Introdução
O artigo analisa uma pesquisa-intervenção realizada com integrantes de um Grupo de Apoio à Adoção na cidade de Canoas, Rio Grande do Sul, Brasil. Para isso, utiliza o conceito de grupo-dispositivo na compreensão dos percursos de criação das condições grupais, enfatizando os movimentos singulares que são produzidos nos encontros entre os integrantes do grupo. Através do conceito, a experiência de grupo deixa de ser compreendida enquanto um conjunto de pessoas reunidas em um mesmo local, com objetivo único, para ser interpretada como espaço potente para a produção de significados, que cada um constrói sobre os outros, assim como, na problematização de questões historicamente instituídas envolvendo a subjetividade grupal (Barros, 2007).
As práticas dos Grupos de Apoio à Adoção envolvem, desde a acolhida de pessoas interessadas em ingressar com o pedido de adoção, até os pais e mães que já estão sob sua guarda os filhos adotivos. Os Grupos também atuam como dispostivos na ressignificação de conflitos e emoções que emergem no período de espera e após a chegada dos filhos. Desse modo, estimulam processos psiquicos, afetivos, sociais e políticos, produzindo novas subjetividades (Hur & Viana, 2016). Ao mesmo tempo, possibilitam vivências com pares que compartilham semelhanças, o que resulta em uma identificação de papéis e também a desmistificação de conteúdos pré-concebidos. (Sequeira & Stella, 2014).
Na espera pela chegada do filho a participação em grupos pode, também, sustentar a manutenção do projeto adotivo e despertar questionamentos quanto a modificação do perfil idealizado da criança desejada, tornando mais próximo do perfil real de uma criança acolhida (Levy, Diuana & Pinho, 2009). Nos casos de modificação do perfil inical desejado, há uma reflexão acerca do projeto adotivo dos pretendentes, incluindo sua auto-análise sobre a capacidade de desenvolver vínculos afetivos com uma criança maior, lidar com o preconceito ligado a crença de que crianças maiores serão ‘mais problemáticas’, refletir sobre a trajetória de vida já percorrida pela criança/adolescente e a relação com possíveis problemas futuros (Mello, Luz & Esteves, 2016).
Dentre os elementos que envolvem a adoção, compreender o grupo enquanto dispositivo para se trabalhar com as subjetividades envolvidas pode facilitar o processo de sensibilização do perfil dos predententes à adoção e se faz relevante para ampliar os conhecimentos acerca de outras possibilidades de adoção. Tal contribuição do conceito de grupo-dispositivo auxilia no processo de adoções tardias, atualmente ainda consideradas difíceis, aumentando as chances de crianças e adolescentes serem acolhidas e se desenvolverem em um ambiente familiar protetor.
No que diz respeito ao conceito de grupo-dispositivo, este é amplo e fala de um conjunto complexo e multinear em que Deleuze (1988), a partir de uma leitura de Foucault, apresenta o dispositivo como de início um novelo, composto por linhas de visibilidade e de enunciação. Nessa perspectiva, Barros (2007) reflete que o grupo-dispositivo é conectado em processualidades e não em unidades, bem como é descentrado do seu lugar de objeto de conhecimento, sendo assim, tomado por um emaranhado de linhas que no grupo se cruzam pelas histórias que nele se compõem.
Diante disso, este artigo analisa de que modo o conceito de grupo-dispositivo possibilita desnaturalizar significados instituídos no processo de adoção, produzindo outras subjetividades nos envolvidos. A adoção ainda está muito relacionada à ideia do modelo biológico, em que os pretendentes definem perfis específicos, por lógicas normatizantes, e, nisso, bebês, crianças e adolescentes, que não se encaixam nessas normas, seguem por muito tempo aguardando uma família adotiva. Assim, compreender como um grupo de apoio à adoção pode servir de dispositivo para sensibilização e ressignificação dos sentidos do adotar, se torna central para as práticas da psicologia nesse campo.
Método
Tipo de Investigação
O artigo trata do relato de uma pesquisa-intervenção de cunho qualitativo, de metodologia participativa, em que pesquisador e pesquisados são coautores do processo de intervenção e transformação social (Aguiar & Rocha, 2007). A partir dela, buscou-se compreender de que modo o conceito de grupo-dispositivo possibilita a construção de novos significados sobre o adotar, produzindo ressignificações subjetivas nos participantes.
Participantes
Participaram da pesquisa dezoito integrantes do Grupo de Apoio à Adoção - “ELO, conversando sobre a adoção”, vinculado a Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (AGAAD). Os participantes do grupo estavam em diferentes fases do projeto adotivo: 1) na etapa da habilitação processual; 2) aguardando serem chamados para finalizar o processo e receber a guarda do/a filho/a; 2) em período de adaptação com a criança/adolescente.
Procedimentos para coleta
Para coleta dos dados os pesquisadores se inseriram em um grupo de adoção, tornando-se facilitadores e coordenadores do grupo. Os encontros do grupo tiveram duração de três meses, com um encontro por mês, de duração de uma hora e trinta minutos e uma média de vinte participantes por encontro. A sistemática do grupo procedeu por discussões que tiveram como pergunta dispositivo a seguinte questão: como vocês entendem a adoção tardia e sua relação com a sociedade? Os diálogos foram gravados em voz e houveram registros em diário de campo.
Procedimentos para análise de dados
Os dados foram transcritos, divididos por temas e submetidos à Análise de Discurso, sob a perspectiva foucaultiana (Foucault, 2002), por leituras contínuas que estabeleceram temas recorrentes, metáforas específicas e palavras com significados particulares, conforme Tabela 1. Articulado ao conceito de grupo-dispositivo, a Análise de Discurso integra questões subjetivas a aspectos sócio históricos que se explicitam nas diferentes formas de discurso (linguagem oral, escrita, visual, instituições, políticas, legislações, dentre outros formas de expressão humana) (Fischer, 2012). Assim, para a discussão dos dados, utilizou-se referenciais teóricos da Esquizoanálise, como Gilles Deleuze e Félix Guattari, e autores brasileiros como Aguiar e Rocha (2007) e Hur e Viana (2016). Tal referencial, possibilita considerar os significados acerca da adoção enquanto processos subjetivos de um determinado contexto sócio histórico, que explicita enunciados instituídos e discursos historicamente naturalizados.
Considerações éticas
A realização do estudo que sustenta a construção deste artigo respeitou as diretrizes e normas da Resolução 466, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde. Após cadastro na Plataforma Brasil, o mesmo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) correspondente ao Centro Universitário, para apreciação e avaliação, o qual obteve aprovação, conforme processo nº 71001317.1.0000.5309. Foi explicado aos participantes os objetivos do estudo, seus riscos e benefícios, bem como foi lido o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE.
Resultados e Discussões
Os dados da pesquisa foram organizados em quatro temáticas, conforme a recorrência dos discursos no grupo, como apresentado na Tabela 1.
Essas temáticas emergiram nas diferentes formas de discurso, ao longo do processo adotivo e na relação com o grupo-dispositivo, passando por processos de ressignificação ao longo das vivências. A seguir, apresentam-se as especificidades de cada uma delas, contrapondo ao referencial teórico da área.
Perfil
A temática perfil esteve presente nos discursos dos participantes a partir de diferentes questões, sendo uma delas a obrigatoriedade da definição do mesmo, como é possível observar na seguinte fala: “quando a gente começou a pensar na questão do perfil, preencher aquele papel que a gente até falou aqui outra vez no grupo, aquele papel horroroso, parece que está escolhendo algo para comprar (P5)”. A obrigatoriedade desta definição precoce de um perfil, a ser incluído no cadastro de pretendentes do Conselho Nacional de Justiça, com uma necessidade de especificação de características detalhadas, muitas vezes resulta em ansiedades e fantasias acerca do processo (Reppold et al., 2005).
Para além dessas ansiedades e fantasias, inerentes a um grupo-dispositivo, a lógica do consumo apresenta-se no discurso atrelada a adoção, quando a participante do grupo diz: “parece que está escolhendo algo para comprar”. Sabe-se que, historicamente, a adoção é um modo de constituição familiar à margem da filiação biológica e, nos dias de hoje, se tem um sistema que regula e normaliza juridicamente as adoções. Quando existe a possibilidade de escolha do perfil, em uma lógica de consumo, ocorre uma objetificação da criança/adolescente, em que é posto de lado o fator humano, afetivo e social, obedecendo uma lógica estéril e meramente burocrática. Cabe destacar que o grupo-dispositivo possibilita problematizar os modos de constituição das instituições, seus discursos (Barros, 2007) que, nesse caso, se faz presente pelo questionamento da norma imposta no processo de adoção que é colocada em evidência. Assim, a partir das dúvidas sobre o ordenamento jurídico em torno do perfil, torna-se possível ao grupo expressar o efeito subjetivo que o instituído impõe por via de sua cristalização.
Em outro momento do discurso, o enunciado expressado diz respeito a definição de um perfil entendido como adoção tardia: “quando a gente começou a conversar sobre adoção a gente já tinha um perfil já de 0 a 5 anos, porque tanto eu quanto ele não nos víamos com um bebê. (P8)”. Um estudo realizado especificamente com adotantes de crianças maiores, observou as percepções das mães e dos pais frente ao projeto adotivo e constatou que a motivação destes estava relacionada ao puro altruísmo e ao desejo de se realizar enquanto mãe/pai, bem como a praticidade e desejo de companhia (Dias, Silva & Fonseca, 2008). O grupo-dispositivo, que tensiona territórios fixados (Barros, 2007), é o exemplo do recorte acima, em que os participantes trazem um relato, que rompe com a lógica normalizante do desejo pelo filho bebê, e são ouvidos pelos demais, assim permitindo-os pensar em diferentes possibilidades.
Participantes que já tiveram a experiência de contato direto com crianças acolhidas demonstram ter uma concepção mais ampliada sobre o perfil desejado para adoção (Giacomozzi, Nicoletti & Godinho, 2015). Isto nos leva a refletir acerca da possibilidade de intervenções que aproximem os adotantes à realidade das crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional e já desvinculados de suas famílias de origem. O discurso a seguir é um exemplo: “nosso primeiro perfil era de 0 a 3 e depois que a gente teve contato com as crianças do abrigo paramos para pensar porque não ampliar nosso perfil para uma criança maior, então fomos no fórum e colocamos para até oito anos (P4).” Tal contato, quando bem conduzido, pode oportunizar uma aproximação do perfil desejado para o perfil real de criança acolhida, desmistificar estereótipos, romper com o modelo de filiação predominante.
Adaptação
A adaptação é uma fase prevista na legislação, em que ocorre o acompanhamento dos profissionais das varas da infância e juventude e tem início após o primeiro encontro entre os postulantes e adotantes. Em geral, inicia-se essa etapa com visitas dos pretendentes às instituições de acolhimento, depois com pequenas saídas, avançando para finais de semana na casa dos futuros pais e, por fim, a guarda provisória, em que a criança ou adolescente efetivamente vai morar junto com sua nova família (Nabinger, 2010).
O período de adaptação tem impactos subjetivos já que ocasiona transformações na rotina, tanto para a família que está recebendo o/a filho/a, quanto para a criança ou adolescente, que precisa se familiarizar com novos ambientes, regras, etc. Em situações de casais, ocorrem mudanças também nessa relação, que pode parecer perder um pouco de sua intimidade e proximidade, devido à inserção de um novo sujeito na configuração (Costa & Rossetti-Ferreira, 2007). Neste contexto, a adaptação é uma fase necessária em que, gradativamente, ocorrem as modificações e ajustamentos necessários para a ocorrência de uma nova configuração familiar, como é possível perceber nestes recortes: A adaptação é necessária, realmente, porque é tudo ao mesmo tempo, eu nunca fui mãe, é a primeira vez, então é a rotina que muda, tu tem que te adaptar toda (P3)” (...) “Tinha vezes que eu não tinha tempo de ir no banheiro. (P4).”
Preconceitos
Outra temática que emerge nos diálogos do grupo está relacionada ao preconceito frente ao projeto adotivo. Ter um filho por adoção é diferente de ter um filho biológico, pois a adoção envolve aspectos jurídicos, sociais e afetivos diferentes da filiação biológica (Reppold & Hutz, 2003), no entanto, o fato de serem diferentes não implica na classificação de uma delas como superior a outra. Contudo, muitas vezes, através de uma visão assistencialista, puramente filantrópica, a adoção é concebida subjetivamente mais como um ato de bondade do que um modo de constituição familiar (Barros, 2014).
Ao longo da pesquisa-intervenção, o grupo-dispositivo foi se apresentando como uma estratégia importante para a desconstrução dos modelos de família normativa. Normatividade que se refletiu na expressão subjetiva dos sujeitos no campo grupal, configurada enquanto preconceitos em torno do projeto adotivo: modelos de constituição familiar, visões racistas e estereotipadas sobre etnia e raça, classificação hierárquica dos filhos baseado na idade e na marca biológica foram sendo desnaturalizados e ressignificados em outros sentidos. Através da intervenção psicológica na coletividade grupal, discursos como “vergonha, “lindo”, “bondade”, “constituição familiar”, “filantropia” e “assistencialismo” foram ganhando outros contornos significantes, outras interpretações subjetivas. Nisso, cabe atentar para o grupo-dispositivo enquanto algo que se apresenta como uma rede quente que porta, no seu processo de produção, um produzir contínuo, que possibilita a construção de outros mundos, de outros significados, de outras saídas, de diferentes problemas (Barros, 2007).
Grupos de Adoção
No que se refere ao entendimento do papel dos grupos com a temática adoção, pode-se afirmar que eles efetivamente transformam as subjetividades no processo de tornar-se mãe e/ou pai por adoção (Comin, Amato & Santos, 2006; Scorsolini-Comin & Santos, 2008; Levy, Diuana & Pinho, 2009). Isso ocorre desde o primeiro momento em que ainda está se construindo a ideia da adoção, como é possível constar na fala: “os grupos nos ajudam muito realmente, nesse momento de quero saber como é, a gente começa a conversar e sai muita coisa legal. (P17)”. Ao mesmo tempo, é necessário problematizar, que o dispositivo-grupo, muito além de ser um mecanismo de esclarecimento e dúvidas, é permeado por um emaranhado de linhas, que se configuram a partir das diferentes histórias que nele se atravessam (Barros, 2007).
Seguindo a mesma lógica, tais grupos, enquanto dispositivos, também atuam na desmistificação de estereótipos e ampliação da concepção de adoção, como é possível evidenciar: “a gente começa a ouvir a colega ali, que já tem um filho maiorzinho, que tá difícil, mas que está dando certo, tu vai te encorajando (P18)” Nessa lógica, a relevância da troca e do compartilhamento de vivências, expressões subjetivas e ampliação das possibilidades se dá a partir do discurso do outro, se constitui através do encontro (Scorsolini-Comin & Santos, 2008). Assim, se compreende o grupo-dispositivo como ferramenta de intervenção da psicologia que não se isenta de um engajamento ativo na dimensão ética e socialmente implicada pela qual opta por construir.
Considerações Finais
Esse artigo tinha como objetivo analisar o processo de uma pesquisa-intervenção, realizada com integrantes de um grupo de apoio à adoção, na relação com o conceito de grupo-dispositivo. Pelos dados, verificou-se que o conceito auxilia na compreensão dos percursos de criação das condições grupais, enfatizando os movimentos singulares e sua localização historicamente instituída que envolve a subjetividade grupal. No campo da adoção fora possível, através dos resultados, mostrar como grupo-dispositivo pode desnaturalizar significados instituídos relacionados com: o perfil de adoção desejado; os impasses da adaptação; os preconceitos envolvidos no adotar; e os movimentos de grupalidade que emergem nesse campo de intervenção da psicologia.
Através dos discursos produzidos no grupo, foi possível identificar que a participação nos grupos, além da troca de experiências, também possibilita uma reflexão acerca do seu próprio projeto adotivo. Assim, o grupo-dispositivo pode ser um espaço potente de desconstrução dos significados subjetivos sobre modelos de família normativa, a partir dos enunciados grupais que rompem com essa lógica e relatam experiências adotivas com crianças maiores. Desconstruções essas que podem auxiliar na transformação da concepção de adoção, ampliando-a para perfis de crianças e adolescentes que raramente seriam adotados sem uma desnaturalização de significados instituídos acerca da adoção.
Assim, conclui-se que os grupos de apoio à adoção são práticas importantes, quando conduzidos de modo a possibilitar um espaço de reflexão, pois atuam como dispositivo para a desnaturalização de significados instituídos no processo de adoção. O conceito de grupo-dispositivo, nesse contexto, se torna importante ferramenta de intervenção para a área da psicologia por possibilitar a ampliação de concepções subjetivas historicamente instituídas no plano coletivo, social, individual e inconsciente. Ao enfatizar os movimentos singulares que emergem no campo grupal, o conceito potencializa a afirmação e produção de subjetividades localizadas, permitindo com que outros sentidos sobre cuidado, proteção e constituição familiar sejam produzidos. Ao ressignificar esses sentidos, se afirma uma psicologia que intervêm eticamente para que o direito de todo bebê, criança ou adolescente, de conviver em família recebendo afeto e investimentos materiais e subjetivos, seja assegurado independentemente de sua idade, sexo, etnia ou raça.