No campo da saúde mental no Brasil, o modelo hospitalocêntrico foi predominante até meados da década de 1970, pautado no saber psiquiátrico e com propósito de isolamento da população atendida. Essa forma de assistência gerou diversos debates que colocaram em questão a violência institucional, as concepções de loucura e todo o aparato manicomial (Amarante, 2007; Brasil, 2005). Nesse contexto, se constituiu o Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, descrito como um processo ético-político e social (Brasil, 2005).
Concomitante ao Movimento de Reforma Psiquiátrica, a Reforma Sanitária Brasileira trouxe como uma das suas bases uma definição ampla de saúde, em que a doença não é a principal referência. Quando se trata do campo da saúde mental, os movimentos reformistas buscaram considerar concepções que não tomassem a patologia sob a ótica médico/psiquiátrica como diretriz fundamental. Na perspectiva da Atenção Psicossocial, isso possibilitou novas compreensões sobre os processos de saúde (Amarante & Nunes, 2018).
A partir das conquistas das Reformas Psiquiátrica e Sanitária, elaborou-se a reformulação das políticas de saúde mental, com a congregação de um conjunto de práticas substitutivas ao modelo asilar, denominada de atenção psicossocial. Esse conceito acompanha as diversas transformações em relação ao paradigma manicomial, como a garantia da dignidade humana e a construção de outros dispositivos de cuidado (Costa-Rosa et al., 2003).
Conforme Amarante (2007), as mudanças no campo da atenção psicossocial possuem quatro dimensões: teórico-conceitual, com a desconstrução de teorias e práticas reducionistas da psiquiatria; técnico-assistencial, com os novos serviços como dispositivos de cuidado; sociocultural, com a reflexão social sobre a loucura, e jurídico-política, com a revisão da legislação e os entraves para o exercício da cidadania. As transformações em cada dimensão, que são simultâneas e se entrelaçam, constituem esse processo social complexo em que se situa a introdução desse modelo de atenção.
No campo técnico assistencial, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) constitui-se como o principal substituto dos hospitais psiquiátricos. Caracteriza-se como um serviço de saúde aberto, comunitário e de cuidado intensivo, que tem como objetivo disponibilizar atendimento à população adscrita na sua área de abrangência, oferecer acompanhamento clínico e estimular a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e revigorar os laços familiares e comunitários (Brasil, 2004). Vale ressaltar que o CAPS é o serviço central da Rede de Atenção Psicossocial, dessa forma não é o único substituto dos hospitais psiquiátricos, mas sim parte de uma rede articulada de diferentes serviços que possuem como um dos objetivos a integralidade da assistência (Brasil, 2011).
Foi a partir da publicação da Portaria 336 que se regulamentou a constituição e funcionamento dos CAPS em nível nacional (Brasil, 2002). Apesar da breve história dos CAPS, a necessidade de desenvolver avaliações tornou-se imprescindível tanto para a superação dos modelos manicomiais tradicionais, quanto para o controle e participação da sociedade civil. Um artigo aponta que usuários e familiares manifestam alto grau de satisfação em relação aos CAPS (Kantorski et al., 2009). Em um estudo sobre a efetividade do CAPS, foi constatado redução de crises dos usuários e das internações hospitalares para usuários da modalidade intensiva (Tomasi et al., 2010).
Em relação à avaliação dos serviços, no cenário de consolidação do modelo de atenção psicossocial, considera-se fundamental acompanhar como os componentes e objetivos das políticas atuais aparecem no cotidiano dos serviços (Trapé & Onocko, 2017). Na pesquisa de Kantorski et al. (2009), a atenção psicossocial foi analisada e teve como resultados o fortalecimento da autonomia do usuário, a diminuição de crises, a adesão ao serviço e o aumento da socialização e organização da vida dos usuários.
No estudo de Mello e Furegato (2008), buscou-se analisar como os participantes percebiam o CAPS por meio do modelo psicossocial. Foram elencados o número de internações, a liberdade dos usuários, o papel político do serviço e a cidadania. Na pesquisa de Silva et al. (2015), por sua vez, a Atenção Psicossocial foi entendida como uma forma de tratamento interdisciplinar e intersetorial que tem como propósito desenvolver em conjunto com o usuário sua autonomia, reinserção e apoio social.
Dito isso, para que a execução da política esteja de acordo com o paradigma psicossocial, é imprescindível que o tratamento dos sujeitos em sofrimento psíquico seja realizado no seu território de convívio. Dessa maneira, objetiva-se o desenvolvimento da autonomia e cidadania dos usuários, com um cuidado que pressupõe qualificar suas vivências em comunidade por meio da reinserção social (Ferreira & Bezerra, 2017). Essa descrição vai ao encontro do que está preconizado na Portaria 3.088: o respeito aos direitos humanos e a garantia de autonomia; a diversificação de estratégias de cuidado; a realização de atividades no território com objetivo de exercer a cidadania, e o desenvolvimento de ações intersetoriais que garantam a integralidade do cuidado (Brasil, 2011).
Atualmente, discute-se sobre fatores que fragilizam a efetivação do modelo psicossocial. Alguns deles são: a coexistência dos paradigmas psicossocial e manicomial nos CAPS (Scaparo et al., 2013); as barreiras encontradas (viés biomédico, centralidade na doença, subfinanciamento; Goulart, 2013), e a reinserção do hospital psiquiátrico na rede de atenção (Pitta & Guljor, 2019).
Nesse contexto, torna-se importante refletir como os fundamentos do modelo psicossocial, observados na literatura e nos documentos ministeriais, são compreendidos pelos profissionais e como se desdobram em práticas de cuidado. Portanto, o objetivo deste artigo é analisar, a partir da perspectiva de profissionais, o que consideram como pressupostos do modelo de atenção psicossocial e como se operacionalizam no cotidiano dos CAPS.
Método
Este estudo apresenta delineamento qualitativo, transversal e de caráter exploratório. A pesquisa foi realizada em 2019 na cidade de Porto Alegre. Participaram do estudo 11 profissionais: quatro psicólogas e um psicólogo, duas psiquiatras, duas enfermeiras, uma pedagoga e uma terapeuta ocupacional, conforme tabela 1. As participantes foram escolhidas por conveniência. Os critérios de inclusão foram: ter experiência de no mínimo 4 anos em CAPS e ter conhecimento sobre a reforma psiquiátrica e o modelo de atenção psicossocial. Apenas uma profissional não aceitou participar da pesquisa por falta de tempo disponível.
O contato com as participantes ocorreu via correio eletrônico. Para coleta de dados foram efetuadas entrevistas semiestruturadas em locais previamente combinados com as participantes, no período de janeiro a maio de 2019. As questões abordadas eram referentes aos pressupostos da Reforma Psiquiátrica e do Modelo de Atenção Psicossocial; como eram entendidos esses conceitos; como se operacionalizavam em estratégias de cuidados, além de quais eram as barreiras que dificultam sua efetivação. As entrevistas tiveram duração aproximada de uma hora, as quais foram gravadas e transcritas na íntegra. Para preservar a identidade das entrevistadas, as falas estão identificadas como P1, P2, P3 e assim, sucessivamente.
A análise dos dados foi efetivada a partir da análise temática, conforme Braun e Clarke (2006). Para esse processo, utilizou-se o software Atlas ti, em que os temas relevantes foram codificados e agrupados em famílias temáticas. As famílias foram organizadas a partir dos pressupostos do paradigma psicossocial que os profissionais consideram fundamentais para as práticas do cotidiano no CAPS. Para essa eleição foi levado em conta a frequência de citações, o domínio conceitual e a capacidade de enunciar como ocorrem suas operacionalizações.
O presente estudo é resultado de uma dissertação de mestrado e faz parte de um projeto maior intitulado “(Re)criando possibilidades na Política de Saúde Mental: a construção e validação de um instrumento para avaliação dos CAPS”. O desenvolvimento deste trabalho correspondeu à parte qualitativa e exploratória desse projeto.
Em relação aos aspectos éticos, as entrevistadas leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisa foi submetida e aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre sob número CAAE: 99709118.6.0000.5336, e pareceres nº 2.949.849 e 2.978.412.
Resultados e discussão
A análise dos resultados foi organizada em quatro eixos temáticos que, segundo as participantes, representam alguns dos pressupostos fundamentais da atenção psicossocial. São eles: Autonomia; Território; Cidadania e (Re)Inserção Social. Propõe-se discutir como as profissionais entendem esses conceitos e como se traduzem em práticas nos serviços. Buscou-se contribuir para uma discussão mais delineada de cada um dos elementos.
Vale ressaltar que outros pressupostos da atenção psicossocial foram mencionados pelas participantes, como intersetorialidade, integralidade e humanização do cuidado. Contudo, esses não foram amplamente referidos e não houve conteúdo suficiente para realizar uma discussão em profundidade. Dito isso, não se pretende hierarquizar a relevância desses elementos, mas sim refletir sobre os quais foram mais citados e elaborados.
Autonomia
A partir da análise das entrevistas, identificou-se a autonomia como o elemento mais citado. Oito profissionais relataram que autonomia é fundamental para as práticas no serviço. Elas compreendem que o processo de cuidado não deve ser realizado para o usuário, mas sim construído com ele. Consideram que o tratamento deve levar em conta o desejo do usuário, valorizando seu protagonismo e fornecendo ferramentas que estimulem o autocuidado fora do serviço. Ademais, acreditam que o serviço deve escutar e considerar a participação do usuário nas decisões de organização e na gestão do cuidado.
Sob uma ótica, a autonomia se constitui no processo de coconstrução entre sujeitos e coletivos. Assim, o indivíduo se torna corresponsável por si e pela sociedade de forma dinâmica (Onocko & Campos, 2007). Duas entrevistadas trouxeram conteúdo convergente ao supracitado. A partir de suas experiências no CAPS, elas referem um processo de cuidado que é realizado por meio da divisão da responsabilidade, na qual o usuário possui um papel ativo no seu tratamento e no funcionamento do serviço.
Eu considero bem importante trabalhar com a autonomia do sujeito - tu não estás fazendo algo para ele, tu estás fazendo algo com ele - e às vezes é uma dificuldade, a gente na saúde é muito treinado para ser prescritivo nos tratamentos (P4). A questão da gestão do cuidado parte de um projeto pensado junto com ele, de forma que dentro do seu sofrimento, de sua vida, esse usuário protagonize esse cuidado. Nas experiências que eu tive oportunidade de dirigir, os usuários participavam da reunião de equipe, na gestão de todo o processo. Não é fácil, até porque eles foram historicamente sempre submetidos e renegados a um lugar zero de participação (P6).
Ambas profissionais abordam o desafio de trabalhar a autonomia devido à herança prescritiva do paradigma tradicional de saúde. Em razão disso, seu estímulo torna-se significativo para efetivar uma relação mais horizontal no processo de tratamento. Desse modo, é necessário entender a autonomia como uma rede relacional essencial para o cuidado, que possibilite o fortalecimento do elo entre usuários e profissionais. O intuito dessa lógica é romper com a ideia de autonomia absoluta (Romanini & Fernandes, 2018). A passagem do usuário de um lugar passivo no tratamento para uma posição ativa representa a potência da construção do cuidado. Nesse modo de atuação, a autonomia é compreendida como algo interrelacional e não estático individual.
Ainda nessa vertente, uma estratégia citada para promover e fomentar a autonomia -através das relações entre profissional e usuário- é por meio da Gestão Autônoma da Medicação (GAM). Essa estratégia possibilita uma posição significativa do usuário nas decisões do tratamento, como pode ser observado no seguinte exemplo:
O GAM, da gestão autônoma de medicamentos. Eu vejo os usuários conseguindo discutir totalmente seu tratamento, conseguindo opinar, e dizer o quanto vai ou não vai usar, que recursos quer no seu atendimento (P6).
Essa experiência tem relevância para o fortalecimento da autonomia do cuidado. Por meio da implantação do guia GAM, consolida-se a participação do usuário na gestão do tratamento. Para que se efetive, a corresponsabilidade e o protagonismo devem ser imperativos no que concerne às decisões relacionadas ao uso de medicações. Além disso, há um fortalecimento na criticidade quanto ao cuidado e aos próprios psicotrópicos e seus efeitos adversos (Cougo & Azambuja, 2018; Freitas et al., 2016). O GAM é um exemplo de atenção à saúde no qual o usuário pode ser protagonista deste processo.
Quanto ao processo de autonomia para além do espaço de tratamento, uma profissional menciona como isso é efetivado na vida pessoal de uma usuária. Essa conquista é apontada como resultado da articulação que acontece no contato com os profissionais do serviço:
São pequenas ações do dia a dia que a gente vai podendo articular o processo de autonomia. Tem essa usuária que era uma pessoa muito difícil, muito deprimente e assim, dura, dura, dura, e hoje ela consegue chegar no mercado e falar “Ah, eu vou pegar um leite, passa para mim e vê se entrou o meu pagamento”. Então não têm uma receita (P1).
Isto posto, percebe-se que a construção da autonomia passa pela abrangência e qualidade das relações que constituem a rotina, e não apenas pelas capacidades individuais. Assim, a essência da autonomia não está na autossuficiência, mas na interdependência das relações. A estratégia encontrada pela usuária demonstra como a autonomia é desenvolvida por meio da interação relacional. Na medida em que os funcionários do mercado entendem e acolhem essa demanda, efetiva-se uma “atividade autônoma” por meio de uma relação colaborativa.
Sob outra perspectiva, a autonomia referente à saúde mental está mais relacionada com independência e autogoverno. Para que isso ocorra, é necessário estabelecer normas e relações na organização do cotidiano. Em convergência, uma profissional relata que a autonomia deve:
Valorizar o protagonismo do usuário, para essas decisões simples do cotidiano, “como é que eu vou cuidar de mim para além das portas do CAPS?” Então pensar que ele tem a direção da sua vida nas mãos, mas poder dar as ferramentas para que elas possam se autogerir, se cuidar (P11).
A fala aponta a importância de trabalhar estratégias que instrumentalizem os usuários para gerir e potencializar seu autocuidado fora do serviço. Assim, a efetivação da construção da autonomia passa pela elaboração da autonomia mediada. Essa mediação tem como intuito assessorar o sujeito a desenvolver sua própria história e aumentar sua rede de relações, sem destituir o poder de controle do sujeito sob sua própria vida (Dutra et al., 2017).
Com base nas narrativas das participantes, constata-se que apesar das diferentes concepções, existe um consenso de que a autonomia deve ser estimulada e construída em conjunto. Por conseguinte, objetiva-se que o usuário seja protagonista do seu cuidado e que se qualifique as redes de relações que provocam uma maior inscrição de seu papel autônomo no coletivo. Em diferentes falas, discorreu-se sobre como esse conceito é aplicado no cotidiano, o que confirma uma capacidade de se pôr em prática esse princípio no processo de cuidado. Por outro lado, identificou-se como barreiras o histórico prescritivo de tratamento na saúde.
Acrescenta-se que a autonomia está diretamente associada com outros pressupostos. Essa é pautada pelo investimento no sujeito para que amplie sua rede de apoio e faça suas escolhas como cidadão. Sua construção deve estar vinculada ao território, na medida em que se estimulam práticas comprometidas com a cidadania (Dutra et al., 2017).
Território
No que tange o território, seis profissionais indicam que o conceito ultrapassa a compreensão de território físico, apenas como espaço geográfico, mas sim como um processo subjetivo de se sentir pertencente, de conhecer as pessoas e os locais que possibilitam encontros e relações na comunidade. Além disso, elas acreditam que os CAPS não podem funcionar apenas no seu espaço, devendo articular com o território, acessando outros dispositivos, propondo atividades fora do serviço e acompanhando os usuários no seu cotidiano.
O CAPS deve estar contextualizado nos espaços de convívio social do usuário (escola, família, trabalho, etc.), ou seja, o serviço deve ser territorializado. Seu objetivo é conhecer os recursos do território e suas potencialidades, para utilizá-los no cuidado em saúde mental. A reinserção social necessita ser estimulada a partir do serviço, mas sempre voltada para a comunidade (Brasil, 2004). A respeito da construção de redes territoriais, numa perspectiva internacional, o Plano de Ação sobre Saúde Mental 2013-2020 apresenta como um de seus objetivos o desenvolvimento de serviços de saúde mental e assistência social no contexto comunitário, os quais possam estar em rede e com capacidade de atender a demanda (Organização Mundial da Saúde, 2013).
Uma revisão sistemática sobre concepções de território em saúde mental encontrou quatro significados principais: território como área de abrangência e práticas de serviços de base comunitária; como rede de recursos terapêuticos que devem ser articuladas pelos profissionais do serviço com outros espaços; constituído com base na história pessoal de cada um, como cenário de registros simbólicos e de pertencimento, e por fim, como interface entre o político e o cultural, de base material e social (Furtado et al., 2016).
De acordo com duas participantes, o território é constituído de interações realizadas pelos profissionais entre os serviços de saúde e espaços da comunidade. Percebe-se que suas narrativas trazem um entendimento conceitual do termo e como deve ser posto em prática, porém, não é descrito como isso efetivamente acontece nas suas experiências:
Principalmente ofertar uma assistência de base comunitária. O serviço não pode estar só funcionando dentro dele. Eu vejo o trabalho do CAPS como várias mãos dentro do território, fazendo essa interface de trabalho em rede. Então, na minha opinião, o CAPS é muito território, na verdade (P4). A questão é que precisa se lançar para o território, não dá para se acomodar dentro do CAPS somente, mas também nós temos que nos desafiar para ir além do CAPS, de buscar, de ir atrás (P8).
O tratamento em liberdade deve descentralizar o cuidado do CAPS e se expandir para o território, com articulações de rede, intersetoriais e comunitárias (Brasil, 2015; Furtado et al., 2017). Nesta mesma direção, outra participante reforça que as práticas territoriais deveriam transpor o espaço interno do CAPS. Ela relata como esse princípio se traduzia no seu cotidiano de práticas. Entretanto, carece de desdobramento desses encontros, com exposição de como ocorreu a entrada na comunidade.
No sentido de estar proporcionando atividades no contexto do território. Eu trabalhei no CAPS, a gente fazia muitas oficinas em espaços diversos, algumas eram feitas em espaços comunitários, tipo clubes, escola (P8).
O papel dos profissionais pode ser visto como de intermediadores entre usuários, familiares e comunidade que possibilitam interações no território. Deste modo, o profissional propõe mediações que amparam o usuário para encontrar recursos territoriais e desenvolver novos modos de viver (Dutra & Oliveira, 2015). Vale frisar que a lógica do cuidado em liberdade poderá ser mais potente quando estiver instituída nas estratégias do serviço. Dessa forma, não dependerá das concepções de cuidado individuais de cada profissional.
Em outro exemplo, um aspecto importante trazido é a interação dos usuários em um espaço de encontro de diferentes pessoas do bairro. Relata-se que eles são convidados para eventos, o que possibilita um sentimento de pertencimento devido a essa integração:
Território é subjetivo, não é só físico, ele é também se sentir pertencente. É um processo de conhecer a associação de bairro, por exemplo, que fazem festas e convidam eles, então tem uma relação que é para além do território geográfico (P1).
Esse entendimento de território pode ser compreendido a partir da Psicologia Social, na medida em que se expõe a dimensão subjetiva da realidade social, e se destaca que é na interação que se elabora a forma de interpretar o contexto. Assim, as práticas sociais não só constroem a realidade social, mas também desenvolvem pessoas e coletivos na vida cotidiana. Considerando o território como espaço subjetivo, a entrevistada menciona que é por meio dessas trocas e encontros que se viabiliza um sentimento de pertencimento.
Sendo assim, o território é constituído de arranjos relacionais, como os interpessoais, interinstitucionais e os intersetoriais. Logo, não devem ser apenas as unidades de saúde a participar da rede de atenção, mas também os diferentes componentes da rede, numa relação cooperativa na construção do bem-estar coletivo (Alves & Silveira, 2011; Martins et al., 2015).
Acerca dos enunciados, observa-se que as práticas no território estão muito circunscritas a uma dimensão gerencial dos serviços de saúde com outros setores (Ferreira et al., 2016). Isto posto, não são referidas as possíveis forças resistentes -procedentes do campo clínico, econômico ou moral- frente aos movimentos de reinserção social (Furtado et al., 2016). Tendo o território como local ocupado de forma restrita por esses sujeitos, não se pode ignorar a possibilidade de resistências de diversas ordens nesse processo de inserção.
Para superação dos obstáculos, a efetividade e o próprio objetivo da territorialidade passam pelo investimento de forma conjunta com outros pressupostos. Por exemplo, o potencial de interação no território está relacionado com o aumento da autonomia do usuário. A partir da mediação dos profissionais, os usuários necessitam estar fortalecidos socialmente e altivamente para utilizarem os recursos do território (Dutra & Oliveira, 2015).
Por conseguinte, identifica-se que a noção de território está voltada para as diferentes articulações no processo de cuidado, como com a rede e com espaços de convivência. Essas acepções vão ao encontro do que foi proposto na atenção psicossocial e preconizado na política de saúde mental atual. Apesar de algumas participantes apontarem como ocorre a prática da territorialidade, a falta de descrição dessas ações no cotidiano pode ser um sintoma da dificuldade de traduzir este pressuposto em estratégias concretas de cuidado.
Cidadania
A cidadania foi considerada um elemento essencial para o cotidiano do CAPS por sete profissionais. As participantes trouxeram que esse pressuposto está relacionado com a garantia de direitos, como no acesso à cultura, à educação e ao trabalho. Foi mencionado que os serviços têm como objetivo resgatar esse papel de cidadão, seja a partir de um trabalho remunerado (ou não), mas que possa produzir algo dentro da sociedade.
A cidadania representa a relação da sociedade política com os seus membros. Nesse sentido, exercer cidadania significa atuar em benefício da sociedade, que deve garantir os direitos básicos à vida, como moradia, alimentação, saúde, educação e trabalho (Gorczevski & Belloso, 2011).
Com a Constituição Brasileira de 1988, o sistema passou a garantir o acesso universal às ações para a promoção, proteção e recuperação de saúde. A partir das transformações no modelo de atenção em saúde mental, com as reivindicações pelos direitos das pessoas em sofrimento psíquico, configurou-se uma mudança paradigmática nesse campo, que consiste na posição de sujeitos de direitos (Ferreira & Bezerra, 2017).
Contudo, essa luta não pode se ater apenas a aprovações legislativas, isso porque não é por decreto que as pessoas se constituem como cidadãos. É necessário alterar concepções, comportamentos e trocas sociais para efetivar a construção da cidadania, que se caracteriza como um processo social complexo (Amarante, 2007).
A questão de estar resgatando esse papel de cidadão do sujeito, acho que entra também na questão dos objetivos de possibilitar essa busca, o resgate da cidadania dessa pessoa (P8).
O cuidado no cotidiano dos CAPS necessita estar respaldado por um conhecimento histórico político, para que o tratamento não fique preso apenas a questões intrapsíquicas. Assim, os profissionais também devem realizar uma prática voltada para a elucidação de acesso aos direitos conquistados. Uma participante menciona como pode ocorrer essa ação:
Tem grupo de cidadania porque é bastante importante as pessoas exercerem a sua cidadania, ver sobre seus direitos, como pode estar garantindo os que lhe pertencem (P4).
A abertura de espaço para o diálogo sobre os direitos dos usuários é potente para um maior alcance da informação e maior acesso a benefícios garantidos por lei. Uma conquista significativa -no processo de redemocratização do país- foi o Benefício de Prestação Continuada (BPC), como foi destacado por uma profissional:
Com o apoio do BPC os usuários passaram a ter uma renda. O usuário que ocupava o lugar do doente rejeitado porque era um peso financeiro, passou a ser o arrimo da família (P6).
A profissional destaca que o BPC é um direito que pode promover a mudança de posição na organização familiar. Esse benefício - em conjunto com outros amparos - auxilia não apenas na emancipação do usuário no âmbito familiar, mas também na sociedade por ter assegurados os seus direitos enquanto cidadãos. O BPC se qualifica como a garantia de renda básica na esfera da proteção social do Estado (Stopa, 2019).
Diante disso, vale frisar a importância de espaços no CAPS para discussão sobre aspectos como direitos e deveres dos usuários. Em contrapartida, esse trabalho estático compromete a prática da cidadania voltada para diferentes setores da sociedade:
A gente produziu uma dependência dos usuários ao CAPS, e a produção de vida que é para além da doença, acaba não acontecendo na cultura, na educação e no trabalho. Quando o CAPS e a rede não produzem essas articulações com a cidade, não se avança na cidadania (P6).
Conforme essa profissional, é importante que a produção de vida e cidadania seja estimulada pelo CAPS. O serviço não pode criar uma relação restrita com o usuário, mas sim articular redes com a cidade. Para que ocorra um estímulo da produção de cidadania que extrapole o espaço do CAPS, deve-se levar em conta as diferentes instâncias da vida do sujeito:
Ao invés de trazer esses projetos para os serviços, a gente buscou isso na cidade, nós fazíamos teatro, reciclagem de papel e escola no EJA (Educação para Jovens e Adultos). Tudo que dá conta de uma inserção na cidade. Sair para ouvir música, por exemplo, tinha uma usuária que cantava muito, nosso trabalho era frequentar lugares com karaokê para ela cantar. Eu acredito que a cidade pulsa, produz, interfere e sai da lógica que a tua vida é a doença (P4).
O cuidado ampliado para os diversos cenários da cidade produz cidadania e aumenta a rede de circulação dos usuários. A fala dessa participante demonstra que isso acontece por duas vias. Uma em apoio para atribuições funcionais -como na educação e no trabalho- e outra na imersão em espaços culturais, que produzem qualidade de vida e aumento do bem-estar. Dessa forma, o tratamento considera a integralidade do sujeito e não tem mais como foco a cura, mas sim o exercício da cidadania (Santiago & Yasui, 2020).
Vale ressaltar que, apesar das profissionais trazerem componentes importantes da cidadania, não foram referidos alguns espaços democráticos significativos, como assembleias e conselhos de saúde. Esses ambientes representam o direito dos usuários de participarem ativamente nas decisões do cotidiano dos serviços e nas instâncias de controle social.
Diante do que foi abordado sobre cidadania, constata-se que é um pressuposto fundamental para o cuidado no CAPS. Salienta-se o resgate da cidadania como um dos principais objetivos da política de saúde mental. No entanto, as profissionais restringiram essas práticas a grupos sobre o acesso a direitos e benefícios, e a circulação na cidade. Ainda que estejam relacionados com o processo de cidadania, esses percursos aparentam ser mais pertencentes ao campo da reinserção social, como será observado no próximo eixo.
Questiona-se se alguns processos, que não chegaram a ser referidos, não estariam mais associados com cidadania, como: a luta de movimentos sociais, a elaboração de políticas que reconheçam os direitos dos usuários, e cenários de participação representativa. Assim, pela falta de uma conceituação mais específica de cada termo e pelo entrelaçamento dos dois pressupostos, apresentam-se imprecisões do que pertence a cada campo. Como possíveis entraves para sua efetivação, foi citada a restrição do cuidado no CAPS e a falta de articulação intersetorial e com a cidade.
(Re)inserção Social
No que diz respeito à reinserção social, sete participantes referiram sua importância no processo de cuidado. De acordo com as profissionais, a inserção social é realizada a partir de uma abertura para a comunidade, com atividades de socialização e um cotidiano em espaços diversos, como associações e escolas. Foi relacionada com a instância da cultura, da educação, do lazer e do trabalho, por meio de oficinas de geração de renda ou por emprego formal.
Portanto, reinserção social pode ser entendida como a instauração e/ou resgate de interações sociais prejudicadas. Constitui-se como um processo longo, paulatino e dinâmico, por envolver a desconstrução de estigmas e o estabelecimento da cidadania. Por fim, tem como objetivo a habilitação do sujeito para exercer seus direitos e deveres (Observatório de Informações Sobre Drogas, 2007).
No cenário de implementação dos CAPS, afirma-se que um de seus principais objetivos é a reinserção social. Esse movimento almeja propiciar a convivência com seus familiares, pares e outros segmentos da sociedade, assim como a ocupação de diferentes espaços sociais por meio de um fortalecimento da cidadania (Passos & Aires, 2013). Segundo uma profissional, pode se efetivá-la por meio de estratégias que oportunizam alguma forma de trabalho, seja com parcerias com empresas, ou com oficinas de geração de renda:
Que ele possa estar resgatando esse papel, ter o seu espaço de trabalho, como as oficinas de geração de renda. Alguns usuários mesmo que acompanhados no CAPS, também têm seu trabalho algumas horas por dia, tem alguns locais que trabalham com inserção social, mas que ainda é muito pouco (P8). Então, inclusão social é um referencial teórico que a gente usa. Hoje, pela via das cotas nas empresas formais tem o Jovem Aprendiz. A gente discute com o SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial), com várias formações, para que a gente não seja só um encaminhador de usuários, mas que a gente seja um acompanhador (P5).
A participação no mercado de trabalho -pela via de políticas inclusivas- é uma maneira de operar a inclusão social no sistema econômico atual, tendo em vista algumas barreiras (como preconceito e estigma). Um exemplo é a economia solidária, que possibilita a prática da cidadania no tecido social através da experiência de trabalho, como em oficinas e projetos de geração de renda (Santiago & Yasui, 2015).
Desse modo, amplia-se a atenção para instâncias que não são contempladas apenas com o tratamento dentro do CAPS, como a atuação laboral. Destaca-se que o Projeto Terapêutico Singular é um importante instrumento no qual essas questões podem ser desenvolvidas com o usuário.
Todavia, além do setor trabalhista, encontram-se outros âmbitos que compõem a vida relacional das pessoas e proporcionam integração social. Como exemplo há o investimento no campo cultural: Tem uma questão importante que é a reinserção social, no sentido de estar proporcionando atividades dentro do contexto social, através da participação de alguns eventos regionais importantes da cultura local. Acho que são momentos e espaços que a gente pode estar inserindo essas pessoas (P8).
O âmbito da cultura implica em viabilizar conhecimento sociopolítico e adentrar em contextos não ocupados anteriormente, com vistas à maior qualidade de vida por meio do exercício da convivência. Esses espaços produzem ciência da cultura local e possibilitam críticas e/ou identificações quanto às crenças e costumes regionais.
As atividades articuladas fora do CAPS permitem trocas afetivas em outros cenários. Essas estratégias motivam novos lugares para as pessoas em sofrimento psíquico no que concerne o campo cultural e social (Kammer et al., 2020). Em vista disso, buscar o cuidado integral possibilita expandir estratégias, compreender a vida do sujeito por diferentes prismas, e não focar apenas em sua doença:
Colocar entre parênteses a doença, em que não seja esta a que mande, então tem a doença que tem que tratar, mas tem a vida, tem a existência, a educação, o trabalho, a moradia, o lazer (...) e vamos trabalhar com essas relações para aumentar a contratualidade deles junto a sociedade (P10).
Acho que o risco é o CAPS capturar de novo o usuário na centralidade do cuidado, mas também na centralidade da vida. Nosso trabalho era muito na rua, na família, com a rede e pela inserção no trabalho (P6).
As duas profissionais ressaltam que a lógica da reinserção pretende descentralizar o cuidado do usuário e do serviço para estender às diversas esferas da vida. A proposta de ampliar a contratualidade dos usuários com a vida social é uma forma de romper com o antigo contrato “exclusivo” dos manicômios. Por consequência, se abre um leque de cenários, encontros e vivências recíprocas entre sujeito e sociedade.
O aumento do trato social dos usuários é construído a partir de práticas plurais que anseiam a sua inserção. Cabe afirmar que essas intervenções requerem coerência com a cultura e com os desejos do usuário. Portanto, reinserir o usuário no território não se reduz apenas a articulações com setores e serviços, ou introdução em outros espaços. A reinserção requer a construção na perspectiva do próprio sujeito (Ferreira & Bezerra, 2017).
A partir do que foi exposto, identifica-se que as entrevistadas desenvolvem estratégias de cuidado que visam à reinserção social. Essas ações apareceram como um movimento de circular em outros espaços além do CAPS, e também com políticas de inclusão. A relevância das práticas de reinserção está no investimento em outras instâncias da vida do sujeito, ao mesmo tempo em que trabalha com a desconstrução de estigma e com outras possibilidades que não apenas a doença. Contudo, o que não aparenta estar claro são as concepções desse termo nos discursos das participantes. Esse conceito é frequentemente explicado por meio de exemplificações de como é executado.
Conclusões
O modelo de atenção psicossocial teve como propósito reestruturar a política de saúde mental baseando-se na revisão de normas excludentes e discriminatórias. A partir disso, o sistema foi construído para a garantia de direitos civis e humanos, por meio de estratégias de cuidado que são, concomitantemente, pressupostos do paradigma, e práticas do cotidiano.
Considera-se que não é à toa que os pressupostos aqui abordados foram os mais lembrados pelas participantes. A reforma psiquiátrica trouxe como grande legado o reposicionamento do sujeito da loucura na posição de cidadão, sendo o cuidado no território, o desenvolvimento de autonomia e a sua reinserção, as suas maiores bandeiras. Os CAPS, enquanto dispositivos importantes, pensados para serem serviços de portas abertas e acolhedores, são um dos cenários no qual se conduzem a prática de tais elementos.
No tocante a esses pressupostos, identificou-se diferentes percepções e experiências sobre cada. A autonomia é apontada como imprescindível na construção de estratégias de cuidado. A pluralidade de entendimentos do termo e de exemplos praticados realça a sua importância nas práticas de cuidado. As ações no território foram citadas diversas vezes, mas sem um desdobramento necessário de como acontecem. Dessa maneira, discussões sobre possíveis obstáculos ou potencialidades, não foram desenvolvidas.
A cidadania foi definida como um dos grandes objetivos da política e está implicada em todo seu arranjo. A desconsideração de espaços importantes pode ser um sinal da falta de investimento nesses. A reinserção social foi destacada como estratégica para expandir o cuidado para outras esferas da vida que não a doença. A extrapolação do espaço do serviço busca a integralidade do cuidado, com o envolvimento de outros setores. Ao analisar os diferentes pressupostos, identifica-se a complementaridade deles no cotidiano. No tocante às dificuldades para operacionalização, constatou-se o cuidado atrelado apenas ao CAPS e a articulação insuficiente com a rede e com outros espaços.
Acredita-se que há relevo nessa discussão por revisitar pressupostos que alicerçam o paradigma psicossocial. A análise de como os princípios aparecem em estratégias de cuidado possibilita a avaliação de quais são as limitações e potencialidades das ações. Em consequência, abre-se possibilidades para (des)construções, problematizações e resoluções com fins de aprimoramento de um campo que está em constante mutação e desenvolvimento.
Por fim, uma das limitações desse estudo diz respeito a utilização de apenas a entrevista como fonte de dados, sem a inclusão de observações ou diário de campo. No entanto, salienta-se que os resultados refletem a complexidade do tema dos pressupostos enquanto elementos teórico-práticos no contexto da Atenção Psicossocial. A partir da identificação do entrelaçamento dos pressupostos, sugere-se que futuros estudos possam analisar como ocorre essa interconexão. A transversalização desses princípios pode colaborar na efetivação e na construção de novas práticas de cuidado em saúde mental.