou-se o StatisticalPackage for the Social Sciences (SPSS), versão 17.0, cuja alimentação/inclusão da base foi feita com conferência cruzada. Por fim, conduziram-se as análises descritivas, utilizando frequências absolutas e relativas, medianas.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), parecer CAAE de número 74919717.1.0000.5020.
Resultados
Dos 142 graduandos entrevistados, a maioria era do sexo feminino(64,1%), estavam na faixa etária entre 18 a 23 anos (69,7%), residiam com familiares (67,6%) e não possuíam renda própria (88,1%). Em relação à renda familiar, 43,0% dos graduandos apresentaram renda de 1 a 2 salários mínimos. Entre os 142 graduandos investigados, 97 consumiram analgésicos (68,3%). Destes, a maioria era do sexo feminino (70,1%), encontravam-se na faixa etária de 18 a 23 anos (70,1%), cursavam até o 5º semestre do curso (61,8%) (Tabela 1).
O principal motivo para uso de analgésicos foi para alívio de dores de cabeça (64,9%), seguido por dores abdominais (14,4%). Quando questionados se a dor interferia em algum grau na realização de suas atividades diárias, a maioria respondeu positivamente (77,3%). A maioria dos graduandos costumava ler a bula dos medicamentos e considerou que os analgésicos podem fazer mal a saúde (76,3% para ambos os casos). E mais da metade dos graduandos consumiram os analgésicos por conta própria (58,8%) (Tabela 2).
Dentre as substâncias químicas mais consumidas, destacaram-se o paracetamol (46,5%) - pura ou em associação com outras substâncias - seguido da dipirona (44,9%) (puro ou em associação). Destaca-se que esta variável soma-se maior ao quantitativo dos que referiram uso de analgésico (n = 97), uma vez que as medicações podem ter sido repetidas entre o grupo (Tabela 3).
O estudo apontou que, quase a metade dos graduandos indicam medicamentos a terceiros (47,4%) e 9 a cada 10 graduandos, guardam medicamentos nas residências (93,8%).Constatou-se que cerca de 2 a cada 10 graduandos utilizaram medicamentos com nomes comerciais diferentes, porém com as mesmas substâncias químicas utilizadas para analgesia (19,6%).
Discussão
A prevalência do consumo de analgésicos para alívio da dor entre os graduandos de Enfermagem deste estudo foi elevada (68,3%), sobretudo entre as mulheres, e com a finalidade de sanar as dores de cabeça. Comparando-se a outros estudos com mesmo público, observam-se prevalências menores que a encontrada por nós. Estudo feito em Goiás encontrou valor igual a 38,8%4; e pesquisa conduzida em São Paulo evidenciou prevalência de 45,56%1.
Neste estudo, embora não tenha sido investigado o motivo que levou ao consumo de analgésicos, alguns estudos destacam a falta de tempo de ir ao serviço de saúde como motivador do consumo entre estudantes de enfermagem no país4,17,22-23, incluído o município de Coari - Amazonas18.Além disto, é importante destacar que parece haver no município a cultura de tentar eliminar os problemas de saúde por conta própria, buscando nos medicamentos solução rápida e fácil para os problemas das populações. Assim, questões culturais ligadas a uma população ribeirinha, com concepções de saúde específicas devem ser consideradas nesta análise. Um achado que fortalece esta constatação aponta que de cada 10 graduandos, 8 adquiriu os analgésicos diretamente nas farmácias, o que poderia postergar a elucidação de possíveis doenças de base, além do risco de efeitos colaterais e adversos.
Prevaleceu o consumo de analgésicosentre o sexo feminino (70,1%),corroborando com outros estudos1,3-4,7,22,24. O curso de Enfermagem é composto, majoritariamente, por mulheres, razão que, em parte, explicaria a maiorprevalência de consumo por esse sexo4. Por outro lado, considerando as características peculiares relacionadas ao sexo feminino, como o ciclo menstrual e toda a sintomatologia envolvida, destacando-se sintomas álgicos, é esperado que as mulheres façam o uso de analgésicos com maior frequência25.
Dentre os principais problemas álgicos encontrados, destacou-se a dor de cabeça (64,9%). Estes achados superam os resultados de outra investigação realizada com estudantes da área da saúde de uma universidade pública do Amazonas, que detectou que 37,0% dos estudantes apresentaram dor cabeça26; e dos resultados encontrados em Minas Gerais, que foram de 35,6%27.
O curso de Enfermagem em instituições públicas de ensino, geralmente, é diurno, com cargas horárias diárias elevadas e aulas práticas presencias, sendo o restante do dia dedicado ao estudo para provas, seminários e resolução de exercícios. Assim, pode haver poucas horas para o sono, exigindo muito da parte mental e física do aluno, que favorecem o surgimento de sentimentos de ansiedade, apreensão, estresse, induzindo respostas psicológicas, fisiológicas, favorecendo o surgimento das cefaleias que são multifatoriais28.
O presente estudo revelou que cerca de 2 a cada 10 graduandos relataram que a dor interfere na realização de suas atividades diárias de forma bastante e extrema, favorecendo o consumo de analgésicos por conta própria para o rápido alívio do desconforto, para voltar a realizar suas atividades habituais de forma plena e com qualidade de vida. O uso rotineiro de medicamentos para alívio da dor parece ser uma prática comum, aparentemente inofensiva, mas que pode levar a interações medicamentosas, intoxicações, reações adversas, mascaramento de doenças, agravamento do estado de saúde e até mesmo o óbito22,29.
Apesar de 76,3% dos graduandos de Enfermagem afirmar que liam a bula e reconheciam que estes medicamentos podem trazer algum risco a saúde (76,3%), mais da metade dos alunos consumia analgésico por conta própria (58,8%). Embora grande parte dos analgésicos seja isento de prescrição médica, isto poderia levar a falsa impressão de que os mesmos estariam sendoempregados da forma correta e inócuos de riscos à saúde. Além disto, as informações contidas nas bulas apresentam termos técnicos desconhecidos por grande parte dos graduandos de Enfermagem, principalmente os que estão nos períodos iniciais do curso degraduação1,4,17.
O alívio do desconforto momentâneo dos sintomas álgicos, realizado através de medicamentos autoprescritos, favorece que os indivíduos adiem o tratamento adequado e em momento oportuno, alimentando a cronificação da experiência dolorosa e o aparecimento de comorbidades, sucedidas do convívio prolongado com a dor4.
Em relação aos medicamentos mais utilizados destacou-se o paracetamol (46,5%) e a dipirona (44,9%), em consonância com outras investigações nos estados de Minas Gerais23 e Goiás1.A indústria farmacêutica dispõe de inúmeros medicamentos para o controle da dor, sendo a maioria classificados como de venda livre, comercializados nos balcões das drogarias e farmácias e, muitas vezes, em estabelecimentos não relacionados com a área da saúde, como supermercados e lanchonetes, facilitando o acesso a esses medicamentos e sua armazenagem em casa. Porém, esses medicamentos de venda livre não estão isentos de causar efeitos adversos e colaterais e o uso prolongado desses fármacos, semacompanhamento de um profissional de saúde, pode levar à cronificação da dore gerar consequências desastrosas17,27. A dipirona, por exemplo, pode levar a agranulocitose fatal (morte dos neutrófilos, basófilos e eosinófilos), reações de hipersensibilidade (manifestações cutâneas ou nas mucosas) e choque, entre outros3,11.
Outro dado alarmante é que mesmo sabendo das implicações negativas (76,3%), quase a metade dos graduandos indicava medicamentos a terceiros (47,4%), corroborando com outros estudos7,24. Este dado merece atenção, pois revela que futuros enfermeiros costumam indicar medicamentos para terceiros, mostrando seriedade do problema, pois além de comprometerem a própria saúde, podem colocar em risco a saúde de seus pares/amigos. Durante a formação acadêmica no curso de enfermagem, não há suporte teórico suficiente que sustente a indicação do uso correto de qualquer medicamento, sobretudo no que tange a aspectos que regem a prática profissional, uma vez que, na maioria dos municípios, os Enfermeiros não podem prescrever uma gama de medicamentos, salvo aqueles preconizados nos programas da Atenção Primária à Saúde (APS), respaldado pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), cabendo sanções disciplinares pelo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem18.
No presente estudo, constatamos que 2 a cada 10 graduandos utilizaram medicamentos com nomes comerciais diferentes, mas com as mesmas substâncias químicas para analgesia, fato preocupante, pois, dependendo da dosagem, pode haver intoxicação e outros problemas de saúde23. É possível que haja inconsistências no processo de ensino em relação ao uso racional de medicamentos no curso de graduação18.
Conclusão
Constatou-se alto consumo de analgésicos não opioides para alívio da dor entre os estudantes de Enfermagem investigados. Além disto, observou-se a prática de compartilhamento dos medicamentos consumidos, demonstrando uso irracional.Apesar de o desenho amostral ter sido por conveniência, e reconhecendo os possíveis vieses de seleção, destaca-se a análise destes comportamentos entre estudantes no interior do Amazonas, região pouco explorada no Brasil, apresenta-se pertinente, permitindo conhecer parte da realidade destes discentes.
Reconhece-se que estudantes da área de saúde possam usar mais este tipo de medicação devido ao maior conhecimento e acesso aos fármacos, contudo, é preciso destacar os riscos desta prática, principalmente no que se refere à automedicação. Estratégias de ensino que fortalecem a conscientização dos estudantes devem ser intensificadas, visando protegê-los de eventuais agravos advindos do uso irracional destas medicações. Ademais, por serem futuros profissionais, faz-se necessário uma discussão acerca do cuidado que devem adotar com a própria saúde,desenvolvendo comportamentos que minimizem riscos.
Estudos adicionais devem ser realizados, principalmente que investiguem mais detalhadamente as causas das dores, considerando questões socioeconômicas, emocionais, laborais e acadêmicas/escolares, para que ações de promoção à saúde sejam direcionadas.