Introdução
Em seu artigo clássico “A juventude é apenas uma palavra” (1983), Bourdieu nos mostra que seria um equívoco tratar a juventude como um conjunto homogêneo, para além das divisões imputadas pelas sociedades para os grupos sociais, apontando as distinções que marcavam (e mais do que nunca, marcam) esse grupo social.
Essa preocupação em destacar que grupos submetidos a condições semelhantes podem funcionar de maneiras muito diferentes quando imersos em situações distintas, e que grupos forjados em condições díspares podem responder de maneiras similares quando implicados em situações semelhantes, não era, para o autor, uma singularidade das populações juvenis.
Se o autor não avança muito nesse debate, naquilo que se refere à juventude, ele certamente o faz naquilo que se refere à classe. No artigo “Condição de classe e posição de classe”, Bourdieu (2009) mostra que para escaparmos do caráter abstrato da definição de uma posição (a classe), não é suficiente analisá-la apenas pelos elementos permanentes (transistóricos e transistruturais) que ela acumula, uma vez que as sociedades são produtos particulares de formações sociais específicas, construindo para si paradoxos, impasses e contradições que lhes são únicos em suas configurações. Para ele, é necessário confrontar, no desenho das posições sociais, tanto os elementos “permanentes” quanto os “contingentes”.
Em conformidade com as postulações de Bourdieu, em analogia àquilo que o autor propõe para classe, temos trabalhado Juventude como uma posição social, comum a todos aqueles que, no âmbito de uma faixa etária extensa (variável) e intermediária (entre fases da vida social), realizam, nas sociedades capitalistas, urbanas e ocidentais, o processo de emancipação das instituições de circunscrição à socialização primária, com concomitante ingresso na rede/conjunto/complexo de instituições que integram a socialização secundária, que conduzem à inserção social.
Neste sentido, juventude é, para nós, uma posição social, ao mesmo tempo dinâmica, tensa, transicional, porque implica num desenraizamento (emancipação da rede de instituições que circunscrevem a socialização primária) para posterior processo de re-enraizamento social (na rede de instituições que delimitam a socialização secundária). Para nós, é isso que unifica juventude (esse estado ao mesmo tempo, formativo, liminar, transicional, com vistas ao uso de uma condição presente que configura possível inserção futura). Neste sentido, juventude é uma posição no espaço social.
Neste artigo, a transição escola-trabalho (TET) é a situação, ao mesmo tempo liminar e transicional que, submetendo a todos os jovens, o faz a partir de condições muito distintas. Nossa proposta é entender como variam os engajamentos, na educação e no trabalho, dentre jovens, no Brasil, em relação ao sexo ao qual pertencem, à cor da pele que carregam e ao grupo socioeconômico no qual se encaixam. Tomando a TET como fenômeno central ao processo de inserção social na vida adulta, como processo geral e comum a todos os jovens, nossa proposta interroga as variações nas condições sob as quais ela vem se realizando. Em outras palavras, buscaremos fazer aqui um estudo das condições da posição (de juventude), a partir das maneiras com que variam as ocupações (entre escola e trabalho) no Brasil.
Para isso, apresentaremos, primeiramente, um levantamento bibliográfico com vistas a situar a análise aqui presente, no âmbito das produções nacionais e internacionais acerca do debate contemporâneo sobre a TET. A seguir, faremos uma apresentação da Pesquisa das Juventudes no Brasil (Carrano, 2021), tanto em seus aspectos técnicos quanto na abordagem que usaremos nesta análise, apresentando nossos recortes de pesquisa assim como as ferramentas que construímos. Em seguida apresentaremos os resultados da análise que propomos aqui, e, por fim, traremos para debate algumas das conclusões a que chegamos.
Panorama da literatura acerca da transição escola-trabalho
Começamos este artigo interrogando a quantas anda a produção, nacional e internacional acerca do tema sobre o qual nos debruçaremos ao longo deste trabalho: a TET,1 descrevendo-o, inicialmente, como um campo de estudos que busca representar o início do processo de autonomização de jovens que culmina na assunção plena dos papéis sociais de adulto (Hasenbalg, 2003). Neste quadro, a TET é impactada diretamente por fatores estruturais (como raça/cor da pele, classe social e sexo) e individuais (habilidades, interesses e desejos pessoais) e justamente por ser influenciada por fatores flutuantes, é variável e não linear, especialmente na experiência brasileira, onde a escola média para os jovens ainda é uma conquista historicamente recente para as classes populares, datada da primeira década dos anos 2000.
Estudar o processo da TET é, portanto, fundamental para a compreensão da transição e passagem para a vida adulta (Margulis e Urresti, 1996; Hasenbalg e Silva, 2003; Camarano, 2006; Barbosa e Comin, 2011; Cardoso, 2008; 2013) e, no Brasil, tendo como ponto de partida as evidentes desigualdades que atravessam nossa sociedade (Cardoso, 2008; 2013), essas formulações dividem-se em duas abordagens: uma delas, que analisa as relações entre a formação e a orientação para o trabalho, assim como a entrada no mercado de trabalho (Cardoso, 2008; Camarano, 2006; Hasenbalg e Silva, 2003) e uma segunda que tematiza os desafios enfrentados pelos jovens nos processos de inserção social (Cardoso, 2008; 2013; Camarano, 2006).
Se aprofundamos as buscas naquilo que se refere aos desafios encontrados pelos jovens nos processos de inserção no mundo do trabalho, encontramos ainda um conjunto de produções que testemunham o quão desafiador é ser jovem no quadro do amplo e profundo espectro de desigualdades sociais que nos afetam (Guimarães, 2004; Camarano, 2006; Cardoso, 2013; Barbosa e Comin, 2011; Corseuil, Santos e Foguel, 2001; Hasenbalg e Silva, 2003; Abramo, Venturi e Corrochano, 2020).
A falta de oportunidades de emprego decente, a precarização do trabalho, a informalidade e a falta de qualificação profissional são questões latentes para os jovens segundo a literatura do Brasil (Corseuil, Santos e Foguel, 2001; Hasenbalg, 2003; Camarano, 2006; Barbosa e Comin, 2011; Cardoso, 2013; Guimarães, 2020;).
Esse conjunto de trabalhos quando mapeado aponta que:
a) é um desafio ser jovem num contexto de profundas desigualdades sociais, como é o caso do Brasil,
b) a socialização da juventude encontra-se mediada diretamente pelo trabalho com transição rápida pela escola, especialmente entre os mais pobres,
c) a juventude brasileira ingressa antecipadamente no mundo do trabalho em relação a outros países,
d) estudar e trabalhar, entre os mais pobres, é indicativo para abandono escolar, dependendo do tipo de trabalho que se realiza e,
e) as políticas públicas para a juventude demandam fomento imediato, investimentos em escolas, principalmente técnicas e incentivo para completar o ciclo da Educação Básica
Na investigação sobre os estudos da TET, decidimos olhar também para o panorama fora do Brasil. No cenário internacional encontramos um conjunto de pesquisas que tratam das trajetórias juvenis em diferentes contextos que se dividem em dois grandes grupos, mapeados a partir da leitura analítica dos resultados: trajetórias juvenis (Achatz, Jahn e Schels, 2022; Zamfir et al., 2020; Ineland e Vikström, 2021; Imdorf et al., 2022; Zamfir et al., 2023; Bojadjieva et al., 2022; Gustavsson, Wendelborg e Tøssebro, 2021) e formação e orientação para o trabalho (Presti et al., 2022; Parry, 2022; Masdonati et al., 2022; Jørgensen, Järvinen e Lundahl, 2019; Sávoly e Dost, 2020; Ko e Chen, 2017; Yang et al., 2017; Kim et al., 2018).
É interessante notar que ambas as linhas interpretativas partem, também como no caso brasileiro, de uma premissa comum, e neste caso, divergente daquilo que aglutina as produções nacionais. É que se no nosso caso o ponto de partida é a desigualdade na distribuição de direitos e de condições de exercício da condição juvenil, no cenário internacional o ponto de partida encontra-se na consideração da TET como fator de integração social para os jovens de diferentes realidades ao redor do mundo. Nesse sentido, em síntese, podemos afirmar que na produção internacional a TET opera como dispositivo de integração, mapeamento de trajetórias e ferramenta de mediação de formação para o trabalho em diferentes sociedades. Na produção Brasil, em diferentes camadas analíticas, vimos o quanto a marca da desigualdade social conduz o histórico da produção, e que, na produção nacional, a TET ainda funciona como um operador conceitual do campo: mapeando os desafios do trabalho para os jovens, seus percursos e destinos e a formação para o trabalho.
Para finalizar esse levantamento bibliográfico acerca dos estudos da TET, trazemos Nádia Guimarães (2020), que realizando um balanço dos processos de transição escola-trabalho, no Brasil, entre os anos 2013 e 2018, nos mostra que na América Latina, a experiência dos jovens inclui: transições intensas, inserções aleatórias, não linearidade. Especialmente para os jovens dos grupos mais vulneráveis, a entrada precoce no mundo do trabalho e a conciliação entre escola e trabalho eram (e ainda são) desafios importantes.
A autora sublinha que no Brasil destacam-se, no processo: combinação de atividades características dos mundos jovem e adulto; o volume e a persistência dos jovens que não estudavam, não trabalhavam e não procuravam trabalho; a importância dos jovens que transitam do trabalho para a escola e daqueles que trabalhavam para estudar.
Com isso, ela acumula argumentos suficientes para interrogar, não apenas um modelo calcado na transição da escola para o trabalho, mas também “o próprio valor heurístico de assentarmos o tema da inclusão dos jovens no suposto de que este refletiria um movimento de transição de saída do sistema escolar para ingresso no mercado de trabalho” (Guimarães, 2020, p. 466).
A preocupação com a integração dos jovens não é exclusividade dos estudos sobre a TET. No fim da primeira década deste século, Robert Castel (2010), em seu “El ascenso de las incertidumbres - trabajo, protecciones, estatuto del individuo”, dedicava um capítulo à questão. Perguntando se os jovens teriam uma relação específica com o trabalho, o pesquisador francês, partindo daquilo que diagnostica como processos de desestandartização do trabalho, e de descoletivização social, chega a algumas conclusões e estabelece uma hipótese.
Os itinerários profissionais adotam um desenho caótico, e neste contexto, o indivíduo pode ver-se abandonado a si mesmo “porque sua existência profissional já não está estruturada em regulações objetivas e permanentes” (Castel, 2010, p. 115). Como consequência, os jovens, já pouco inscritos nas regulações e nas proteções do emprego clássico e muito mais presentes “naqueles setores onde se efetuam as transformações mais intensas e onde se produzem as experiências mais inovadoras em matéria de trabalho” (Castel, 2010, p. 116), acabam por representar e por expressar, antes dos demais e talvez de forma mais intensa, as transformações que afetam o conjunto da sociedade.
É no âmbito deste quadro que Castel lança sua hipótese de que a atitude dos jovens frente ao trabalho (ou, se quisermos, suas disposições, suas escolhas, e, no limite, as experiências que acumulam) depende amplamente da qualidade dos suportes que se oferece a eles, que eles conseguem produzir e mobilizar. E Castel (2010, p. 124) completa: “haveria que inventariar com cuidado esses recursos e as modalidades diferenciadas segundo a qual são repartidos”.
A hipótese de Castel estava relacionada de maneira intrínseca com as primeiras análises realizadas no banco de dados da pesquisa com jovens à época da produção do relatório Juventudes no Brasil (Carrano, 2021). A qualidade dos suportes sociais a que os jovens investigados tinham acesso eram indicadores de sua relação com o trabalho no processo de transição para a vida adulta. E mais, como se tratava de dados que mapeavam diferentes aspectos da vida dos jovens, seria possível, ainda que dentro de limites de pesquisa, um tipo de inventário desses recursos a partir de quatro eixos diretos: idade dos jovens, sexo, classe social (grupos socioeconômicos) e raça/cor da pele em sua relação com o engajamento com a escola e com o trabalho.
Hipóteses e objetivo
Se é verdade que a transição escola-trabalho é impactada por fatores estruturadores das desigualdades sociais brasileiras, tais como sexo, raça/cor da pele e grupo socioeconômico, por outro lado, ela também é impactada por fatores variáveis, contingentes, porém capazes de alterar posições e correlações de forças na sociedade, tais como as políticas sociais, por exemplo, capazes de ampliar, consolidar, inaugurar ou cassar direitos.
E mais, se a desigualdade encontra-se no centro do problema da integração social dos jovens, num Brasil marcado, nos últimos anos, pela contenção dos mecanismos de ampliação e de democratização de oportunidades educacionais, por um lado, e, por outro lado, por mecanismos de degradação do trabalho; então há que se concordar com Castel (2010), em sua proposta de inventariar os recursos acionados pelos jovens em seus processos de inserção social e, ao mesmo tempo, identificar as modalidades diferenciadas de repartição dos mesmos.
Nossa hipótese é de que, no processo de inserção social dos jovens, o engajamento às instituições mais diretamente envolvidas nos processos de transição para a vida adulta, e, neste âmbito, o engajamento nas instituições centrais no processo de integração social, escola e trabalho, constitui-se em indicador do grau de vulnerabilidade social a que estão submetidos tais sujeitos, projetando, possivelmente, as fragilidades, ou não, de sua inserção.
Neste sentido, o objetivo deste artigo é o de apresentar os primeiros resultados do estudo das variações, em termos de sexo, raça e grupo socioeconômico, dos tipos de engajamento institucional (escola e trabalho) de jovens, a partir da análise do caso brasileiro da pesquisa das Juventudes Ibero-americanas.
A Pesquisa das Juventudes no Brasil
Esta pesquisa está ancorada na investigação realizada a partir de levantamento aplicado pelo Instituto Santa María, com sede em Madrid, a 8 países Ibero-americanos, incluindo o Brasil, em 2019. A metodologia utilizada para compor a amostragem em cada país, foi desenvolvida pela empresa chilena Corpa Estudios de Mercado. No Brasil, a pesquisa envolveu sete pesquisadores, sete pesquisadores assistentes e três programas de pós-graduação, tendo sido coordenada pelo Observatório Jovem da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela analisa as realidades e percepções dos jovens com foco em dimensões de participação, horizontes de futuro, valores, religião, migração, diversidade, equidade de gênero, cultura e lazer, estudo e trabalho, tecnologia e seus impactos, hábitos de consumo e medo e preocupações (Carrano, 2021).
A amostragem foi em feita em todo território, considerando as áreas metropolitanas das cinco regiões oficiais do país, a saber: Região Sul (Grande Porto Alegre e Grande Curitiba), Região Centro-Oeste (Brasília e Grande Goiânia), Região Norte (Manaus), Região Sudeste (Grande São Paulo, Grande Rio de Janeiro e Belo Horizonte) e Região Nordeste (Grande Fortaleza, Grande Recife e Grande Salvador).
Como referência de amostragem foram considerados as variáveis sexo (mulheres e homens),2 Idade (entre 15 e 29 anos), Local de Moradia (Urbano e Rural),3 e a distribuição de grupos socioeconômicos (GSE),4 com os seguintes percentuais: 7,7% de Alto / Médio Alto; 18,19% de Média (M); 22,9% de Médio Baixo (MB); 24,6% de Baixo (B) e 26,6% de Pobreza Extrema (EP).5
Dessa forma, essa pesquisa foi desenvolvida considerando um erro de amostragem de 2,33% e com 95% de confiança assumindo variância máxima e selecionou amostra de 1740 jovens, para o Brasil.
Ao considerar esse universo amostral e o escopo deste artigo, foram elencadas para observação as seguintes variáveis: Idade (entre 18 e 24 anos), sexo, GSE, cor da pele e sua principal ocupação (relação com o trabalho e estudo), a fim de compreender os “Jovens em transição escola-trabalho”. Por não estar considerando todo o conjunto de jovens selecionados da pesquisa maior, ou seja, a totalidade dos jovens entre 15 e 29 anos esta pesquisa utiliza a resposta de 440 (45% da amostra) jovens entre 18 e 24 anos.
Para fins de análise, a variável idade de 18 a 24 anos foi dividida em dois grupos etários, um de 18 a 20 anos e outro de 21 a 24 anos. Para variável sexo foram considerados os grupos de mulheres e homens. Para variável cor foram considerados os respondentes de cor brancos, preto e pardos. Para variável GSE foram considerados os grupos socioeconômicos alto/médio alto, médio, médio-baixo, baixo e pobre. Por fim, para variável ocupação foram considerados as repostas Só estudo, Eu principalmente estudo e faço algum trabalho, Principalmente trabalhar e também estudar, Trabalho, Estou ativamente procurando trabalho, nem estuda nem trabalha, Estou principalmente no cuidado dos outros, Eu me dedico ao lar. dona de casa e outros.
Com o auxílio de programas estatísticos como SPSS e Excel foram criadas frequências estatísticas, assim como o cruzamento de variáveis idade e ocupação com a variável cor, sexo e GSE. Dessa forma foram obtidos três cruzamentos de análise: Idade x cor/raça x ocupação; Idade x sexo x ocupação; Idade x GSE x ocupação. Os resultados do cruzamento dos grupos de idades com as variáveis em observação serão apresentados a partir de recursos gráficos e tabelas a fim de facilitar a organização e síntese dos dados observados.
Por que recortaremos, para esta análise, os jovens de 18 a 24 anos?
Quando analisamos os primeiros resultados da pesquisa, vimos que a idade desempenha um papel determinante em diferentes aspectos, especialmente quando seccionamos fatias menores da juventude: 15 a 17, 18 a 20, 21 a 24 e 25 a 29 anos. A faixa de idade apresenta características específicas, mantendo uma estrutura independente das clivagens sociais. Isto é: encontrar-se em determinada faixa de idade opera como indicador de ocupação, independentemente de sexo, grupo socioeconômico e raça/cor.
Nos grupos dos adolescentes (15 a 17 anos) e dos jovens adultos (25 a 29 anos), observamos, nas respostas sobre a ocupação, expressões de vínculos sociais bem marcados. No grupo dos adolescentes, a escola é predominante, enquanto no grupo dos jovens adultos, o trabalho é prevalente.
No entanto, nos coortes de idade de 18 a 20 e 21 a 24 anos - que contou com as respostas de 436 jovens a quem chamamos de intermediários - encontramos um paradoxo importante. Dos 18 aos 20 anos, começa a surgir uma composição entre escola e trabalho de expressão importante no conjunto dos jovens, mas que encontra a escola como referência. Porém, na faixa seguinte, de 21 a 24 anos, há uma maior disputa entre escola e trabalho, com ênfase na importância relativa do trabalho em relação à escola. Além disso, nessa faixa etária encontramos um maior número de jovens que não trabalham nem estudam, bem como indivíduos que desempenham trabalhos de cuidados.
Neste sentido, se podemos considerar a juventude como condição liminar (emancipação da socialização primária, e ingresso e experimentação de processos de socialização secundária, com vistas à autonomia e à integração na sociedade), o grupo de jovens nas faixas etárias intermediárias representaria uma espécie de fronteira, disputada e tensa, que, concentrada na faixa dos 18-24 anos, enfrenta os efeitos de eventos pretéritos e prospecta cenários futuros, no âmbito do conjunto etário que, no Brasil, circunscrevemos à juventude.
Há ainda um outro motivo pelo qual recortamos o estudo que aqui apresentamos, à faixa etária dos 18 aos 24 anos. É que, na base de dados da Pesquisa das Juventudes Ibero-americanas, essa, que é a maior das faixas de idade que compõe aquilo que identificamos como “juventude” no Brasil, está seccionada em 2 sub-faixas: uma que vai dos 18 aos 20 anos e outra, dos 21 aos 24 anos. E isso se apresentou como uma oportunidade de identificarmos e analisarmos as variações nas ocupações no interior da faixa dos 18 aos 24 anos.
Ancoragem como ferramenta analítica
A ancoragem é um recurso para analisar a densidade e ao mesmo tempo a importância relativa das instituições nos processos de transição para a vida adulta vivenciados pelos jovens.
Como estamos analisando um conjunto de jovens “situados” exatamente naquela “fronteira etária” onde constatamos uma “disputa” entre escola e trabalho, entendemos que necessitávamos de uma ferramenta que nos permitisse compreender como e a partir de que variações a disputa entre essas instituições se apresentava no conjunto dos jovens de 18 a 24 anos. E que para isso era fundamental entendermos a instituição que ancorava a transição escola-trabalho.
Para a construção da ferramenta, usamos as respostas dadas pelos jovens entrevistados à pergunta sobre a ocupação que realizavam no momento da pesquisa. As respostas foram dadas a partir das seguintes opções:
1) Apenas estudo;
2) Trabalho;
3) Não estudo, nem trabalho;
4) Me dedico ao lar, dono(a) de casa;
5) Principalmente trabalho e também estudo;
6) Estou buscando ativamente um trabalho;
7) Principalmente estudo e faço algum trabalho;
8) Principalmente cuido dos outros.
Como ancoragem no trabalho tomamos o conjunto das respostas 2 e 6 (trabalho+estou buscando ativamente um trabalho); como ancoragem nos estudos tomamos o conjunto das respostas de número 1 (apenas estudo); as respostas 5 e 7 (principalmente trabalho e também estudo+principalmente estudo e faço algum trabalho) foram tratadas como casos de dupla ancoragem; o conjunto de respostas de número 3 (não estudo e não trabalho) foram classificadas como casos de fragilidade na ancoragem.6
A análise que se segue, aborda as formas de ancoragem a partir de dois planos concomitantes. Primeiramente, pela identificação de mudanças nas ancoragens de uma sub-faixa de idade para outra (18-20 para 21-24). A isso denominamos de “evolução”. Assim, a evolução não se caracteriza pela análise do mesmo grupo ao longo do tempo, mas como um indicador do fluxo de ancoragem nos grupos de idade. Por outro lado, analisamos as variações, por sexo, raça/cor e grupo socioeconômico das evoluções dentro do grupo que compõe a faixa (18-24 anos).
Resultados e discussão
Sexo7
Nos gráficos 1 e 2, podemos ver a evolução das ancoragens para jovens do sexo masculino e feminino.
Entre homens, a grande mudança se dá entre uma significativa ancoragem nos estudos e no trabalho para uma forte ancoragem no trabalho e concomitante decréscimo da ancoragem nos estudos. Não aparecem mudanças significativas nem na dupla ancoragem (composição escola-trabalho), nem naquilo que indica frágil ancoragem nas duas instituições (no momento não estuda e não trabalha).
Entre mulheres, a ancoragem no trabalho se mantém estável e sem variações ao longo das idades. A ancoragem nos estudos reduz-se à metade de sua importância, sendo sua queda acompanhada pela dupla ancoragem (composição escola/trabalho), ainda que não com a mesma intensidade. Por outro lado, proporcionalmente à queda da ancoragem nos estudos, não estudar e nem trabalhar duplica sua importância ao longo da variação da faixa de idade. Assim, entre as mulheres, vemos: 1) a importância estável do trabalho ao longo da faixa etária e, 2) A substituição da ancoragem nos estudos pela variedade e fragilidade dos vínculos institucionais entre aquelas situadas no intervalo entre os 18 e os 24 anos.
Realizando uma síntese daquilo que pudemos constatar na comparação da evolução das ancoragens entre homens e mulheres, podemos afirmar que, se os homens transitam para o trabalho, as mulheres, vão dos estudos para uma situação de maior variedade e fragilidade institucional.
Raça/cor8
Nos gráficos 3, 4 e 5, analisamos a evolução das ancoragens para os jovens pesquisados, a partir de sua autodeclaração como brancos, pretos e pardos.
Em termos de raça/cor, os eventos que marcam as mudanças nas ancoragens das ocupações são semelhantes para brancos, pardos e pretos: ampliação da ancoragem no trabalho; ampliação daqueles que não estudam e nem trabalham (fragilidade nas ancoragens); diminuição nas ancoragens nos estudos e naquela que aponta para a composição entre escola e trabalho (dupla ancoragem).
Mas se a evolução dos padrões das ocupações tem apresentação semelhante nos três conjuntos, a intensidade das mudanças apresenta-se mais suave entre brancos, intermediária entre pardos, sendo mais intensas entre pretos. É importante destacar, que entre pretos, ao contrário de brancos e pardos, a ancoragem no trabalho traduz-se em busca por trabalho, ao contrário dos demais conjuntos.
Em síntese, podemos dizer que o que marca a análise das variações na evolução das ancoragens institucionais entre brancos, pardos e pretos, é a variação na intensidade da transição.
Grupos socioeconômicos (GSE)9
Os grupos socioeconômicos estão divididos em cinco estratos na pesquisa e refletem em parte a complexidade de se tratar de classe social no Brasil. Os gráficos de 6 7, 8, 9 y 10 trazem dados que apresentam os percentuais dos grupos de jovens entre 18 e 24 anos nos distintos estratos de GSE para analisarmos características dessas populações com relação à situação de ocupação.
A ancoragem nos estudos parte de patamar alto em termos percentuais (entre 46% nos grupos altos e 32% entre os pobres) em todos os GSE, e tem queda entre 21 e 24 anos, mas a queda é mais pronunciada quanto maior a vulnerabilidade socioeconômica.
A ancoragem no trabalho cresce em todos os GSE no espaço entre as duas faixas etárias, partindo de patamares significativos (entre 35% e 43%) entre os 18 e os 20 anos, atingindo patamares ainda superiores (entre 40% e 58%) na faixa dos 21 aos 24 anos.
O que varia significativamente entre os GSE é a distância entre a ancoragem escolar e a ancoragem laboral, naquela sub-faixa que tomamos aqui como ponto de "chegada" (21-24 anos). A variação alcança de 15 a 20 pontos percentuais nos grupos médios e altos, e atinge mais de 40 pontos percentuais entre as classes baixas e os pobres. Assim, quanto mais vulnerável é o grupo social ao qual se pertence, maiores são as distâncias entre estudos e trabalho.
A composição entre escola e trabalho (e, portanto, a dupla ancoragem) é algo que apresenta uma clara e significativa variação quando comparamos os GSE. A dupla ancoragem parte de percentuais que são mais altos quanto menor é a vulnerabilidade socioeconômica (entre os 18 e os 20 anos ela é de 46% entre as classes alta e médio-alta, e de 9,9% entre os pobres). Por outro lado, composição entre escola e trabalho não apresenta queda brusca em nenhum dos GSE, mostrando-se uma condição bastante estável em todos os grupos. Mas sua importância, sua expressão, varia muito entre os GSE, sendo alta, presente e estável nos estratos médios e altos, e significativamente mais baixa entre os estratos baixos e pobres, apresentando-se, nestes, quase que de forma residual.
Ao contrário da composição entre escola e trabalho, não estudar e nem trabalhar é uma condição que cresce quanto maior a vulnerabilidade do grupo social. Mas ela é uma condição residual, desconectada das demais, apenas entre os grupos alto e médio alto.
Em síntese, a ancoragem nos estudos cai em todos os GSE, mas a queda é mais acentuada entre os socioeconomicamente vulneráveis. A ancoragem no trabalho cresce em todos os grupos, mas há que se destacar que o que marca a diferença entre as classes é que a distância entre escola e trabalho, que aumenta na razão direta da vulnerabilidade social. A composição entre escola e trabalho, a dupla ancoragem, é uma condição que apresenta estabilidade ao longo do intervalo entre os 18 e os 24 anos, não apresentando variações importantes em todos os grupos socioeconômicos. O que varia de maneira muito significativa é a importância percentual da condição em cada um dos grupos. O engajamento concomitante na escola e no trabalho é alto nos GSE alto e médio alto, e declina, paulatinamente, chegando a valores 4,5 vezes inferiores entre os pobres. Para finalizar essa síntese, funcionando quase como uma antítese da condição de dupla ancoragem, não estudar e não trabalhar apresenta importância pequena nos GSE alto e médio alto e cresce de importância conforme aumenta a vulnerabilidade dos grupos, atingindo, entre os mais pobres, valor três vezes superiores àqueles encontrados entre os grupos mais providos.
Conclusão
O estudo das ocupações dos jovens de 18-24 anos, realizado a partir da pesquisa Juventudes no Brasil, pode indicar algumas tendências em relação às variações que apresenta em termos de sexo, raça/cor e classe.
Em relação aos sexos, podemos apontar que se para os homens a evolução das ancoragens, na fronteira tensa que marca a faixa etária dos 18 aos 24 anos se dá na diminuição da importância da escola e concomitante predomínio do trabalho, entre mulheres a centralidade nos estudos é substituída por um conjunto de situações difusas. Nelas são perceptíveis a estabilidade do trabalho, acompanhado de um aumento da variedade de ocupações, frágeis em termos dos engajamentos institucionais que proporcionam.
Entre brancos, pardos e pretos, a evolução nos padrões das ocupações têm apresentação semelhante em todos os casos, mas intensidade maior, expressando variações bruscas, no conjunto daqueles que se autodeclararam pretos, com fortes sinais de frágil engajamento na ocupação predominante, o trabalho, onde as respostas expressavam mais intensamente a busca por trabalho do que o efetivo exercício laboral.
Quando se trata de GSE, podemos dizer que se a ancoragem na escola vai sendo “substituída” pela ancoragem no trabalho, de maneira que, conforme aumenta a vulnerabilidade social, maior é a distância entre as instituições; quando tratamos daqueles indicadores que nos permitem mensurar o grau de engajamento institucional (composição entre escola e trabalho) dos jovens, vemos que aquele que indica alto engajamento dos jovens, é quase que exclusividade dos grupos mais providos. E aquele indicador que aponta desengajamento (não estuda e nem trabalha), esse é uma exclusividade dos grupos mais vulneráveis.
Com isso é possível afirmar que o estudo das variações das ocupações dos jovens, na fronteira tensa que identifica a faixa intermediária (18-24 anos) em relação ao período etário que demarca a juventude no Brasil, corrobora, por um lado, as tendências gerais apontadas nos estudos que marcam a literatura sobre o tema da TET: a desigualdade nas condições de transição, mais do que abordagem central no âmbito da literatura sobre o tema, é expressão de problemas concretos enfrentados pelos jovens nos processos de inserção social.
A ancoragem mostrou-se útil na identificação de variações nos padrões de ocupação, e a leitura de sua variação no intervalo de tempo demarcado pelo seccionamento da faixa etária dos 18 aos 24 anos mostrou-se um método eficaz para a captação de mudanças nas ancoragens institucionais nas sub-faixas analisadas.
A análise permitiu a prospecção de indícios de fragilidades nas ancoragens institucionais, especialmente nos grupos às margens da sociedade, demonstrando que mulheres, pessoas que se reconhecem como pretos e aqueles pertencentes aos grupos socioeconômicos mais vulneráveis, naquela faixa de idade que funciona como uma fronteira demarcadora da diminuição da importância da escola e concomitante elevação na importância do trabalho, realizam essa transição, da escola para um conjunto de possibilidades marcadas por engajamentos frágeis, como no caso das mulheres; de maneira abrupta da escola para busca por trabalho, como no conjunto das pessoas que se auto identificaram como pretos; e da escola para uma situação ambígua em que o engajamento no trabalho divide importância com situações que indicam desengajamento institucional, como entre os socioeconomicamente vulneráveis.
Entre os incluídos, ao contrário, a TET apresenta-se como branda e linear, passagem da escolarização para o trabalho formal e decente, de um(a) jovem firmemente ancorado aos vínculos das instituições sociais de socialização secundária: escola e trabalho. Dois são os conjuntos que mais claramente demonstram essa tendência: os homens, onde a ancoragem na escola é substituída paulatinamente por aquela centrada no trabalho, e onde estudar e trabalhar e não trabalhar nem estudar apresentam percentuais baixos e estáveis que praticamente se neutralizam; e as classes alta e médio-alta, onde as curvas de transição são suaves, apresentando alto engajamento institucional, e desengajamento baixo e residual.
Finalmente, com base nessas considerações, é ainda possível apontarmos alguns desdobramentos para futuras investigações. Por um lado, pensamos, é importante realizar estudos que permitam nos aproximarmos das condições de vida efetivamente enfrentadas por esses jovens. Nesse caso, acreditamos que uma das formas de dar continuidade à linha de estudos que apresentamos neste artigo, consiste em “organizarmos” os conjuntos de clivagens que aqui analisamos em separado, em configurações mais próximas daquela experimentada pelos atores na vida social comum, a partir de estudos de tipo “stand point”,10 ou na abordagem defendida por Hirata (2014),11 das consubstancialidades.
Por outro lado, pensamos ser fundamental realizarmos investimentos no aprofundamento qualitativo do tema, especialmente em pesquisas, que como o estudo realizado por Abramo, Venturi e Corrochano (2020), nos mostram que as formas com que se realizam os engajamentos institucionais, delimitam a variedade de experiências juvenis.
Em síntese, quando a ampliação dos acessos a patamares educativos em seus níveis médio e superior encontra como contrapartida a corrosão da qualidade dos empregos, como o que vem acontecendo no Brasil, pode-se reivindicar a hipótese de que está em curso a erosão de um universo de referências, que, associadas ao trabalho e à formação, nos impele à produção de investigações que contemplem, por um lado, um mapeamento das condições de vida dos jovens em seus processos de inserção social, e que, por outro lado, nos ajude a compreender a variedade de experiências geradas por tais processos.
Essa não é uma tarefa de pouca monta, nos ensina Cardoso, num país cuja
experiência geracional foi sempre muito desigual e hierárquica, e as diferentes classes sociais experimentaram à sua maneira os processos de privatização da socialização, e construíram à sua maneira a sucessão geracional, de formas, muitas vezes, incomensuráveis e irredutíveis umas às outras. (2015, p. 900)