O vírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave de Coronavírus 2 (Severe Acuter Respiratory Syndrome Coronavirus 2, SARS-COV-2) que liberou a COVID-19 (coronavirus disease) provocou mundialmente o período de pandemia. Nesse período, houve também, além da manifestação de sintomas que provocaram a morte de milhares de pessoas (UN Women, 2020), o aumento nos casos de violência, principalmente em mulheres que ficaram em isolamento em tempo integral (Boserup et al., 2020). Após o decreto do lockdown (período do isolamento), países como a França, Argentina e Espanha registraram um aumento de 30 % nos casos de violência, em comparação aos meses anteriores (UN Women, 2020). No Brasil houve uma diminuição nos casos registrados, ou seja, uma subnotificação dos casos de violência, por outro lado, houve um aumento no número de feminicídios durante esse período (Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 2020). Esse dado pode significar que as mulheres não estão conseguindo denunciar seus companheiros, e assim aumentando o risco letal a sua vida. Isso porque atos de abusos psicológicos muitas vezes ocorrem em concomitância com atos de abuso físico e/ou sexual por parceiros íntimos (World Health Organization (WHO), 2018).
Diversos são os tipos de violências que vêm ocorrendo nesses espaços privados em meninas e mulheres como abuso físico, psicológico, sexual e controle comportamental (Godin, 2020; Sandler, 2020; UN Women, 2020).
Nosso estudo focou precisamente nos abusos psicológicos, definidos como meio de intimidar ou ameaçar a parceira, forçando-a ao isolamento de amigos, família e ou de trabalho, com a finalidade de causar um dano ao bem-estar emocional (WHO, 2018). Esse tipo de abuso para Porrúa-García et al. (2016) e Rodriguez-Carballeira et al. (2014) está dividido em: estratégias diretas, que são as formas que afetam a cognição, emoção e os comportamentos; e as estratégias indiretas, que agem por meio da manipulação, coerção e pressão. Esses mecanismos não acontecem de forma isolada, mas sim de maneira conjunta, por isso o abuso psicológico é tão grave quanto o abuso físico. Muitas mulheres se submetem aos abusos psicológicos e nem tomam conhecimento que estão sendo violentadas, isso porque esse tipo de abuso acontece de maneira sutil e invisível. Pesquisa realizada por Aizpurua et al. (2021), Godin (2020) e Sandler (2020) identificaram que quanto mais controle do comportamento o parceiro tem sobre a parceira mais propício é o abuso psicológico. Logo essa forma de controle torna-se uma estratégia indireta sobre o comportamento da parceira por meio da pressão e manipulação.
Os abusos fazem parte de um processo contínuo que ocorre em todas as épocas do ano, isso porque a violência por parceiro íntimo é estrutural e pode ser derivada das instabilidades do apego durante o período da infância (Bowlby, 1969; Dutton & Painter, 1993; Dutton & White, 2012), ou seja, provocadas pelo vínculo traumático (Dutton & Painter, 1993). Esse vínculo traumático é a noção de que emoções fortes de um bom ou mau tratamento, aplicadas de forma intermitente pelo cuidador, podem produzir uma insegurança e isso contribui para o desenvolvimento do apego. Esses desvios de apego inseguro se manifestam nas relações íntimas por meio da dependência emocional, cujas demandas emocionais excessivas provocam relações desequilibradas, baseadas na idealização e submissão às vontades do parceiro, diminuindo o seu valor próprio decorrente da baixa autoestima (Petruccelli et al., 2014).
No atual cenário de pandemia está sendo visível as consequências mais graves das relações abusivas, o abuso físico e em alguns casos o feminicídio, levando os casos de abuso psicológico serem subnotificados (FBSP, 2020). É, justamente, nesse ponto crucial que focamos nossa pesquisa, pois, analisamos se o abuso psicológico possui uma relação direta com a dependência emocional, fazendo com que as mulheres se tornem mais susceptíveis às vontades de seus parceiros em virtude desse vínculo traumático. Além disso, analisamos o papel da autoestima na relação entre o abuso psicológico e a dependência emocional do parceiro. Testamos, além desse modelo, um modelo alternativo em que a dependência é preditora do abuso psicológico, sendo essa relação mediada pela autoestima. Esse modelo também é plausível, haja vista que esse processo acontece de maneira circular (cíclica). Afinal, quanto mais dependente forem as mulheres, mais elas permanecerão no relacionamento abusivo, aceitando todas as formas de manipulação em virtude da dependência emocional (Dutton & Painter, 1981; Walker, 1979).
Uma chave para o processo de aceitação e manutenção da violência
A teoria do vínculo traumático se baseia nos pressupostos teóricos da teoria do apego (Bowlby, 1969) e na teoria do desamparo aprendido (Seligman, 1975), além da teoria do ciclo da violência (Walker, 1979). Constitui-se de estruturas psicossociais que consideram tanto fatores sociais como fatores psicológicos, importantes no processo do entendimento da violência por parceiro íntimo (Dutton & Painter, 1981). Entende-se como fator social toda trajetória histórica da vida das pessoas (e.g., exposição a violência, principalmente no contexto do COVID-19, nível educacional), derivadas das relações patriarcais societais (Dutton & Painter, 1981; Walker, 1979) e como fator pessoal todos os fatores relacionados à pessoa (e.g., idade, sexo, personalidade, autoestima, dependência emocional, dentre outros) (Dutton & Painter, 1981). Dessa forma, a chave para compreender a permanência das mulheres em seus relacionamentos abusivos pode estar voltada para dois parâmetros fundamentais: o desequilíbrio de poder e o abuso intermitente (Dutton & Painter, 1981). O desequilíbrio de poder está relacionado à hierarquia nos relacionamentos amorosos. À medida que a vítima percebe essas demonstrações de poder, operacionalizada por meio da violência, mais ela negativa será a sua autoavaliação (i.e., baixa autoestima), e menos provável de sair desse relacionamento será, precisando cada vez mais de um dominador (Dutton & Painter, 1993).
A autoestima é definida como um conjunto de sentimentos e pensamentos acerca de si próprio (Sbicigo et al., 2010). Mulheres vítimas de violência podem expressar de forma negativa com a autoestima (Bigizadeh et al., 2021; Paiva et al., 2017), bem como a autoestima pode atuar como um moderador na relação para aumentar os sintomas de depressão e ansiedade (Costa & Gomes, 2018) e mediador na relação da violência doméstica com os sintomas da depressão (Kim & Kahng, 2011). O medo de ficar sozinho(a) e uma necessidade de agradar sempre o(a) parceiro(a) tende a diminuir a autoestima e aumentar a dependência emocional (Urbiola et al., 2017) que podem, por sua vez, aumentar as crenças que legitimam a violência pelo parceiro íntimo. A dependência fortalece o vínculo entre a pessoa em condição inferior e a pessoa em condição superior (Dutton & Painter, 1993). Além disso, a mulher dependente apresenta maior autonegação, isto é, rejeição da realidade, acreditando que o relacionamento não tem problemas (Moral & Ruiz, 2009).
Quanto à intermitência do abuso, esta é explicada pelas fases dos abusos: 1) aumento da tensão; 2) ataque violento; 3) e lua-de-mel, descritas pela teoria do ciclo da violência de Walker (1979). Dutton e Painter (1981), explicam que essas fases servem para conectar a vítima de violência a seu abusador como “colas milagrosas”. Assim, torna-se uma ambivalência entre o marido idealizado e o marido abusador. Mesmo após a separação dos cônjuges, é comum as mulheres voltarem a ter contato com seus parceiros, mantendo dificuldades de sair de relacionamentos abusivos (Dutton & Painter, 1981, 1993). Isso ocorre, em parte, porque elas são reforçadas pela sociedade que os seus cônjuges irão mudar e que por isso sempre merecem outras chances para essa mudança ocorrer, essa fase é conceituada como “lua de mel” (Walker, 1979). Com isso, o reforço ocorre de maneira intermitente entre emoções negativas e positivas no relacionamento (Dutton & Painter, 1981). Nessas relações em que há presença de abuso físico e psicológico, as demonstrações de poder exibidas pelas marcas corporais e ameaças a sua dignidade e a de seus filhos tornam a vítima impotente diante dessas situações. As vítimas, por sua vez, se vinculam a esses relacionamentos como uma homeostase, um processo de manutenção do equilíbrio interno (Dutton & Painter, 1993).
Nesses casos, o vínculo emocional nada mais é do que uma distorção cognitiva, caracterizada por uso de estratégias comportamentais que visam manter ambos (vítima e abusador), mesmo que de forma não intencional, na situação de violência por parceiro íntimo (De Young & Lowry, 1992). O dominador pode usar de estratégias indiretas destinadas a enfatizar a submissão e vulnerabilidade da pessoa dependente, como também pode utilizar de estratégias diretas, manipulando e fortalecendo os laços, com a finalidade de diminuir o sentimento de abandono, tanto de forma assertiva ou agressiva (e. g., intimidação, mantendo a vítima em situação de dependência emocional (Bornstein, 2006).
A dependência emocional é configurada como um padrão de necessidades não supridas emocionalmente, que produz respostas disfuncionais inadequadas nas relações interpessoais (Urbiola et al., 2017). Os dependentes afetivos deixam que outras pessoas decidam por eles, aceitando qualquer condição imposta pelo outro (Moral & Ruiz, 2009). Funciona como uma necessidade que só é aliviada mediante a presença do parceiro (Bution & Wechsler, 2016). Os indivíduos, de forma geral, perdem suas identidades para viverem em função do outro (Dutton & Painter, 1981), e até mesmo passam a aceitar mais os abusos nos relacionamentos (Petruccelli et al., 2014).
Para Rathus e O’Leary (1997) a dependência emocional se divide em três tipos: o apego ansioso, a dependência exclusiva e a dependência emocional. O apego ansioso é identificado como uma ansiedade por medo da separação do cônjuge, causado pelos sentimentos de abandono e fraco vínculo afetivo. A dependência exclusiva é identificada como uma dedicação exclusiva ao parceiro, como se não houvesse outras pessoas que as importasse mais do que o parceiro. E a dependência emocional é caracterizada como uma necessidade suprida a partir do parceiro, necessitando a todo custo ficar com o parceiro, mesmo que esse seja o agressor. Nossa pesquisa foca justamente nesses aspectos da dependência emocional, como um fator contribuinte para a manutenção dos relacionamentos abusivos.
Neste sentido, objetivamos de forma geral conhecer as relações entre o abuso psicológico, autoestima e dependência emocional em mulheres durante a pandemia de COVID-19. Além disso, objetivamos analisar o perfil e as características sociodemográficas das participantes. Pois, o presente estudo se debruçou sobre as implicações psicossociais do contexto da pandemia na vida de mulheres brasileiras.
Os impactos da pandemia nos relacionamentos de casal ainda são desconhecidos. Nossas hipóteses são orientadas pelos aportes teóricos que justificam a necessidade de testes para comprovação dos fenômenos que propomos a responder. As seguintes hipóteses foram testadas: (1) Esperamos que o abuso psicológico possa predizer positivamente a dependência emocional e que esse processo é mediado pela autoestima, com base na teoria do vínculo traumático. Justificamos nossa hipótese com base no argumento de que o abuso psicológico é um acontecimento traumático que provoca nas vítimas uma diminuição da autoestima, colaborando dessa forma para que essas vítimas tenham um apego maior, que se configura como dependência emocional. Quanto mais abuso essa mulher sofre, mais se tem a necessidade de ter um parceiro, tornando-se dependente dessa relação abusiva (Amor & Echeburúa, 2010). Nesse sentido, um estudo de Moral et al. (2017) verificou as relações existentes entre violência no namoro, dependência emocional e autoestima em adolescentes e adultos jovens. Como resultado, foi mostrado que houve maior dependência emocional e menor autoestima naqueles vitimizados em comparação com os não vitimizados. Logo, objetivamos de forma específica que o abuso psicológico seja também um preditor da dependência emocional e da autoestima em mulheres adultas.
(2) Haja vista o caráter cíclico dos processos de abuso psicológico e dependência emocional, esperamos que um modelo alternativo também seja possível. Neste sentido, objetivamos de forma específica que a dependência emocional também possa predizer positivamente o abuso psicológico e que essa relação é mediada pela autoestima. Esse modelo ainda não foi testado por essa teoria, apesar da mulher vítima de abuso permanecer nessa relação abusiva pela dependência emocional criada a partir do vínculo traumático, que tanto pode ser derivado da exposição a violência de pessoas importantes (e.g., pai, mãe) como da própria experiência observada.
(3) Prevemos também que a relação entre o abuso psicológico e a dependência emocional mediada pela autoestima ocorre dependendo da idade da mulher. Hipotetizamos de forma específica que esse processo relacional ocorra em mulheres mais jovens. Pois, estudo como o de Moral et al. (2017) demonstrou que mulheres que estavam no ensino médio eram mais vitimizadas e se apresentavam mais dependentes emocionalmente de seus parceiros em comparação a mulheres que estavam no ensino superior. A WHO (2018) afirmou que cerca de um terço das meninas e mulheres entre 15-49 anos já sofreram algum tipo de violência doméstica. Logo a idade pode ser uma variável importante nas relações entre esses construtos.
(4) E por fim, objetivamos de forma específica que haja diferenças significativas quanto a dependência emocional (nos fatores específicos apego ansioso, dependência emocional e dependência exclusiva) e quanto ao abuso psicológico em mulheres que estavam convivendo em tempo integral com seus parceiros(as), assim como aquelas que estavam morando com o parceiro(a) durante o isolamento social recomendado pelos órgãos de saúde durante a pandemia de COVID-19.
Método
Participantes
A amostra contou com 222 mulheres entre 18 e 66 anos (M= 27,9; DP= 7,80), a maioria estavam namorando (53,3 %) ou são casadas (44,1 %). A maioria das participantes afirmou ser heterossexual (76,6 %) e estava morando com o parceiro (a) (61,4%), convivendo em tempo integral (45,5 %) ou parcial (33,8 %). Em relação à escolaridade a maioria, 35,6 % possuía ensino superior incompleto. Grande parte afirmou ser de religião católica (35,1 %), e possuía renda entre 1 e 3 salários mínimos (34,2 %).
Os critérios de inclusão foi ser mulher, com idade acima de 18 anos e capaz de compreender os itens dos instrumentos. Também perguntamos se as participantes sofreram algum tipo de violência durante o período que estavam isoladas socialmente devido à pandemia. Dentre os abusos, 14 mulheres (6,3 %) relataram sofrer abuso psicológico (n= 10) e mais de uma forma de abuso (n= 4), incluindo física, sexual ou patrimonial. Este estudo e tamanho da amostra (N= 222) forneceram 80% de poder de teste (efeito médio = 0,88; equivalente a η2 p= 0,05), calculado por WebPower (Schoemann et al., 2017).
Instrumentos
Escala de Abuso Psicológico na Parceira (EAP-P) desenvolvida por Porrúa-García et al. (2016) validada para o Brasil por Paiva et al. (2020). A medida é composta por 19 itens distribuídos inicialmente em 2 fatores: 1) Estratégias diretas do abuso psicológico (e.g., “Meu/minha parceiro(a) interpretou de seu modo as coisas que nos afetaram”; e 2) Estratégias indiretas do abuso psicológico (e.g., “Meu/minha parceiro(a) me impediu de fazer atividades que eu gostava”). Essa escala também pode ser avaliada de maneira unifatorial por ter sido validada como bi-factor (α = 0,92). Foi usado o modelo Likert avaliando a frequência com que as estratégias são cometidas nas mulheres, em um padrão de respostas entre 0 (nunca) e 4 (sempre).
Escala de Dependência Específica do Cônjuge para Mulheres (EDEC-M) construída por Rathus e O’Leary (1997) e validada para o Brasil por Paiva et al. (2021). Composta por 30 itens agrupados inicialmente em 3 fatores: 1) Apego ansioso (e.g., “Fico ansioso(a) se eu acho que o(a) meu/minha parceiro(a) está chateado(a) comigo”); 2) Dependência emocional (e.g., “Eu gosto do meu/minha parceiro(a) por ele(a) ser protetor(a) e compreensivo(a)”) e; 3) Dependência exclusiva (e.g., “Raramente eu durmo se o(a) meu/minha parceiro(a) não estiver comigo”). Para avaliarmos esse construto somamos todas as subescalas formando um fator de segunda ordem da dependência emocional geral (α = 0,92). As respondentes usaram uma escala do tipo Likert entre 1 (discordo totalmente) e 7 (concordo totalmente).
Single-Item Self-Esteem Scale (SISES), construída por Robins et al. (2001), e possui evidências de validade convergente com a Rosenberg Self-Esteem Scale (RSE) em amostra brasileira (Pimentel et al., 2018). O instrumento é composto apenas por 1 item. “Eu tenho autoestima”. Os participantes respondem em uma escala do tipo Likert variando de 1 (não é comum para mim) a 7 (muito comum para mim).
E um questionário sociodemográfico com as informações: idade, sexo, estado civil, orientação sexual, renda, religião, escolaridade, quanto tempo estão passando com o(a) parceiro(a), e se estão morando com seu/sua parceiro(a) em tempo integral durante a pandemia. Além disso, perguntamos se as participantes estavam em isolamento social (sim ou não) e se durante o isolamento social elas estão sofrendo algum tipo de abuso (sim ou não), se sim qual o tipo de violência.
Procedimentos
Inicialmente o estudo foi submetido à aprovação do comitê de ética (CAEE: 09344918.5.0000.5188; parecer nº 4.098.062). A participação foi iniciada após os participantes concordarem com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A coleta foi realizada por meio de redes sociais, de forma online durante o período de isolamento vertical (17 de junho a 5 de julho de 2020). O link da pesquisa foi divulgado em redes sociais como Instagram e grupos de mulheres no Facebook. As respondentes foram informadas de que a pesquisa seguia as recomendações da Resolução 510/16 do Conselho Nacional de Saúde. Os instrumentos foram apresentados aos participantes seguindo a lógica do modelo, primeiro apresentou-se a escala de abuso psicológico em seguida a escala de autoestima e por último a escala de dependência emocional. Ao final do instrumento foi divulgado o número de denúncia contra violência contra mulher, além disso, as pesquisadoras forneceram o contato para eventuais dúvidas.
Análise de dados
Os dados foram analisados por meio do software IBM SPSS (versão 22.0) e pelo macro PROCESS para (Hayes, 2017). Foram realizadas estatísticas descritivas para caracterização da amostra nos construtos avaliados. Ainda, testes Shapiro-Wilk para verificar a distribuição normal dos dados foram realizados. Violações de normalidade para testes paramétricos foram corrigidos por meio da técnica de bootstraping com 1000 simulações. Para testar as hipóteses, estatísticas inferenciais como análises de correlação de Pearson, mediações simples (modelo 4), mediação moderada (modelo 15) e Análises de Variância (ANOVA) para comparação dos escores em relação ao tempo de convivência e as participantes que moram ou não com parceiro(a).
Resultados
Realizamos a estatística descritiva para analisar a média e os desvios padrões das escalas na amostra. Analisamos também o teste de normalidade Shapiro-Wilk (Ghasemi & Zahediasl, 2012) para avaliarmos a distribuição dos dados na amostra. Quanto mais assimetria, mais distante de zero o fator estará, e quanto menor a curtose menos achatada a curva de frequência das respostas estará. Observamos que dependência emocional (em todos os seus fatores) e a autoestima possuiu assimetria próxima de 0 e a curva mais achatada. Enquanto que o abuso psicológico possuiu uma assimetria mais distante do 0 e a curtose mais alongada. Desta forma, consideramos os escores de dependência emocional e a autoestima com distribuições aproximadamente normais e o abuso psicológico com distribuição assimétrica (Tabela 1). Com isso, todas as técnicas implemetadas a seguir foram conduzidas com bootstraping de 1000 simulações para correção da normalidade.
Para conhecermos se as variáveis possuem um relacionamento entre elas, realizamos uma correlação de Pearson, bicaudal (Tabela 2). O abuso psicológico se correlacionou com todos os fatores da dependência emocional, bem como se correlacionou com a autoestima, a idade do participante e o tempo de convivência com o(a) parceiro(a). Deste modo, inferimos que quanto maior o abuso psicológico vivenciado menor será a autoestima e maior será a dependência exclusiva e apego ansioso nas participantes. O fator dependência emocional se correlacionou negativamente com o abuso psicológico, indicando que quanto maior for o abuso psicológico menor será a dependência emocional. O tempo de convivência também possui uma correlação positiva com o abuso psicológico, isto é, quanto maior o tempo, mais abuso psicológico a participante poderá sofrer.
Para uma análise mais robusta, testamos as hipóteses 1 e 2 por meio de modelos de mediação simples. Nesse modelo agrupamos os fatores da dependência emocional, pois estes formaram o fator de segunda ordem com a finalidade de avaliarmos o fenômeno da dependência emocional de modo geral. Os resultados são apresentados na figura 1. No modelo 1 o abuso psicológico (AP) previu significativamente a dependência emocional (DE) mediado pela autoestima (R²= 0,14). O efeito direto (b= 0,47; EP = 0,11; p< 0,001; IC95%: 0,25; 0,68) do AP na DE foi menor do que o efeito total (b= 0,55; EP= 0,20; p< 0,001; IC 95%: 0,34; 0,75). O efeito indireto significativo (b= 0,08; EP= 0,03; IC 95%: 0,02; 0,15) mostrou que a relação indireta também existe, por meio de uma mediação parcial. No modelo 2 alternativo, a DE previu o AP mediada pela autoestima (R²= 0,15). O efeito direto (b= 0,17; EP= 0,04; p< 0,001; IC 95%: 0,09; 0,25) foi menor do que o efeito total (b= 0,20; EP = 0,04; p< 0,001; IC 95%: 0,13; 0,28). O efeito indireto foi significativo (b= 0,03; EP= 0,01; IC 95%: 0,01; 0,06), indicando também uma mediação parcial. Dessa forma, as hipóteses 1 e 2 foram confirmadas. Há relação indireta entre os construtos por meio da autoestima. Entretanto, o modelo 1 apresentou maiores coeficientes de regressão. Figura 1
Uma análise de mediação moderada pela idade foi efetuada com o modelo 1 para testar a Hipótese 3. Os resultados evidenciaram uma interação estatisticamente significativa entre a idade e a autoestima (b= 0,02; EP= 0,01), todos a nível p= 0,04, de modo que o efeito indireto da mediação ocorreu apenas para mulheres com faixa etária até os 33 anos (b= 0,13; EP= 0,05; IC 95%: 0,05; 0,22), mas não para mulheres acima de 34 anos (b= 0,04; EP= 0,04; IC 95%: -0,03; 0,11). Sendo assim, em mulheres acima de 34 anos, a dependência emocional apresentou-se mais relacionada pelo abuso psicológico. Já em mulheres mais abaixo dos 34 anos, a redução da autoestima indiretamente levou a uma predição mais forte do abuso psicológico sobre a dependência emocional.
Avaliamos se existem diferenças estatisticamente significativas nos fatores isolados da dependência emocional, quanto ao tempo de convivência com o parceiro e se estava morando com seu parceiro durante o período da pandemia. Encontramos diferenças estatisticamente significativas em relação ao tempo de convivência durante o isolamento social no abuso psicológico (F(2, 222) = 3,93; p= 0,021) e na dependência exclusiva (F(2, 219) = 4,86; p= 0,009). Comparações múltiplas com correção de Tukey evidenciaram que as mulheres que convivem em tempo integral com o(a) cônjuge (M= 1,20; DP= 1,36) relataram maior abuso psicológico quando comparadas àquelas que não conviveram (M= 0,55; DP= 0,49), todos a nível de p= 0,018. Além disso, foi observado um menor apego exclusivo em mulheres que não conviveram (M= 2,48; DP= 0,83) quando comparadas àquelas que vivem em tempo integral (M = 2,97; DP = 0,90), todos a nível de p= 0,023 e parcial (M= 2,94; DP= 1,02), todos a nível de p= 0,009. Também foi observada diferença em relação ao fato de morar com parceiro(a) (F(1, 221) = 5,59; p=0,019) no apego ansioso. Nas mulheres que não estavam morando com seu parceiro (a) durante o isolamento social, ocorreu um maior apego ansioso (M= 3,87; DP= 1,23) quando comparadas àquelas que estavam morando (M= 3,46; DP= 1,27). Sendo assim, há indícios de que o tempo de convivência e o fato de residir com parceiro(a) durante o isolamento social decorrente da pandemia se relaciona positivamente com o abuso psicológico sofrido, dependência exclusiva e apego ansioso das mulheres.
Discussão
Nosso objetivo foi aplicar a teoria do vínculo traumático (Dutton & Painter, 1981) para entender o processo da manutenção da vítima de violência em relacionamentos abusivos durante a pandemia do COVID-19. Nossa primeira hipótese repousou no fato de que as mulheres que sofrem com o abuso psicológico, diminuíram sua autoestima e consequentemente aumentaram a dependência emocional do(a) parceiro(a). Nossa primeira hipótese foi corroborada, por meio do modelo 1, ao evidenciar que o vínculo traumático (representado no presente estudo pelo abuso psicológico), possuiu uma relação direta com a dependência emocional, bem como foi mediado pela autoestima negativa. Isto é, as mulheres que sofrem com o abuso psicológico tanto podem manter uma dependência emocional sem precisar de um mediador, como podem legitimar a aceitação do abuso psicológico por meio da autoestima negativa.
Esse dado ainda é pouco explorado, apesar de haver estudos que foquem na relação da dependência emocional e a violência sob a perspectiva do modelo do investimento (Drigotas & Rusbult, 1992), demonstrando que as pessoas permanecem no relacionamento mesmo insatisfeitas por uma necessidade de cumprir o que não pode ser gratificado de outras formas. Essa necessidade é denominada de dependência emocional, que tenta preencher de maneira distorcida o que não é gratificado de nenhuma forma se não estiver com o parceiro de forma exclusiva (Bornstein, 2006; Bution & Wechsler, 2016). E isso pode ser um passo importante para se entender o processo de permanência nos relacionamentos abusivos (Amor & Echeburúa, 2010; Rathus & O’Leary, 1997).
Entretanto, ao avaliarmos as correlações preliminares entre os construtos, observamos que apenas o apego ansioso e a dependência exclusiva se correlacionaram positivamente e mais fortemente com o abuso psicológico. O fator dependência emocional, diferentemente do esperado, se correlacionou negativamente e com coeficiente de magnitude baixa. Esse resultado pode ter ocorrido por questões relacionadas ao conteúdo dos itens da Escala de Dependência Específica do Cônjuge para Mulheres (EDEC-M), validada por Paiva et al. (2021), que foi utilizada neste estudo, demonstra que a maioria de seus itens expõe uma conotação mais positiva e até romantizada da dependência emocional, a exemplo dos itens 18 (“Meu/Minha parceiro(a) é o(a) único(a) que realmente me entende”); 21 (“Eu gosto do meu/minha parceiro(a) por ele(a) ser compreensivo(a)”); 24 (“Prefiro enfrentar as adversidades da vida com meu/minha parceiro(a) ao meu lado”). Logo, sugere-se evidências de elos mais positivos estão negativamente correlacionados com o abuso psicológico por mascarar a dependência como forma do amor romântico.
Em relação ao apego, este é preditor para a violência (Rathus & O’Leary, 1997), logo, o vínculo traumático se torna mais forte à medida que existe apego em um processo cíclico ou de retroalimentação. E foi justamente nesse argumento que instauramos o modelo alternativo (modelo 2). Deste modo, verificamos que a dependência também possui relação direta com o abuso psicológico, e que essa relação também é mediada pela autoestima. Indicando que quanto mais dependente as mulheres forem, maior o impacto negativo na autoestima, e mais vulneráveis elas estarão ao abuso psicológico. Esse processo confirmou nossa hipótese 2, sendo importante para entender que a manutenção do abuso psicológico também é a dependência que a mulher tem de seu/sua parceiro(a), assim como estar exposto pela teoria do vínculo traumático. Com isso, evidenciamos que o processo é cíclico na medida que a mulher sofre a violência, ela diminui a autoestima, e passa a depender emocionalmente do seu agressor, e nesse processo em que ela se encontra dependente emocionalmente, ela continua a aceitar o seu sofrimento abusivo permanecendo no relacionamento. Esse processo todo pode representar uma cadeia que é justificada pela autoestima negativa para algumas mulheres, pois, quando legitimamos a autoestima como mediador, esta representa um dos elementos imprescindíveis a ser trabalhada em processos psicoterápicos.
Mulheres que estão em relacionamentos agressivos relatam mais dependência não voluntária (i.e., evitam terminar o relacionamento por pensarem que podem passar por uma situação pior em outro relacionamento; Thibaut & Kelley, 1959) do que mulheres que não passaram por relacionamentos abusivos (Tan et al., 2018). Isso porque dependendo do nível de comprometimento dessas mulheres em seus relacionamentos isso pode se tornar uma ferramenta de manutenção do relacionamento abusivo (Bornstein, 2006; Bution & Wechsler, 2016). É importante destacar que a literatura aponta que a baixa satisfação nas relações conjugais em casais com VPI é algo recorrente e, portanto, não necessariamente é o que influencia na manutenção ou rompimento do ciclo violento (Tan et al., 2018). Quanto mais comprometida com a relação essa mulher estiver, mais predisposta ela estará para manter este relacionamento e mais difícil será sair dele, pois, ela pode se culpabilizar pelo relacionamento ter acabado. Neste sentido, a dependência emocional se manifesta em diferentes formas, seja ele como o comprometimento do relacionamento que leva a devoção do parceiro (Tan et al., 2018), ou como também pode levar a um apego ansioso do parceiro como o medo de perder o seu objeto de amor (Bowlby, 1969; Dutton & Painter, 1993; Dutton & White, 2012). Isso pode variar em decorrência das faixas etárias das mulheres também (Petruccelli et al., 2014).
Nosso estudo demonstrou que mulheres com faixas etárias entre 18 e 33 anos possuíam uma dependência emocional mais forte do que mulheres com faixa etária acima dos 34 anos. Ainda, observamos que nesse grupo de mulheres que o processo psicológico testado foi mais forte, ou seja, uma relação entre o abuso psicológico e a dependência emocional apresentou maiores coeficientes. Esse dado corrobora com nossa hipótese 3, e está dentro do intervalo de confiança comprovado pela WHO (2018), como também foi similar ao estudo realizado por Moral et al. (2017), em que meninas com até os 18 anos (estudantes de ensino médio) eram mais vitimizadas e isso faz com que elas diminua a autoestima, elevando o nível de dependência emocional do parceiro. Além disso, Petruccelli et al. (2014) encontrou em seus estudos que as mulheres com idades entre 32-34 anos, apresentavam níveis mais altos de dependência exclusiva e apego ansioso, isto é, quanto mais apego ansioso maior será seu medo de perder seu parceiro(a) ideal. De certo modo, esses estudos são coerentes, haja vista que um dos fatores possíveis dessa dependência é o vínculo traumático e o nível de comprometimento que essas mulheres têm em relação a seus relacionamentos.
Um estudo de Christman (2009) observou que o vínculo traumático é mediador da relação do apego e a intenção de retornar para seu agressor. Essas vítimas também perdoam mais facilmente com a finalidade de permanecer nesse relacionamento. Relacionamentos em que as mulheres estão engajadas há mais de 4 anos e que já possuem um vínculo traumático, e/ou que já foram deixadas por seus companheiros demonstram mais dependência exclusiva (Petruccelli et al., 2014).
Nosso estudo também demonstrou que as mulheres que estavam convivendo com seu parceiro(a) durante o período do isolamento tinham mais dependência exclusiva do parceiro (a), isto é, quanto mais tempo as mulheres passam a ter dentro de seus lares, mais elas se tornam dependentes de seus parceiros. Isto é, obtiveoms eviências que confirmou nossa hipótese 4, mostrando que aquelas mulheres que estão morando com seus parceiros podem apresentar níveis mais elevados de apego ansioso, mais medo de ficar longe de seus parceiros com medo de serem abandonadas. Além disso, o tempo de convivência mostrou diferenças significativas no abuso psicológico, de modo que mulheres que convivem em tempo integral com os cônjuges relataram enfrentar maior abuso psicológico.
Neste sentido, de acordo com Bradbury-Jones e Isham (2020), a atual pandemia de COVID-19 apresenta-se como paradoxo único e angustiante para as mulheres vítimas de violências nos relacionamentos íntimos. Ou elas ficam em casa com seu parceiro(a) correndo o risco de sofrerem mais violência, ou saem de casa e correm o risco de serem expostas a um vírus altamente infeccioso e perigoso. O controle coercivo é uma marca registrada dos relacionamentos abusivos e segundo estudos, os abusadores usam o vírus da COVID-19 para instigar o medo e obediência em suas parceiras (Godin, 2020; Sandler, 2020), fazendo parte do repertório do abuso psicológico.
Apesar dos resultados encontrados, o presente estudo não está isento de limitações. Uma das limitações encontradas, é o fato da escassez de estudos empíricos que comprovem as hipóteses elencadas nesse estudo, de forma que esse possa ser comparado transculturalmente. A maioria dos estudos são sobre a teoria em si (Amor & Echeburúa, 2010; Ramos, 2005) e não focam em modelos preditivos ou experimentais. Uma das sugestões para estudos posteriores seria a exploração de mais pesquisas para ampliação desse arcabouço teórico, que deverão abordar fatores sociais. Outra limitação se refere às características da amostragem, por ser não-probabilística (por conveniência) e grande parte da amostra composta por mulheres com ensino superior, ponderando-se, portanto, a generalização dos resultados para toda a população de mulheres. Uma minoria de 6,3% afirmou sofrer abuso psicológico ou outros tipos de abusos (físicos, sexuais, patrimoniais). Recomenda-se que estudos futuros alcancem participantes de amostras específicas, como o caso das mulheres que estão sofrendo abuso psicológico em concomitância com outros tipos de abusos, que visem relacionar a recorrência das diversas formas de violências com a dependência emocional e a autoestima.
Conclusão
Esse estudo foi importante para testar um processo psicológico da relação entre o abuso psicológico, a autoestima e a dependência emocional, sob o domínio da teoria do vínculo traumático (Dutton & Painter, 1981). Posto isso, entende-se que o presente estudo é necessário e relevante, sobretudo no contexto atual da pandemia do COVID-19, uma vez que tal contexto pode colocar em risco mulheres em virtude das restrições de mobilidade, as quais por sua vez dificultam vias de fuga, busca de ajuda e formas de enfrentamento. Ademais, esperamos que esse estudo contribua em processos psicoterápicos aplicando em vítimas de violência entrevista motivacional e autogerenciamento das emoções (Sussman, 2010), bem como na proposição de políticas educativas quanto ao impacto da violência na autoestima, e por sua vez na dependência, bem como, de como a dependência desempenha um papel na manutenção e aceitação da violência contra a mulher. Pois, nosso estudo demonstrou como os mecanismos psicológicos conseguem atuar na aceitação do abuso psicológico bem como também na aceitação da dependência emocional, a partir das abordagens científicas (Bowlby, 1969; Dutton & Painter, 1993; Dutton & White, 2012; Thibaut & Kelley, 1959; Walker, 1979) que ajudaram a identificar os mecanismos dos fatores pessoais que estão subjacentes ao risco da letalidade dos abusos psicológicos contra as mulheres.