Introdução
São crescentes os estudos dos indicadores psicológicos positivos, em um movimento intitulado Psicologia Positiva, cujo foco é a investigação e promoção da felicidade, esperança, criatividade e demais características que impulsionam o desenvolvimento saudável (Seligman & Csikszentmihalyi, 2000). Nesse âmbito, desenvolvem-se pesquisas sobre o bem-estar ancoradas em diferentes correntes filosóficas, que são os paradigmas hedônico e eudaimônico, implicando em diferentes concepções de bem-estar.
O hedônico fundamenta o bem-estar subjetivo (BES) (Diener, 1984), no qual privilegia-se a percepção da felicidade, satisfação de vida (SV) e o balanço positivo entre emoções prazerosas e desprazeres. O BES é definido pelas avaliações individuais e subjetivas que incluem o julgamento cognitivo da SV e reações emocionais (afetos positivos - AP; e afetos negativos - AN) aos eventos de vida. Nessa perspectiva, o BES é abordado nas teorias bottom-up, que propõe a explicação do bem-estar a partir da influência de fatores externos, situações e variáveis sociodemográficas; e top-down, com ênfase nas variações subjetivas, como os traços de personalidade, na determinação do bem-estar. Assim, tem-se a influência dos fatores genéticos e das condições sociais sobre o bem-estar (Diener, Oishi, & Tay, 2018).
O eudaimônico fundamenta o bem-estar psicológico (Ryff, 1989), que evidenciou um conjunto de capacidades e recursos psicológicos que as pessoas dispõem para funcionar plenamente e realizar suas potencialidades. Concepção que teve origem em questões sobre os indicadores do BES, argumentando que as pesquisas anteriores negligenciaram o funcionamento psicológico positivo. Essa proposta elencou seis dimensões do bem-estar: autoaceitação, relações positivas com os outros, autonomia, domínio sobre o ambiente, propósito na vida e crescimento pessoal. Keyes (1998) também interessado no funcionamento exitoso das pessoas investigou a influência de indicadores sociais sobre as avaliações de bem-estar, concebendo o bem-estar social. Este aborda cinco dimensões, que são a integração social, contribuição social, coerência social, atualização social e aceitação social. Keyes (2002) propôs que as medidas de bem-estar emocional, bem-estar psicológico e bem-estar social compõem coletivamente a saúde mental. Encontram-se ainda estudos sobre o bem-estar pessoal (Cummins, 2010), definido pela avaliação subjetiva da qualidade de vida em sete domínios referentes à satisfação com diferentes âmbitos da vida, que são satisfação com a saúde, com o nível de vida, com as coisas conseguidas, com a segurança, com a segurança sobre o futuro, com as relações com outras pessoas e com a pertença à comunidade. Estudos nessa área destacam as relações nos ambientes imediatos, como as atividades familiares, com os colegas e a segurança da vizinhança mais consistentemente relacionadas aos níveis de bem-estar (Lee & Yoo, 2015).
As perspectivas (hedônica e eudaimônica) diferem na compreensão do bem-estar. Embora não se negue a complementariedade entre elas (Ryan & Decy, 2001), é importante demarcar as variações nas concepções do bem-estar. Por exemplo, o BES foi difundido como sinônimo de felicidade, entretanto verificou-se que pessoas que experienciam AN podem apresentar altos níveis de felicidade e nem todo AP conduz ao aumento da felicidade (Damásio, Zanon, & Koller, 2014). Casas (2015) comparou diferentes escalas psicométricas de bem-estar com crianças e adolescentes de 15 países (e.g., Espanha, Nepal, Israel), identificando diferenças claras na avaliação do bem-estar com variações entre as idades e os contextos socioculturais. Diante dessas evidências empíricas e de estudos teóricos que mencionam a dificuldade de definição do construto bem-estar (e.g., Pureza, Kuhn, Castro, & Lisboa, 2012; Scorsolini-Comin & Santos, 2010), torna-se relevante estudar o cenário crescente de pesquisas nesse campo. Tendências atuais que testam se a hedonia e eudaimonia representam um construto global do bem-estar ou duas dimensões relacionadas, tem identificado que uma avaliação global é obtida com mais precisão quando mensurada por instrumentos de auto-relato de bem-estar subjetivo e psicológico (Disabato et al., 2016).
Neste estudo buscou-se priorizar pesquisas de modelos metodológicos que contemplam o BES nas dimensões afetiva (AP e AN) e cognitiva (SV) em crianças e adolescentes, sobretudo porque se constata que a literatura tem priorizado a população de adultos e idosos, encontrando-se poucos estudos sobre o BES de crianças/adolescentes (Casas et al., 2013). Essa população tem sido descrita tradicionalmente em teorias centradas nas psicopatologias e problemas de conduta. Contudo, esse panorama tem sido desconstruído a partir da emergência de concepções contextualizadas do desenvolvimento e de estudos que cada vez mais valorizam os seus aspectos positivos (e.g., Baptista, Filho, & Cardoso, 2016; Lima & Morais, 2016a; 2016b).
Com base nas considerações anteriores - sobre a falta de consenso na definição do BES e da escassez de estudos sobre essa temática na população infanto-juvenil - este estudo tem como objetivo realizar uma revisão integrativa da literatura nacional e internacional, considerando o período de 2005 a 2016, sobre o bem-estar subjetivo de crianças e adolescentes. Para isso, optou-se pela utilização do conceito de BES, tal como definido por Diener (1984), critério também utilizado em um estudo de meta-análise sobre o BES e eventos de vida (Luhmann, Hofmann, Eid, & Lucas, 2012).
Método
Tipo de estudo. Trata-se de uma revisão integrativa que buscou sumarizar os estudos realizados sobre um determinado assunto que investiguem problemas idênticos ou similares e analisá-los de forma sistemática (Pompeu, Rossi, & Galvão, 2009). Assim, constroem-se conclusões e reflexões para pesquisas futuras, a partir dos resultados evidenciados em cada estudo. Para operacionalização, seguiram-se oito etapas (Costa & Zoltowski, 2014): 1) Delimitação da questão a ser pesquisada; 2) Escolha das fontes de dados; 3) Eleição das palavras-chave para a busca; 4) Busca e armazenamento dos resultados; 5) Seleção de artigos pelo resumo, de acordo com critérios de inclusão e exclusão; 6) Extração dos dados dos artigos selecionados; 7) Avaliação dos artigos; e 8) Síntese e interpretação dos dados. Foram seguidas ainda as diretrizes do PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analysis) (Liberati et al., 2009).
Bases indexadoras e unitermos utilizados. Realizou-se a busca de artigos em periódicos científicos indexados nas bases de dados: PubMed, PsycINFO, SciELO, PEPSIC, LILACS e IndexPsi. Empregaram-se os termos de busca: (“subjective well-being” OR “life satisfaction” OR “positive affect” OR “negative affect”) AND (“child OR adolescent”) em inglês, português e espanhol e seus entre termos. Haja vista a revisão integrativa sobre o BES (no período de 1970 e 2007) (Scorsolini-Comin & Santos, 2010) ter indicado uma concentração das publicações no ano de 2005, optou-se por recuperar publicações do período de 2005 a 2016, com o intuito de acessar estudos que apresentam o desdobramento científico do recente interesse no tema do BES.
Critérios de inclusão/exclusão. Foram incluídos os estudos que atenderam aos seguintes critérios: (1) publicados entre 2005 e 2016; (2) artigos em inglês, português ou espanhol; (3) disponibilizados integralmente nas bases de dados; (4) continham o termo “bem-estar subjetivo” no título e/ou palavras-chave; (5) apresentavam definição e medição do BES no conjunto de seus componentes (SV, AP e AN) (Diener, 1984); e (6) realizados com a população geral de crianças e/ou adolescentes. Foram excluídos trabalhos: (1) que não fossem artigos, como teses, dissertações, livros e capítulos de livros; (2) artigos anteriores ao ano 2005; (3) abordassem o BES de forma tangencial; (4) artigos de revisão da literatura; (5) realizados com população clínica e demais faixas etárias (e.g., adultos); (6) mensuraram o BES com medidas correspondentes a variáveis relacionadas (e.g., felicidade subjetiva); e (7) analisaram o BES limitado a uma de suas dimensões, seja SV ou AP e/ou AN.
Procedimentos. A busca inicial dos estudos foi realizada através dos unitermos e suas combinações nas seis bases selecionadas. Foram aplicados os critérios de inclusão e de exclusão nos trabalhos recuperados. Realizou-se a leitura na íntegra dos artigos recuperados que foram catalogados em uma planilha no Excel para posterior análise realizada com delineamento multimétodos de duas fases, possibilitando uma análise ampla do construto investigado. Na primeira etapa, de natureza quantitativa, buscou-se a descrição objetiva do perfil das publicações a partir de onze categorias (Pires, Nunes, & Nunes, 2015): idioma de publicação; região geográfica na qual a universidade do primeiro autor está localizada; ano de publicação; delineamento; método de análise; tipo de estudo; material de coleta de dados; instrumentos; quantidade de participantes; idade dos participantes (considerando crianças de zero aos onze anos e adolescentes de doze aos dezoito anos); e perfil dos participantes. Na segunda etapa, de natureza qualitativa, realizou-se a síntese e a interpretação dos resultados com a identificação das temáticas baseadas nas tendências proeminentes encontradas na compilação dos estudos selecionados. Para tanto, através da análise de conteúdo (Bardin, 1977/1979) seguiu-se as etapas: (a) a pré-análise; (b) a exploração do material; e, (c) o tratamento dos resultados e interpretação. Assim, em uma leitura flutuante inicial dos estudos selecionados foram identificadas hipóteses e indicadores de análise. Em seguida, os dados foram explorados e codificados a partir de unidades de registro baseados nos temas centrais emergentes relacionados ao BES. Seguiu-se com a verificação das semelhanças e diferenças entre as temáticas para posterior classificação e agrupamento dos dados em eixos temáticos. Após, os dados foram apresentados e discutidos com base na literatura específica sobre o BES.
Resultados e Discussão
A busca inicial resultou no total de 376 publicações. Após aplicação dos critérios de inclusão/exclusão a partir dos títulos, palavras-chave e resumos e posterior leitura completa dos artigos, foram selecionados 43 estudos, conforme mostra a Figura 1.
Perfil dos estudos encontrados e motivos de exclusão
Nesta seção descreve-se os motivos de exclusão dos estudos encontrados na busca inicial e que não foram incluídos nas análises quantitativa e qualitativa por não atenderem aos critérios de seleção. Desses estudos, 104 publicações tratavam do BES de outras populações, sendo de diferentes faixas etárias (e.g., adultos), pacientes clínicos ou com sintomatologia psicopatológica. Em adultos, o BES foi investigado em estudos longitudinais que o avaliaram como uma medida de ajustamento psicossocial e como indicador de saúde de mães de crianças com enfermidades ou desordens no desenvolvimento.
Em relação às medidas de avaliação, foram excluídos estudos (f = 48) que avaliaram construtos correlatos ao BES. Esses utilizaram escalas de felicidade, qualidade de vida, saúde percebida, personalidade, autoestima, autoeficácia, coping, suporte social, ansiedade e depressão. Observou-se um consenso sobre a diversidade de definições do BES e que este compõe-se das dimensões afetiva e cognitiva. Verificaram-se ainda estudos que não apresentaram uma discussão teórica sobre o BES, principalmente eram estudos na área da saúde que utilizaram a nomenclatura BES referindo-se a medidas de qualidade de vida e saúde percebida.
Quanto à perspectiva teórica, excluíram-se estudos que abordaram três diferentes concepções de bem-estar (f = 25). O mais frequente foi o bem-estar pessoal (f = 17), seguido do bem-estar psicológico (f = 4) e o bem-estar componente da saúde mental (f = 4). Esses possuem proximidade conceitual e comumente são utilizados como sinônimo de BES. Nota-se que a sobreposição de expressões do bem-estar pode estar relacionada às discussões teóricas e metodológicas decorrentes dos paradigmas hedônico e eudaimônico e das teorias bottom-up e top-down. Ademais, não foram incluídos aqueles que não apresentaram BES no título ou palavras-chave (f = 25), outros idiomas (f = 11), estudos teóricos (f = 4), erratas de estudos (f = 2), capítulos e review de livros (f = 12), dissertações e teses (f = 14), BES avaliado somente pelos afetos (f = 6) ou satisfação de vida (f = 21) e BES tratado de forma tangencial (f = 2).
Análise quantitativa dos estudos incluídos
Identificou-se um predomínio de publicações em inglês (f = 38). Em português foram incluídos três estudos e dois em espanhol. Os Estados Unidos destacaram-se com o maior número de publicações (f = 13), seguido do Brasil, Israel e China com cinco cada um, além de Sérvia com quatro publicações. Na sequência encontram-se a Turquia com três publicações e o México com duas publicações. Finlândia, Noruega, Suécia, Espanha, Malásia e Filipinas com uma publicação cada uma. Essas evidências denotam um desequilíbrio da produção científica, alertando que diferenças culturais precisam ser consideradas a fim de evitar difusões equivocadas de teorias e práticas provenientes de um contexto hegemônico para populações pouco representadas na literatura.
Observou-se que ao longo dos anos ocorreu um irregular crescimento no número de produções, com um aumento expressivo em 2015 (f = 9) e 2012 (f = 9), seguido de 2014 e 2013 com seis publicações em cada ano e 2011 com cinco publicações. Nos anos de 2016, 2009 e 2008 encontraram-se duas publicações em cada ano e em 2007 e 2005 uma publicação por ano. Não foram resgatadas publicações dos anos 2010 e 2006. O aumento das publicações sobre o BES nos contextos nacional e internacional está consoante com estudos prévios na área da Psicologia Positiva, que revelam uma tendência no estudo da experiência subjetiva e características pessoais positivas (Reppold, Gurgel, & Schiavon, 2015).
Verificou-se um predomínio de estudos transversais (f = 35) e quantitativos (f = 39). Apenas três estudos eram qualitativos e um estudo de métodos mistos. Os estudos longitudinais avaliaram o BES, principalmente, como indicador de resultados desenvolvimentais satisfatórios. Acentua-se a necessidade de pesquisas longitudinais elucidativas acerca das possibilidades de estabilidade ou variação do BES ao longo do tempo.
Quanto ao tipo de estudo, a maioria identificou correlações (f = 34) entre o BES e aspectos negativos (e.g., violência doméstica), aspectos positivos (e.g., coping) e variáveis sociodemográficas (e.g., gênero). Nos estudos de correlação prevaleceu a investigação dos aspectos positivos, refletindo a variedade de construtos e instrumentos desenvolvidos sobre as características positivas, bem como o crescente interesse no funcionamento exitoso e crescimento pessoal. Verificaram-se, ainda, estudos que realizaram análises de mediação (f = 3) e moderação (f = 3). Além de estudos que buscaram comparações (f = 3), validação (f = 2) e construção de instrumentos (f = 1).
Foram mais frequentes os estudos que utilizaram material de coleta de dados em formato lápis e papel (f = 39), seguidos da entrevista (f = 2), grupo focal (f = 1) e misto (f = 1). Quanto aos instrumentos, teve-se uma variedade de 22 deles (ver tabela 1). Tal diversidade revela a preocupação no uso de instrumentos que consideram as especificidades de faixa etária e cultura da população investigada. Por exemplo, instrumentos adaptados para população sérvia (Positive and Negative Affect Schedule-X - SIABPANAS; Novovi & Mihi, 2008) e adolescente (Escala de Afetos Positivos e Negativos para Adolescentes - EAPNA; Segabinazi et al., 2012). Conforme mostra a tabela 1, a maior parte dos instrumentos foi desenvolvida para mensuração da satisfação de vida. Esse achado relaciona-se com a complexidade do conceito de satisfação de vida que varia na avaliação tanto da vida global quanto de dimensões específicas (família, escola, etc.). Contudo, dezessete publicações utilizaram escalas construídas em estudos com a população adulta sem reportar adaptações para o contexto infanto-juvenil, evidenciando que nesses estudos a mensuração do BES de crianças/adolescentes pode ter sido realizada na perspectiva dos adultos. Tabela 1
O número de participantes variou entre 19 e 1476. Mais de 70% dos estudos tiveram de 1 a 500 participantes e conforme o esperado encontrou-se a menor composição de amostra nos estudos qualitativos. A faixa etária predominante foi de adolescentes (f = 34), seguido de população mista (f = 5) e crianças (f = 4). A maioria envolveu alunos de escolas urbanas públicas e privadas (f = 40) e apenas três estudos foram realizados com população não-normativa (atendidos e acolhidos em instituições de assistência social ou em situação de rua). Esses resultados exibem o cenário das publicações acerca do BES, que se revela no baixo número de estudos com crianças e população não-normativa. Nota-se que esses segmentos populacionais podem exigir esforço teórico e metodológico devido às suas especificidades. Porém, pesquisas que se propõem ao desenvolvimento positivo e promoção de bem-estar devem atentar-se à diversidade de contextos e etapas do ciclo vital.
Análise qualitativa dos estudos incluídos
As publicações analisadas qualitativamente foram classificadas em seis eixos temáticos (ver Tabela 2), nos quais se destacaram os principais temas e resultados abordados nos estudos, contribuindo com dicussões relacionadas à avaliação psicológica, aos determinantes do BES, além da relação deste com os demais características psicológicas positivas.
1. Bem-estar subjetivo em diferentes contextos (escola, família e comunidade)
Este estudo concebe o BES como um construto multidimensional, o qual é influenciado por aspectos contextuais, sociais e culturais. Na população de crianças/adolescentes, destacaram-se a escola, a família e a comunidade como principais ambientes ecológicos relacionados ao BES.
No contexto escolar, o BES favoreceu resultados acadêmicos positivos devido à influência da SV (e.g., Heffner & Antaramian, 2015). Alunos com currículo escolar acrescido de atividades de esporte e artes estiveram mais satisfeitos com suas vidas (Orkibi, Ronen, & Assoulin, 2014). O apoio social dos professores e pares (e.g., Tian, Zhao, & Huebner, 2015) e o envolvimento dos pais (Yap & Baharudin, 2015) tiveram efeitos benéficos sobre a autoeficácia dos adolescentes e estas, por sua vez, facilitaram experiências de BES. Além disso, as forças de caráter temperança e transcendência (Shoshani & Slone, 2013), propósito de vida e objetivos direcionados (Erylmaz, 2012) foram indicadores de BES na escola.
Em relação ao contexto familiar, adolescentes com satisfação na família vivenciam, em nível global, mais SV e AP e menos AN (Bernal, Arocena, & Ceballos, 2011). Destaca-se que a relação entre eventos adversos e afetos não é consensual. Alguns estudos apontaram mais AN e menos AP na exposição à violência doméstica (Silva & Dell’Aglio, 2016), enquanto outros não comprovaram essa influência, destacando que o autocontrole pode favorecer níveis mais altos de AP (Ronen, Hamama, & Rosenbaum, 2014). É importante frisar a investigação de aspectos interpessoais e contextuais em relação ao BES, visto que adolescentes reportaram o conflito familiar, morte de um membro da família, entre outras adversidades relacionadas a emoções desagradáveis (Joronen & Åstedt-Kurki, 2005).
Os estudos são concensuais quanto a relação entre o BES e os ambientes ecológicos, indicando que o bem-estar se relaciona a experiências satisfatórias na família, escola e comunidade e, longitudinalmente, no trabalho (Newland et al., 2014). Schotanus-Dijkstra et al (2016) identificou que níveis mais altos de BES foram influenciados por melhores condições de vida e suporte social na família, amigos e vizinhança. Ressalta-se que, além das relações interpessoais satisfatórias, o ambiente físico e acesso a atividades de lazer são indicadores de BES, tanto numa perspectiva global quanto nos domínios específicos. Fala-se, portanto, em uma abordagem bioecológica, na qual parece existir uma relação de interdependência entre SV global e satisfação na família e demais contextos significativos ao desenvolvimento.
2. Bem-estar subjetivo e outras características psicológicas positivas
A literatura tem evidenciado interações entre o BES e outras variáveis psicológicas positivas (e.g., autoestima, esperança, otimismo) (Borsa, Damásio, & Koller, 2016). Na população de crianças/adolescentes, destacou-se o coping, o otimismo e a criatividade. Um estudo sobre BES e coping mostrou que em adolescentes com alto índice de BES, o estilo de enfrentamento mais utilizado foi aceitação da responsabilidade e o menos frequente foi evitação (Verdugo-Lucero et al., 2013). Assim, ressalta-se que a escolha dos estilos de enfrentamento se faz importante para compreender o impacto sobre o BES, no qual os jovens podem experienciar alto BES quando orientados e encorajados ao uso do coping positivo e eficiente (Zhou, Wu, & Lin, 2012).
Quanto ao otimismo e BES, observou-se a SV dos filhos relacionada ao otimismo das mães (Bandeira, Natividade, & Giacomoni, 2015). Essas evidências enriquecem as discussões sobre os atributos positivos em uma visão transgeracional. Embora não se firme conclusões acerca de uma transmissão de pais para filhos do BES e otimismo, pontua-se a possibilidade das mães otimistas realizarem práticas parentais positivas que implicam em experiências agradáveis para os filhos, favorecendo o BES destes.
Sobre a curiosidade, verificaram-se relações positivas entre curiosidade, AP e SV (e.g., Jovanovic & Brdaric, 2012). A curiosidade não se evidencie que contribui diretamente para resultados emocionais positivos, pois níveis elevados de curiosidade podem promover BES, mas baixos níveis de curiosidade não implicam em uma maior experiência de AN. Isto pode ocorrer devido à baixa curiosidade evitar comportamentos de risco. Os resultados que apontam a curiosidade como preditora de bem-estar positivo corroboram a perspectiva de que os AP e AN são componentes independentes.
Na relação entre gratidão e BES, Froh, Yurkewicz e Kashdan, (2009) referem-se a uma forte relação entre gratidão e satisfação na escola, sugerindo que a experiência de gratidão parece ser uma intervenção eficaz para promoção de BES. Investigações futuras poderiam abordar resultados específicos relacionados ao BES, gratidão e desempenho acadêmico (e.g., melhoria na nota, aumento da presença na escola e desenvolvimento e manutenção de relacionamentos positivos com pares).
Assim, aponta-se para o progresso dos estudos sobre o BES e outras características psicológicas positivas. Na compreensão de diferentes correlatos positivos, se pode progredir na proposição de estratégias eficazes para elevar os níveis de bem-estar da população. Por exemplo, com a identificação da influência do objetivos pessoais no BES, é possível delinear intervenções de promoção do bem-estar a partir do direcionamento, desenvolvimento e potencialização das metas e objetivos pessoais (Steca et al., 2016).
3. Bem-estar subjetivo e diferenças entre gêneros e culturas
Morgan et al. (2011) identificaram uma reduzida influência da capacidade preditiva do gênero (entre 4% e 6%) nos níveis de AN. Entretanto, as discussões sobre a relação entre o BES e gênero não são consensuais, de modo a se afirmar a importância de considerar as diferenças de gênero nos estudos do BES. Por exemplo, Vera et al. (2012) encontrou que a satisfação na escola previu SV nos meninos, enquanto que para as meninas, a satisfação na família previu SV. Essas diferenças podem estar relacionadas aos estereótipos de gênero, em que os meninos são estimulados à inserção em espaços extrafamiliares e as meninas a permanecerem no espaço doméstico.
Quanto às diferenças culturais em minorias culturais, os estudos (e.g., Vera et al., 2011) propõem uma abordagem bioecológica na compreensão do BES, avaliando aspectos individuais e contextuais. Destacou-se a importância de programas preventivos que buscam promover o BES. Para essas ações foram aconselhadas intervenções que articulem comunicação, relacionamentos e coping, visando o fortalecimento da coesão familiar e suporte escolar. Tais estratégias podem ter a função de proteção para dificuldades advindas da experiência de viver em condições culturais diferentes, protegendo-os dos possíveis efeitos negativos dos estressores e da discriminação. Esses resultados mostram a relevância de pesquisas realizadas com populações diversas, visto que o conhecimento dos indicadores de BES em diferentes populações, considerando suas singularidades, pode subsidiar avanços em programas direcionados à promoção de capacidades e habilidades pessoais e sociais, com consequente impacto positivo sobre o BES.
4. Bem-estar subjetivo e vulnerabilidade social
Poucos estudos foram encontrados sobre o BES de crianças/adoelscentes em vulnerabilidade social. Alguns autores analisaram o BES de jovens inseridos em ambientes ameaçados pela guerra (e.g., Weber, Ruch, Littman-Ovadia, Lavy, & Gai, 2013), indicando os recursos pessoais e sociais como fatores influentes para manutenção do BES. O medo da guerra afetou negativamente o BES, enquanto o apoio social promoveu BES. Em estudos com jovens em instituições socioassistenciais, esses adolescentes relataram mais AN do que os que viviam com suas famílias; entretanto, a amostra não diferiu quanto ao AP e SV (Poletto & Koller, 2011). Hamama e Arazi (2012) indicaram a influência negativa no BES de jovens membros de famílias com baixa coesão, que por sua vez precipitou comportamentos agressivos. Resultados que foram confirmados em estudos posteriores que apontaram crianças/adolescentes em situação de rua com vivência de mais eventos estressores e piores indicadores de ajustamento, com exceção do AP que não diferiu dos que vivem com suas famílias (Morais, Koller, e Raffaelli, 2012). Contudo, é importante considerar o impacto das situações de vulnerabilidade na saúde e bem-estar das crianças/adolescentes. Zappe e Dell’Aglio (2016) verificaram que adolescentes acolhidos institucionalmente vivenciam mais violência intrafamiliar, apresentam autoestima mais baixa e mais comportamento de risco do que os que vivem com suas famílias.
É notório que as adversidades não impedem a experiência de BES, bem como a promoção de um ambiente familiar coeso propicia avaliações positivas de bem-estar. Acrescenta-se que no contexto de institucionalização, os profissionais e pares são pessoas significativas com as quais os jovens estabelecem vínculos promotores de experiências agradáveis (Lima & Morais, 2016b). Entende-se a família em uma perspectiva ampliada que ultrapassa os vínculos consanguíneos e se sustenta na qualidade e significado dos laços. Assim, sugere-se o fortalecimento das relações positivas da rede de apoio, seja a família, a instituição, entre outros ambientes expressivos na vida das crianças/adolescentes.
5. Indicadores e medidas de avaliação
A identificação de indicadores e medidas de avaliação tem sido um interesse recorrente em pesquisas com crianças/adolescentes na área do bem-estar, visando fomentar práticas adequadas que atuem na promoção da qualidade de vida. Navarro et al. (2015) buscou compreender o conceito de BES e fatores influentes na perspectiva das crianças/adolescentes, considerando aspectos que favorecem ou impedem a experiência de bem-estar. Estar saudável e ter experiências satisfatórias na família, amigos e escola são importantes indicadores de BES. Embora seja necessário considerar diferenças entre idade, gênero e especificidades socioculturais. Por exemplo, indaga-se quais indicadores sobressairiam em populações não-normativas? Quais relações estabelecidas com pessoas e ambientes da rede de apoio influenciariam o BES dessa população? A escola seria referida por crianças/adolescentes que não estão inseridos nesse contexto? Outros estudos detiveram-se em aperfeiçoar instrumentos de BES de adolescentes no contexto escolar (Tian, Wang, & Huebner, 2015) e para especificidades da população brasileira (Bedin & Sarriera, 2014).
Essas questões exibem a complexidade que envolve as avaliações do BES. Considerando a vida como um todo e seus domínios específicos, além de diferenças entre culturas que exigem validações transculturais, a literatura apresentada revela a expansão da avaliação psicológica nesse campo. Embora se verifique uma lacuna no que tange a outros microssistemas importantes na vida de crianças/adolescentes que vivem em instituições ou nas ruas, por exemplo. Aponta-se a necessidade de uma maior contextualização na investigação de indicadores e construção e validação de instrumentos de BES, visando alcançar outras redes de relações e ambientes significativos ao desenvolvimento de crianças e adolescentes.
6. Bem-estar subjetivo e aspectos individuais
Este eixo trata-se de uma área em expansão, principalmente no que se refere às investigações acerca da relação entre os fatores de personalidade e BES (Noronha, Martins, Campos, & Mansão, 2015). No estudo sobre temperamento (e.g., busca por novidades), caráter (e.g., autodirecionamento) e eventos de vida em relação ao BES, verificou-se que adolescentes com alto BES recordam mais de eventos positivos do que negativos, indicando que eles têm predisposição para a positividade. Indicou-se ainda que intervenções focadas na promoção do BES devam facilitar experiências motivadoras de autoaceitação, autoestima, sensação de propósito e valor, sentimento de realização e relações interpessoais satisfatórias (e.g., Garcia, 2014). Ressalta-se a ênfase na relação do BES com aspectos individuais sem negligenciar a influência dos fatores comportamentais (temperamento) e contextuais (eventos de vida). Esse cenário corrobora as pesquisas que indicam uma abordagem interacionista (entre determinantes internos e externos) para uma compreensão holística do BES (Woyciekoski, Natividade, & Hutz, 2014).
Considerações Finais
É identificada a prevalência das publicações internacionais, empíricas e transversais de natureza quantitativa, realizadas com adolescentes, alunos de escolas regulares. Mesmo utilizando na combinação de termos de busca os descritores criança e adolescente, um quartil das publicações tratava do BES de adultos (as quais foram excluídas no processo de seleção dos estudos), verificando-se pouca representatividade da população de crianças, sobretudo oriundas de contextos não-normativos de desenvolvimento.
Observou-se uma sobreposição de termos de bem-estar, que mesmo tendo diferentes concepções, utilizaram o BES como sinônimo. Para elucidar as especificidades dos conceitos investigados, revela-se a necessidade de posicionamento dos autores acerca dos paradigmas que fundamentam as investigações, visto que a depender do aporte teórico, as indagações e explicações apontadas para os fenômenos pesquisados são diferentes. Por exemplo, o hedônico considera as emoções componentes do bem-estar, enquanto para o eudaimônico, as emoções são produtos das condições psicológicas (Ryan & Deci, 2001). Essas concepções são complementares e contribuem para uma visão complexa e holística do bem-estar. Ainda assim, ao centrar interesses em diferentes dimensões do bem-estar, cabe uma demarcação teórica, com o intuito de evitar conclusões indevidas na compreensão de evidências científicas.
Ampliam-se as considerações acima para o campo metodológico, uma vez que se encontrou um uso frequente de medidas de avaliação que abordam outras características psicológicas positivas ou mesmo o uso de humores negativos (ansiedade e depressão) para avaliação do BES. Interseções teóricas quanto ao funcionamento positivo das pessoas e para aqueles com as quais se relacionam podem ter contribuído para essa diversidade de composições metodológicas, além dos equívocos - por exemplo, mensurar BES com escore de depressão. Nota-se a necessidade de refinamento metodológico, com propósito de congruência entre teoria e método para construção adequada da ciência do BES de crianças e adolescentes.
Mesmo que o interesse seja recente, identificou-se que o avanço científico no campo do BES tem evidenciado uma combinação de estratégias para promoção do bem-estar, como participar de atividades religiosas, satisfação de necessidades básicas e de competência, relação com o outro e autonomia, em especial, para aquelas inseridas na escola. As evidências dos estudos ressaltam que a análise da relação entre o BES e demais variáveis positivas, bem como a investigação simultânea dos AP, AN e SV colaboram para identificação de fatores que contribuem para um desenvolvimento saudável. Assim, nota-se um modelo bioecológico do bem-estar, no qual são evidenciadas as relações com a família, os pares e os profissionais, bem como a promoção das características individuais (e.g., otimismo) para o BES de crianças/adoelscentes. No entanto, se faz necessária o investimento de mais pesquisas nessa área, visto a existência de muitos estudos que avaliam o BES em apenas um de seus componentes e resultados discrepantes, tal como a relação entre curiosidade e BES.
Destaca-se a lacuna quanto à população em vulnerabilidade social. Um número reduzido na literatura averiguou as estratégias de enfrentamento e superação das dificuldades desses jovens. Somando-se a estas, salienta-se a busca pela investigação da corriqueira experiência de sentir-se feliz e satisfeito com a vida. Delineamentos longitudinais podem contribuir para o conhecimento dos desdobramentos do BES, verificando suas implicações positivas para o desenvolvimento diante de estressores e riscos. Por fim, indica-se que a criação e avaliação de intervenções com ênfase nas características psicológicas positivas em diferentes contextos (incluindo a família, instituições, entre outros ambientes significativos às crianças/adoelscentes) constitui um campo fértil no que concerne ao desenvolvimento em contextos atípicos, merecendo, portanto, atenção em pesquisas futuras.
O presente artigo contou com apoio financeiro do CNPq nº 308659/2015; FUNCAP nº 15/2013; CAPES n º 19/2016.