Introdução
O presente artigo busca realizar uma leitura do que tem sido chamado de ciclo de políticas públicas de juventude no Brasil, que se inicia por volta do ano de 2005 e é interrompido em 2015, no âmbito do processo de impeachment da presidenta eleita. A análise trabalha com a compreensão de que política pública é o “Estado em Ação” (Höfling, 2001), com a responsabilidade de fomentar e implantar um projeto de governo, por meio de programas e ações voltados para setores específicos da sociedade. Ou ainda, conforme ressalta Souza (2006), política pública pode ser resumida como o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo:
“… colocar o governo em ação’ e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente), constituindo-se no estágio em que os governos democráticos traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão resultados ou mudanças no mundo real”. (p. 26)
O texto foi produzido com base em dois estudos realizados em parceria com a Secretaria Nacional de Juventude (snj), no período de 2014 a 2015: Agenda Juventude Brasil (Pinheiro, et al., 2016)1 e Reflexões: levantamento das Políticas Públicas de Juventude (período 2010-2014)2 que tiveram como objetivo organizar dados, quantitativos e qualitativos, na perspectiva de subsidiar a análise das conquistas, dos avanços, limites e tensões sobre o período que marca a construção e a implementação de um conjunto potente de políticas de juventude no Brasil3. A leitura desse ciclo pode contribuir para pensar uma agenda de juventude no país, considerando, sobretudo, que o avanço da cidadania juvenil ainda passa pela disputa de sentidos do que é ser jovem no Brasil hoje.
Contextos, demandas e sujeitos
É possível afirmar que, no Brasil, as políticas de juventude vivenciaram um período importante de afirmação. O período foi marcado pela construção de uma significativa institucionalidade no campo das políticas públicas de juventude, com a criação de centenas de órgãos governamentais municipais e estaduais, evidenciando avanços na construção de um apoio visível na proteção social e no bem-estar dos jovens, acompanhando um ciclo de desenvolvimento das políticas públicas sociais e de construção da cidadania no país. São visíveis, também, avanços expressivos no âmbito da legislação, como a inclusão do termo “jovem” no texto da Constituição Federal, em 2010 (emenda constitucional n.º 65); a aprovação do Estatuto da Juventude (Lei n.º 12.852/2013); a realização das Conferências Nacionais sobre Juventude (2008, 2011 e 2015); a elaboração e o monitoramento de planos e programas; a realização de pesquisas nacionais com diagnósticos mais precisos sobre esse segmento; e o desenvolvimento de centros de informação juvenil e portais na Internet, empregados com frequência para apoiar e implementar os esforços, muitas vezes dispersos, propostos nas políticas desta esfera.
Nesse cenário, a participação de grupos juvenis foi fundamental para vocalizar um conjunto de demandas que, até então, estavam ocultas no espaço público que conforma a sociedade brasileira. Talvez esse tenha sido o grande legado do ciclo em pauta: a assunção de questões que, direta ou indiretamente, material ou simbolicamente, emergiram no cenário público, criando alterações e deslocamentos que permitiram a entrada na agenda pública de novas realidades, questões, sujeitos, coletivos e blocos sociais, impactando a representação sobre juventude no imaginário social brasileiro. Assim, programas e ações dirigidas aos jovens brasileiros, de alguma forma, passam a apreciar ou se aproximar de um conjunto de demandas, que ao ganharem a cena pública, explicitaram uma recente condição juvenil.
O reconhecimento nas pautas públicas de um novo sujeito de direitos, os jovens, reitera a importância do credenciamento da palavra de determinado grupo social para o exercício democrático, percebendo que é exatamente esse pronunciamento que pode deslocar e alargar o debate sobre os direitos sociais. Como sinaliza Telles (1999), o que desestabiliza consensos estabelecidos e instaura o litígio é o fato de esses personagens comparecem na cena política como sujeitos portadores de uma palavra que exige o seu reconhecimento: sujeitos falantes, que se pronunciam sobre questões que lhes dizem respeito, que exigem a partilha na deliberação de políticas que afetam suas vidas e que trazem para a cena pública o que antes estava silenciado -ou então fixado- na ordem do não pertinente para a deliberação política.
As demandas vocalizadas pelos “novos sujeitos jovens” criaram possibilidades de uma migração de questões que estavam circunscritas a um “estado de coisas” (Rua, 1988)4 para serem debatidas nas disputadas agendas públicas. Nesse contexto, a sociedade brasileira, hoje, vê-se diante de um novo patamar de direitos, exposto pelas demandas juvenis e trazendo para a espaço público novos temas, novos sujeitos e novas identidades. Um exemplo claro é o fato de que as demandas em relação à igualdade da mulher se transformam em potente debate sobre gênero; a violência sofrida pela população afrodescendente se transforma em potente discussão étnico- racial; ou mesmo os preconceitos contra a população lgbt (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) se voltam para o tema da diversidade.
Esse contexto contribuiu para explicitar a juventude brasileira como sinônimo de diversidade, com origens sociais diferenciadas e importantes configurações identitárias. Por um lado, o reconhecimento e a incorporação desses novos sujeitos sociais, identidades e questões/temas que eram invisibilizados nas agendas públicas; por outro, o reconhecimento de lutas e movimentos em defesa da bandeira de elevar os jovens ao lugar de sujeitos de direitos, seja no campo da lei, seja no da institucionalidade e da percepção, o que tem acarretado mudanças significativas no imaginário social em relação ao sentido do que é ser jovem na sociedade brasileira.
Reconhecendo esta diversidade, foi necessário ouvir e distinguir a juventude e suas demandas, na formulação de políticas públicas que contemplem de forma integral o seu desenvolvimento, como experimentações, vivências, trajetórias, concepções e quereres dos jovens, tendo por perspectiva a noção de que o jovem ultrapassa a esfera da transitoriedade geracional (entre ser criança, adolescente e jovem), devendo ser reconhecido como sujeito constituído de direitos. O querer da juventude passa a disputar, portanto, decisão na construção de um conjunto de ações que fomentem a institucionalidade, como referência que aponte novas perspectivas políticas e que integre as dimensões de vida e de direitos da população jovem brasileira.
Contudo, tais pressupostos, embora enunciados em leis e documentos governamentais, ainda fazem parte do conjunto de desafios que precisam ser enfrentados. Muitos programas, projetos, planos e políticas em geral não provêm de diálogos com os jovens, podendo-se neles se observar altas doses de improvisação, desconhecimento de problemáticas juvenis, ações irregulares e sem continuidade e total descompromisso com a construção de redes de possibilidades, acessos e oportunidades para a juventude, em especial aquela que mais necessita de políticas públicas, ou seja, os jovens pobres.
Para Marques (2010), a pobreza representa ausência de bem-estar, sendo influenciada não apenas pelas características dos indivíduos, mas, sobretudo, “… por seus diferentes acessos a oportunidades. Esses acessos são influenciados pelas conexões dos indivíduos entre si e com as estruturas que provêm bem-estar - o mercado, o Estado e a sociabilidade cotidiana”. Nesse viés de análise, estaria a visão de que governar, hoje, tornou-se um processo coletivo, demandante de múltiplas interações e de redes políticas e sociais.
Assim, podemos deduzir que situações de exclusão social podem ser provocadas por um maior ou menor afastamento social, causado por um conjunto de segregações a que os jovens pobres estão mais expostos, como a segregação por padrões de relações cotidianas, por cor, por questões de gênero, por local de residência (favela, periferia, vila, campo) etc. Nessa perspectiva de análise, as políticas públicas teriam um papel importante na ampliação de redes que pudessem contribuir para a construção e o alargamento de projetos de futuro desses jovens.
Na ampliação desses direitos e, consequentemente, dessas políticas, a participação juvenil foi considerada como o eixo estruturante no desenho das políticas sociais, tanto governamentais quanto da Sociedade Civil, pois os jovens deixaram de ser vistos como objetos de tutela ou beneficiários das ações do Estado e passaram a ser pensados como atores relevantes na formulação e implementação das políticas no campo da juventude. Porém, avançar da afirmação deste princípio democrático para a garantia efetiva da participação juvenil, em todas as etapas das políticas em curso, constitui, ainda, um grande desafio.
Políticas, programas e ações
A juventude é, hoje, no Brasil, o grupo etário -cerca de 48 milhões de jovens entre 15 e 29 anos (7)- com maiores níveis de escolaridade (Gráfico 1). Pode-se afirmar que nunca uma geração alcançou patamares tão elevados de escolarização, evidenciando avanços importantes na esfera educacional. A partir desses resultados, é possível dizer que a atual geração de criança e jovens experimenta os paradoxos de uma sociedade que ampliou as oportunidades educacionais para o conjunto da população, estendendo direitos e condições de acesso, sem, contudo, equacionar o conjunto de questões que a afetam, de modo desigual.
Fonte: Elaboração própria, a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2015 (ibge, 2016)
No Gráfico 2 é possível observar que a situação escolar tem sido mais favorável às gerações mais jovens, o que, seguramente, é reflexo da expansão da educação básica no Brasil a partir da década de 1990, com forte investimento nos anos 2000.
Fonte: Elaboração própria, a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2015 (ibge, 2016)
Dados da pesquisa Agenda Juventude Brasil (Pinheiro, et al., 2016), a seguir apresentados, corroboram tal constatação. Observa-se que a possibilidade de estudo aparece em primeiro lugar, quando se pergunta aos jovens sobre o que de melhor existiu no país, nos últimos dez anos, para a juventude (Gráfico 3).
Além da ampliação da escolaridade, outro aspecto relevante, no ciclo analisado, é o debate conceitual sobre políticas públicas de juventude, marcado pelo progressivo abandono da visão do jovem como mero objeto de política, substituída por seu reconhecimento como sujeito de direitos, conforme dispõe o Estatuto da Juventude, promulgado em 2013 (Secretaria Nacional de Juventude (2014). No entanto, persistem entraves institucionais, materiais e simbólicos que limitam o exercício mais pleno desse papel pela juventude. Muitas vezes, os jovens se tornam expectadores de processos -sobretudo os de cunho educacional- nos quais são, da primeira à última instância, os principais sujeitos de interesse. Na fase final do ciclo recente de políticas públicas de juventude, a ênfase no conceito de participação fez com que se deslocasse o conceito de inclusão e se colocasse no centro dos debates os conceitos de autonomia e emancipação, identificados como concepções mais presentes a respeito da juventude.
As trajetórias juvenis no ciclo de políticas públicas, cotejadas com seu potencial conjunto de demandas, explicitam o imenso desafio de integrar ações e construir um novo olhar sobre tais atores, na condição de jovens sujeitos de direitos. Diante desse desafio, distintas configurações de políticas públicas, emanadas, em sua grande maioria, do governo federal, buscaram estabelecer uma nova geração de programas de apoio, uma vez que o conjunto de demandas dos próprios jovens tem continuamente pressionado o poder público, no sentido de trazer tais sujeitos à condição de interlocutores nas decisões que lhes dizem respeito, de modo a romper a invisibilidade a que vêm sendo historicamente submetidos.
Entre as principais políticas, destacam-se: a criação do Conselho Nacional de Juventude (conjuve), em 2005, através do Decreto-Lei No 11.129/2005, espaço de discussão, de diálogos efetivos e permanentes em torno das políticas públicas de juventude, garantindo a diversidade e a pluralidade dos atores envolvidos, das mais diversas regiões do país. Embora sua denominação possa levar ao entendimento de que se trata de um espaço de reunião de representantes das juventudes brasileiras, esse Conselho -por sua natureza, mandato, composição e competência-, nos últimos dez anos, foi, de fato, um Conselho Nacional de Políticas Públicas de Juventude. O conjuve tem caráter consultivo e não possui governabilidade sobre o planejamento e a execução das políticas públicas de juventude nos diferentes níveis e instâncias de governo. Sua função consiste em estimular a montagem de programas intersetoriais voltados para a juventude, por meio de gestões compartilhadas entre diferentes ministérios. Mas vale a pena sublinhar que a estruturação do conjuve apresenta traços inovadores: representa um espaço de diálogo e ações conjuntas entre Conselheiros e Conselheiras da Sociedade Civil e do poder público; contempla a diversidade de interesses, etnias, religiões, regiões, orientações sexuais e gêneros, atualizados em diversos tipos de organizações, redes e trajetórias profissionais presentes no campo das juventudes; é um espaço para o diálogo, negociações e pactos intergeracionais. Trata-se, portanto, de um Conselho novo, que já produziu um inédito documento, Diagnóstico e Perspectivas para uma Política Nacional de Juventude, além de uma avaliação pública sobre seu próprio desempenho.
Hoje, o Conselho enfrenta o desafio de lograr o reconhecimento e a legitimidade da temática juvenil perante os governos, a opinião pública e a sociedade. É esse reconhecimento que pode alavancar a formulação de políticas mais sintonizadas com as necessidades e demandas dos jovens. Sua força depende, sobretudo, do poder de pressão das organizações juvenis. Ao longo de sua história, o Conselho passou por várias reformulações e, mesmo sendo espaço consultivo, contribuiu centralmente para a elaboração dos principais programas e ações de juventude na snj e de outras áreas de Governo. o conjuve passou de um espaço composto por indicação, quando da sua criação, para um conselho eleito por meio de edital público e eleição em assembleia. Hoje, o conjuve perdeu espaço, vendo diminuir ainda mais a sua incidência. O Conselho, que já teve em torno de 180 organizações participantes desde que foi criado, viu, no último processo de eleição da sociedade civil em 2017, uma saída coletiva de mais de 20 organizações participantes, por não concordarem com o estreitamento do processo de participação e com a perda de autonomia, pois a composição da sociedade civil começou a passar pela definição de comissão governamental. Desde sua criação, em 2005, esse fato é inédito.
Uma das importantes tarefas do conjuve no ciclo analisado remete à realização das Conferências Nacionais de Juventude (cnppj). A 1ª Conferência aconteceu em 2009, trazendo como tema para os debates Levante a sua Bandeira; a 2ª em 2011, com o tema Juventude, Desenvolvimento e Efetivação de Direitos e a 3ª, em 2015, com o tema As várias formas de mudar o Brasil.
Destaca-se, ainda, em 2013, o lançamento e a efetivação do Participatório: Observatório Participativo da Juventude5; em 2012, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável: Rio + 20, na cidade do Rio de Janeiro, quando os jovens provocaram importante participação na campanha “Juventude pelo Desenvolvimento Sustentável”; a ampliação da atuação da snj na agenda internacional, onu, oij, mercosul, brics e Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (cplp). A criação e coordenação, junto com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (seppir), do Fórum de Monitoramento do Programa Juventude Viva (fompi)6; a elaboração via consulta pública da proposta do Sistema Nacional de Juventude e o desenvolvimento do Projeto Plano em Diálogo, realizado entre agosto e dezembro de 2014, pela Secretaria Nacional de Juventude e a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/Grupo de Pesquisa Juventude: processos sociais, políticas públicas e juventude, com o propósito de subsidiar especificamente a atualização do Projeto de Lei do Estatuto da Juventude, agregando questões mais afinadas com as demandas das juventudes brasileiras na contemporaneidade, deflagrando a primeira etapa de debates voltados para a elaboração do Plano Nacional de Políticas de Juventude. Tal Plano estabelece um conjunto de diretrizes e metas, de responsabilidade do governo, em relação à política de juventude, em um período de dez anos. O projeto atual, ainda em tramitação no Congresso, é uma proposta de 2004, daí a necessidade de sua atualização.
Outro destaque importante que derivou do Estatuto da Juventude remete aos benefícios da meia entrada em eventos culturais e esportivos e da gratuidade ou do desconto em viagens interestaduais. A Secretaria Nacional de Juventude elaborou, juntamente com o Comitê Interministerial de Políticas de Juventude (coijuve), em 2014, a proposta de regulamentação dos benefícios citados e propôs a criação do id Jovem, instrumento para viabilizar o acesso e que também reforça de forma positiva a identidade juvenil. Segundo dados do Cadastro Único, em torno de 18 milhões de jovens terão acesso aos referidos benefícios7.
Contudo, um dos grandes desafios é superar a defasagem entre o que é formulado e o que é posto em prática, como já indicava Rua (1998):
. A maioria das ações criada no âmbito do governo federal deve ser executada pelos entes estaduais e municipais, o que torna o desafio ainda mais complexo quando estamos tratando de 27 estados e 5.570 municípios (ibge, 2013) A própria concepção do que significa ser jovem, nas suas múltiplas dimensões, passa por importante disputa de sentido nas distintas instâncias responsáveis pela execução das políticas. Assim, a despeito da produção recente no campo da juventude, permanece um debate sobre o que significa ser jovem, muitas vezes difícil de ser apropriado pelos próprios jovens. Na pesquisa Agenda Juventude Brasil (Pinheiro, et al., 2016), por exemplo, a maioria dos jovens se identificou como adulto (Gráfico 4) .“… na realidade, a implementação implica em novas decisões […] processo esse dotado de acentuada complexidade, e que articula o sistema político em suas várias dimensões com a realidade concreta das práticas políticas e sociais dos diversos interessados”
Tal dado pode ser explicado quando se pergunta sobre em que fase da vida uma pessoa deixa de ser jovem: 63% respondem que é quando assumem responsabilidade, ou seja, ao se identificarem como adultos, podem estar demonstrando esse tipo de entendimento (Gráfico 5).
Parte desse dilema reside no fato de ter se firmado na sociedade e no cenário político brasileiro a associação direta da juventude a problemas sociais. Isso teve efeitos diversos e contraditórios, como demonstram Abramovay e Castro (2006), ao lembrar que a própria ideia da juventude violenta é uma construção produzida, mesmo que parte do fenômeno nasça de realidades dramáticas e reais. Tal fato, por um lado, abriu espaços para o domínio de posturas repressivas do Estado, que, somadas à expansão de grupos criminosos, construíram a imagem do jovem pobre como um criminoso em potencial e resultaram em intervenções violentas, que condenaram o país a assistir ao extermínio sistemático desses jovens. Essa situação tem levado as metrópoles brasileiras a um estado permanente de medo, com reflexos muito fortes e negativos sobre a possibilidade de a juventude viver bem na cidade e realizar trajetórias mais bem-sucedidas (Abramovay e Castro, 2006).
Segundo o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2014) em 2012, morreram 56.337 pessoas vítimas de homicídio, sendo 30.072 jovens: 53,4% do total. Destes jovens, 71,5% eram negros e 93,4% eram do sexo masculino. Em 2012, como resposta a este genocídio da população jovem, negra e pobre, o Plano Juventude Viva foi lançado de maneira emergencial no Estado de Alagoas, que liderava os indicadores nacionais de homicídios. A partir dali o Juventude Viva expandiu-se gradativamente, com ações de prevenção à violência, ampliação do acesso a programas e políticas e campanhas de sensibilização. O Plano reunia ações de prevenção para reduzir a vulnerabilidade de jovens negros a situações de violência física e simbólica, com base na pactuação entre governo federal, estados e municípios para a criação de oportunidades de inclusão social para os jovens entre 15 e 29 anos nos territórios que lideravam o ranking dos homicídios no país.
Para a compreensão de um ciclo, um dos grandes desafios é entender como os sujeitos se movem no interior de grandes estruturas institucionais -como os Programas Governamentais, os projetos e as Políticas Públicas. Novaes (2009) mapeia e problematiza a emergência do que se pode chamar de um campo de políticas públicas de juventude (ppj) em nosso país. Esse campo tem contornos naturalmente móveis e incorpora, continuamente, novos grupos e expressões da juventude. Reúne desde atores já tradicionais, como os jovens ligados aos movimentos estudantis, aos partidos políticos, até a nova geração de jovens vinculados, mesmo que de forma pouco orgânica, a novos coletivos.
O diálogo prioritário dessa juventude, nos últimos dez anos, dá o tom de diversidade que caracteriza esse espaço, com os inúmeros movimentos da juventude, desde os mais ou menos organizados, como grupos de Slam, funk, grafite, hip hop, também já conhecidos da cena política, até os que querem se organizar, como os variados recortes de grupos e de expressões juvenis, que se encontram nos temas de gênero, mulheres, lgbt, cor raça, meio ambiente etc.: os chamados coletivos juvenis. Sobretudo a partir da questão racial, cultural e da comunicação, os jovens pobres têm buscado debater problemas sociais que os afetam diretamente, incidindo em seus sonhos e projetos de vida. Em síntese, com base no debate das identidades, característicos das sociedades contemporâneas, os coletivos de jovens têm adquirido um papel de destaque na construção de sociabilidades propositivas. Esses coletivos, diferentemente das instituições clássicas (grêmios estudantis, sindicatos, ongs etc.), que tinham sua ação pautada pelo diálogo com o Estado, têm procurado mais autonomia e apresentam um perfil mais transitório, o que não significa, necessariamente, uma dicotomia. Logo, é a partir do reconhecimento da diversidade que o campo das políticas públicas de juventude tem se constituído. Como ponto em comum, em meio à diversidade, está o fato de o Estado ser o interlocutor primordial para o qual essa rede se volta, em busca de recursos, suportes e marcos legais de regulação. Contudo, vale destacar que, como lembra Souza (2006):
“Apesar do reconhecimento de que outros segmentos que não os governos se envolvem na formulação de políticas públicas, tais como os grupos de interesse e os movimentos sociais, cada qual com maior ou menor influência a depender do tipo de política formulada e das coalizões que integram o governo, e apesar de uma certa literatura argumentar que o papel dos governos tem sido encolhido por fenômenos como a globalização, a diminuição da capacidade dos governos de intervir, formular políticas públicas e de governar não está empiricamente comprovada”. (p. 27)
Em 2005, a Secretaria-Geral da Presidência da República (sgrp) criou a Secretaria Nacional da Juventude (snj), o Conselho Nacional de Juventude (conjuve) e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem)8, articulado transversalmente aos Ministérios da Educação (mec), do Trabalho e Emprego (mte) e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (mds). No ciclo em questão, esse campo institucional buscou dialogar com a diversidade de atores da sociedade civil a partir de múltiplas mediações, dentre as quais está a universidade. Nesse período, a universidade pública brasileira assumiu novos papéis, para além do ensino, da pesquisa e da extensão. No que se refere à temática da juventude, pode-se observar que a universidade participou, ativamente, em parceria com um conjunto de instituições de pesquisa, na formulação e na avaliação de políticas públicas. Ao aceitar tal desafio, impulsionada pelo recebimento de recursos públicos para a pesquisa e a avaliação, ampliou o debate acadêmico sobre o tema. A título de exemplo, a produção de dissertações e teses nesse campo aumentaram mais do que 100% nesse período, além de se terem criado dezenas de grupos de pesquisas voltados para o tema da juventude.
É também perceptível a importância que os jovens atribuem ao mundo do trabalho, o que exige de nós a reflexão sobre os constrangimentos por que passam, em função do lugar que ocupam na estrutura social e na inadequação do sistema educativo em relação às exigências do mundo atual. Conforme alerta Sposito (2005), tal qual a escolarização, no Brasil, “o trabalho também faz juventude”. Ou seja, trabalho e o emprego juvenil, associados à educação, são temas de grande presença nas agendas propostas pela juventude, em todas as suas dimensões. A pesquisa Agenda Juventude Brasil (Pinheiro et al., 2016), apontou que a maioria dos jovens, hoje, no Brasil, faz algum tipo de atividade laboral (Gráfico 6)
Para os jovens, o trabalho é crucial quando se trata da elaboração de políticas públicas específicas para sua faixa etária, em qualquer parte do mundo e, especialmente, nos países com grandes desigualdades, como é o caso do Brasil. Entre jovens e adultos é comum a percepção de que o trabalho, para todas as gerações, é condição de dignidade humana. Contudo, entre a juventude, se amplia a percepção do trabalho como possibilidade de formação e construção de identidade e autonomia. As metamorfoses desse universo cercam a juventude e impactam sobre suas visões e suas elaborações sobre o que é ser jovem. As gerações passadas equacionavam suas vidas para alcançar um status superior ao de seus pais, com alguma chance de mobilidade social. Hoje, de maneira geral, os filhos -de diferentes classes sociais- experimentam a insegurança relacionada às suas possibilidades de inserção produtiva. Ou seja, todos, no campo e na cidade, são atingidos pela dinâmica do mundo do trabalho restritivo e mutante. Além disso, paradoxalmente, em um mundo em que a ciência avança e proporciona maior expectativa de vida, todos experimentam o medo da morte precoce e violenta, resultado da proliferação das armas e da presença da rede do tráfico (Novaes, 2013).
Observam-se iniciativas nesse campo, fomentando qualificação profissional, primeiro emprego, aprendizado, elevação da escolaridade, iniciativas de autogestão e empreendedorismo, no âmbito da economia solidária, formando o arcabouço dessa agenda. No Brasil, 2/3 dos/das jovens estão trabalhando ou procurando trabalho e parte considerável da juventude brasileira concilia trabalho e/ou estudo com responsabilidades familiares, sobretudo as jovens mulheres, muitas delas mães. Conforme o Gráfico 7, existem diferenças muito significativas de condicionantes e sentidos do trabalho e do estudo, segundo a faixa etária.
Fonte: Elaboração própria, a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2013 (ibge, 2014)
Nessa esfera, cabe evidenciar a importância do compromisso firmado pelo governo brasileiro, nesse ciclo, com a Agenda Nacional do Trabalho Decente no Brasil, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (oit). Vale sempre ressaltar que este compromisso se baseia em quatro eixos: 1) mais e melhor educação, baseada na elevação da qualidade do ensino médio, do ensino técnico e da qualificação profissional; 2) conciliação entre estudos, trabalho e vida familiar; 3) inserção ativa no mundo do trabalho, com mais e melhores empregos para os jovens e com igualdade de oportunidades e de tratamento e 4) diálogo social, com a intenção de ampliar e fortalecer o debate sobre as alternativas e condicionantes para a melhor inserção juvenil no mercado de trabalho.
Dados da Agenda Juventude Brasil (Pinheiro, et al. 2016) apontam que 44% dos jovens conhecem alguma política pública de juventude. Instados a citar o nome dos programas de maior conhecimento, estes ofereceram um interessante painel na área da educação, aqui apresentado em ordem decrescente de menção: Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem); Programa Universidade Para Todos (Prouni); Exame Nacional do Ensino Médio (enem); Programa de Financiamento Estudantil (fies); Educação e Jovens e Adultos e Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico (Pronatec); Jovem Aprendiz e Primeiro Emprego. De um modo geral, a grande maioria considera as políticas de juventude muito importante, conforme o Gráfico 8.
Embora afirmem que as políticas são muito importantes, quando perguntados sobre o nível de participação na luta por mais e melhores políticas de juventude, observa-se uma participação ainda bastante limitada: apenas 9% declaram participar ativamente, 34% dizem não participar, mas se interessar de alguma forma, e 38% não gostam e não se envolvem. Ainda 19% afirmam que a política deve ser daqueles que têm “mais competência”.
Notas finais
De início, cabe ressaltar que, no ciclo analisado, pode-se observar uma tendência em decifrar as demandas dos jovens pelo viés dos direitos e da cidadania, o que possibilitou um deslocamento da compreensão das próprias pautas das políticas públicas, transformando as mesmas em “causas” mobilizadoras que alimentam grupos, redes e movimentos de diferentes segmentos juvenis, conforme alerta Novaes (2014): “… afinal, na noção de ‘direito’ reside um potencial ‘contrapoder’, simbólico e prático”. Nesse sentido, o paradigma do direito e da cidadania impactou o desenvolvimento de políticas de juventude, incitando a participação juvenil e o reconhecimento dessa etapa de vida como importante período de desenvolvimento social.
Outro aspecto relevante é a percepção de que as questões da juventude estão intimamente conectadas e são intrinsecamente interdisciplinares. Tal afirmação é clara, quando se observa a complexa convergência de demandas e agendas contemporâneas -educação, trabalho, cultura, comunicação e informação, saúde, meio ambiente e desenvolvimento, vida segura, participação, direitos humanos entre outras-, e o desafio de integrá-las no cotidiano da gestão pública, de forma original, escapando de práticas recursivas que apenas reúnem diferentes áreas em superados modelos setoriais. Em especial, se considerarmos que tal superação está relacionada com mudanças expressivas em nossa sociedade, quando um conjunto de demandas sociais e políticas, trazidas por segmentos populacionais que conquistam visibilidade na esfera pública, passa a organizar suas demandas ao poder público, que deve traduzi-las em ações governamentais.
Pesquisas e avaliações sobre o tema têm apontado que nenhuma política de juventude acontece sozinha ou isoladamente. Ela será potencializada se trabalharmos com o jovem na perspectiva de um sujeito integral, demandante de distintos desejos e necessidades. Ou seja, implementar a transversalidade de políticas é entender quem são os sujeitos que as demandam e suas trajetórias de vida multidimensionais. Torna-se necessário entender melhor as atividades nas quais os jovens estão envolvidos, tanto no campo educacional como no laboral e familiar. Segundo Cortes e Lima (2012), a complexidade envolvida nas relações entre Estado e sociedade é uma das razões pelas quais as políticas públicas são intrinsicamente interdisciplinares.
No ciclo em questão, “direitos”, “possibilidades” e “oportunidades” são palavras-chave na nova linguagem das agendas políticas brasileiras. São reafirmados assim os direitos universais, como o direito à saúde, à educação de qualidade, às oportunidades de inserção no mundo do trabalho decente, à moradia, ao lazer e à vida segura etc. Entretanto, consideradas as desigualdades e diversidades que caracterizam nossa juventude, abriu-se espaço para a incorporação de abordagens específicas, como as jovens mulheres, os jovens indígenas, quilombolas, afrodescendentes, etc. Contudo, a implantação de políticas não se faz apenas por decretos. É preciso conquistar espaços no interior dos diferentes ministérios, nas esferas estaduais e municipais e em amplos setores da sociedade que não reconhecem os jovens como potencial sujeito de direitos. É fundamental que se explicite o reconhecimento que se faz da juventude, pois ele vai impactar diretamente nas iniciativas públicas que se pretende desenvolver.
Ainda nesse ciclo, foi possível observar o papel preponderante do Estado no fomento do debate sobre o caráter público da temática juventude e uma firme intencionalidade por parte dos agentes do governo, embora se notassem, igualmente, disputas acirradíssimas no interior do próprio governo. Porém, como aponta Jannuzzi (2001), a implementação das políticas está sujeita ao papel crucial desempenhado pelos agentes encarregados de colocá-la em ação, que podem potencializar ou criar barreiras adicionais a sua efetivação.
Dessa forma, a partir de um conjunto de diagnósticos e pesquisas, podemos inferir que, nesse ciclo, o maior problema não esteve na formulação das políticas de juventude, mas sim na sua operacionalização. Um exemplo seria a dificuldade de efetivação do papel indutor de processos participativos e orgânicos nos níveis federal, estadual e municipal. Sem novos canais de participação, não há como implantar, monitorar e avaliar projetos e ações voltados para a juventude. Além disso, uma grande dificuldade foi a real incorporação das políticas de juventude nos diferentes Ministérios, que não têm uma tradição em debater temas específicos, dificultando a transversalidade e a intersetorialidade das demandas e necessidades juvenis.
Outro desafio a ser enfrentado é o de garantir que as três esferas de gestão -federal, estadual e municipal- se empenhem em atuar nos programas e ações, sem se deixar levar por interesses conjunturais. Vale lembrar, ainda, o desafio da integração e da complementaridade entre os programas, até mesmo porque temos que considerar as diferentes trajetórias e histórias de vida dos jovens, deixando para eles alguma margem de escolha. Como ressalta Novaes (2014), sem aumentar o campo de possibilidades de escolhas não se estimula a autonomia e emancipação. Para Castro, Aquino e Andrade (2009), no geral, a lógica de atuação dos órgãos públicos segue extremamente setorializada.
Nessa perspectiva, pensar as políticas em ciclos constitui uma ferramenta importante para a análise de políticas públicas de juventude, considerando, sobretudo, que um ciclo não pode ser discorrido como uma trajetória rígida e linear, mas está mais próximo de processos, que se alternam e se combinam, compondo-se a partir de disputas travadas. Sendo assim, conhecer leituras sobre o ciclo de políticas de juventude pode permitir melhor compreender o problema para o qual a política pública foi desenhada, possíveis conflitos, percursos e o lugar dos sujeitos, grupos e instituições que são afetados, direta ou indiretamente, pela política pública.
Por fim, vale ressaltar que as políticas de reestruturação econômica e de redução dos programas sociais, anunciadas pelo atual governo, devem atingir de forma perversa as potencialidades juvenis, suas projeções de futuro e sentido de presente, com base nos últimos dez anos de políticas de juventude ancoradas na representação do jovem como sujeito de direitos. Sem dúvida, o ciclo que se interrompe no Brasil ampliou, significativamente, o Mapa cognitivo das novas gerações (Krauskopf, 2000), na medida em que o incremento de políticas públicas vislumbrou possibilidades, em especial, para a juventude pobre.
Certamente, as análises e sugestões apresentadas neste artigo representam tão somente um estímulo a que se amplie o debate para a continuidade do atendimento, pelo poder público, às demandas e aos direitos das juventudes brasileiras. Ainda que algumas conquistas tenham sido atingidas e que diversos campos tenham experimentado significativo avanço no período aqui abordado, muito ainda é necessário que a ação governamental realize, considerados os imensos desafios que se colocam, em diversas frentes. Contudo, no momento atual, a maior ameaça é a descontinuidade dos programas e projetos existentes e as contrarreformas que estão em curso no Congresso Nacional.
Nesse contexto, sabemos que existem expressivas identidades entre os jovens da atualidade, habitantes dos diferentes países da América do Sul. Ao mesmo tempo, sem dúvida, os processos históricos concretos trazem profundas diferenças para os mesmos. Ainda assim, para além das diversidades étnicas, culturais, históricas, econômicas, sociais e políticas que caracterizam os povos e as nações sul-americanas, são imperativos o diálogo e a construção de uma agenda comum que venha a assegurar direitos, possibilidades e oportunidades para os jovens. Lembrando Krauskopf (2000Sempre existiram políticas concernentes à juventude, expressas tanto em afirmações como em omissões. Oxalá nossos jovens possam inaugurar um novo e pulsante ciclo de políticas de juventude!