1. Introdução
A centralidade do discurso do direito na legitimação das respostas políticas sobre os mais diversos conflitos sociais e a convergência das linguagens política e jurídica promovida pela Constituição têm reforçado a semântica do direito como fonte relevante do exercício do poder em sociedades progressivamente mais complexas. No caso da experiência constitucional brasileira, esse reforço foi acompanhado do aumento do protagonismo político de representantes do Poder Judiciário e do Ministério Público.
Antes vistos como intérpretes da aplicação da lei segundo técnicas hermenêuticas seculares, cujo domínio lhes facilitava a defesa do argumento de que se localizavam numa posição neutra em relação aos interesses submetidos a seu julgamento, os juízes, inclusive o de Cortes inferiores, passaram a decidir conflitos políticos sensíveis com maior frequência, razão pela qual começaram a ser vistos e a se auto-observarem gradativamente como árbitros qualificados das disputas mais significativas do sistema político (Carvalho, 2017). Pode-se dizer que, ao assumirem o papel de juízes da Constituição e não apenas das leis, os representantes do Judiciário e do Ministério Público alçaram a si próprios à condição de estabilizadores e catalisadores das tensões entre a política e o direito. No Brasil, a partir de 2014, marco temporal deste artigo, essa condição parece ter sido reforçada justamente no momento quando a crise econômica alimentava as crises política e institucional e vice-versa (Pinto, et al., 2019). De fato, o mês de março de 2014 marca o início da operação Lava-Jato, a ocorrência de eleições presidenciais e o fortalecimento de movimentos organizados de direita, fatores que impulsionaram o crescimento de protestos nas ruas e o agravamento da crise política.1 Foi a partir desse contexto, como se demonstrará adiante, que as elites do campo jurídico utilizaram prerrogativas outorgadas pelo desenho institucional para garantir benefícios a suas categorias profissionais, dando substrato a ações antidemocráticas.
Essa é uma perspectiva que ganha relevância quando observado o acesso diferencial à informação e circulação de ideias num ambiente social estruturado de acordo com condições tão desiguais quanto as que separam sobrecidadãos e subcidadãos no Brasil. Logo, a descrição do papel desempenhado pela elite do sistema de justiça no processo de corrosão da democracia representativa demanda especialmente avaliar como a elite judicial se insere no panorama sócio-econômico e que tipo de alianças ela estabelece com as outras elites. Num país cuja profunda desigualdade se reflete na qualidade dos serviços públicos de educação e saúde oferecidos à mais significativa parcela da população, o acesso diferencial às boas escolas, universidades e melhores oportunidades de trabalho marcam uma distinção muito clara na autopercepção dos ocupantes de funções públicas, em especial aquelas ligadas às carreiras jurídicas.
Sobre o ponto, dois registros parecem importantes como pressupostos conformadores da sociabilidade do campo jurídico no Brasil. O primeiro deles está no formato que constitui a educação das elites jurídicas, a tradição formalista e os vínculos de solidariedade construídos no ambiente profissional e corporativo da chamada comunidade jurídica, sobre o qual a literatura das ciências sociais já explorou sob diversas vertentes (Carvalho, 1996; Bonelli y Oliveira, 2003; Almeida, 2014; Vianna y Bom Jardim, 2015). O segundo ponto está na investigação sobre as relações criadas e mantidas entre os integrantes da elite do campo jurídico e judicial e os agentes que representam os interesses de outros domínios do sistema social, como a economia e a política (Halliday, 1999; Almeida, 2016; Engelmann y Penna, 2014), e que se concretizam, inclusive, na institucionalização de reformas do próprio sistema de justiça segundo parâmetros definidos por agências internacionais e transnacionais orientadas pela constelação dos interesses de mercado do norte global (Dezalay y Garth, 2002; Rodríguez-Garavito, 2011).
Assim como na formação de outros grupos profissionais, a profissionalização do campo jurídico segue uma orientação estratégica de acúmulo de poder, prestígio e renda. O objetivo de ganho econômico comum aos profissionais do direito, no entanto, não oculta o fato de que é também através da constituição de um monopólio da articulação da linguagem jurídica que os juristas operam uma ordem simbólica e através dela promovem socialmente o status privilegiado de suas atividades. A organização de agrupamentos profissionais em torno de objetivos econômicos comuns através de mecanismos de legitimação da renda é ainda uma das formas de organizar a desigualdade estrutural de oportunidades na divisão do trabalho.
Se, por um lado, o fortalecimento das elites judiciais foi mobilizado diretamente pelo protagonismo das corporações e representantes das carreiras que integram o sistema de justiça (Carvalho, 2017; Arantes y Moreira, 2019), por outro, o reforço da autonomia do judiciário parece ter criado um substrato institucional que permitiu aos seus integrantes se autocompreenderem como agentes de um campo moralizador da política ao mobilizar o discurso anticorrupção. Tal condição os habilitou à condução do próprio discurso antipolítico. A construção desse discurso, por sua vez, é operada pela instrumentalização das próprias formas jurídicas, o que incentiva usos não democráticos do direito e reforça a desintegração das bases democráticas da política através de uma retórica moralizante.
Utilizando a técnica de revisão bibliográfica associada à coleta de documentos e dados sobre a atuação judicial e a crise política, o presente trabalho levanta a hipótese de que, ao se apresentarem como agentes da legalidade ao tempo em que violam as expectativas juridicamente protegidas, o comportamento de magistrados e de membros do Ministério Público contribui para o aprofundamento da crise político-institucional brasileira.
Além desta introdução, o artigo está dividido em três tópicos e considerações finais. O primeiro deles apresenta uma descrição do modo pelo qual juristas e juízes articularam publicamente sua pauta anticorrupção através da moralização do discurso jurídico e político no pós-2014. Em seguida, o texto avalia a ascensão de tal movimento no Brasil como um possível exemplo do fenômeno global da juristocracia com características locais específicas do processo de aprofundamento da subintegração de parcelas significativas da população diante da crise. Assinala-se que a intersecção entre interesses de corporações e de classes sociais dominantes resultou em benefícios mútuos aos integrantes de ambas as elites. Então, no terceiro tópico, o artigo identifica quais os elementos da conjuntura apresentada ajudam a evidenciar como a ação dos juristas atacou o sistema político, abrindo caminho para a progressiva desintegração da democracia no país, especialmente após a destituição de Rousseff, e o crescimento da radicalização do discurso da extrema-direita que levou Jair Bolsonaro à vitória presidencial, e que agora testa a consistência das instituições políticas brasileiras. Por fim, nas considerações finais, descreve-se como a moralização do direito e da política tem levado o país a uma nova face da crise diante do reforço de semânticas antidemocráticas, que parecem concorrer entre si em busca de sua legitimação hegemônica no processo político.
2. Os juristas, os juízes e a política no Brasil no pós-2014
Juízes e juristas sempre estiveram presentes nos momentos mais relevantes da vida político-institucional do país. Contudo, a conjunção de fatores que conferiu um poder inédito aos juízes, em especial aos ministros do Supremo Tribunal Federal, foi fortalecida pelo desenho institucional da Constituição de 1988. A partir dela, fizeram-se presentes algumas das condições estruturais de reforço da autonomia dos órgãos judiciais e de todo o sistema de justiça. Pode-se dizer que tal contexto reforçou os vínculos de solidariedade entre as elites judiciais e políticas, que podem ser explicados tanto em função do compartilhamento de ideologias por seus membros, quanto pela existência de uma lealdade lastreada em bases societárias (Engelmann, 2017). Neste sentido, a forma pela qual as decisões políticas são impostas e o direito é aplicado não pode deixar de levar em conta tais laços estreitos e a ausência de estruturas normativas robustas, as quais poderiam proporcionar ao direito consistência interna e abertura seletiva aos influxos de seu entorno.
Fortalecidos por uma série de prerrogativas legais e constitucionais e posicionando-se a partir dos objetivos da própria corporação a partir do discurso jurídico, membros e associações de órgãos judiciais construíram uma imagem pública que relacionava o sistema de justiça ao combate à corrupção. Ao ocupar tal posição, quando os principais veículos de comunicação do país mostraram-se, ao menos, indiferentes à corrosão de estruturas do sistema político democrático, por identificá-lo reiteradamente com a corrupção, a posição institucional de alguns juízes e membros do Ministério Público tornou-se não só um privilégio proporcionado pelo exercício da profissão, mas também uma fonte de oportunidade política.
A conformação dessa reserva moral, construída também a partir de massivo apoio popular, alçou membros do judiciário e do Ministério Público a uma posição de destaque no cenário político-institucional. O domínio do discurso jurídico tornou-se um recurso ainda mais valioso quando a teatralização da apuração dos escândalos de corrupção ganhou tempo e espaço nos meios de comunicação e nas redes sociais. Pode-se dizer, então, que os profissionais do campo jurídico envolvidos na investigação e julgamento dos casos de corrupção passaram a ser vistos como opinantes qualificados na definição jurídica do que viria a ser a boa política, para utilizar uma expressão de um principais dos agentes da mencionada moralização, Luís Roberto Barroso (2017, p. 18).2
No Largo São Francisco, em São Paulo, em discursos durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, Miguel Reale Jr., advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, afirmou ser o Partido dos Trabalhadores (pt) uma «quadrilha». Sua colega de Universidade, Janaína Paschoal, também advogada, disse que o Brasil de então seria, em sentido pejorativo, a «república da cobra», em alusão à situação do país e à Rousseff, enquanto que Modesto Carvalhosa, advogado, comparou petistas a marqueteiros nazistas.3 Reale Jr. e Paschoal redigiram, ao lado de Hélio Bicudo, a denúncia contra Rousseff por crime de responsabilidade (Bicudo, Reale Jr., y Paschoal, 2016), peça inicial do processo de impeachment, cuja abertura foi autorizada pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, em 02/12/2015, em decisão que acolheu apenas o fundamento relativo à violação de regras fiscais por Rousseff.4 Na denúncia é afirmado que a principal crise no Brasil seria «moral».5 A Ordem dos Advogados do Brasil6 também apresentou denúncia contra Rousseff por crime de responsabilidade, em 28 de março de 2016, apoiando as alegações dos juristas da usp.7 Paschoal, anos depois, filiou-se ao psl, então partido de Bolsonaro, e elegeu-se deputada estadual em 2018.
Em 2016, o Ministério Público Federal, através da Força Tarefa da Lava Jato, elaborou proposta denominada «10 medidas contra a corrupção», tornado Projeto de Lei nº 4.850/2016, como de Iniciativa Popular, e que foi transformado no Projeto de Lei nº 3.855/2019.8 Segundo as propostas, seriam ampliadas as hipóteses de prisão preventiva, seriam viáveis flagrantes forjados; haveria a inversão do ônus da prova no caso do crime de enriquecimento ilícito; ampliar-se-ia o uso de provas ilícitas para incriminação de acusados; restringir-se-iam o Habeas Corpus e recursos; seriam modificadas regras relativas à prescrição penal de modo a projetar a vedação da retroação de prazo prescricional fixado com base na pena em concreto, modificando-se o art. 110, §1º, do Código Penal.
Argumentos morais embasaram reflexões sobre a dogmática jurídica, sendo exemplos uma série de artigos publicados no site do Ministério Público Federal que promoveu as dez medidas. Cheker (2016, pp. 3-5 e 20), Procuradora da República atuante na Lava Jato, taxou moralmente a legislação brasileira de «pífia», «estranha» e «excrecência», além de «brilhante». Pauperio (2016), juiz federal, defendeu o Ministério Público relativamente ao enrijecimento das leis e demonizou advogados:
São propostas que podem pôr fim a algumas manobras conhecidas das sempre tão entusiasmadas bancas de advocacia dos grandes corruptos, que vivem a farejar brechas na legislação processual penal no intuito de bandejar uma incolumidade forçada para a sua fugidia clientela. (Pauperio, 2016, p. 2)
No que toca o sistema partidário, as dez medidas contra a corrupção propunham aguda responsabilização dos partidos políticos, não apenas dos membros que cometeram ilicitudes, ao prever que aos partidos seriam aplicados os dispositivos da Lei nº 12.846/2013. De acordo com o Projeto de Lei nº 4.850/2016, a Justiça brasileira poderia suspender temporariamente o funcionamento de diretório partidário por até quatro anos, podendo o Ministério Público Eleitoral requerer que o próprio registro do partido fosse cancelado caso houvesse o envolvimento do diretório nacional em ilícito. Demonstrando a descrença no sistema político representativo, as Procuradoras Regionais da República Campos de Ré y Batini (2016, p. 2) -em defesa da criminalização objetiva de partidos políticos, conclamaram a sociedade a mobilizar-se em torno de tal proposta, alegando que os políticos não fariam algo que contrariasse os seus próprios interesses.
A chamada operação Lava Jato forneceu inúmeros exemplos de como o mutualismo entre a criminalização da política e a moralização do combate à corrupção projetou personalidades do Ministério Público e do Judiciário como agentes salvadores da nação no debate público. Entre esses exemplos, destaca-se a atuação do Procurador da República Deltan Dallagnol, que coordenou a força-tarefa da Lava Jato. Mestre em direito pela Universidade de Harvard e ressaltando a sua religiosidade cristã protestante da Igreja Batista, na esteira da projeção alcançada pela operação, Dallagnol trabalhou intensamente no projeto das Dez medidas contra a corrupção, do Ministério Público Federal, chegando a publicar o livro intitulado A Luta Contra A Corrupção - A Lava Jato e o Futuro de Um País Marcado Pela Impunidade, em 2017. O procurador, inclusive, passou a ter seu nome circulando entre os favoritos para assumir a chefia da Procuradoria-Geral da República.
Porém, a personalidade mais notável alçada pela operação foi a do ex-juiz federal e atual Ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro. A partir de 2014, enquanto as manifestações populares, apoiadas pela imprensa e movimentos de redes sociais, contra o governo da Presidente Dilma Rousseff e o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganhavam força nas ruas do país, Moro colocava-se na antípoda da impopularidade dos principais líderes dos partidos políticos tradicionais e do próprio Congresso para se consolidar como a principal figura representativa do combate à corrupção no país. A construção da imagem de herói nacional foi conquistada pelo ex-juiz sob dois pilares que se expressaram nas faixas, gritos e camisas dos seus defensores nos protestos de rua: 1) o enaltecimento de sua conduta à frente da Lava Jato e 2) a desqualificação pública de todas as instâncias de representação político-partidária e do Supremo Tribunal Federal.9
A busca de apoio público à Lava Jato, na imprensa ou nos protestos de rua, esteve na base da estratégia mobilizada pelo juiz e membros do mp que atuaram na operação. Para além dos vazamentos ilegais selecionados, como o diálogo entre Lula e Rousseff, então presidente, cuja ilicitude foi logo reconhecida pelo próprio Moro, observava-se que o cálculo do tempo político orientava os próprios vazamentos e os seus efeitos sobre o debate público.10 Durante a investigação, diversas notas públicas foram divulgadas pelo próprio juiz Moro11, em nome pessoal, pela Força Tarefa Lava Jato do Ministério Público Federal no Paraná12 e pelas associações que integravam, ajufe13 e anpr14. A articulação de um movimento tão amplo resultou numa espécie de blindagem da operação Lava Jato, que teve como efeito a pretensão de tornar automaticamente os seus críticos como «defensores da corrupção». Recentemente, o próprio Presidente Bolsonaro afirmou que sem o trabalho do ex-juiz Moro sua eleição não seria possível.15 Embasando tal afirmação, Bebianno, ex-secretário-geral da Presidência, afirmou que Guedes, Ministro da Economia e esteio de Bolsonaro para o mercado financeiro, antes do segundo turno das eleições presidenciais, convidou Moro para assumir o Ministério em caso de vitória do então candidato.16
No mesmo sentido, Pinto et al. (2019, p. 17) argumentam que os membros da Operação Lava Jato se apresentaram ao público como integrantes de uma «elite moral e intelectual» despida de interesses particulares, responsáveis pelo salvamento e refundação do Brasil. Segundo tais autores, esse fenômeno tem relação com o messianismo da classe média brasileira, historicamente verificável, representado, por exemplo, pelo Movimento Tenentista da década de 1920.17 A construção da imagem pública da elite judicial na era da Lava Jato, sob os atributos do preparo intelectual e da virtude moral, parece reproduzir no Brasil um fenômeno observado por Garapon (1996, p. 53) na França dos anos 1990, quando identificou no autodeclarado propósito de afastamento da política por parte dos juízes a pretensão de «apresentar-se como o último refúgio da virtude e do desinteresse numa República abandonada pelos seus representantes».
3. Entre a juristocracia, a sobreinclusão e as elites jurídicas
O aumento da influência de juízes e tribunais sobre questões políticas nos níveis de poder doméstico não é fenômeno exclusivamente brasileiro (Hirschl, 2007) e parece acompanhar o impacto das transformações econômicas e tecnológicas sobre os Estados. Como pontua Hirschl (2007, p. 212), a expansão global da constitucionalização foi acompanhada de uma conjunção de interesses econômicos de uma elite cujas preferências políticas incluíram a delegação de questões fundamentais sobre o funcionamento dos Estados ao espaço confinado das cortes, como estratégia adequada à preservação de interesses hegemônicos.
Esse fenômeno foi fortalecido a partir da influência de teorias econômicas institucionalistas e da escolha racional que indicavam a revisão judicial como opção de maior previsibilidade e menores custos econômicos e políticos do que a formação de consensos no ambiente conflitivo e fragmentado dos parlamentos, além de isolar certas opções políticas da pressão popular. Sob a prevalência hegemônica do neoliberalismo enquanto fundamento de atuação dos mercados e Estados nacionais, tal desenho institucional adotado nas constituições implicou atribuir também ao Judiciário o papel de salvaguarda da austeridade e limitador do exercício de direitos sociais. Essa é uma das principais características da análise que Hirschl faz à transição dos regimes políticos regidos sob uma constituição à juristocracia.18
Mudanças significativas na condução de governos que resultam de crises econômicas e políticas costumam refletir-se sobre a interpretação jurídica e as dinâmicas internas dos tribunais. Uma compreensão abrangente da atuação do Judiciário e dos juízes em tais contextos, no entanto, exige uma análise que leve em conta suas relações com outros agentes estatais, organizações e mesmo órgãos internacionais ou transnacionais. (McCann, 2009, p. 838)
Essa forma ganha especial relevância na periferia da sociedade mundial, onde o Brasil situa-se, pois, estrutura a desigualdade e a posição do campo na distribuição dos capitais econômico e simbólico de modo a constituir quais serão os grupos sociais dominantes no sistema de relações. Assim, tal qual notou Bourdieu (2000), figurar na elite judicial legitima privilégios, por um lado, e fortalece a posição daqueles que definirão os significados políticos e jurídicos dessas relações -independentemente da participação da população destinatária de seus efeitos, por outro.
Entre as estratégias utilizadas por um grupo profissional organizado para promover o seu prestígio e remuneração é evidenciar como indispensável a necessidade social dos seus serviços (Reid dos Santos, 2008). Ou seja, a sistematização e manutenção de um discurso capaz de fomentar a demanda de sua atividade profissional, de modo que o monopólio do domínio cognitivo e operativo daquela espécie de comunicação permaneça sob o controle do grupo ou corporação profissional. Isto envolve, em primeiro lugar, definir programas, disciplina e a assimilação de uma ética corporativa entre os profissionais em formação, inserindo-os por identidade ainda no processo educativo, e em segundo lugar a definição de parâmetros de atuação que fortaleçam o monopólio do domínio simbólico daquela semântica e reforce a percepção social do caráter meritório de sua aquisição.19
No caso das profissões jurídicas do serviço público, como membros da magistratura e do Ministério Público, a criação da identidade profissional é permeada por elementos aptos à criação de uma autoimagem dessas corporações como uma típica elite dirigente. O rebuscado uso da complexa linguagem jurídica e seu distanciamento em relação às camadas populares; o peculiar treinamento argumentativo e retórico que lhes habilita a mobilizar a linguagem do direito ainda que em situações informais; a competência para deliberar sobre o significado e o alcance das normas jurídicas; a proximidade entre os seus integrantes, principalmente os da cúpula, e as autoridades políticas eleitas; a exclusividade da atribuição para mobilizar o sistema de justiça, interpretar as leis e decidir procedimentos judiciais e, por fim, a homogeneidade de interesses que promove solidariedades internas entre membros da base e da cúpula do sistema parece conferir à elite judicial um acúmulo de recursos de poder social comparativamente bem mais significativo do que os disponíveis aos demais grupos profissionais.
Embora também haja fragmentação de interesses e ideologias no corpo da magistratura, a autonomia e a independência dos juízes e do Judiciário é construída a partir de um conjunto de fatores que incluem o compartilhamento de um habitus entre seus membros capaz de promover a maximização dos seus interesses de classe através da mobilização da própria linguagem jurídica e da maior facilidade de acesso ao próprio Judiciário. As alianças com outros atores sociais, movimentos de protesto, mídia, partidos, representantes políticos e suas correntes ideológicas também são muito relevantes para o sucesso das demandas do grupo profissional (Bakiner, 2016), especialmente em contextos de alta politização do sistema de justiça. Em tais alianças, a reputação e a imagem pública de uma corporação de membros desinteressados e apolíticos representa um ativo muito valioso.
Nesse sentido, uma aproximação com o foco relacional sobre as alianças estabelecidas por juristas e juízes e seus impactos sobre as decisões judiciais, com repercussão no jogo político, demanda uma perspectiva sociológica a partir da identificação de quais são os interesses do grupo profissional da magistratura. Se a condição de privilégio de que gozam juízes, desembargadores e ministros já parece razoavelmente explicada na literatura (Da Ros, 2015; Carvalho, 2017; Zaffalon, 2017; Ramos y Castro, 2019), os estudos sobre a política judicial no país ainda carecem de investigações que explorem de modo mais abrangente os mecanismos relacionais que vinculam membros do Judiciário e outros agentes políticos, de modo que se possa descrever como tais mecanismos informais são ativados e repercutem nas deliberações tanto do parlamento quanto das sessões de julgamento nas cortes.
Contudo, diante dos dados de que se dispõe e dirigindo a observação à articulação dos interesses em jogo, de um lado, a ampliação de prerrogativas funcionais e vantagens remuneratórias, e o resultado político desejado a partir de uma dada decisão judicial, de outro, resta fortalecida a hipótese de que a estrutura de troca de incentivos entre elites judiciais e políticas favorece à convergência de interesses na manutenção do status quo. Trata-se de um dos eixos sobre os quais se consolida a garantia da permanência de ambos os grupos nas posições de domínio e classe dirigente que caracterizam o conceito de sobreintegração utilizado por Marcelo Neves (1994).
Através dos conceitos de sobreintegração e subintegração podem ser bem analisados os efeitos sociais da convergência entre elites judicial e política. Isso porque, no sentido que lhe atribui Neves, os subintegrados permaneceriam dependentes dos benefícios do sistema jurídico, sem contudo alcançá-los, embora não excluídos do sistema.20 A inclusão dos subintegrados, desse modo, justifica-se por sua sujeição às prescrições impositivas próprias de sua integração marginalizada, pois em que pese lhes faltarem os pressupostos de exercícios dos direitos, não estariam exonerados do cumprimento dos deveres para com o Estado, pois subjugados às estruturas punitivas deste (Neves, 1994).
À subintegração de amplos setores da população está associada a manutenção de privilégios dos sobreintegrados, com o expresso apoio da estrutura burocrática estatal. Essa é a condição que garante a ‘institucionalização’ do bloqueio ao funcionamento adequado do direito para a conservação de privilégios incompatíveis com o regime da igualdade, com o financiamento de toda a sociedade. Ocorre que, apesar de não exaustivamente trabalhado por Neves no plano empírico, os efeitos dessa sobreintegração no acesso aos bens jurídicos constitucionalmente definidos obedecem a uma seletividade própria, pois os sobrecidadãos usurpariam o discurso normativo quando em jogo os seus interesses, mas o descartariam caso esbarrem em limites constitucionais a sua esfera de interesses políticos e econômicos. Logo, o texto constitucional não regula o «horizonte do agir e vivenciar jurídico-político dos ‘donos do poder’, mas sim como uma oferta que, a depender da constelação de interesses, será usada, desusada ou abusada por eles» (Neves, 1994, p. 261).
Sem desprezar a alta complexidade e a fragmentação ideológica e política existente entre os mais de dezoito mil magistrados do país, mas observadas as nuances políticas e jurídicas que permeiam as relações entre as elites do grupo profissional de juízes e da política convencional (Fornara y Carvalho, 2018), torna-se possível afirmar que a convergência dos interesses permite categorizar ambas como a elite dos sobreintegrados.21
Ampliando a proposta de Neves, aponta-se que os problemas ligados à inclusão de indivíduos em sistemas sociais e ao papel de grupos profissionais na tomada de decisões e manutenção do status quo conduzem à discussão sobre a relação entre elites e classes sociais, especialmente no contexto periférico, pois tais elites podem aproveitar-se das estruturas normativas frágeis, contribuindo para a exclusão fática e massiva de populações. Descabe aqui uma descrição profunda sobre os escritos de Marx (Marx, 1960; Marx y Engels, 2008), mas se pode assinalar que eles apresentam classe social como um vínculo ambivalente, não estático, entre determinações políticas e econômicas, ou seja, entre a posição no seio da divisão social, oriunda da economia, e a luta política (Bachur, 2009). Para Marx, ainda, existe uma oposição entre proletariado e burguesia, bem como a necessidade de libertação, por movimento real, dessa oposição para que o homem se realize enquanto sujeito.
Mesmo que não se tome a posição marxiana, a noção de classe social pode ser empregada (Perissinoto y Codato, 2009; Luhmann, 1985).22 Setores que possuem recursos e poder na sociedade mundial, fortes o suficiente para impor decisões, controlam, através de inclusão sistêmica, rearranjos institucionais e concessões materiais, produzindo choques com outros setores da sociedade. Diferentemente do que sustentava Marx, com efeito, há âmbitos comunicacionais nos quais a inclusão não deriva de elementos fixos como classe social ou local de nascimento, necessitando, de outro modo, de requisitos derivados dos próprios âmbitos comunicacionais - por exemplo, para que atores incluam-se no sistema jurídico e ganhem relevância, faz-se necessário que dominem linguagens e técnicas jurídicas específicas. A luta de classes parece constituir-se de grupos sociais diversos, sem sujeito histórico privilegiado, que podem lutar entre si, sem acesso ao lado positivo das prestações sistêmicas ou a recursos materiais e, de outro, de setores possuidores de recursos materiais e sistêmicos. Fundamentalmente nas periferias, diante da absoluta necessidade de recursos, trata-se de uma luta por inclusão, e não apenas por uma inclusão nos sistemas (integração social), mas por recursos materiais básicos.
Neste sentido, há nos contextos periféricos a formação de grupos que concentram muito desigualmente recursos simbólicos e materiais, bloqueando processos sistêmico-funcionais para benefício próprio. Assim, elites setoriais podem prestar-se à satisfação dos interesses das classes dominantes, que envolve a manutenção do status quo. Não sendo rigidamente dependentes de fatores como nascimento e posição, as elites do campo jurídico são capazes expandir suas pretensões para corromper racionalidades, com o fim de acumular recursos e vantagens institucionais e materiais. Desse modo, o apoio das elites do campo jurídico favoreceu, no Brasil, o rearranjo distributivo em favor dos detentores do capital, estampada em ações como as reformas trabalhista e previdenciária, renúncias fiscais e privilégios legais a investidores (Costa, 2019).
Registro importante sobre a hipótese de como a correlação de interesses das elites judiciais e políticas é guiada pelo critério classe está no aumento da renda média auferida pelos juízes desde o início da crise econômica, na contramão do quadro de estagnação ou mesmo queda, em alguns setores, da renda média do trabalho, segundo dados oficiais, aprofundando a desigualdade.23 Com efeito, o rendimento médio real de todos os trabalhos habitualmente recebidos pelas pessoas com rendimento de trabalho, variou, entre 2014 e 2019, apenas 0,1 % (3 reais) (ibge, 2020, p. 5). Ademais, observando-se a variação da renda média do trabalho entre o primeiro trimestre de 2012 e janeiro de 2020, verifica-se queda entre o segundo trimestre de 2014 e o segundo trimestre de 2016 (gráfico 1):
Em contraste, segundo o Relatório Justiça em Números 2019, do Conselho Nacional de Justiça, em 2018, o país contava com 18.141 magistrados (4 %) dentre as 450.175 pessoas que empregam sua força de trabalho na estrutura do Poder Judiciário. O Relatório aponta que 90,8 % do orçamento do Judiciário é destinado ao pagamento de pessoal, incluindo servidores, terceirizados e estagiários, e que o custo da remuneração média mensal é de aproximadamente R$ 46,8 mil por magistrado. O gráfico seguinte (gráfico 2) demonstra que, desconsiderada a remuneração dos inativos, o valor do gasto médio por habitante com o Judiciário mais do que dobrou nos últimos dez anos, variando de R$ 173,58 em 2009 para R$ 368,40 em 2018:
Os dados acima constituem evidência da hipótese de que as elites setoriais do campo jurídico seguem a lógica classista que orienta a política em Estados periféricos, fazendo com que rearranjos distributivos em tempos de crise econômica e institucional mantenham ou ampliem seus benefícios24 e acentuem a concentração da riqueza, ao tempo em que se reduz a renda dos demais trabalhadores assalariados, para o proveito «do capital, dos homens brancos, dos milionários e da classe média estabelecida» (Costa, 2019, p. 523), com quem os próprios juízes e operadores da Lava Jato mantêm «afinidades eletivas», ocupando um espaço que havia sido dos militares em 1964 (Anderson, 2019).
Por esse motivo, e seguindo a indicação metodológica de observar as contingências que cercam uma representação classista da política a partir do entrelaçamento dos interesses específicos de uma corporação de elite com interesses mais amplos de determinada classe social (Perissinoto y Codato, 2009), a análise do papel dos juristas e juízes na condução da Operação Lava Jato e na construção da retórica anticorrupção que abasteceu a crise no Brasil pós-2014 precisa considerar quais benefícios mútuos o quid pro quo entre membros do sistema de justiça e alguns dos integrantes do sistema político convencional resultaram da crise e, consequentemente, da instabilidade da democracia causada por ela.
4. Instrumentalização das formas jurídicas e desintegração da democracia no país no pós-2014
É comum que agentes políticos recorram às semânticas dos direitos humanos, da constituição e da democracia, concorrencialmente, para legitimar suas ações (Palma, 2019). Em contextos em que há estruturas normativas robustas, tal recurso pode fazer com os agentes tenham que se vincular às normas constitucionais, aos direitos humanos e aos princípios democráticos. Em tais situações, o direito pode, a partir da sua própria estrutura interna, restringir racionalidades, portanto (Fischer-Lescano y Meisterhans, 2013).
Contudo, há casos em que as estruturas normativas não são suficientemente fortes, sendo referidas semânticas usadas como fachadas úteis à consecução de objetivos não democráticos. Em tais situações, duas estratégias podem ser verificadas: na primeira, regimes políticos podem aparentemente reforçar a semântica do constitucionalismo moderno ao defender a promulgação de uma nova constituição, a qual, no entanto, conteria dispositivos não democráticos, particularistas e contrários aos direitos humanos (Müller, 2016), como ocorreu na Hungria sob Orbán. Usando de outra estratégia, regimes políticos, como os brasileiros no período pós-2014, podem não advogar a promulgação de uma nova constituição, mas sim adotar decisões e normas contrárias às bases do constitucionalismo democrático e dos direitos humanos, as quais, ainda assim, são apresentadas como sendo conformes à constituição. Em ambas as situações apresentadas, a constituição não opera como estrutura normativa, mas apenas como fachada útil à governança anticonstitucional.
Com a repetição de atos inconstitucionais e diante da ausência ou insuficiência de controle judicial de tais ações, inclusive por Cortes Constitucionais, as expectativas normativas advindas da constituição são paulatinamente corroídas e as formas jurídicas são instrumentalizadas. Tais processos, por sua vez, incentivam usos não democráticos do direito em diversos âmbitos da Justiça e da administração estatais, tornando ainda mais frágeis as estruturas jurídicas e políticas, numa espiral de crescente desvirtuamento da constituição. Instituições mais frágeis produzem o efeito contrário ao que os agentes jurídicos, no Brasil, alegadamente buscavam, pois favorecem o surgimento e fortalecimento de redes não estatais, inclusive as criminosas, nacionais ou não (Mascareño; Da Silva; Loewe; Rodríguez, 2016). Assim, pode-se observar que, cobiçando ganhar terreno, elites setoriais exploram estruturas normativas políticas e jurídicas débeis, enfraquecendo-as ainda mais, o que impulsiona o surgimento de elites despreocupadas com o processo democrático ou ligadas à criminalidade comum.
A instrumentalização do direito parece manifestar-se através da retórica da moralidade como fator regente de todos os outros campos sociais (Nassehi, 2017). A partir de 2014, discursos moralizantes intensificaram sua intervenção nas dinâmicas constitucionais, estratégia que foi utilizada com intensidade por atores da direita. A moralização da dogmática jurídica, exibida no tópico 2, ilustra este ponto. Em 2018, meses antes da campanha eleitoral, cujo lema foi «Brasil acima de tudo, Deus acima de todos», o então candidato Bolsonaro afirmou que os eleitores de Lula eram imbecis e que os apoiadores do Partido dos Trabalhadores no Estado do Acre deveriam ser executados (Casado y Turollo Jr., 2018), bem como que o ex-presidente seria vagabundo, malandro e bandido (Lavezo, 2018). Manifesto de fundação de partido bolsonarista, em 2019, sustentava existir para «livrar o país dos larápios, dos espertos, dos demagogos e dos traidores», no contexto de um país «massacrado pela corrupção e pela degradação moral contra as boas práticas e os bons costumes».
Com discursos e práticas políticas importantes, baseadas na atuação de integrantes da Lava Jato, muitos setores da mídia e manifestantes passaram a taxar, a partir de 2014, de maneira massiva, não apenas políticos eleitos, mas também todos os partidos políticos existentes como criminosos ou envolvidos em tramoias. Até mesmo o uso das semânticas dos direitos humanos, do direito constitucional e da democracia foi, em algumas ocasiões, descartado em nome da defesa do país, tal o grau de moralização da política e do direito e a fraqueza de suas estruturas normativas.
Um outro elemento parece reforçar o moralismo militante incorporado pelos empreendedores dessa refundação do Brasil através da «luta contra a corrupção». A progressiva escalada política de representantes evangélicos e, especialmente, de setores ligados ao neopentecostalismo, fortaleceu uma aliança entre a moral religiosa e o debate público sobre direitos e representação política. Esse fortalecimento se fez sentir no aumento da representação da bancada evangélica no Congresso Nacional, agora mais disposta a tocar a sua pauta conservadora, já que as condições políticas se apresentam mais favoráveis. 25 Contudo, articulada a esse movimento, as disputas internas do campo jurídico e suas elites passaram a ser influenciadas pela ascensão política de correntes evangélicas.
Antes menos relevantes para a imagem pública de membros do Ministério Público e do Judiciário num Estado dito laico, a autoapresentação de personagens cujos nomes circulam como favoritos para cargos-chave na cúpula do sistema de justiça passou a vincular-se à fé evangélica, a exemplo dos nomes do procurador Deltan Dallagnol26, o juiz federal Marcelo Bretas27 e o Advogado-Geral da União, André Mendonça28. Um movimento que se ajusta à própria declaração de Jair Bolsonaro de que deseja nomear para o stf um ministro de perfil «terrivelmente evangélico», o que, por sua vez, reforçou o lobby da Associação Nacional de Juristas Evangélicos.29
Essa aproximação entre o discurso moralista de combate à corrupção, permeada pela religiosidade evangélica, e a linguagem do direito articulada por alguns de seus principais agentes, seria, então, um dos elementos responsáveis pela conversão dos «empreendedores jurídicos» em «empreendedores morais», como expõe Frederico de Almeida (2018). A instrumentalização do direito pela moral alimenta o fortalecimento de medidas anticonstitucionais e aprofunda a crise político-institucional brasileira, pavimentando o caminho para a ascensão de movimentos políticos antidemocráticos. Por um lado, juristas usam a máquina estatal e a esfera pública para deslegitimar a política democrática representativa.30 Por outro, integrantes da elite do poder judiciário se beneficiam economicamente da corrosão democrática através do impulso de carreiras políticas, consultorias e palestras, havendo afinidades eletivas entre as elites judiciais e o financismo econômico.
Nesse contexto, perdem espaço formas da autorização que caracterizam a representação democrática, como voto, recalls e referendos, além de protestos democráticos. São tais fatores que caracterizam a participação da população nos processos político-decisórios e o assinalamento dos temas em nome alheio nos debates públicos, comunicando-se temas da política (Miguel, 2013). Se noções como patriarcalismo e personalismo ilustravam o particularismo de elites sociais em detrimento da população representada (Neves, 1992; Souza, 2003), o que fortalece processos de exclusão (Luhmann, 1998, Neves, 1992, 2007), a instrumentalização das formas jurídicas fez com que os já frágeis mecanismos de representação, participação e controle fossem caracterizados, moralmente, como imprestáveis.
5. Considerações finais
Os movimentos de juristas e de magistrados, ao moralizar e criminalizar o jogo político, contribuíram para o aprofundamento da crise político-institucional brasileira. De fato, o sistema democrático foi subjugado a uma lógica moralizante, tendo havido atos ilegais, incluindo uma deposição presidencial sem um motivo jurídico ou político consistente, processo que foi impulsionado pelas ações da Lava Jato e retroalimentados por protestos dirigidos contra toda a classe política, os quais tiveram relação com um contexto global (Anderson, 2016; 2019; Alonso, 2017). Com a retórica de refundação do país e de uma pretensa luta contra a corrupção, houve a produção de discursos e notas públicas, no âmbito não jurídico, bem como a distorção das regras jurídicas e da jurisprudência estabelecidas em matéria penal por parte de tais funcionários públicos.
No Brasil pós-2014, as elites do campo jurídico beneficiaram-se materialmente da corrosão de premissas constitucionais e democráticas, como se demonstrou no tópico 2, evidenciando a conjunção entre suas ações e os interesses de detentores do capital. Em tempos de crise econômica e política, tais elites aliaram-se às classes dominantes a fim de que os novos arranjos distributivos mantivessem os seus próprios benefícios. Para tanto, fizeram uso da máquina estatal, falsearam a dogmática jurídica e moralizaram o debate público, contribuindo para a erosão da democracia em nome do combate à corrupção. Em termos sistêmicos, pode-se dizer que houve a corrupção dos códigos jurídico e político-democrático para que tais objetivos pudessem ser alcançados.
Ao imiscuir direito e moral, parcela significativa de juízes e juristas brasileiros promoveram a corrosão das bases democráticas da dogmática jurídica. A moralização e simplificação de dinâmicas jurídicas e políticas não apenas dividem a sociedade entre amigos e inimigos, mas também criam condições para a ascensão de forças políticas declaradamente contrárias ao sistema representativo partidário (Nassehi, 2017). Como vimos, a intensa moralização do direito e da política que levou à instrumentalização das formas jurídicas gerou três consequências graves e de efeitos duradouros, que se conectam de modo complexo: 1) o aprofundamento da crise pelo ataque sistemático às tentativas de estabilização produzidas pelo próprio sistema político, através do uso de técnicas jurídicas questionáveis e vazamentos ilegais do conteúdo das investigações; 2) o reforço das condições para a ascensão de um regime autoritário e assumidamente contrário aos direitos fundamentais das minorias políticas, por intermédio do voto, que capitalizou a descrença da população no sistema político; 3) a criação de um ambiente hostil ao livre funcionamento das instituições do próprio sistema jurídico, cuja imagem pública passou a ser associada à conivência com a corrupção, resultante do aumento da desconfiança no próprio sistema de justiça.
Não se pode deixar de destacar, por outro lado, a responsabilidade de agentes, partidos e outros componentes do sistema político que contribuíram para tal situação e abriram espaço para uma usurpação da política pela moralização do debate público e instrumentalização do direito. Se a crise de representatividade nas democracias é inegavelmente um fenômeno global, no Brasil os seus efeitos são ainda mais acentuados. Isso porque a generalização da desconfiança nos representantes e instituições encontra um cenário fértil, alimentado pela violência urbana, pela altíssima concentração de renda no 1 % do topo da pirâmide social e pelos profundos níveis de desigualdade no acesso aos serviços públicos básicos. É sob essas condições estruturais que se mesclam três tipos de semânticas que, embora possam se apresentar como concorrentes em diversos momentos, contribuem para a percepção de que um sistema político sem políticos - ao menos políticos profissionais, funciona melhor.
A primeira e talvez a mais popular delas é a mágico-religiosa, promovida por setores neopentecostais da igreja evangélica que lograram considerável êxito político-eleitoral e, embora mantenham todas as características clientelistas do quid pro quo dos partidos e políticos mais tradicionais, desvinculam-se da imagem daqueles por sua articulação político-teológica com fins pragmáticos.
A segunda semântica com especial apelo no contexto da crise tem sido a técnico-jurídica, que foi impulsionada na esteira da Lava Jato e permanece forte entre os seus apoiadores das classes médias urbanas, seja em função de seu suposto caráter técnico e apolítico, apoiado numa vertente liberal-iluminista e retórica do Estado de Direito, seja pela crença de que a meritocracia e o discurso jurídico poderão seguir protegendo sua posição relativamente privilegiada no conflito distributivo contra o achatamento dos seus rendimentos pela pressão da elite financeira e das reivindicações da camada mais pobre.
Por último, a alternativa que aqui chamamos autoritário-militar, que tem sua expressão mais forte no personalismo do Presidente da República e seus filhos, no frequente ataque às instituições - em especial ao Congresso, ao Supremo Tribunal Federal e à imprensa, e que não hesita em inserir na comunicação política a possibilidade de fechamento do regime, com a consequente restrição de liberdades civis. Ainda que articulada em torno na chefia do Executivo, o apoio a essa semântica parece ser mais difusa, encontrando defensores em alguns protestos e redes sociais. Por fim, embora haja dúvidas sobre o real apoio das polícias e forças armadas a tal iniciativa, não se pode negar o quão preocupante ela se apresenta para as instituições democráticas e para o exercício de direitos no Brasil.