Introdução
O abandono precoce da psicoterapia é um fenômeno significativo, frequentemente encontrado por terapeutas em diversas abordagens teóricas, com taxas variando entre 15% a 75% (Arnow et al., 2007; Bados, Balaguer, & Saldanã, 2007). Entre os fatores associados ao abandono, destacam-se fatores do relacionamento terapeuta-paciente, especialmente a aliança terapêutica (AT). A metanálise de Sharf, Primavera e Diener (2010) revelou uma relação relativamente forte entre AT e abandono (d: 0,55), indicando que pacientes com ATs mais fracas têm mais chances de abandonar precocemente o tratamento. O estudo de moderadores sugere que a relação entre AT e abandono é mais forte em indivíduos com menor escolaridade, terapias mais longas e no contexto de internação. Estabelecer e manter uma boa aliança é, portanto, decisivo para evitar o abandono do tratamento e criar as condições para que o progresso terapêutico possa ocorrer (Horvath, Del Re, Flückiger, & Symonds, 2011; Krause, Altimir & Horvath, 2011).
O conceito de AT tem origem na consideração de Freud sobre a necessidade do paciente se ligar positivamente ao terapeuta para que o trabalho analítico possa se desenvolver. Os termos aliança terapêutica e aliança de trabalho foram cunhados, respectivamente por Zetzel e Greenson, que indicaram seu caráter consciente, não conflitivo e diferenciado da transferência (Gomes, 2015). Contudo, o conceito evoluiu, passando a ser concebido panteoricamente, a partir da concepção de Bordin (1979), como uma relação de colaboração mútua, consciente e proposital, entre paciente e terapeuta na terapia, caracterizada por um acordo sobre objetivos, uma atribuição de tarefas (combinadas no contrato terapêutico), e o desenvolvimento de laços afetivos. Essa visão da AT, panteórica e com ênfase na colaboração e no consenso, influenciou, ainda que de modo diverso e não consensual, a maior parte das principais medidas atuais do construto (Horvath et al., 2011; Krause et al., 2011).
AT hoje é reconhecida como um processo dinâmico que apresenta variações na intensidade, frequência e duração, dependendo do diagnóstico do paciente e do tipo de abordagem teórica empregada. Essas oscilações, denominadas de rupturas, podem acontecer ao longo do tratamento e, inclusive, ao longo de uma mesma sessão (Barros, Altimir & Pérez, 2016; Safran, Muran, & Eubanks, 2011). As rupturas são caracterizadas por uma deterioração na AT, manifestada pela falta de colaboração em tarefas ou objetivos ou uma tensão no vínculo emocional e na dificuldade em negociar aspectos da relação terapêutica (Eubanks, Muran, & Safran, 2015; Safran & Muran, 2006; Safran, Muran, & Proskurov, 2009). O paciente pode evitar o trabalho terapêutico e/ou o terapeuta ou confrontá-los diretamente. Esses movimentos de rupturas da AT são inevitáveis em qualquer psicoterapia (Eubanks et al., 2015). Porém, quando não reparadas, as rupturas podem ocasionar o abandono do tratamento (Safran et al., 2011).
Existe ampla evidência de que as alianças enfraquecidas estão correlacionadas com o término unilateral do paciente (Doran, 2016; Safran et al., 2009; Safran, Israel, & Einstein, 2006), bem como interações negativas (isto é, hostis e agressivas) entre paciente e terapeuta estão associadas a desfechos desfavoráveis (Coady, 1991; Samstag et al., 2008; Zilcha-Mano, Muran, Eubanks, Safran, & Winston, 2018). Conforme a metanálise de Safran et al. (2011) existem evidências empíricas de que indivíduos com transtornos de personalidade apresentam mais intensidade de rupturas no início da terapia do que aqueles sem distúrbios de personalidade. Entre os primeiros, os pacientes com Transtornos de Personalidade Borderline (TPB) são os que apresentam uma taxa de rupturas maior. Possivelmente isso explique as maiores taxas de abandono de tratamento entre pacientes com este transtorno (Kröger, Harbeck, Armbrust, & Kliem, 2013; Koons et al., 2001; Linehan et al., 2007; McMain et al., 2009).
Pacientes com TPB apresentam padrões inflexíveis e duradouros de dificuldades emocionais e interpessoais (Benjamin, 1993; Leichsenring, Leibing, Kruse, New, & Leweke, 2011) que exigem do terapeuta o manejo diferenciado de aspectos centrais de sua patologia (Barnow et al., 2009; Kernberg, 2012; Lazarus, Cheavens, Festa, & Zachary Rosenthal, 2014; Skodol et al., 2002). Por exemplo, a instabilidade afetiva e falta de integração do self e dos outros significativos é manifestada através de um sentimento de vazio crônico, percepções de si mesmo e do outro contraditórias e empobrecidas, dificultam a experiência empática e a relação com o terapeuta. Por este motivo, recomenda-se que as intervenções com esses pacientes focalizem o desenvolvimento e a manutenção da AT (Bennett, Parry, & Ryle, 2006; Geremia, Benetti, Esswein, & Bittencourt, 2016).
Como a aliança é tão crítica para o resultado, Safran e colaboradores (Eubanks, Muran, & Safran, 2014; Muran et al., 2009; Safran & Muran, 1996, 2000; Safran et al., 2011; Safran et al., 2009; Safran et al., 2006; Safran, Muran, & Samstag, 1994) criaram e testaram um modelo para reparar rupturas na aliança durante a terapia. Recentemente, com o objetivo de sistematizar a codificação de rupturas e reparações da AT, Eubanks et al. (2015) desenvolveram o Rupture Resolution Rating System (3RS). O sistema visa a codificação das rupturas da AT e intervenções de reparações, em segmentos de sessões de psicoterapia.
Gersh et al. (2017) realizaram uma pesquisa com 44 jovens com TPB, visando explorar os processos de ruptura e reparação da AT, por meio do 3RS. O estudo mostrou que as rupturas ocorreram em 53% das sessões e com o passar do tratamento tendem a aumentar, sendo as de confronto mais frequentes. As rupturas que ocorreram no início do tratamento foram associadas com piores resultados. Por outro lado, uma maior resolução das rupturas foi associada a melhores resultados e podem ser oportunidades de crescimento terapêutico.
Considerando a relevância do processo da AT para a adesão de pacientes com TPB em psicoterapia, esse estudo tem como objetivo identificar a frequência e as variações dos processos de ruptura da AT em um caso interrompido de psicoterapia psicanalítica, realizada com paciente com diagnóstico de TPB e objetiva, ainda, descrever as características do processo terapêutico global.
Método
Estudo de caso sistemático, idiográfico, longitudinal e intensivo. Este tipo de estudo tem semelhanças com os estudos de caso da tradição clínica, mas se diferencia destes, entre outros aspectos, por apresentar maior rigor metodológico, como o uso de juízes independentes, analise de sessões gravadas em áudio e vídeo, e controle sobre vieses do pesquisador (Edwards, 2007; Serralta, Nunes, & Eizirik, 2011).
O processo em estudo e seus participantes
O caso analisado consiste no processo de uma psicoterapia psicanalítica. O tratamento foi interrompido pelo paciente na 15ª sessão. O paciente (denominado ficticiamente Carlos) possuía 30 anos. As suas queixas iniciais foram a falta de controle emocional e a dificuldade nos relacionamentos interpessoais e com sua parceira amorosa. Carlos foi atendido em um consultório particular de psicologia. A terapeuta era do sexo feminino, possuía 32 anos e formação em psicoterapia psicanalítica. O diagnóstico de TPB foi realizado pela terapeuta, com base na sua experiência clínica e na aplicação da Shedler-Westen Assessment Procedure - SWAP-200 (Shedler & Westen, 1998; Westen & Shedler, 1999), um instrumento do tipo Q-sort formado por 200 afirmativas que descrevem aspectos cognitivos, afetivos, relacionais, de pacientes com problemas de personalidade. Para a interpretação do perfil, utiliza-se escores padronizados. Escores T > 60 são compatíveis com o diagnóstico categórico de transtorno de personalidade, enquanto escores T > 55 indicam a presença de traços destes. Conforme dados obtidos pela SWAP-200, Carlos apresentava características compatíveis com o diagnóstico de Transtorno de Personalidade Borderline, e características histriônicas. Os traços patológicos mais proeminentes eram a desregulação emocional e a psicopatia. Seu índice de saúde psicológica era indicativo de um nível médio de patologia da personalidade.
Instrumentos
Ficha de acompanhamento do processo. Esta ficha foi elaborada pela pesquisadora para ser preenchida pela terapeuta. Trata-se de um registro das sessões agendadas, a frequência do paciente na sessão, contemplando eventuais atrasos, e intercorrências dignas de nota (como por exemplo, falha no equipamento de gravação).
O Rupture Resolution Rating System (3RS) (Eubanks et al., 2015) é um sistema de observação de rupturas na AT para obtenção de uma classificação do tipo de ruptura (evitação ou confrontação) em uma sessão de psicoterapia, bem como as estratégias de resolução do terapeuta. Essa classificação é feita em uma escala de significância de 5 pontos, sendo 1 (sem significância) e 5 (alta significância). Na sequência, o avaliador atribui uma classificação de qual ruptura predominou na sessão, com base na frequência. O último item de avaliação refere-se a extensão em que o terapeuta causou ou exacerbou rupturas na sessão. O sistema apresenta alta confiabilidade entre avaliadores (Eubanks, Lubitz, Muran, & Safran, 2018a). A versão em português do manual 3RS foi desenvolvida pela equipe.
O Psychotherapy Process Q-Set (PQS) (Jones, 2000) é um instrumento panteórico, do tipo Q-sort que apresenta 100 itens que descrevem as atitudes e vivências do paciente, as ações e atitudes do terapeuta e a natureza da interação entre ambos. Ao observar uma sessão terapêutica, o avaliador classifica os itens numa escala de 9 pontos na qual, de um lado, classificam-se as características identificadas como mais proeminentes do processo terapêutico (positivamente salientes) e em outro, as menos características (negativamente salientes). Os itens colocados nas categorias centrais são considerados neutros ou irrelevantes. A distribuição forçada segue a curva normal e evita o efeito halocêntrico. O ordenamento é, geralmente, realizado por dois ou mais juízes treinados. A versão em Português do Brasil do PQS foi desenvolvida por Serralta et al. (2007), e apresentou equivalência semântica com o instrumento original em inglês e coeficientes de fidedignidade entre avaliadores previamente treinados comparáveis com os obtidos com o instrumento original (Correlações Intraclasse superiores a 0,70).
Procedimentos
Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (CAAE 39120214.6.0000.5344). As 15 sessões de psicoterapia deste caso foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra para posterior análise por meio do 3RS. A quantificação das rupturas foi realizada nos segmentos de cinco minutos em todas as sessões por duplas de juízes. Foram 6 juízes: dois estudantes de Mestrado, um estudante de Doutorado, uma Psicóloga Doutora em Psicologia Clínica (todos psicoterapeutas de orientação psicanalítica), e dois estudantes de iniciação científica, sem experiência clínica. Os juízes receberam um treinamento de 20 horas, conforme orientação do manual do 3RS (Eubanks et al., 2015). Neste estudo, os juízes obtiveram um grau de concordância substancial (K= 0,760; z= 8,0001; p> 0,0001) na identificação de rupturas.
Para identificação das rupturas, o juiz deve estar atento durante a exibição do vídeo aos indicadores de diminuição da colaboração entre paciente e terapeuta, discordâncias dos objetivos e tarefas do tratamento, levando em conta os aspectos verbais e não-verbais do paciente. O processo de codificação das rupturas é complexo e envolve muitas etapas e foi descrito detalhadamente por Dotta (2019).
As análises feitas com o 3RS incluíram a frequência das rupturas ao longo do tratamento e a frequência da contribuição da terapeuta para as rupturas. Após, avaliou-se a média da ocorrência das rupturas tanto de evitação como de confrontação, a média do impacto específico das subcategorias das rupturas da AT, e em cada sessão, e o impacto global das rupturas na AT em todas as sessões de psicoterapia.
Para a análise do processo com o PQS, cada sessão foi codificada por duplas de juízes previamente treinados, formadas por codificadores diferentes daqueles que avaliaram as rupturas com o 3RS. Os avaliadores do PQS foram: 1 doutora em psicologia e 2 estudantes de doutorado, com experiência clínica e 1 estudante de graduação em Psicologia, bolsista de Iniciação Científica, sem experiência clínica. Os juízes eram cegos quanto ao número de sessões, resultado do tratamento e identidade de avaliações de outros juízes. Os juízes apresentaram boa fidedignidade no julgamento das sessões analisadas, com coeficiente de correlação Intraclasse entre 0,71 e 0,86. Para obter o resultado da descrição global do processo terapêutico, calculou-se e ordenou-se a média dos 10 itens do PQS mais e menos característicos do processo.
Resultados
Processo global da psicoterapia
A terapia durou 27 semanas. Contudo, devido às faltas frequentes entre as sessões, o paciente compareceu somente a 15 delas. Em quase a metade das sessões (46,7%), o paciente chegou atrasado. A duração média das 15 sessões foi de 34,25 minutos (DP= 11,3). Entre a 1ª e 4ª sessão, observou-se uma média de duração de 29, 25 minutos (DP= 6,07). Entre a 5ª e 11ª sessão o tempo de duração da psicoterapia aumentou, durando em média 4, 87 minutos (DP= 8,98). A sessão de número 7 teve a sua gravação interrompida devido à falta de bateria na câmera.
O processo terapêutico global avaliado com o PQS mostrou que a terapia apresentou poucos silêncios (item 12) e foi permeada por material significativo (item 88). A dupla discutiu temáticas relacionadas à situação de vida atual do paciente (item 69), bem como suas aspirações (item 41), geralmente apresentando um foco específico (item 23) na discussão dos relacionamentos interpessoais (item 63) e amorosos (item 64) do paciente. Durante as sessões, o paciente sentia-se seguro e confiante (item 44), era ativo (item 15) e iniciava os assuntos (item 25). Geralmente mostrava aceitar os comentários da terapeuta (item 42) e possuía facilidade para compreender os comentários da terapeuta (item 5).
A terapeuta mostrou-se autoconfiante (item 86) e comunicou-se por meio de um estilo claro e coerente (item 46). Na relação com Carlos, foi responsiva, envolvida (item 9) e mostrou possuir tato (item 77). Suas intervenções visaram obter mais informações e elaboração (item 31) e facilitar a fala do paciente (item 3), mantendo atenção a aspectos verbais, sem referir aos não-verbais.
A identificação das rupturas, na Figura 4 ilustra o número de marcadores de ruptura identificados em cada sessão do tratamento. Identificou-se rupturas em todas as sessões de psicoterapia. Ao longo das 15 sessões, foram encontrados 100 marcadores de rupturas (em média, 6,66 rupturas por sessão). Destes, 69% são rupturas de evitação e 31%, rupturas de confrontação.
Conforme a Figura 1, as sessões com maior ocorrência de rupturas foram a 5, a 6 e a 9 (com 17, 13 e 17 rupturas, respectivamente). Já as com menor ocorrência, foram a 7, 12 e 14 com 3 rupturas cada, e a sessão15, com apenas uma. Observa-se uma distribuição de frequência bimodal, na qual identificou-se dois principais picos de aumento de rupturas (sessão 5 e 9). Quanto ao tipo de ruptura, com exceção da 1ª, da 4ª e da última sessões, houve predominância de rupturas de evitação em todas as sessões.
As rupturas de evitação com maior frequência média ao longo do tratamento foram: mudança de tópico/narrativa de evitação (Fr= 11), deferente e apaziguador (Fr= 9), e comunicação abstrata (Fr= 6). Já as rupturas de confrontação predominantes foram: paciente rejeita a intervenção do terapeuta (Fr= 12), defende-se contra o terapeuta (Fr= 3) e faz esforços para controlar o terapeuta (Fr= 3). As demais frequências das rupturas podem ser verificadas na Tabela 1.
Foi examinada a intensidade do impacto das rupturas de confrontação e de evitação. A intensidade das rupturas de confrontação (M= 3,61; DP= 0,9) foi ligeiramente maior quando comparada com o impacto das rupturas de evitação (M= 2,97; DP= 1,1). As rupturas de confrontação de maior intensidade foram: paciente defende-se contra o terapeuta (M= 3,67; DP= 0,5); esforços para controlar e pressionar o terapeuta (M= 3,67; DP= 1,12) e paciente rejeita as intervenções do terapeuta (M= 3,11; DP= 1,0). A ruptura queixas sobre os parâmetros da terapia (M= 4,00) apresentou apenas uma ocorrência, e, portanto, o grau de impacto 4 refere-se somente a esse marcador. Entre as rupturas de evitação, os marcadores com maior impacto foram negação (M= 3,33; DP= 1,4); comunicação abstrata (M= 3,17; DP= 1,0) e deferente e apaziguador (M= 3,09; DP= 0,9). As demais médias dos impactos das subcategorias específicas das rupturas de evitação e confrontação podem ser visualizadas na Tabela 2.
Constatou-se que as rupturas (de confrontação e evitação) apresentaram, em média, alguma significância sobre a AT (M= 3,0; DP= 0,62). Em todas as sessões, as rupturas tiveram ao menos algum impacto na AT (pontuação de pelo menos 3,0). Nas sessões 5, 6, 9, 13 e 14 houve presença de rupturas com alto impacto (pontuação 5,0). As sessões que apresentaram, em média, maior impacto na AT foram a 12 (M= 3,7; DP= 1,10), 13 (M= 4,2; DP= 1,10) e 14 (M= 4,0; DP= 1,10).
Ao longo do tratamento, identificou-se 30 contribuições da terapeuta no sentido de provocar ou exacerbar as rupturas. As sessões em que a terapeuta contribuiu com maior frequência para a ocorrência das rupturas foram a 5 (n= 10), 6 (n= 6), 8 e 9 (n= 5 em cada), embora essa conduta também tenha sido observada nas sessões 7, 10 e 11. Em contraposição, não houve contribuições da terapeuta para as rupturas nas sessões 1, 2, 3, 4, 12, 13, 14 e 15.
Discussão
A psicoterapia de Carlos foi compreendida como uma terapia malsucedida, pois o paciente abandonou o tratamento unilateralmente e sem que os ganhos terapêuticos pretendidos tenham sido alcançados. O tratamento teve uma duração de 27 semanas. Contudo, apesar da frequência contratada semanal, totalizou somente 15 sessões.
Além disto, denotou-se o baixo número de sessões em relação ao tempo de tratamento deveu-se, sobretudo às faltas entre sessões (foram 9 faltas; destas, somente uma combinada com a terapeuta). Nota-se que as faltas iniciaram na 4ª sessão, justamente quando, segundo a literatura, espera-se que a AT comece a se desenvolver de modo mais efetivo (Gersh et al., 2017).
Quando se examina o sequenciamento de presenças e faltas nas sessões, chama à atenção que, com exceção das sessões iniciais, o processo é praticamente todo intercalado por faltas. Isso possivelmente reflete a dificuldade da dupla de desenvolver uma AT suficientemente boa no início do tratamento (Horvath et al., 2011). Como o paciente buscou espontaneamente a psicoterapia, expressando necessidade de ajuda e, aparentemente, concordou com as combinações iniciais do contrato, há um sinal claro de de desacordo sobre as tarefas da terapia (Bordin, 1979; Krause, Altimir & Horvath, 2011) que se manifesta nas ausências e atrasos frequentes.
Modelos efetivos de tratamento para TPB compartilham, entre outros aspectos, foco na experiência emocional, uma maior atividade do terapeuta, e foco no relacionamento terapêutico (Weinberg, Ronningstam, Goldblatt, Schechter, & Maltsberger, 2011). A descrição global do processo com o PQS não captura nenhum desses elementos, embora existam itens do instrumento que descrevam tais características. E ainda, esta descrição evidencia uma “aparente colaboração” na exploração de material significativo nas sessões, relacionados aos problemas que levaram o paciente ao tratamento. É significativa também a ausência de discussão de comportamentos não verbais que podem vincular-se a resistências e dificuldades na interação.
Deve-se atentar para o fato de que a análise global com o PQS levar em conta o macroprocesso em psicoterapia e centrar-se na observação ampla de como paciente e terapeuta vivenciam o processo terapêutico. Assim como uma fotografia, captura-se uma cena como um todo e se obtém uma visão panorâmica do processo, com baixo grau de resolução (Bucci, 2007; Cordioli & Grevet, 2018).Assim, para melhor compreender o processo da AT, por meio do 3RS pretendeu-se atentar para questões específicas, detalhadas e imediatas de como paciente e terapeuta organizam-se durante a sessão de psicoterapia (o microprocesso), observando a cena terapêutica com maior resolução para identificar os possíveis problemas com a AT (Barcellos, Cardon, & Kieling, 2018; Bucci, 2007).
A avalição da AT analisada em um nível microscópico, ao longo do tratamento, permitiu identificar problemas na colaboração entre paciente e terapeuta no presente caso, já constatados em nível macro pelas faltas e atrasos mencionados. Identificou-se rupturas em todas as sessões, número elevado de rupturas (n=100), em comparação com outros estudos realizados com o 3RS com pacientes com TPB (Gersh et al., 2017). As rupturas foram predominantemente de evitação, mais frequentes nas sessões intermediárias (com a contribuição da terapeuta) e tiveram algum impacto na AT. E ainda, foi observado que após a elevação das rupturas, nas sessões intermediárias, houve decréscimo da frequência. Porém, há um aumento do seu impacto na AT, nas sessões que antecederam o término e nas quais a terapeuta contribuiu para as rupturas.
A diferença entre as frequências das rupturas do presente estudo, quando comparadas com alguns relatos na literatura, é um achado interessante e inesperado. Contudo, o padrão é consistente com os demais indicadores evidenciados (faltas e atrasos). Não se pode também desconsiderar que se trata de uma psicoterapia interrompida (malsucedida) com paciente TPB, supostamente mais propenso a demonstrarem dificuldades no estabelecimento e manutenção da AT (Boritz, Barnhart, Eubanks, & McMain, 2018; Safran et al., 2009). O estudo de Doran, Safran e Muran (2017), que examinou a relação entre o processo terapêutico e a negociação da AT de 47 pacientes com diferentes psicopatologias clínicas (ansiedade e depressão) e com transtorno de personalidade (48,9%), também destacou flutuação na ocorrência das rupturas (confrontação e evitação) ao longo do tempo.
Bennett et al. (2006) apontam que maior ocorrência de rupturas da AT e abandono do tratamento são comuns em pacientes com TPB. Estes pacientes apresentam falhas no processo de representação do self e outros (Caligor, Kernberg, & Clarkin, 2008) e sob ativação emocional, tendem ao pensamento concreto, não mentalizado (Bateman, Campbell, Luyten, & Fonagy, 2018), apresentando comportamentos impulsivos, relacionados às falhas na regulação emocional, que levam a uma rápida distorção sobre si mesmos e da relação com seus terapeutas (Caligor et al., 2008; Leichsenring et al., 2011). Essa distorção sobre a relação com o terapeuta favorece a ocorrência e o impacto das rupturas na AT (Spinhoven, Giesen-Bloo, van Dyck, Kooiman, & Arntz, 2007).
Durante o tratamento, Carlos utilizava rupturas de evitação em maior frequência: mudança de tópico/narrativa de evitação, deferência e apaziguamento, mudança de tópico e comunicação abstrata. Tal achado sugere que o paciente apresente dificuldade de expressar sua insatisfação ou angústia, de maneira direta. Conforme a literatura, a frequência de rupturas de evitação é significativamente maior em pacientes que abandonaram o tratamento (Boritz et al., 2018). Tais rupturas, em comparação com as de confrontação, são mais difíceis de identificar, pois o comportamento do paciente, ao evitar o trabalho terapêutico ou a terapeuta é sutil, pouco claro ou até mesmo obscurecido (Safran et al., 2011). As rupturas de evitação podem estar disfarçadas de uma conformidade ou engajamento superficial, por exemplo (Boritz et al., 2018).
O comportamento de evitação pode então ser visto como uma estratégia para regular a emoção intensa e avassaladora que é ativada no contexto da relação terapêutica (Bernecker, Levy, & Ellison, 2014). Nesse sentido, o estudo realizado por Cash, Hardy, Kellett & Parry (2014) aponta que a resolução da ruptura não ocorria quando os terapeutas discutiam ou exploravam diretamente as rupturas, mas sim quando eles abordavam a ruptura indiretamente mudando sua abordagem para explorar questões que eram mais importantes para o paciente. No presente estudo, contudo, as estratégias de reparação das rupturas não foram analisadas especificamente. Não obstante, os resultados sugerem que na ausência de pistas explícitas das rupturas de evitação, a terapeuta pode ter se posicionado de forma mais passiva diante das mesmas, tendo dificuldade para identificá-las e/ou repará-las.
As contribuições da terapeuta na ocorrência das rupturas sugerem que a terapeuta parecia ignorar os marcadores de ruptura, e não estar ciente do que estava acontecendo no nível da relação, subestimando o impacto destas quebras da colaboração terapêutica no processo. Um estudo indica que a contribuição do terapeuta para as rupturas é preditivo de abandono do tratamento (Eubanks et al., 2018b). Além disso, a literatura destaca um aparente paradoxo no trabalho de reparação das rupturas com pacientes TPB: lidar com as rupturas diretamente pode ser considerado excessivo e ameaçador para alguns indivíduos, embora não abordá-la diretamente possa exacerbar ainda mais a ruptura (Boritz et al., 2018).
Apesar da predominância das rupturas de evitação, as de confrontação merecem atenção. Diante delas, o paciente, maioritariamente, rejeitou as intervenções da terapeuta, defendeu-se dela e se esforçou para controlar o processo terapêutico ou a terapeuta. Rupturas de confrontação ocorreram em 13 das 15 sessões do tratamento. Os juízes notaram ainda que, ao rejeitar as intervenções da sua terapeuta, o paciente demostrava um tom de deboche, fazia uso de comentários sarcásticos e descrevia comportamentos agressivos. Um estudo feito por Gülüm, Soygüt e Safran, (2018) identificou o humor sarcástico como uma terceira categoria de ruptura. O sarcasmo é uma forma sutil de comunicação agressiva, que expressa a dificuldade em verbalizar sentimentos sobre a terapia ou terapeuta, levando à desistência do tratamento, nas sessões posteriores.
Na fase final da psicoterapia, a diminuição das rupturas está associada à resolução destas (Eubanks et al., 2018b). Em contraste, no presente caso, as últimas sessões não constituíram fase final, pois numa terapia supostamente de longo prazo o processo idealmente estaria em uma etapa intermediária (Luz, 2015). Desse modo, a diminuição da ocorrência de rupturas observada nas últimas sessões (sessões 12, 13 e 14), associada ao aumento da sua significância em termos do impacto na AT, parece denunciar uma deterioração da AT que pode ter levado à desistência do paciente em relação à terapia.
É digno de nota que as sessões em que as rupturas tiveram maior impacto na AT tenham sido as que antecederam a última sessão, quando o paciente fala da sua decisão de interromper o tratamento. Vale destacar ainda que essas sessões foram as que menos apresentaram rupturas, e que nelas não se observaram rupturas que mostrassem expressões de autocrítica e desesperança, queixas sobre a terapeuta, sobre atividades da terapia ou progresso do tratamento. Constata-se, portanto, que inúmeras rupturas com menor importância podem anteceder rupturas com maior significância. A hipótese a ser verificada é de que a não resolução de rupturas menos significativas leve a um incremento da piora da AT, culminando com o abandono.
As rupturas também podem ser compreendidas como enactments, conceito que destaca o papel do inconsciente na relação entre paciente e terapeuta (Safran & Kraus, 2014; Safran & Muran, 2000). Para Safran & Kraus (2014), as rupturas da AT são essencialmente movimentos inconscientes entre a dupla. O terapeuta fica involuntariamente envolvido no funcionamento do paciente, reencenando, assim, uma forma de relacionamento disfuncional que é característico do paciente. Tais processos, quando não se tornam conscientes e alvos do trabalho terapêutico, obstruem o desenvolvimento de um bom processo terapêutico. Por outro lado, a consciência do terapeuta sobre as flutuações contínuas na qualidade na AT pode apresentar oportunidades valiosas para mobilizar o processo de mudança no paciente.
A fase inicial ou de abertura do tratamento pode ser mais longa na terapia com pacientes com TPB, tendo em vista a necessidade de exploração das rupturas que podem interferir no estabelecimento e manutenção da AT. Além disso, torna-se importante a necessidade do cultivo da AT como o principal objetivo no tratamento, a adaptação da psicoterapia às características do paciente e o constante monitoramento sobre as oscilações da AT. A postura flexível e empática do terapeuta é essencial para lidar com as rupturas, tanto com as de evitação como de confrontação.
Destaca-se a necessidade de haver prudência na interpretação dos dados apresentados, tendo em vista as limitações deste estudo, de caráter exploratório. A codificação das rupturas da AT foi realizada pelo manual 3RS, que não apresenta categorias para avaliação e codificação das rupturas provocadas pelo terapeuta. A avaliação da medida de microprocesso envolveu somente a perspectiva do paciente. Embora os juízes tenham recebido treinamento e obtido concordância substancial, não se sabe até que ponto a codificação é consistente com a codificação do 3RS padrão ouro.
No item “contribuição do terapeuta para as rupturas” foi apenas identificada a frequência em que a terapeuta exacerbou ou contribuiu para elas. A avaliação das reparações da AT, que não foi alvo deste estudo, poderia esclarecer melhor o comportamento oscilatório da AT, ao longo do tratamento.
Em estudos futuros sugere-se a inclusão da codificação das estratégias que os terapeutas podem usar para identificar e resolver efetivamente as rupturas da AT. Além disso sugere-se o exame das rupturas e reparações da AT em casos múltiplos, com diferentes psicopatologias e desfechos, bem como estudos que avaliem as diferenças na natureza e no valor preditivo das rupturas precoces e posteriores.
Conclusão
Esse estudo ofereceu hipóteses empiricamente sustentadas sobre o abandono precoce da terapia por parte de um paciente borderline. Ele revelou um processo permeado de muitas rupturas desde o início, as quais foram aumentando, primeiramente em número e após, em intensidade, culminando na sessão em que o paciente comunica o abandono. A terapeuta contribuiu para a ocorrência ou aumento das rupturas. Suas ações e intervenções apresentavam como foco os problemas do paciente, mas não da relação terapêutica. Em conjunto, estes fatores parecem ter tido relação com o abandono. No entanto, considerando as limitações do delineamento meramente descritivo e da ausência de análise específica no nível microprocessual das estratégias de resolução das rupturas, essa hipótese não foi testada.
É digno de nota que no Brasil, até o presente momento, não há avaliações empíricas das rupturas da AT. O sistema 3RS foi recentemente traduzido para o Português do Brasil pela equipe do Laboratório de Pesquisa em Psicoterapia e Psicopatologia (LAEPSI). Neste sentido, este é um estudo pioneiro no contexto nacional para o exame microprocessual da AT, constituindo um estudo exploratório que secundariamente visa introduzir estudos sobre a temática.
Não obstante, o estudo apresenta contribuições para a clínica ao trazer para discussão e análise o papel do relacionamento terapêutico no processo de mudança e no desfecho da psicoterapia. A teoria psicanalítica contemporânea enfatiza a influência mútua entre terapeuta e paciente e valoriza a autenticidade, a flexibilidade e a espontaneidade do terapeuta. A AT neste contexto, adquire um papel central e não apenas de suporte para a etapa inicial do tratamento. Com pacientes com transtornos da personalidade, como os borderline, que tipicamente apresentam dificuldades no desenvolvimento da aliança, o foco nesta dificuldade parece ser fundamental ao processo. Trabalhar as rupturas da aliança (isto é, antecipá-las, identificá-las e repará-las) pode proporcionar aos pacientes oportunidades de aprender a negociar a tensão entre as suas próprias dificuldades e a necessidade de ajuda versus as dificuldades e as necessidades do relacionamento terapêutico, de uma maneira nova e mais construtiva.
Dada a evidência empírica indicando que a AT é um ingrediente crítico de mudança em diversas formas de terapia, parece importante desenvolver um corpo de pesquisa bem articulado e, de conhecimento relevante sobre medidas microprocessuais da AT. Este estudo é o primeiro desenvolvido no país a utilizar uma abordagem baseada em observadores externos para avaliação microprocessual das rupturas da AT, e a explorar como esses processos se desdobram ao longo do tempo na terapia. Outros estudos deverão contribuir futuramente para a ampliação desse tipo de investigação no país. Investigações nacionais e internacionais de outros casos individuais, bem como estudos de casos múltiplos e comparativos sobre estes microprocessos, desenvolvido junto a pacientes com distintos diagnósticos, desfechos e abordagens terapêuticas poderão futuramente trazer mais luz sobre a complexa questão da contribuição do relacionamento terapêutico e da aliança para a adesão, o abandono, o sucesso e/ou o insucesso da psicoterapia.