Este estudo busca a integração de fatores técnicos, variáveis de processo terapêutico e medidas de aliança terapêutica para compreender um processo terapêutico que culminou em interrupção prematura, ou seja, antes de atingir os objetivos propostos pela dupla terapêutica. Trata-se de um estudo de caso sistemático realizado a partir do atendimento em psicoterapia psicanalítica de uma paciente com Transtorno de Personalidade Borderline (TPB).
Os estudos de caso naturalísticos oferecem uma oportunidade para se compreender os processos que promovem mudança terapêutica, a partir da análise mais próxima e profunda das interações terapeuta-paciente (Jones, 2000). Da mesma forma, oferecem subsídios para a compreensão dos processos que não alcançaram os objetivos terapêuticos propostos.
A pesquisa de processo terapêutico necessita examinar os micro e macro detalhes de cada sessão conduzida. É um empreendimento complexo, demorado e oneroso, sendo que esses fatores contribuem para sua escassez. No entanto, pode subsidiar intervenções de melhor qualidade, produzir avanços na teoria e nas técnicas psicoterápicas, bem como promover o treinamento da próxima geração de terapeutas (Kazdin, 2007). O desafio passa a ser a realização de estudos de caso com rigor metodológico, por meio de registros precisos do tratamento, aliados a medidas válidas e confiáveis das variáveis em estudo (Serralta, Nunes, & Eizirik, 2011).
O papel dos fatores inespecíficos e técnicos de uma psicoterapia na produção de mudança é fonte de controvérsia na literatura (Crits-Christoph, Connolly Gibbons, & Hearon, 2006). A tendência é considerar a interdependência desses na análise do processo terapêutico (Kazdin, 2007), considerando a elucidação de cada um destes fatores em profundidade na compreensão de um caso.
O papel da aliança terapêutica no processo de uma psicoterapia
A aliança terapêutica é uma das poucas variáveis em psicoterapia substancialmente investigada, e tem sido descrita como preditora de manutenção, processo e resultado de tratamento (Barber, et al., 2000; Safran, Muran, & Shaker, 2009). Pode ser geralmente descrita como a relação positiva e colaborativa entre paciente e terapeuta (Price & Jones, 1998). O estudo clássico de Bordin (1979) identifica três componentes que a configuram: 1) acordo entre paciente e terapeuta nas tarefas; 2) qualidade do vínculo entre paciente e terapeuta; e 3) acordo a respeito dos objetivos da psicoterapia.
O desenvolvimento de aspectos críticos da aliança ocorre no início do tratamento (Price & Jones, 1998). Baixos níveis de aliança das três primeiras sessões de tratamento são fatores de risco importantes para o término prematuro de tratamento, independente da gravidade das dificuldades do paciente. Assim, é importante o reconhecimento dos padrões relacionais no início do tratamento, principalmente no que diz respeito a pacientes com dificuldades nas relações interpessoais. Ajustes na técnica podem ser necessários para prevenir o efeito de interrupção do tratamento ocasionado por alianças terapêuticas frágeis (Samardzié & Nikolié, 2014).
A aliança terapêutica é um fenômeno complexo e necessita ser considerada como relacionada à (1) habilidade do terapeuta em formar aliança, (2) características do paciente, (3) combinação apropriada entre características do paciente e do terapeuta, e (4) mudanças sintomáticas precoces antes da mensuração da aliança (Webb et al., 2011). Pesquisadores têm demonstrado interesse crescente nos componentes da aliança que variam de acordo com o tipo de abordagem teórica utilizada, uma vez que estes componentes (tarefas, vinculo e objetivo) parecem funcionar de forma distinta nas diferentes modalidades de psicoterapia. Os efeitos de técnicas específicas psicodinâmicas são descritos como associados a uma aliança terapêutica positiva (Barber, et al., 2000), embora não tenham sido encontrados estudos nesta abordagem que relacionem resultados aos componentes da aliança terapêutica.
Possíveis falhas em algum dos componentes da aliança terapêutica (vínculo, tarefas e objetivos) podem gerar rupturas. Essas constituem breves declínios da aliança terapêutica que podem ocorrer por diversas razões, incluindo a explicitação de sentimentos negativos, erros do terapeuta, paradas no progresso terapêutico, entre outros. Tratamentos que apresentaram episódios de rupturas reparadas demonstraram um resultado ainda mais favorável do que tratamentos que não apresentaram estas oscilações na aliança terapêutica (Safran et al., 2009).
As rupturas da aliança nas primeiras sessões fazem parte de um fenômeno complexo e servem como alertas precoces de problemas na relação terapêutica. O seu reconhecimento pode ser utilizado como uma oportunidade de trabalho que pode fortalecer a aliança e manter pacientes difíceis em tratamento (Muran et al., 2009), como por exemplo, em indivíduos com TPB.
Processo terapêutico com pacientes com Transtorno de Personalidade Borderline
Pacientes com Transtorno de Personalidade têm padrões longos e inflexíveis de dificuldades emocionais e interpessoais, apresentando-se como desafios para os terapeutas, em especial com relação à aliança terapêutica (Muran et al., 2009). Sua sintomatologia está associada a uma pobre qualidade de relações objetais e a uma pobre qualidade de insight. A falta de um modelo de apego seguro e fatores ambientais como vivencias de abuso sexual na infância ou negligência são partes de sua etiologia (Levy, Hilselroth, & Owen, 2015).
Não há muitos estudos que explorem a interação entre aliança terapêutica e técnica psicodinâmica (Hoglend et al., 2011), principalmente no que diz respeito a pacientes com TPB. Os poucos estudos encontrados abordaram características do transtorno, tais como histórico de abuso sexual, funcionamento defensivo e dificuldade de relacionamento interpessoal. O estudo proposto por Keller, Zoellner, e Feeny (2010) indicou que o histórico de abuso sexual na infância não é preditor de baixa aliança terapêutica. Apesar das dificuldades de relacionamento, estes pacientes são capazes de desenvolver relacionamentos de boa qualidade com os terapeutas. Outro estudo, proposto por Gomes, Ceitlin, Hauck e Terra (2008) não encontrou associação entre o estabelecimento de uma aliança terapêutica de boa qualidade e o nível defensivo do paciente. Para os autores, o treinamento e as características pessoais do terapeuta podem levar a uma capacidade de conectar-se com o paciente, apesar do grau de funcionamento psíquico. Já o estudo de Dinger, Strack, Sachsse e Schauenburg (2009) indicou que o nível de dificuldade de relacionamento interpessoal do paciente foi associado à baixa qualidade de aliança terapêutica.
Para o estabelecimento de um processo terapêutico com bons resultados, portanto, os aspectos técnicos devem ser atentados, já que é possível que a aliança terapêutica se modifique como consequência da técnica empregada. Da mesma forma, a escolha na utilização de técnicas (como interpretações) pode depender ou ser ajustada em resposta ao nível de aliança percebido pelo terapeuta (Hoglend et al., 2011). Pacientes com TPB geralmente requerem modificações na técnica psicanalítica clássica, uma vez que a rigidez teórico-técnica tem sido descrita na literatura como contra-produtiva na psicoterapia (Sandell et al., 2000). Em geral, a recomendação técnica é de que o trabalho exploratório-interpretativo (incluindo interpretação da transferência) deve ser utilizado com pacientes que possuam força egóica, tolerância à ansiedade e capacidade de reflexão sobre seus problemas interpessoais. Técnicas de apoio podem ser necessárias com pacientes com escassez destas capacidades (Eizirik, Aguiar, & Shestatsky, 2010).
A revisão da literatura apresentada demonstra lacunas no conhecimento científico sobre processo e interrupção de psicoterapia de pacientes com TPB. Na tentativa de preencher algumas destas lacunas, este estudo se propõe a realizar uma análise de uma psicoterapia psicanalítica de uma paciente com TPB, tendo como objetivo compreender os principais fatores envolvidos na sua interrupção. Para tanto, será realizada a triangulação de instrumentos e fontes de informação, os quais avaliam diferentes dimensões do processo terapêutico.
Método
Participantes
Os participantes deste estudo consistem em uma dupla terapêutica de uma psicoterapia psicanalítica. A terapeuta era psicóloga, com formação em psicoterapia psicanalítica, com cinco anos de experiência. A paciente Maria , era adulta jovem e solteira, empregada doméstica, com hipótese diagnóstica TPB estabelecida a partir de avaliação clínica pela terapeuta em conjunto com a supervisão do caso. Buscou tratamento por apresentar choro constante, sentimento de vazio, baixa autoestima, impulsividade e dificuldades nos relacionamentos interpessoais. Em sua infância, viveu em ambiente familiar violento e negligente.
A indicação inicial foi de psicoterapia com a frequência de duas sessões semanais. No entanto, devido a impossibilidade financeira e por questões laborais, foi estabelecida a frequência semanal. Embora tenham sido marcadas 25 sessões, Maria compareceu a apenas 13 destas (1, 2, 4, 5, 7, 10, 12, 13, 14, 15, 19, 20 e 25). As sessões de 1 a 24 foram marcadas semanalmente. Nas semanas em que Maria não comparecia, geralmente havia algum tipo de contato entre paciente e terapeuta, como mensagens de texto por telefone celular. Como a paciente não compareceu às sessões 21 a 24 e não respondeu às diversas tentativas de contato da terapeuta, o tratamento foi considerado como abandonado. No entanto, dois meses depois, Maria contatou a terapeuta para marcar uma sessão e conversar sobre a possibilidade de retomar o tratamento. Nesta sessão, após a proposta de reflexão da terapeuta sobre o processo e condições de frequência e pagamento das sessões, a paciente decidiu interrompê-lo e acertar os honorários pendentes.
Instrumentos
- Therapeutic Cycles Model (TCM; Mergenthaler, 2008). Trata-se software (CM) que permite análise de textos por computador. Foi elaborado para ser aplicado a transcrições de sessões de psicoterapia, permitindo a identificação de momentos-chave do processo, também chamados ‘ciclos terapêuticos’. Um momento-chave se refere a uma ou mais sessões ou a trechos de sessões de um tratamento clinicamente importantes, ao qual a ideia de progresso está associada. A identificação destes é dada pela presença de marcadores linguísticos que expressam emoção e abstração (Cassel et al., 2015; Mergenthaler, 2008).
O software funciona com uma lista de palavras compiladas a partir de transcrições de sessões de psicoterapias e entrevistas diagnósticas classificadas em marcadores verbais de emoção e abstração (dicionário de estilos narrativos). Estes são agrupados em quatro padrões clinicamente relevantes: Relaxamento (baixo tom emocional e abstração), Experiência (alto tom emocional e baixa abstração), Reflexão (alta abstração e baixo tom emocional) e Conexão (alto tom emocional e abstração). Estes padrões são representados graficamente por meio de uma combinação de escores-Z das frequências relativas para tom emocional e para tom abstração e permitem o acompanhamento de suas modulações ao longo do processo e em cada sessão. Para a identificação de um momento-chave, estes quatro padrões devem ocorrer na sequência: Relaxamento, Experiência, Reflexão, Conexão e Relaxamento (Mergenthaler, 2008).
- Instrumento para Avaliar Sessões Psicanalíticas (IASP, Knijnik et al., 2008). Avalia se sessões de psicoterapia (gravadas em áudio ou vídeo ou transcritas) podem ser consideradas aderidas à técnica psicanalítica. É necessário que o juiz avaliador possua amplo conhecimento a respeito da teoria e da técnica psicanalítica, além de ter experiência prática. O IASP é constituído por cinco itens, que incluem as seguintes dimensões: (A) natureza das intervenções, (B) neutralidade do terapeuta, (C) realização de interpretações, (D) uso da teoria para compreensão do material e (E) aspectos da relação paciente-terapeuta (sendo o somatório de E1 - clima da sessão e E2 - atitude do terapeuta). O ponto de corte sugerido para considerar uma sessão como psicanalítica é ≥13, sendo 25 a pontuação máxima da escala. Encontra-se em processo de validação no Brasil. Testes preliminares da versão final demonstraram boa confiabilidade com Alpha de Cronbach’s = 0,81 e PABAK = 0,831/p= 0,009, apresentando apenas um fator, com todos os itens tendo participação (Gastaud et al., 2012).
- Psychotherapy Process Q-Set (PQS; Jones, 2000). Utilizado para descrever, quantitativamente e em termos clinicamente significativos, o processo terapêutico de diferentes psicoterapias. O instrumento é do tipo Q-sort e transteórico. É constituído por manual explicativo e 100 cartões com itens, que podem ser classificados em três grupos: (1) atitudes, comportamentos ou experiências do paciente; (2) ações e atitudes do terapeuta; (3) interação paciente/terapeuta ou clima terapêutico. O instrumento foi adaptado para o português do Brasil por Serralta, Nunes e Eizirik (2007). Para sua utilização, os juízes necessitam treinamento e um estudo cuidadoso do manual. Após o exame do material da sessão terapêutica, os juízes devem ordenar os itens em nove pilhas, variando num continuum que vai do menos característico (categoria 1) ao mais característico (categoria 9). O número de itens em cada pilha é distribuído em conformidade com a curva normal, variando de cinco cartões nos extremos a 18 cartões na categoria do meio. Essa distribuição forçada faz com que os avaliadores tenham que buscar o melhor arranjo para descrever os fenômenos, levando em consideração a frequência, a intensidade e a importância de um item em relação aos demais. Diversos estudos demonstram que a versão original do PQS apresenta boa fidedignidade interavaliadores, validade de construto e validade discriminante (Jones, 2000), bem como na versão portuguesa do Brasil (Serralta, Nunes, & Eizirik, 2007).
- Working Alliance Inventory - Versão Observacional (WAI-O; Horvath, 1994). Avalia a aliança terapêutica em diferentes abordagens em psicoterapia. Na versão utilizada neste estudo (WAI-O), mede a aliança a partir da perspectiva de um observador. Consiste em um questionário com 36 questões divididas em três categorias: Objetivos (negociação e entendimento mútuo entre terapeuta e paciente acerca dos objetivos da terapia em termos de resultados); Tarefas (atividades específicas desenvolvidas pelo terapeuta e paciente para promover as mudanças); e Vínculo (ligações interpessoais entre paciente e terapeuta). As respostas variam em uma escala de sete pontos (sempre-nunca). A confiabilidade do instrumento original, baseada na homogeneidade (Alpha de Cronbach) entre os itens varia entre 0,84 e 0,93. As subescalas são correlacionadas entre si e a confiabilidade destas varia de 0,68 a 0,92 (Horvath, 1994). A versão em português foi desenvolvida por Fernanda Barcellos Serralta e Silvia Pereira da Cruz Benetti, em 2015. Estudos de validade desta versão estão em andamento.
Juízes
Três grupos de juízes voluntários fizeram parte do estudo, sendo que cada grupo avaliou as sessões por um instrumento. No primeiro grupo, 13 juízas avaliaram sessões por meio do IASP. Estas juízas possuíam no mínimo 10 anos de experiência clínica em psicoterapia psicanalítica e/ou em psicanálise. O segundo grupo foi formado por 12 juízes, psicoterapeutas especialistas em psicoterapia psicanalítica, com treinamento prévio na administração do PQS. O terceiro grupo, com 15 juízes, foi constituído por estudantes de graduação e mestrandos em psicologia, devidamente treinados para avaliação de sessões por meio do WAI-O. Tomou-se o cuidado para que os juízes fizessem parte de apenas um destes grupos, para evitar vieses de avaliação.
Procedimentos de coleta e análise de dados
A pesquisa seguiu procedimentos éticos (Comitê de Ética em Pesquisa, Parecer 772.465). Após o convite e aceitação da participação pela paciente e pela terapeuta, a coleta de dados foi realizada em uma clínica-escola. As sessões foram gravadas em áudio e supervisionadas semanalmente por um grupo de terapeutas, que incluía a primeira autora deste estudo. A cada sessão realizada, a terapeuta relatava, por escrito, o atendimento para ser utilizado na supervisão, também gravada em áudio. Todas as sessões foram transcritas literalmente.
As transcrições das sessões foram anexadas ao TCM para gerar os gráficos de ciclos de mudança do processo terapêutico como um todo. Paralelamente, as transcrições das sessões foram distribuídas aos juízes para avaliação por meio de cada instrumento, de forma que cada sessão fosse avaliada por dois juízes, para cada um dos instrumentos. O escore de cada item foi calculado com a média dos juízes. Na avaliação pelo IASP, quando uma sessão foi considerada psicanalítica por uma juíza, e não psicanalítica por outra, tal sessão foi enviada para uma terceira juíza. Isso foi realizado nas sessões de número 3 e 25. Nas codificações obtidas pelo PQS e pelo WAI-O foram realizadas análises estatísticas para verificação da concordância entre os avaliadores (índice de correlação intraclasse), sendo aceita a concordância entre as duplas ≥ 0.70.
Para a análise dos gráficos gerados pelo TCM, os ciclos de mudança nortearam a leitura das transcrições das sessões. A partir do gráfico gerado, voltou-se à transcrição da sessão, a fim de compreender a mudança demarcada por cada ciclo terapêutico, de forma a se identificar o conteúdo da conversação. Da mesma forma, os escores obtidos pelo IASP foram compreendidos à luz da leitura das transcrições das sessões para verificar a aderência ou não-aderência à técnica psicanalítica. Quando necessário, foram escutados os áudios das supervisões para compreender o que motivou a escolha de condução técnica da terapeuta.
Para obter um resumo quantitativo do processo terapêutico, foi calculada e ordenada a média dos itens do PQS nas sessões para identificar os itens mais e menos característicos do processo terapêutico como um todo. Os 10 itens mais característicos e os 10 itens menos característicos (indicados com a letra ‘r’) do processo foram selecionados para compor narrativas que descrevem o tratamento. Estas análises foram realizadas utilizando o software SPSS 21.0.
Os escores obtidos pelo WAI-O foram organizados em uma planilha, adequando-se a polaridade dos itens e posteriormente somados para verificar o escore total de aliança terapêutica em cada sessão. Após, os escores referentes a Objetivos, Tarefas e Vínculo foram analisados.
Para exame aprofundado do caso Maria, os áudios, as transcrições de todas as sessões e o diário de campo da terapeuta foram constantemente consultados para integrar os resultados obtidos por meio dos instrumentos. Este procedimento visou uma compreensão global do caso, com o objetivo de explicitar fatores associados à interrupção do tratamento, organizados em um esquema.
Resultados
Os principais resultados de cada instrumento serão apresentados a seguir.
- Therapeutic Cycles Model - TCM. O processo terapêutico de Maria gerado pelo software CM está apresentado na Figura 1. Esta ilustração é composta por três gráficos representativos dos padrões de linguagem da paciente (1º gráfico), proporção de verbalizações entre paciente e terapeuta (2º gráfico) e padrões de linguagem da dupla paciente e terapeuta (3º gráfico). A Figura 1 demonstra a presença de um ciclo terapêutico no início do tratamento de Maria, visível nos gráficos 1 e 3. A falta de outros ciclos de mudança no transcorrer do processo terapêutico pode estar relacionada à interrupção prematura do tratamento. Nos padrões de linguagem da paciente (1º gráfico), o ciclo terapêutico inclui as sessões de número 1 (Conexão), 2 (Conexão), 4 (Conexão) e 5 (Reflexão). Nos padrões de linguagem da dupla paciente e terapeuta (3º gráfico), o ciclo terapêutico é mais extenso e inclui as sessões de número 1 (Conexão), 2 (Conexão), 4 (Conexão), 5 (Reflexão), 7 (Reflexão) e 10 (Reflexão). Na análise desta diferença, destaca-se que a sessão 7, quando considerada apenas a partir dos padrões de linguagem da paciente, se apresenta como padrão Relaxamento e, quando considerada a partir da interação da dupla terapêutica, se apresenta como Reflexão. De acordo com as diretrizes do instrumento (Cassel et al., 2015; Mergenthaler, 2008), portanto, na sessão 7, a paciente (Relaxamento) esta falando sobre algo que não está manifestamente conectado aos seus sintomas ou temas centrais, isto é, pensamentos e abstrações se mostram presentes, mas sem expressão de emoções associadas. As intervenções da terapeuta (Reflexão) buscam reflexão sobre alguma experiência afetiva relevante. Os momentos de reflexão propostos pela terapeuta não se incorporam ao discurso da paciente suficientemente para assumir o padrão gráfico esperado. Isto sugere que as intervenções da terapeuta não contribuíram para efetivar momentos de mudança em Maria. A partir disto, para finalidade de integração dos resultados, será considerado o ciclo de mudança demarcado a partir dos padrões de linguagem exclusivos da paciente (sessões 1 a 5).
- Instrumento para Avaliar Sessões Psicanalíticas - IASP. A aderência à técnica psicanalítica por meio do IASP do caso Maria pode verificar que, dentre as 13 (treze) sessões realizadas, 10 (dez) são consideradas como aderidas à técnica por apresentarem escore acima do ponto de corte da escala, o que permite considerar o caso de abordagem psicanalítica. As sessões de número 1, 5 e 20 estão abaixo do ponto de corte, demonstrando que a terapeuta se utilizou de técnicas não características da abordagem psicanalítica.
O estudo aprofundado sobre a adesão à técnica no caso Maria (Campezatto, Serralta, & Habigzang, no prelo) verificou que o grupo de supervisão que acompanhava o caso apoiou a condução técnica da terapeuta nestas sessões devido aos riscos que a paciente apresentava. Na sessão 3, a paciente apresentou pensamentos de morte, e na sessão 19, condutas de risco, as quais ocasionaram intervenções de exploração, apoio e de instrução por parte da terapeuta.
- Psychotherapy Process Q-Set - PQS.
O PQS forneceu uma descrição quantitativa e em termos clinicamente significativos do processo terapêutico de Maria por meio da avaliação de juízes (Tabela 1). Segundo esta avaliação pode-se descrever o processo terapêutico em estudo da seguinte forma: A situação de vida atual de Maria era enfatizada nas sessões (Q69). Os temas abordados foram os relacionamentos interpessoais (Q63), autoimagem (Q35) e sintomas físicos ou saúde (Q16). A terapeuta era responsiva, efetivamente envolvida (Q9r), empática e sensível aos sentimentos de Maria (Q6). Comunicava-se de forma clara e coerente (Q46), frequentemente solicitando informação ou elaboração (Q31), com tato (Q77r). Não ocorriam silêncios durante a sessão (Q12r) e não existia um tom competitivo na relação terapêutica (39r). Maria trazia tema e material significativos (Q88), iniciando assuntos ativamente (Q15r). Falava sobre sentimentos de estar próxima ou de estar precisando de alguém (Q33). Não se mostrava controladora (Q87r). Sentia-se entendida pela terapeuta (14r), aceitava seus comentários e observações (Q42r), sem dificuldade para compreendê-los (Q5r). Destaca-se, no entanto, que Maria não estava comprometida com o trabalho terapêutico (Q73r).
Embora o descomprometimento com o processo terapêutico seja coerente com o desfecho sabido do tratamento de Maria, este item chama a atenção por se mostrar contraditório aos demais itens que descrevem o processo terapêutico. A necessidade de investigar a presença deste item levou ao exame das sessões individuais pelo PQS. Verificou-se que o item Q73r esteve presente como característico nas sessões de número 2 (M=1,0), 4 (M=1,5), 7 (M=1), 10 (M=1) e 25 (M=1). Nas demais sessões do caso Maria foi classificado como neutro (Médias entre 3,5 e 5,0); em nenhuma sessão foi avaliado como característico o comprometimento de Maria com o tratamento.
- Working Alliance Inventory (versão Observacional) - WAI-O.
Os resultados do WAI-O são referentes à aliança terapêutica em cada sessão do caso Maria avaliada por juízes, a partir das três categorias: Tarefas (M=4.59), Vínculo (M=4.94) e Objetivos do tratamento (M=4.45). Tais escores médios se apresentam acima do ponto médio (ou “Neutro”) da escala, levemente maiores do que o escore 4. Destaca-se que três sessões se apresentaram abaixo da linha de corte da escala (sessão 7, com M=3.86, sessão 10, com M=3.86 e sessão 25, com M=3.44), indicando rupturas da aliança terapêutica.
Considerando a análise dos escores das diferentes categorias por sessão, é possível observar que o escore médio da categoria ‘Vínculo’ se manteve elevado em todas as sessões, com exceção do escore limítrofe na sessão 19. A categoria ‘Tarefas’ apresentou escores abaixo da linha de corte nas sessões 7, 10 e 25, e escore limítrofe nas sessões 4 e 19. A categoria ‘Objetivos do tratamento’ apresentou escore abaixo da linha de corte nas sessões 7, 10, 19 e 25 e escore limítrofe nas sessões 1, 4. Este resultado demonstra que o vínculo entre a dupla terapêutica se manteve elevado, enquanto que as tarefas da sessão e o objetivo do tratamento apresentaram escores baixos, o que indica desacordo entre paciente e terapeuta nos objetivos do tratamento nestas sessões e sobre como trabalham na sessão para atingir tais objetivos.
Integração dos resultados dos instrumentos
A Figura 2 apresenta esquema com a integração entre os resultados obtidos nos instrumentos e os dados qualitativos oriundos da leitura das transcrições das sessões, do diário de campo da terapeuta e da escuta do áudio das supervisões das sessões. Nesta Figura, estão demarcados: Ciclo de mudança terapêutica nas sessões 1 a 5 (TCM - Figura 1); sessões 1, 5 e 19 não aderidas à técnica psicanalítica (IASP); Paciente não-comprometida com o processo terapêutico nas sessões 2, 4, 7, 10 e 25 (PQS - Tabela 1); e Rupturas da aliança terapêutica nas sessões 7, 10 e 25 (WAI-O). Acima do numero de cada sessão, foram assinaladas observações qualitativas do processo terapêutico.
Discussão
A apresentação dos dados por meio dos diferentes instrumentos indica que um conjunto de fatores estiveram envolvidos na interrupção do caso Maria, uma vez que havia indícios de rupturas no processo terapêutico que envolviam: falta de momentos de mudança ao longo do tratamento, aspectos da paciente (descomprometimento com a psicoterapia, faltas sistemáticas) e aliança terapêutica enfraquecida, especialmente no que diz respeito aos objetivos e tarefas do tratamento. Além disto, fatores de risco da paciente foram identificados pela terapeuta e ocasionaram a necessidade de momentos de não-aderência a técnica psicanalítica.
O comparecimento de Maria nas sessões foi inconstante desde o início do processo terapêutico. Poucas sessões foram consecutivas, seguindo o intervalo semanal contratado (apenas 1 e 2, 4 e 5, 12 a 15, 19 e 20). Isto merece considerações a respeito do contrato terapêutico estabelecido, ainda mais quando se considera que a indicação terapêutica inicial era de frequência de duas sessões semanais. Cabe ressaltar que muitas faltas são antecedidas por manifestações da paciente que sinalizavam falta de comprometimento com a terapia (Q73r, Tabela 1). Ainda que o IASP tenha indicado uso de intervenções compatíveis com o modelo psicanalítico na maior parte das sessões, os resultados do PQS indicaram que a terapeuta foi essencialmente empática. Embora a empatia seja essencial para o estabelecimento da relação terapêutica, chama atenção a ausência de interpretações dirigidas para as defesas e resistências (faltas e descomprometimento da paciente).
Price e Jones (1998) ponderam que alguns itens do PQS aparentemente focados no paciente e em sua experiência, após exame detalhado, também se referem a aspectos interacionais da dupla terapêutica. Pesquisas demonstram que o grau de aliança e o comprometimento da dupla são indicadores importantes para os resultados de um tratamento (Safran et al., 2009).
A paciente Maria apresentou características encontradas em outros pacientes desistentes de tratamento em psicoterapia psicanalítica (Jung et al., 2015): menor disposição para iniciar o tratamento e menor engajamento para exploração de seus problemas (PQS, item 73r), aliança terapêutica fraca (WAI-O), mais barreiras à psicoterapia (faltas) e menores níveis de insight. Os juízes avaliadores do PQS (Tabela 1) perceberam o descomprometimento de Maria como uma característica do processo terapêutico (Q73r). Neste sentido, pode-se dizer que a terapeuta não conseguiu convocar Maria a se comprometer com o tratamento e, como consequência, modificar o funcionamento que ocasionou sua busca por psicoterapia.
Indivíduos com TPB possuem dificuldades de manter relações estáveis e duradouras, que se manifestam na psicoterapia (Muran et al., 2009). Embora o tratamento tenha sido avaliado com escores limítrofes na escala de aliança terapêutica, os dados do PQS e do diário de campo demonstraram que a terapeuta estava motivada para o atendimento da paciente, mas mantinha-se constantemente preocupada com sua saúde e segurança. Níveis elevados de apego do tipo preocupação dos terapeutas estão associados a níveis baixos de aliança terapêutica (Dinger et al., 2009). O não-comparecimento de Maria a muitas sessões é possivelmente uma repetição dos padrões de seu funcionamento (Diagnóstico TPB). De fato, o sucesso de tratamento está ligado à elaboração de padrões repetitivos nas relações interpessoais, aumento na mentalização e internalização do processo terapêutico (Norcross, 2011), o que não foi observado suficientemente em Maria.
O TCM (Figura 1) demarcou um ciclo de mudança no momento inicial do tratamento, indicando-o como promissor. As sessões 1, 2 e 4 (Conexão) indicam acesso emocional com reflexão sobre temas conflituosos - instantes associados a insight e a momentos-chave de uma psicoterapia (Cassel et al., 2005). Estes momentos estão coerentes com a presença de adesão à técnica psicanalítica nas sessões 2 e 4, que se caracteriza por ser dirigida ao insight.
Na sequência, sessão 5, Maria mostrou-se fragilizada e com pensamentos autodestrutivos. Esta sessão foi representada pela Reflexão no TCM (Figura 1), demonstrando a presença de pensamentos e abstrações sem expressão de emoções correspondentes. A terapeuta mostrou-se não-aderida à técnica, pois buscou investigar os pensamentos da paciente e oferecer-lhe orientações e apoio, bem como retomar e firmar o contrato terapêutico, em coerência com o que havia sido discutido na supervisão do caso. Hoglend et al. (2011) sugere que a escolha na utilização de técnicas (como interpretações) pode depender ou ser ajustada em resposta ao nível de aliança percebido. Assinala-se que é justamente na sessão 5 que se encerra o ciclo terapêutico demarcado pelo TCM relativo às verbalizações da paciente (Figura 1). As evidências demonstram que na sessão 5, houve um importante marcador que concluiu o ciclo de mudança da paciente.
A aliança terapêutica foi avaliada como com desacordo entre paciente e terapeuta (tarefas e objetivos) nas sessões 7 e 10. Ainda no que diz respeito a essas sessões, os gráficos do TCM (Figura 1) apresentaram diferença entre os padrões de linguagem da paciente e os padrões de interação da dupla terapêutica. A sessão 7 referia-se a padrão Relaxamento da paciente e, quando somada as verbalizações da terapeuta, se apresentou como Reflexão. As intervenções da terapeuta (aderidas à técnica psicanalítica) buscaram reflexão sobre a experiência, mas não se incorporaram ao discurso da paciente suficientemente para modificar o gráfico. Isto sugere que as intervenções da terapeuta não foram suficientes para efetivar momentos de mudança em Maria e pode ser compreendido em associação aos baixos escores de aliança terapêutica neste período do tratamento. Tais aspectos corroboram a ideia de que efeitos positivos de técnicas específicas psicodinâmicas dependem de uma aliança terapêutica positiva (Crits-Christoph et al., 2006).
A pesquisa realizada por Webb et al. (2011) indicou que o acordo quanto às tarefas e quanto aos objetivos foi preditivo de resultados de tratamento. Este achado vai ao encontro dos dados apresentados no caso Maria, uma vez que o vínculo foi a categoria que se manteve elevada no WAI-O durante todo o tratamento. O desacordo entre tarefas da sessão e objetivos do tratamento observado nas sessões 7, 10, 19 e 25 demonstra que a presença de um bom vínculo estabelecido entre a dupla sem um acordo evidente em tarefas e objetivos não foi suficiente para engajar a paciente na psicoterapia e produzir os resultados esperados.
Muran et al. (2009) assinala que o reconhecimento de rupturas deve ser trabalhado para fortalecer a aliança e manter pacientes difíceis em tratamento. Após a falta de Maria à sessão 11 e o consequente reconhecimento da fragilidade da aliança terapêutica, a terapeuta enviou um SMS à Maria lembrando-lhe o horário da sessão. Este pode ser um fator de significativa importância para a retomada do tratamento. Embora não seja uma atitude típica como manejo na abordagem psicanalítica, provavelmente acionou em Maria os padrões de apego relativos a abandono/não-abandono da estrutura borderline. Atitudes da terapeuta como esta provavelmente auxiliaram com que Maria se mantivesse por alguns meses no processo de tratamento, uma vez que proporcionaram a reparação da ruptura da aliança terapêutica.
A retomada do tratamento a partir da sessão 12 se deu por comparecimento constante de Maria às sessões, por aderência à técnica psicanalítica, e por acordo entre a dupla quanto a tarefas, vínculo e objetivos. Após não comparecer as sessões 16, 17 e 18, Maria compareceu às sessões 19 e 20 após envio de SMS por parte da terapeuta, na qual esta afirmou que a aguardaria em seu horário. Na sessão 19, aderida à técnica, a aliança terapêutica foi avaliada como limítrofe. A sessão 20, não aderida à técnica psicanalítica em virtude de preocupação da terapeuta precedeu um momento de ruptura do tratamento. Isso remete aos achados da pesquisa de Hoglend et al. (2011), que encontraram impacto positivo da interpretação transferencial no contexto de uma aliança terapêutica fraca para pacientes com baixa qualidade de relacionamento objetal. A pesquisa desenvolvida pelos autores considerou útil trazer para a transferência a compreensão dos conflitos.
A sequência foi a evasão da paciente ao tratamento (faltas nas sessões 21 a 24), período que coincidiu com o estreitamento do relacionamento amoroso de Maria. Depois deste relacionamento ter chegado ao fim, Maria buscou a terapeuta. Novamente, apresentou-se ambivalente acerca dos objetivos da psicoterapia, propondo retomar o tratamento quinzenalmente, ou na frequência que seu trabalho permitisse. Terapeuta e paciente não chegaram a um acordo sobre o objetivo do tratamento, embora tenham mantido um vínculo elevado. Encerraram formalmente o processo.
Considerações finais
Este estudo buscou integrar fatores técnicos, variáveis de processo terapêutico e medidas de aliança terapêutica para compreender um processo terapêutico que culminou em interrupção prematura. Na análise dos resultados, verificou-se que a paciente se mostrava descomprometida com o processo terapêutico e havia indícios de rupturas da aliança terapêutica. Três sessões não foram aderidas à técnica psicanalítica. Os achados deste estudo de caso demonstraram a complexidade dos fatores envolvidos em uma psicoterapia, uma vez que os resultados encontrados nos diversos instrumentos utilizados refletiram um processo complexo e incapaz de ser captado na totalidade. Assim, reforça a necessidade de um olhar global acerca dos múltiplos aspectos envolvidos: fatores técnicos, aspectos do paciente, do terapeuta e da interação entre estes.
Identificam-se duas importantes limitações neste estudo. A primeira delas é não terem sido utilizados instrumentos ou escalas para avaliação de sintomas, características e funcionamento de personalidade, que poderiam oferecer um critério objetivo do progresso e resultado do tratamento investigado, solidificando a discussão processo-resultado de tratamento. Outra limitação foi a falta de medidas extraídas diretamente das participantes paciente e terapeuta, uma vez que todos os instrumentos utilizados foram analisados por juizes ou por meio de um software. Tais limitações se devem principalmente à falta de tradição de pesquisa na instituição parceira deste estudo, demonstrando a necessidade premente de que novos estudos venham a seguir para auxiliar na integração entre clínica e academia. Essa questão parece ser uma característica das instituições de formação em psicoterapia e psicanálise desta região do país. No entanto, para além das limitações aqui discutidas, a triangulação de diversos instrumentos e fontes de dados (áudios, transcrições, diário de campo e supervisão) e a análise de todo o processo de tratamento (sem a necessidade de escolha de algumas sessões) são os elementos que fortalecem o estudo.
Assim, os fatores envolvidos na interrupção do caso Maria podem, ainda que com cautela, ser usados como possíveis norteadores para outros casos de psicoterapia psicanalítica com pacientes com TPB. Os dados sugerem que terapeutas devem atentar para o comprometimento explicito e latente de seus pacientes com a própria mudança, ao trabalho com a aliança terapêutica e estabelecimento do contrato. Padrões repetitivos, como o apresentado no caso, ilustram como pacientes com esta patologia funcionam. Este conhecimento possibilita que terapeutas possam antecipar esses padrões e assinalá-los como importante ponto para o trabalho de mudança.