Os dados da Organização Mundial da Saúde (2014) revelam que 30% das mulheres no mundo, que tiveram um relacionamento afetivo, sofreram algum tipo de violência física ou sexual por um parceiro íntimo em algum momento de suas vidas. A despeito da possibilidade de mutualidade na violência conjugal (Rosa & Falcke, 2014), a mulher ocupa uma posição de maior vulnerabilidade mesmo nessas situações de violência mútua (Barros & Schraiber, 2017; Lindner, Coelho, Bolsoni, Rojas & Boing, 2015). Além disso, a violência contra a mulher, especificamente, tem sido alvo de pesquisas e intervenções em função de estatísticas alarmantes, além de não se restringir ao contexto conjugal e acometer todos os níveis de escolaridade, classes sociais e tipos étnicos (Santos, Antunes & Penna, 2014). No Brasil, segundo o Mapa da violência de 2015 (Waiselfisz, 2015), entre os anos de 2003 e 2013 ocorreu um aumento de 21% dos homicídios contra o sexo feminino. Isto levou a serem sancionadas a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) e a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015), esta última classificando o feminicídio como crime hediondo e com agravantes quando acontece em situações específicas de vulnerabilidade (gravidez, na presença de filhos, menor de idade, entre outras; ver Taquette, 2015 para uma revisão sobre violência contra a mulher adolescente).
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) aponta que entre os anos de 2009 e 2011 nos estados da Bahia e de Pernambuco, lócus dessa pesquisa, as taxas de feminicídio foram de 9,08 e 7,81 por 100 mil mulheres, respectivamente (IPEA revela dados, 2013). Levando, recentemente, o município de Juazeiro/BA a implementar a Ronda Maria da Penha, um serviço especializado no atendimento às vítimas de violência doméstica (Operação Ronda Maria da Penha, 2015; ver também Brigadão, Santos & Spink, 2016; Cavalcanti, Moreira, Vieira & Silva, 2015; Sousa, 2014; Tavares, 2016 para exemplos de avaliações de implantação de medidas similares) sendo esta mais uma conquista garantida no que tange ao combate à violência contra a mulher. No entanto, apesar de medidas desse tipo, poucas mudanças foram observadas de fato no quadro da violência contra a mulher no Brasil (Gomes, 2015). Estudos e medidas protetivas em casos de violência contra a mulher tornam-se ainda mais relevantes diante de prejuízos que afetam também a saúde física das vítimas (Coronel & Silva, 2018).
A violência contra a mulher é definida como qualquer ato de violência, baseada no gênero, que venha a causar dano sexual, físico, psicológico, patrimonial, dentre outros, praticado por pessoas ou instituições (Brasil, 2011; Organização Mundial da Saúde, 2014; Silva, Sousa & Borges, 2015). Já o conceito de gênero, refere-se a um conjunto de padrões de comportamento que são considerados típicos de mulheres e de homens num determinado espaço de tempo na história e cultura dos indivíduos (Sant’Ana, 2003; Silva & Laurenti, 2016). Desta forma, ao se mencionar a violência de gênero, fala-se de uma violência que é derivada de uma organização social em que as práticas culturais favorecem os homens em detrimento das mulheres, isto é, uma organização social patriarcal (Saffioti, 2001; Scott, 1986; Silva & Laurenti, 2016). Em termos analítico-comportamentais, falar sobre práticas culturais relativas ao gênero é falar sobre formas de controle social, de poder e dominância, que interferem no acesso de um indivíduo ou grupo de indivíduos a fontes de reforçadores dentro de uma cultura (Ruiz, 2003).
Dentre as formas de violência contra a mulher, existe aquela que é praticada especificamente em locais de prestação de serviços, denominada violência institucional. Esta é definida como um tipo de violência que é emitida por um determinado profissional pertencente a uma instituição que assume uma postura na qual utiliza do seu poder de conhecimento como forma de deslegitimar o saber das(os) usuárias(os) do serviço (Aguiar & D’Oliveira, 2010). Isso acaba por distanciar o profissional do público a ser assistido e impossibilita uma melhor compreensão acerca da realidade social e cultural do sujeito que necessita do serviço (Pedrosa & Spink, 2011).
O fenômeno da violência é compreendido na análise do comportamento como sinônimo de coerção, sendo definido como o uso da punição e da ameaça de punição para conseguir que os outros ajam da maneira que se deseja e para reforçar um comportamento com a retirada do estímulo aversivo (Sidman, 1989/2003). Um tipo de controle baseado no uso de estímulos aversivos, por exemplo, no âmbito institucional, é quando o(a) profissional intimida a usuária ao avaliar moralmente suas vestes ou itens pessoais (e.g. batom ou maquiagem), dizendo: “A mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”. Nesse caso, utiliza-se um estímulo aversivo, a crítica relacionada a “roupas provocativas”, para controlar o comportamento da usuária, dando ao mesmo tempo uma instrução implícita - “Não use essas roupas”.
O exemplo acima ilustra, além de uma concepção de gênero do falante, o controle instrucional, uma das formas de se aprender com o outro que se configura a partir do uso do comportamento verbal (Skinner, 1957/1978). No exemplo, a instrução do(a) profissional (emitente) tem uma probabilidade de modificar o comportamento da usuária (ouvinte) de utilizar uma determinada roupa. Ou ainda de evitar que esta insista na denúncia ou mesmo procure o serviço de proteção em outra ocasião de risco, o que pode estar correlacionado com os dados de subnotificação da violência contra a mulher (Invisível aos olhos, 2015).
Dizer que um comportamento foi “controlado” por uma instrução ou regra é dizer que ele está sob controle, principalmente, de um estímulo discriminativo verbal (Baum, 2005/2006). Portanto, a função primordial da regra é a mudança do comportamento do ouvinte, sendo este comportamento verbal ou não-verbal. Assim, a regra é capaz de substituir as contingências naturais por antecedentes verbais. Outra função das instruções é alterar as funções de outros estímulos que evocam comportamentos (Schlinger & Blakely, 1987). O exemplo de interação entre usuária-profissional mencionado anteriormente sugere que uma instrução pode alterar as funções dos estímulos em uma contingência de forma a controlar um comportamento não-verbal, alterando a probabilidade do comportamento de usar a “roupa provocativa” em uma próxima oportunidade.
Desta forma, o comportamento que é determinado por uma regra, como, por exemplo, uma instrução fornecida por um agente de segurança pública em uma palestra: “Não é decente (ou seguro) uma mulher sair sozinha nas vias públicas à noite, principalmente com roupas devassas, cabelo solto, pois os homens podem lhes assediar, assaltar ou até estuprar”. Isso pode controlar o comportamento das ouvintes em evitar sair à noite, mesmo que jamais sejam violentadas, limitando a liberdade das mulheres (Albuquerque, Mescouto & Paracampo, 2010).
Além disso, as regras podem, ainda, ser categorizadas em dois tipos: prescritivas e descritivas (Paracampo, Albuquerque, Carvalló & Torres, 2009). Regras prescritivas, ou explícitas, determinam tanto o comportamento a ser emitido quanto o ouvinte específico, por exemplo, quando uma juíza diz “feche suas pernas firmemente e todos os seus órgãos femininos quando for ameaçada de ser estuprada” (Juíza pergunta a vítima, 2016). Já as regras descritivas, ou implícitas, alvo do presente estudo, não especificam um ouvinte em particular e são ilustradas pela frase: “A mulher que apanha e continua com o parceiro gosta de apanhar”.
É possível dizer que as regras podem ser preditoras de comportamentos, logo um interessante objeto de análise. Em um estudo elaborado por Gomes e Costa (2014), as autoras aplicaram questionários contendo 25 sentenças, no modelo de regras descritivas relativas à concepções de gênero e violência contra a mulher. As sentenças foram distribuídas em sete categorias: papel tradicional feminino e masculino, privacidade da relação, modelo de família intacta é o ideal, responsabilidade da vítima, ciúme relacionado ao amor, ciúme relacionado à violência, justificativa para a violência e outros. O estudo teve uma amostra de 252 estudantes, universitários e não universitários, de ambos os sexos. Os resultados apontaram que a escolaridade é uma variável estatisticamente significante no que diz respeito à concordância com essas afirmativas, superando, inclusive a variável gênero, sugerindo que o aumento no nível educacional é um fator relevante no que diz respeito à reversão da violência contra a mulher.
Resultados parecidos foram obtidos na replicação de Gomes e Costa (2014) por Callou, Bastos, Moreira e Souza (2016). Em uma amostra de 223 indivíduos, estudantes universitários e não universitários, de ambos os sexos, foi aplicado o questionário de Gomes e Costa, adaptado pelas autoras, contendo 32 afirmativas separadas em 11 categorias. Sete dessas categorias foram retiradas do estudo original e outras quatro foram elaboradas pelas autoras: atribuição da violência ao caráter/natureza do homem-internalismo, atribuição da violência à educação - aprendizagem, sexualidade feminina em função da masculina, atribuição da violência ao consumo do álcool e maior tolerância à violência quando ocorrida verbalmente. As afirmativas foram desenvolvidas com o intuito de dificultar a identificação das categorias às quais elas pertenciam e tornar menos explícita a concordância ou discordância esperada e reforçada socialmente. Os resultados apontaram correlações fracas e moderadas entre escolaridade e concordância com determinados itens, sendo que não universitários apresentaram maior concordância que universitários. E, assim como no estudo de Gomes e Costa (2014), a variável escolaridade superou a variável gênero quanto à concordância.
Estudos como estes vêm sendo discutidos desde a década de 80 e promovem a aquisição de conhecimento acerca da violência de gênero (Bandeira, 2014). No Brasil, os movimentos feministas começaram a produzir trabalhos e fazer parcerias com o Estado no intuito de implementar políticas públicas e serviços para erradicar a violência contra a mulher (Mapeamento das Delegacias da Mulher no Brasil, 2008; Mota, 2004; Saffioti, 2001). A rede de proteção inclui desde o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, Delegacias Especiais de Defesa da Mulher (DEAM) (Pereira, 2006) até outros serviços como o CRAM (Centro de Referência ao Atendimento à Mulher) e o CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), os quais são espaços de acolhimento/atendimento psicológico e social, orientação e suporte jurídico (Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2006).
Os treinamentos podem ser um recurso fundamental para abordar aspectos comportamentais e ambientais, facilitando a aquisição de habilidades e a compreensão de problemas complexos por parte dos profissionais que trabalham com violência contra a mulher, como é o caso das concepções e relações de gênero. Sabendo que o comportamento modelado por contingências é mais sensível a mudanças que ocorram no ambiente do que o comportamento controlado por regras (Matos, 2001), as formações não podem ser essencialmente instrucionais, devem, pois, agregar métodos vivenciais com o ensino de competências técnicas e interpessoais, as quais têm demonstrado maior eficácia social e efetividade na atuação (Del Prette & Del Prette, 2011). E ainda, além de fazerem parte da política institucional, os treinamentos também devem ser passíveis de avaliação.
A problemática do atendimento nesses serviços e os desafios provenientes de profissões que trabalham com essa temática estão voltados justamente para uma falta de capacitação, visão naturalizada relativa à violência de gênero, medo de fazer a notificação, o que contribui com que os profissionais tenham dificuldades em identificar esse tipo de violência e, por conseguinte, em acolher, assistir e encaminhar devidamente os casos (Mattos, Ribeiro & Camargo, 2012). Isso nos leva ao questionamento acerca das concepções de gênero e sobre a violência doméstica que permeiam a atuação dos profissionais em serviços de atenção à mulher. Assim, a presente pesquisa replicou o estudo de Callou et al. (2016) com o objetivo de verificar as diferenças nos níveis de concordância com as regras descritivas relativas a concepções de gênero e violência contra a mulher em dois grupos de profissionais: o primeiro com treinamento específico sobre violência contra a mulher e o segundo grupo sem esse treinamento.
Método
Participantes
Participaram do presente estudo 49 profissionais da segurança pública e da assistência social que trabalham, independente do tipo de vínculo, com violência contra a mulher. Essa amostra, do tipo não-probabilística por conveniência, foi composta por 24 homens e 25 mulheres, com idade média de 36,7 anos (DP= 8,59), variando entre 20 e 63 anos. Do percentual de participantes que forneceram o estado civil, a maioria se encontra na categoria de casados (59,6%), seguidos por solteiros (34%). No que tange à religião a maioria se declarou católico (44,2%). Em relação à orientação sexual, todos os participantes se definiram como heterossexuais. A escolaridade variou entre Ensino Fundamental completo (4,3%), 2º Grau completo (19,2%), 3º Grau incompleto (27,7%), 3º Grau completo (38,3%) e Pós-Graduação (10,6%).
A respeito da profissão, a maior categoria foi a de policiais militares (53,1%), seguidos de não policiais (24,5%). Dentro dessa última encontram-se profissionais como: assistentes sociais, psicólogos, estagiários do curso de direito, advogados, dentre outros. A renda dos participantes variou de até dois salários mínimos (6,5%) até acima de quatro salários mínimos (50%). Em relação à pergunta acerca do treinamento sobre violência contra a mulher, de um total de 49 participantes, 25 (51,02%) responderam que sim e foram alocados no Grupo Com Treinamento (CT), 24 (48,97%) responderam que não e foram alocados no Grupo Sem Treinamento (ST). Os comentários dos participantes foram identificados no texto com a letra “P” maiúscula e o número do participante, seguidos do grupo entre parênteses (e.g., P30 (ST)).
O grupo representado por profissionais CT foi composto por participantes com idade média de 38 anos (DP= 7,86). O grupo ST, composto por participantes com idade média de 35,5 anos (DP= 9,27), foi formado em sua maioria por homens (62,5%). Em ambos os grupos houve predomínio de policiais militares, católicos e casados. Contudo, destaca-se que no grupo CT houve um maior predomínio de participantes do sexo feminino e com maior escolaridade comparado ao grupo ST. Os dados detalhados de cada grupo podem ser observados na Tabela 1.
Instrumentos
Foi utilizado o Questionário sobre comportamentos do homem e da mulher em relacionamento íntimo de Callou et al. (2016). Adicionou-se uma categoria denominada “Relação do profissional com a vítima” para abarcar a influência do treinamento, a qual continha três itens: “A mulher que denuncia repetidas vezes uma agressão e ainda assim permanece com o companheiro, não quer realmente solucionar o problema”; “Quando a mulher quer voltar atrás na denúncia, ela está desvalorizando o trabalho do profissional”; e “Se o companheiro agride apenas verbalmente a mulher não é necessário que ela faça uma denúncia”. Assim, o questionário final era composto por um total de 35 itens, alocados em 12 categorias (Tabela 2). Na parte inicial do questionário, além das informações coletadas sobre idade, sexo, orientação sexual, escolaridade e renda, foram coletadas informações sobre o tipo de cargo exercido e se fizeram ou não algum treinamento sobre violência contra a mulher. Cada item do questionário foi respondido de acordo com uma escala do tipo Likert de quatro pontos: concordo totalmente, concordo parcialmente, discordo parcialmente e discordo totalmente.
*Categorias retiradas do estudo de Gomes e Costa (2014) **Categorias retiradas do estudo de Callou et al. (2016)***Categoria criada para a presente pesquisa
Procedimento
Após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética e Deontologia em Estudos e Pesquisa CEDEP/UNIVASF sob o CAAE 46697015.1.0000.5196, os participantes foram abordados nas instituições (Delegacias, DEAM, CREAS/CRAM e Batalhões de Polícia). Apresentou-se o conteúdo da pesquisa, a relevância da mesma e dispôs-se a assegurar o anonimato dos participantes. Mediante a concordância e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE, os participantes receberam instruções e responderam ao questionário.
Análise de Dados
Os dados obtidos foram analisados quantitativamente por meio de análises descritivas de percentual e frequência. Também foram verificadas as correlações entre as variáveis ordinais e comparações entre os grupos CT e ST quanto à concordância com as categorias. Para tanto, utilizou-se os testes não-paramétricos de Spearman e Mann-Whitney.
Resultados
De uma forma geral, houve baixo nível de concordância para ambos os grupos de participantes com e sem treinamento. A comparação entre os grupos CT e ST em termos de concordância apontou apenas uma diferença estatisticamente significativa na categoria 12 (Relacionamento do profissional com a vítima), na qual o grupo CT apresentou maior discordância do que o grupo ST (p= 0,028). É importante mencionar que no grupo CT, nenhuma diferença foi percebida em função da idade, escolaridade e gênero, em relação à categoria 12, demonstrando que a diferença no nível de concordância entre os grupos CT e ST esteve de fato, nessa amostra, associada a ter participado de treinamento sobre violência de gênero.
A Tabela 3 ilustra os níveis de concordâncias parciais e totais e discordâncias parciais e totais com as categorias. Os níveis de concordância total em cada categoria foram relativamente baixos para ambos os grupos, menos que 13%. O grupo CT apresentou concordância total maior em relação à categoria 7 (Atribuição da violência ao caráter/internalismo) (12,5%) que o grupo ST (4,2%) e ambos CT e ST apresentaram uma concordância parcial alta em relação à categoria 8 (Atribuição da violência à educação/aprendizagem) (CT: 23,8% e ST: 21,7%).
O grupo ST obteve uma maior concordância total referente à categoria 10 (Maior tolerância à violência quando ocorrida verbalmente) (11,1%) que o grupo CT (4,4%), porém a concordância parcial nessa categoria foi maior no grupo CT (CT: 26,7% e ST: 15,6%).
Uma diferença acentuada em relação aos níveis de concordância total é encontrada em relação à categoria 11 (Atribuição da violência ao álcool), em que o grupo CT obteve 0% e o grupo ST, de 10,4%. E observa-se que a concordância parcial foi maior no grupo CT (CT: 20,8% e ST: 12,5%). Isso sugere que o treinamento surtiu algum efeito na redução da concordância total em relação à questão, entretanto, seria interessante observar se os treinamentos ofertados abordaram o uso de substâncias, o que não foi realizado no presente estudo.
No grupo ST, houve diferenças no nível de concordância em função das variáveis idade, escolaridade e gênero. Quanto à idade, foi verificado que os participantes com maior idade apresentaram menor nível de concordância com as regras que apontavam uma natureza violenta do homem (categoria 7), uma vez que foi verificada a partir do teste de Spearman uma correlação negativa moderada (-0,470; p= 0,02). O mesmo tipo de correlação inversa, porém, com maior força, foi verificada entre a idade e maior tolerância à violência quando ocorrida verbalmente (categoria 10; - 0,632; p= 0,002). Ainda no grupo ST, foi verificado que participantes com maior escolaridade tendem a concordar menos com a ideia da sexualidade feminina em função da masculina (categoria 9) com uma correlação de força moderada (-0445; p= 0,043).
Em relação ao gênero, os homens apresentaram níveis de concordância maiores na categoria 5 (Associação entre amor e ciúme) do que as mulheres. Isso ocorreu tanto no grupo CT, com médias de 2,07 e 1,41 (p< 0,05), quanto no grupo ST, com médias de 2,19 e 1,54 (p< 0,05) para homens e mulheres, respectivamente.
Discussão
Assim como no estudo de Callou et al. (2016) e Gomes e Costa (2014), foram encontradas baixos índices de concordância para ambos os grupos de participantes com e sem treinamento. Os baixos índices eram esperados, também pelo fato de se tratar de uma amostra composta por profissionais que trabalham com violência (Machado et al., 2009).
Com relação à maior discordância na categoria 12 (Relacionamento do profissional com a vítima) do grupo CT, é necessário frisar, entretanto, que uma limitação importante do presente estudo foi a falta de acesso ao tipo de treinamento que os participantes fizeram, tendo em vista que foi considerado apenas o relato do participante sobre a realização de treinamento sobre violência contra a mulher. Além disso, também há limitações na extrapolação dos achados para a postura dos profissionais em seu cotidiano de atuação, especialmente quando a diferença entre os grupos ocorreu somente na categoria relacionada à atuação profissional. Contudo, observa-se que, independentemente do tipo de treinamento, houve pelo menos alteração no relato, evidenciado aqui em termos de concordância com as regras. Assim, treinamentos sobre violência de gênero para profissionais parecem modificar a concordância com os itens relativos à prática profissional e relação com a vítima, porém sem alterações nas demais categorias.
A concordância total maior no grupo CT em relação à categoria 7 (Atribuição da violência ao caráter/internalismo) sugere que o treinamento pode ter favorecido uma compreensão da violência como decorrente de causas internas (e.g., personalidade e caráter) sem, porém, desconsiderar a aprendizagem. Um dado que sugere uma visão contextualizada do fenômeno da violência é a maior concordância parcial em ambos os grupos na categoria 8 (Atribuição da violência à educação/aprendizagem), a qual sugere a relação entre sujeito e ambiente como fundamento para a construção de um comportamento violento. Essa visão interacionista é defendida pela análise do comportamento, onde o comportamento do sujeito é modelado a partir de sua interação com o seu ambiente. Os comportamentos, inclusive os violentos, não são oriundos de uma “natureza humana”, mas sim aprendidos pelos sujeitos a partir de sua interação com o seu ambiente social e mantidos pelas consequências produzidas por essa interação (Skinner, 1957/1978).
A maior discordância total e concordância parcial na categoria 10 (Maior tolerância à violência quando ocorrida verbalmente) no grupo CT aponta que, apesar do aumento na discordância total, ainda há uma tolerância maior quando o abuso é verbal, mesmo após treinamento. Isso levanta uma questão preocupante que vem sendo apontada pela literatura que é a dificuldade em identificar a violência psicológica (Silva, Coelho & Caponi, 2007). A Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (Brasil, 2011) define violência psicológica como toda ação ou omissão que venha a causar dano à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa, incluindo ameaças, depreciação, humilhação, chantagem, dentre outras.
A ausência de concordância total na categoria 11 (Atribuição da violência ao álcool) e maior concordância parcial nessa categoria no grupo CT indica que os profissionais com treinamento não atribuíram a violência somente ou diretamente ao álcool, no entanto não menosprezaram os seus efeitos na violência doméstica, como sugere o seguinte comentário P49(CT): "As substâncias psicoativas trazem consequências danosas para a relação familiar, mas não é o único fator (sic)". Estudos (Signori & Madureira, 2007; Vieira et al., 2009) apontam que os profissionais de segurança relatam o álcool entre os motivos principais de violência e que em uma grande parcela dos casos em que atuaram, o álcool estava presente. Isso aparece também em outros comentários: P45(ST): "Álcool e drogas potencializam o crime. O dia-a-dia da delegacia revela que na maioria das ocorrências o homem estava sob efeito de álcool ou droga (sic)."; P10(ST): "Em minha experiência policial, todos os agressores estavam sob efeito do álcool (sic)”. De fato, o uso do álcool esteve envolvido em 56,6% das denúncias registradas em 325 inquéritos da DEAM de Fortaleza avaliados por Gama, Filho, Silva, Vieira e Parente (2014). Uma revisão realizada por Oliveira et al. (2017) também indica que o ciúme, a ingestão de álcool e o uso de outras drogas são as principais causas da violência contra a mulher. Porém, o estudo de Medeiros (2015) aponta que fatores comportamentais relacionados ao agressor são fatores de risco mais fortes que o padrão de uso de álcool e drogas.
Como já mencionado, as similaridades quanto à idade, escolaridade e gênero no grupo CT em relação à categoria 12 (Relacionamento do profissional com a vítima) aponta que a variável responsável pela diferença de concordância entre os grupos CT e ST nessa categoria é o treinamento. É interessante observar que muito embora essa diferença tenha ocorrido na Categoria 12, ela não se estendeu para as outras categorias aqui analisadas. Considerando os itens da categoria 12, as respostas dos profissionais parecem valorizar a denúncia prestada pela usuária, independente se ela continuará com o agressor e o denunciará várias vezes e ainda se a mulher decide, posteriormente, retirar a queixa contra o companheiro. O grupo CT também parece ser “menos tolerante” às agressões verbais, para as quais defendem o recurso da denúncia. Porém, é necessária uma avaliação do treinamento e das modificações geradas por ele nas concepções de gênero e nos diversos fatores relativos à violência contra a mulher para que se verifique o alcance concreto do treinamento nas concepções de gênero do profissional e em sua atuação.
No grupo ST, as correlações negativas entre idade, por um lado, e concordância com uma natureza violenta do homem (categoria 7) e maior tolerância à violência quando ocorrida verbalmente (categoria 10), por outro, sugerem que nesse grupo os participantes de maior idade tendiam a atribuir a violência a outros fatores não “naturais”, como aprendizagem e cultura, além de serem menos tolerantes à violência verbal. Isso sugere um efeito conjunto de outras variáveis que possivelmente acompanham a idade, como mais experiência relacional e profissional. Seria interessante investigar se a experiência profissional reduz a atribuição da violência a fatores internos. Porém, no presente trabalho, não foi verificado tempo de atuação profissional, o que aponta para a necessidade de estudos futuros. Nesse sentido, outra correlação negativa encontrada nesse grupo, também quanto à variável idade mas agora com a ideia da sexualidade feminina em função da masculina (categoria 9), corrobora com os dados encontrados na literatura em relação ao maior nível de escolaridade e menor concordância com esse tipo de regra (Callou et al., 2016; Gomes & Costa, 2014) e ainda em termos de menor nível instrucional dentre aqueles que praticam a violência (Silva et al., 2015).
A maior concordância entre os homens com a categoria 5 (Associação entre amor e ciúme) indica que as mulheres, diferentemente dos homens, podem compreender o comportamento ciumento como sendo diferente do comportamento afetuoso/amoroso (Sucre & Petrizzo, 2016). É interessante considerar que Costa (2016) encontrou associação entre sentimento de posse e violência sexual no discurso de mulheres vítimas de violência. Além disso, essa dissociação entre ciúme e amor parece ainda mais necessária diante de evidências de que o ciúme pode atuar de forma a amenizar a percepção pejorativa que a violência contra a mulher provoca em participantes americanos (Puente & Cohen, 2003) e brasileiros (Costa et al., 2016), o que sugere um aspecto cultural em comum. Em termos funcionais, o ciúme ocorre em uma situação de competição por reforçadores na presença de um rival e pode ser mantido por consequências sociais (atenção) ou pelo afastamento do rival, sendo, portanto, passível de extinção (Oliveira & Paranaguá, 2017). Essa compreensão é importante para os profissionais que trabalham com violência, pois além de uma provável redução da tolerância para o comportamento ciumento, fornece uma nova possibilidade de análise.
Considerados em conjunto, estes dados apontam para a importância do treinamento de profissionais nestes espaços e a necessidade de analisar e revisar as práticas institucionais de serviços de atendimento à vítima de violência doméstica no Brasil (Abdala, Silveira & Minayo, 2011; Brandão, 2006; Hasse & Vieira, 2014; Santos, 2008), principalmente diante da evidência de que um dos fatores de risco para a violência física contra a mulher é a recidiva de agressão sem registro de denúncia (Gama et al., 2014). A responsabilização e culpabilização da vítima, por exemplo, é um grande problema no atendimento realizado por profissionais de saúde (Souza & Cintra, 2018). Estudos desse tipo garantiriam um melhor funcionamento dessas instituições e do serviço oferecido, com o objetivo de proporcionar o desenvolvimento das competências necessárias aos profissionais para aprimorar, além dos trâmites jurídicos, a mediação dos conflitos e a afirmação dos direitos fundamentais da vítima (Nobre & Barreira, 2008).
Apesar da quantidade limitada de participantes do presente estudo, os dados foram relevantes para a compreensão do processo de formação dos profissionais na região, oferecendo uma perspectiva de análise das regras com as quais esses profissionais tendem ou não a concordar. Para estudos futuros, sugere-se uma amostra maior, que permita o uso de testes estatísticos paramétricos e uma análise conjunta da interação entre diversas variáveis (escolaridade, idade, sexo, categoria profissional). Esses estudos também favoreceriam a generalização dos resultados. Sugere-se também um melhor controle sobre o tipo de treinamento ao qual o participante foi submetido. O treinamento poderia ser melhor caracterizado em termos de duração da formação, conteúdo programático, estratégias metodológicas e tempo decorrido entre o treinamento e a realização da pesquisa.