1. Introdução
A transição «lenta, gradual e segura» do regime militar para uma democracia, iniciada em 1985, garantiu que o Brasil fosse enquadrado, junto com outros países latino-americanos, como parte da terceira onda de democratização (Huntington, 1994). Embora seja considerada como uma democracia consolidada, se observada no sentido minimalista (Schumpeter, 1984) ou instrumental (Dahl, 1997), o Estado brasileiro não tem logrado diminuir os altos índices de corrupção institucional e de desigualdades sociais, perpetuando uma contínua desconfiança institucional, aliada à baixa participação social. Este quadro reproduz crises cíclicas na democracia brasileira, diminuindo o poder das instituições de reagir à retrocessos, engendrando uma eterna democracia inercial (Baquero, 2018).
A eleição presidencial de 2018 ocorreu em momento de forte polarização política, antipetismo, níveis de descontentamento e descrença nos partidos, candidatos e instituições políticas como um todo, que já vinha ocorrendo desde as manifestações de 2013. Ao longo desse período, desenvolveu-se a operação Lava Jato, destinada a investigar crimes de corrupção cometidos por políticos e empresas que concediam serviços ao Estado, o que causou uma grande midiatização e judicialização da política (Abranches, 2019, p. 20). O período foi marcado por um impeachment, até hoje questionado e chamado de «golpe», e diversas manifestações pró e contra o Governo, nas quais «novas e velhas» candidaturas foram se formando (Bernardi, 2020). Esse ambiente mostrou-se auspicioso ao candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro (psl) -militar, conservador, moralista, religioso, deputado desde 1988, porém defensor aberto da antipolítica e de medidas antidemocráticas. Frente à prisão de Luiz Inácio Lula da Silva (pt), candidato com maior nível de intenção de voto, a candidatura de Jair Bolsonaro cresceu e conseguiu garantir sua ida ao segundo turno contra Fernando Haddad (pt), interrompendo o ciclo da disputa entre pt e psdb na presidência.
Ao longo do segundo turno Bolsonaro já deu o tom do discurso que seria mantido ao longo do seu governo, utilizando-se de notícias falsas sobre o pleito eleitoral, atacando e difamando opositores, principalmente através das redes sociais, e utilizando-se de um discurso de lei e ordem que divide os cidadãos entre os que o apoiam, e os que são inerentemente sem lei e contrários ao seu governo e aos interesses nacionais (Stanley, 2018; Bernardi y Morais, 2021). Desde as campanhas e depois ao longo de seu mandato institucionalizaria o uso do discurso da «ameaça comunista», «de Deus e da Bíblia», e uso de notícias falsas como defesa da liberdade de expressão e da «verdade acima de todos» como elementos mobilizadores do seu público (Bernardi y Morais, 2021).
Assim, o ano de 2019 acompanhou a organização da direita conservadora orbitando o bolsonarismo, com elevado ativismo digital e volume de engajamento nas redes sociais, convivendo em harmonia com grupos favoráveis às reivindicações de caráter antidemocrático (Avritzer, 2020), como a Intervenção Militar, o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e a reedição do AI-5. Em 2020, o Governo Federal manteve uma postura negacionista em relação à Pandemia do Coronavírus, minimizando a gravidade da situação sanitária no Brasil e retardando a compra de vacinas. Bolsonaro endossou e participou de manifestações e aglomerações antidemocráticas, interferiu no Ministério da Saúde e no comando da Polícia Federal (Costa y Bernardi, 2020).
O Brasil de 2021 mostrou-se tão polarizado quanto 2018, e, somadas às abertas hostilidades entre o Poder Executivo e o Judiciário, a recorrência de manifestações antidemocráticas, também foi o ano em que se somou mais de 600 mil mortos durante a pandemia, a CPI da Covid, que jogou luz em negociações até então ocultas, como as negociatas das vacinas de Covid-19, e a utilização de notícias falsas na tentativa de emplacar um medicamento sem comprovação científica, bem como o «DIA D do Bolsonarismo», que representou uma demonstração da força bolsonarista frente aos demais poderes no dia sete de setembro de 2021 (Bernardi, 2021). Tendo esses fatores em conta, percebe-se que entre os anos de 2019 e 2021, o governo de Jair Bolsonaro manteve o conflito e a ameaça como elemento constante na gestão pública, na negociação com o Congresso e o Judiciário, na postura com a imprensa, membros da sociedade civil e órgãos públicos e privados.
No escopo da obra de Schelling (1980), a barganha está inserida na intenção de realizar a dissuasão, conceito estratégico que está atrelado ao processo de ativamente influenciar as escolhas do outro player envolvido na negociação, fazendo-o acreditar que o comportamento da primeira parte será determinado pelo seu próprio comportamento.
Schelling (1980) discorre sobre a estratégia do conflito em um contexto de alinhamento global em relação ao arranjo da Guerra Fria, identificando os atores como países imersos nesse cenário. Nesse sentido, parece adequado uma análise de em que medida a racionalidade presenciada naquela organização repercute na contemporaneidade, em que as barganhas e ameaças não são efetivadas exclusivamente por grandes potências bélicas, e em que as contingências não são limitadas às guerras nucleares e extinções em massa. Dessa forma, o problema de pesquisa aqui proposto é: A ameaça antidemocrática foi utilizada como instrumento de barganha pelo governo Bolsonaro? Assim, o objetivo desse artigo é analisar 1) se ocorreu e 2) como se deu, o uso da ameaça antidemocrática como instrumento de barganha pelo governo de Jair Bolsonaro com as demais instituições democráticas brasileiras nos anos de 2019 a 2021. A hipótese consiste em que a ameaça antidemocrática foi usada no governo Bolsonaro como instrumento de barganha de forma compatível às formulações propostas por Schelling (1980) de ameaça e promessa.
Para identificar as situações de barganha, ameaça e promessa, foi realizada uma coleta de dados selecionando artigos e reportagens publicadas em conglomerados tradicionais ou oficiais da imprensa brasileira que reportem uma situação em que o Governo Federal, na figura do Presidente da República ou dos Ministros de Estado, esteve envolvido em uma barganha, ameaça ou promessa no período de 1.1.2019 até 9.9.2021. Os dados obtidos formam o Banco de Barganhas e Ameaças do Governo Bolsonaro, composto por 470 movimentos ao longo de 982 dias, construído pelos autores com o objetivo de responder à questão proposta.
Para tanto, o artigo está dividido em duas partes, além da introdução e das conclusões preliminares. Na primeira se discutirá os conceitos desenvolvidos por Schelling (1980) de barganha e ameaça no escopo da teoria da escolha racional. Na segunda parte serão apresentados os dados obtidos e a análise das situações identificadas no Banco de Barganhas e Ameaças do Governo Bolsonaro referentes ao Supremo Tribunal Federal e Ameaças Antidemocráticas, para então depois colocarmos nossas considerações finais.
2. Barganha e ameaça na Teoria da Escolha Racional
A quantidade de estudos relacionados à teoria da escolha racional (ter) apresentou forte crescimento no campo da ciência política na segunda metade do século xx, após a publicação do seminal estudo de Arrow (1951). Para Green e Shapiro (2000), o elemento que distingue a ter das abordagens anteriores que partiam do esforço de compreender a maximização do interesse próprio é a «maneira sistemática como ela deriva as afirmações quanto ao mérito dos micros fundamentos do comportamento político, recorrem a apresentações dedutivas de incentivos, vínculos e cálculos com os quais os indivíduos devem confrontar-se» (Green y Shapiro, 2000, p. 170). Consolidada nos Estados Unidos, a ter é indissociável do seu contexto histórico. Nasce como uma análise alternativa aos modelos comportamentalistas em um momento de acirramento da Guerra Fria, e torna-se o escopo teórico dominante na ciência política estadunidense.
É nesse contexto que surge a obra de Schelling (1980), com a característica pioneira de inserir a estratégia do conflito às análises da área. Schelling (1980) identifica que, até então, a tradição literária dentro da ter era de considerar o conflito como algo patológico, cujo tratamento e cura seriam objetivos a serem alcançados, ou então como parte de um «conflito garantido», inerente às relações sociais, em um discurso que muito se assemelha aquele da retórica da intransigência (Hirschman, 1991).
Para a compreensão do funcionamento da barganha, o corpo teórico da ter é entrelaçado com os estudos culturais quando levada em consideração a ordem de preferências dos players. Tendo em vista o axioma da transitividade (Arrow, 1951) -basilar para o estudo da ter, pode-se supor que os jogadores apresentarão um conjunto de preferências influenciados pelo conjunto de valores internalizados. Caso esses valores sejam semelhantes entre ambos os lados da barganha, há uma maior chance de que os conflitos e interações possam ser acomodados. Caso os elementos entrem em conflito, a barganha torna-se mais custosa, dificultando a interação entre os jogadores. Assim sendo, quando em busca do desenvolvimento de um estudo competente na área de ter, Schelling (1980) condiciona a consideração da escala de valores que identifiquem os payoffs admissíveis ou desejados na barganha.
O maior mérito nessa abordagem seria compreender a necessidade de ampliar a carta de resoluções admissíveis, bem como a intensidade das ameaças e sua eficácia no decorrer da barganha. Na formulação proposta, a estratégia não está obrigatoriamente relacionada à aplicação da força, mas faz referência à exploração da força potencial em uma situação de conflito -que são situações de barganha antes de tudo, em que a ameaça tem como função manipular as ações tomadas dos demais players a ponto de influenciá-los para agir de acordo com suas expectativas. A ameaça é parte fundamental da barganha, mas para tanto deve ser compreendida e aplicada de forma correta. Trata-se de um elemento capaz de realizar com eficácia o movimento de dissuasão do outro, compelindo-o a comportar-se de forma que maximize os ganhos do primeiro ator, mas tem como característica distintiva a essência de ser uma ação que o ator ameaça realizar apesar de preferir não a cumprir.
A existência da ameaça é instrumentalizada como forma de dissuadir o outro a comportar-se da melhor forma possível para o primeiro jogador, ou seja, na intenção de aproveitar sua força potencial, não prática, uma vez que, se a ameaça for suficiente para dissuadir o outro player, o ameaçador não tem motivos para cumpri-la. Dessa forma, para ser eficaz, a ameaça deve ser crível, as punições devem ser claramente discerníveis e comunicadas com sucesso, e sua aplicação prática inversamente proporcional ao sucesso que obtém.
Assim como a ameaça, a promessa também apresenta papel relevante no processo de dissuasão, mas não configura uma ação a ser tomada nas primeiras partes da barganha. A promessa surge como parte do compromisso de um dos players no processo de barganha quando a ação de um ator se encontra fora dos acordos, contrapesos e planejamentos do jogo. Assim como a ameaça, a promessa deve ser crível e bem comunicada, necessita de acordos em relação aos comportamentos, coação e punição.
3. Banco de Barganhas e Ameaças do Governo Bolsonaro
Para compreender como o Governo de Jair Bolsonaro fez uso das ameaças e promessas como proposto por Schelling (1980), foi realizada uma coleta de dados por meio da ferramenta Google Trends, selecionando reportagens, artigos e matérias publicadas nos conglomerados de mídia O Globo, Estadão, Estado de São Paulo, Veja, R7 Notícias, cnn Brasil, bbc Brasil, The Intercept Brasil, G1, El País, Agência Brasil, uol, Carta Capital, Correio Braziliense, Exame, Folha e Poder 360 que reportem uma situação em que o Governo Federal, na figura do Presidente da República ou dos Ministros de Estado estivera envolvido em uma barganha, ameaça ou promessa no período de 1.1.2019 até 9.9.2021. Os dados obtidos formam o Banco de Barganhas e Ameaças do Governo Bolsonaro, composto por 470 movimentos ao longo de 982 dias. A análise dos dados será qualitativa, com apoio da quantificação para demonstrar as comparações instrumentalizadas nos diferentes temas propostos através da atribuição de palavras-chaves.
Após a categorização, foram selecionados dois tópicos de alta relevância, além das «Ameaças Antidemocráticas»1 em geral, e uma categoria específica de ameaça antidemocrática, centrada nas críticas e ataques ao «Supremo Tribunal Federal».2 As situações de barganha e conflito, mensais e acumulados, encontram-se resumidas nos gráficos 1 e 2.
Em seguida, será explorado como como as Ameaças Antidemocráticas foram negociadas na dinâmica de barganhas do Governo Federal, a começar pelos ataques ao Supremo Tribunal Federal.
3.1. Supremo Tribunal Federal
No regime democrático brasileiro (e não apenas nele), o Supremo Tribunal Federal (stf) e o Poder Executivo estão constantemente em barganha devido ao sistema de pesos e contrapesos. Na gestão de Bolsonaro, porém, essa relação passou de barganha para hostilidade nos primeiros meses de governo. Logo no mês de maio de 2019, o Governo Federal incentivou uma manifestação popular em que os organizadores apresentavam como principal demanda o fechamento do stf e do Congresso, vistos como empecilhos para a implementação da agenda do Presidente. O Governo Federal também pressionou o Congresso a implementar a «cpi da Lava Toga»,3 mirando diretamente os ministros da corte, logo, a manifestação popular parecia ser uma forma do governo tornar sua ameaça ao stf mais factível e concreta -o que parece ter funcionado.
No final do mês de maio, o Presidente do stf propôs um «armistício» entre os poderes, firmando a promessa de «reduzir o ativismo político»4 se o Governo Federal «reduzir a publicação de medidas provisórias e decretos que corram o risco de serem alterados substancialmente ou derrubados pelos congressistas, além de haver um comprometimento de dialogar ainda mais com o Legislativo» (El País, 2019) que foi aceito pelo Presidente. Esse acordo pode ser visto como a «promessa» de Schelling (1980).
O armistício durou pouco. Em outubro, o Presidente da República circulou um vídeo que vincula sua imagem a de um leão, e a do stf a hienas.5 No mesmo mês, seu filho Eduardo Bolsonaro (psl) afirmou que, caso movimentos sociais promovessem atos e protestos nos moldes daqueles vistos no Chile e na Argentina, o Governo poderia editar um novo AI-5.6 Os dois fatores foram suficientes para reiniciar o ciclo de conflitos entre os dois poderes. Em fevereiro de 2020, Bolsonaro circulou novo vídeo chamando manifestantes para atos em seu favor e favoráveis ao fechamento da Corte, em tom claramente antidemocrático.
O Gráfico 2 mostra como os conflitos com o stf tomaram nova proporção no segundo trimestre de 2020, logo depois que a Pandemia de Coronavírus chega ao país e o Governo Federal rapidamente adota postura negacionista em relação às medidas de segurança sanitária a serem tomadas (Costa y Bernardi, 2020). Até setembro de 2020, percebe-se a profusão de situações relacionadas ou stf. Isso se dá devido a postura da Corte de interferir nas ações do Governo Federal durante os primeiros meses da pandemia no país, como na determinação de independência de estados e municípios na formulação das próprias regras de controle sanitário, e nas desautorizações referentes às tentativas de suspensão das medidas de isolamento.
Foi nesse período também que as relações de barganha por meio de ameaças intensificaram entre o Governo Federal e o stf, seguindo uma sequência de movimentos que pode ser enquadrado no escopo proposto por Schelling (1980). O Governo Federal havia se comprometido em cessar as agressões ao stf, que em troca reduziria seu ativismo político.7 Após as manifestações bolsonaristas de março de 2020, já durante a pandemia, o stf proíbe que Bolsonaro faça campanha contra o distanciamento social8 e desautoriza o Planalto em relação a medidas de isolamento.9 A interferência do Supremo nas ações do Governo Federal reacendeu o uso de ameaças antidemocráticas. As ameaças direcionadas ao stf permanecem durante todo o ano de 2021, culminando na narrativa utilizada para convocação de manifestações em favor do presidente e claramente antidemocráticas no dia 7.9, data que celebra a independência brasileira.
O evento conhecido como «DIA D do Bolsonarismo» estava sendo orquestrado desde o início de 2021, com indícios de financiamento de caravanas vindas de diversos lugares do Brasil para o evento na Av. Paulista, coração da cidade de São Paulo, com estimativa de reunir entre 2 e 3 milhões de apoiadores, embora só 6 % do público esperado (125 mil) tenha comparecido (Sobrinho, 2021). A pauta central reivindicada pelas bolhas apoiadoras do Presidente é de que foi uma manifestação contra as prisões arbitrárias, contra o stf, e a favor da liberdade de expressão (Bernardi, 2021).
3.2. Ameaças antidemocráticas
O Governo Federal durante a gestão 2019-2021 fez do uso de ameaças antidemocráticas como umas de suas principais ferramentas de barganha. As primeiras ameaças concretas datam do final do primeiro ano de mandato, quando Bolsonaro identifica o stf como um de seus inimigos e seu filho, Eduardo Bolsonaro, afirma que o Governo pode decretar um novo AI-5 em resposta às manifestações de oposição ao governo. Essa última situação se encaixa na categoria de ameaça de Schelling (1980) como o enunciado de algo que o ator não pretende realizar, mas usa para explorar a força potencial da ameaça, promovendo a dissuasão.
Em abril de 2020, Bolsonaro participou de uma manifestação antidemocrática em que afirmou:
Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil (…). Todos têm que ser patriotas, acreditar e fazer sua parte para colocar o Brasil no lugar de destaque que ele merece. Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder. Mais que direito, vocês têm a obrigação de lutar pelo país de vocês (…). O que tinha de velho ficou para trás. Nós temos um novo Brasil pela frente. Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro (…). Contem com o seu presidente para fazer tudo aquilo que for necessário para manter a democracia e garantir o que há de mais sagrado, a nossa liberdade. (Bolsonaro, 19.4.2020)
O discurso de Bolsonaro configura uma ameaça antidemocrática de caráter populista, com discurso em tom fascista (Paxton, 2007; Stanley, 2018), por incitar a preponderância do «povo» sobre as decisões tomadas pelos Três Poderes, projetando a sua imagem como o maior representante da vontade popular, sendo os demais atravancadores das suas ações (Bernardi y Morais, 2021). A ameaça é direcionada ao Congresso e ao stf -o Presidente da República insinua que estaria pronto para realizar um Golpe de Estado, caso tenha apoio suficiente da população.
A ameaça de Bolsonaro está inserida em uma agenda restritiva, pois é feita em um momento em que outras negociações estão ocorrendo simultaneamente no Congresso e no stf -No Congresso, a votação de orçamento e a tentativa de consolidação de uma base governista, bem como a possibilidade de instauração de um processo de impeachment; no stf, os embates relacionados às ações de combate à Pandemia, e as investigações acerca da disseminação de fake news e ameaças aos Ministros da corte. O risco de falhas dessa ameaça, porém, parece ter sido subdimensionado. Ameaçar o Congresso e o Judiciário de Golpe com apoio popular pode ser uma ameaça cara demais para manter e, até então, não encontrava respaldo sólido o suficiente para ser vista como crível naquele momento.
O desfecho da ameaça veio no dia seguinte, quando Bolsonaro declarou:
Peguem o meu discurso. Não falei nada contra qualquer outro Poder. Muito pelo contrário. Queremos voltar ao trabalho, o povo quer isso. Estavam lá saudando o Exército brasileiro. É isso, mais nada. Fora isso é invencionice, tentativa de incendiar a nação que ainda está dentro da normalidade (…). Esquece esta conversa de fechar. Aqui não tem de fechar nada, dá licença aí. Aqui é democracia. Aqui é respeito à Constituição brasileira. E aqui é a minha casa e a tua casa, então peço que, por favor, não se fale isso aqui. (Bolsonaro, 20.4.2020)
Fica aparente que as ameaças antidemocráticas de Bolsonaro caem na manhã seguinte, quando este parece desdizer as palavras pronunciadas poucas horas antes, retirando as intenções em relação à Suprema Corte e ao Congresso.
Os objetivos das ameaças ficam mais claras quando analisam a questão da agenda restritiva de negociações pois, neste mesmo evento, quando segundo a Folha de São Paulo:10
O presidente também criticou «alguns governadores» por causa das medidas de desta maneira de combater o vírus com todo mundo em casa», afirmou. Bolsonaro também afirmou, sem dar nomes, que foi abordado por um de seus ministros para que editasse norma a favor do isolamento, mas recusou. «Há algum tempo atrás, algum ministro meu queria que eu colaborasse num decreto ou numa portaria para multar quem está na rua. Falei não. Não. Quem vai na rua está atrás de emprego, um ganha pão», disse. (Folha de S. Paulo, 2020)
Parece claro que o objetivo de Bolsonaro foi o de apresentar uma ameaça desproporcionalmente grande para, logo depois, redirecionar a ameaça para um alvo menor, ou com menor capacidade de revidar -nesse caso os prefeitos e governadores. A ameaça foi utilizada não em sua capacidade de ser posta em prática, mas como forma de mobilizar sua força potencial.
Poucos dias depois, em maio, Bolsonaro participa de outra manifestação antidemocrática, em meio à Pandemia e a suspensão da indicação de Alexandre Ramagem à Direção da pf, evento que resultou na saída de Sergio Moro, na época Ministro da Justiça, do Governo. Nessa manifestação, Bolsonaro declara:
Vamos tocar o barco. Peço a Deus que não tenhamos problemas esta semana. Porque chegamos no limite. Não tem mais conversa. Daqui para frente, não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição. Ela será cumprida a qualquer preço. E ela tem dupla mão, não é de um lado só não. Amanhã nomeamos novo diretor da pf e o Brasil segue seu rumo. (Bolsonaro, 3.5.2020)
Essa ameaça é direcionada ao stf. Ao afirmar que «Chegamos no limite. Não tem mais conversa» (Bolsonaro, 2020), o Presidente está indicando a iminência da realização de um ato, pois o stf já teria transgredido os limites estipulados por ele. Apesar disso, Bolsonaro parece dar uma abertura quando afirma «Peço a Deus que não tenhamos problemas esta semana» (Bolsonaro, 2020) e «Amanhã nomeamos novo diretor da pf e o Brasil segue seu rumo» (Bolsonaro, 2020). O Presidente demonstra assim que o stf deve se abster de agir, sob o risco de incitar a realização das nomeações «a qualquer preço» (Bolsonaro, 2020).
No dia 27.5, a Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços de empresários e blogueiros apoiadores do Presidente, em ação autorizada pelo stf dentro do inquérito que investiga ataques contra a corte, o financiamento e a disseminação de informações falsas na internet.11 No dia seguinte, O Presidente afirmou:
Acabou, porra! Me desculpem o desabafo. Acabou! Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas individuais, tomando de forma quase que pessoal certas ações (…). Ontem foi o último dia (…). Essa minha cadeira presidencial não é fácil. Confesso, tá sendo mais difícil do que eu imaginava. Os inimigos não estão fora do Brasil, estão aqui dentro. Não mais ousarão atingir direitos individuais, chega. (Bolsonaro, 28.5.2020)
Novamente, o Presidente usa da força potencial da ameaça como instrumento de barganha para constranger o stf ao apontar a iminência da ação, afirmar que os atos tomados até agora foram os últimos, e que não haverá tolerância para repetição.
Em 30.5, a milícia armada bolsonarista «300 do Brasil» fez um protesto com tochas e máscaras em frente ao stf, que utilizavam de retórica e indumentária alusivas a Ku Klux Klan (kkk) dos eua. No dia seguinte, uma manifestação de apoio ao presidente contava com faixas com os dizeres «abaixo à ditadura do stf», «intervenção militar», «intervenção no stf». O Presidente sobrevoou o ato, cumprimentou os manifestantes sobre um cavalo, abraçou-os sem uso de máscara e afirmou «Estarei onde o povo estiver».12
No dia 14.6, os «300 do Brasil» simularam um ataque com fogos de artifício ao prédio do stf. Nas redes sociais, um manifestante afirmou que as ações foram «para mostrar ao stf e ao gdf (Governo do Distrito Federal) que nós não vamos arregar. Repararam que o ângulo dos fogos está diferente da última vez? Se preparem, Supremo dos bandidos» (Gazeta do Povo, 14.6.2020).13 O Presidente do stf reagiu às ameaças afirmando:
O Supremo jamais se sujeitará, como não se sujeitou em toda a sua história, a nenhum tipo de ameaça, seja velada, indireta ou direta e continuará cumprindo a sua missão. Guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal repudia tais condutas e se socorrerá de todos os remédios, constitucional e legalmente postos, para sua defesa, de seus Ministros e da democracia brasileira. (Fachin, 14.6.2020)
No dia seguinte, o stf determinou a prisão de Sara Winter, líder do movimento. Três dias depois, por 10 votos a 1, decidiu a favor da abertura de inquérito que apura divulgação de fake news e ameaças contra integrantes da Corte. Esse mesmo inquérito fora responsável por suspender as contas de Twitter e Facebook de dezenas de aliados presidenciais em 24.7. Em fevereiro de 2021, o stf determina a prisão de outro defensor bolsonarista, o deputado Daniel Silveira (psl-rj). Em resposta, o presidente pediu aos simpatizantes, em tom de capitulação, que permanecesse «tudo em paz»14 (Bolsonaro, 2020).
Quanto a esse embate, pode-se sugerir que o Presidente insuflou seus aliados a atacarem o stf como forma de incrementar a força potencial de suas ameaças durante as negociações com a Corte, forçando-a a reduzir sua influência política. Quando a ameaça deixou de ser potencial e passou a ser ativamente realizada, com ataques diretos aos ministros e às instalações físicas em Brasília, o stf revidou com ações, e não ameaças, ao prender a líder do movimento bolsonarista, instaurar um inquérito e banir contas digitais de aliados do governo. A ameaça do Governo perdeu seu potencial ao ser posta parcialmente em prática, e, sem a potencialidade da força, perdeu seu valor na barganha, o que levou a derrota do Governo.
Em novembro de 2020, o Governo Federal iniciou uma negociação referente a mudança no processo de votos nas eleições de 2022, com a intenção de adotar o sistema de voto impresso. A forma encontrada pelo Governo para aprovar a medida foi através do uso da ameaça -e principalmente, da ameaça antidemocrática.
Neste mês, o presidente afirmou:
Nós devemos ter um sistema eleitoral onde você possa aferir e auditar o seu voto. E o que tá aí não é possível ser aferido. Então eu, por exemplo, não confio nesse sistema eleitoral. Alguns falam que eu fui eleito nesse sistema. Fui eleito porque tive muito voto. Fui roubado demais. Ninguém reclamou quando foi votar no 13 e tinha problema, mas reclamou muita gente quando foi votar no 17 (…). Vamos resolver, junto com o Parlamento, a gente vai resolver isso aí. Ninguém acredita nesse voto eletrônico, ninguém acredita. E devemos atender a vontade popular, e ponto final. Tenho certeza que o Parlamento vai nos ouvir. Isso é para tratar no início do ano que vem, e vamos tratar desse assunto aí. A gente vai ter o apoio lá e eu acho que a maioria quer isso também. Não podemos ter mais eleições complicadas em 22. (Bolsonaro, 20.11.2020; grifo nosso)
Em dezembro, em transmissão nas redes sociais, o Presidente foi mais enfático ao afirmar que «se não tiver voto impresso, pode esquecer eleição» (Bolsonaro, 23.12.2020).15 Em janeiro, sobre o resultado das eleições presidenciais dos Estados Unidos, disse:
Se nós não tivermos voto impresso em 2022, uma maneira de auditar voto, vamos ter um problema pior que os Estados Unidos (…). O pessoal tem que analisar o que aconteceu nas eleições americanas agora. Basicamente, qual foi o problema, a causa dessa crise toda. Falta de confiança no voto. Então, lá, o pessoal votou e potencializaram o voto pelos correios por causa da tal da pandemia e houve gente lá que votou três, quatro vezes, mortos que votaram. Foi uma festa lá. Ninguém pode negar isso daí. (Bolsonaro, 7.11.2021)
Em maio de 2021, Bolsonaro foi ainda mais direto, condicionando a ocorrência das eleições à instalação do voto impresso, ao dizer:
Ninguém aceita mais este voto que está aí, como vai falar que é preciso, é legal, é justo e não é fraudado? Única republiqueta do mundo, acho que talvez a única, é a nossa que aceita essa porcaria desse voto eletrônico, isso tem que ser mudado (…). E digo mais, se o Parlamento brasileiro, por maioria qualificada, em três quintos na Câmara e no Senado, aprovar e promulgar, vai ter voto impresso em 2022 e ponto final. Não vou nem falar mais nada. Vai ter voto impresso, porque se não tiver voto impresso, sinal de que não vai ter a eleição. Acho que o recado está dado. (Bolsonaro, 7.5.2021; grifo nosso)
A ameaça dirige-se ao stf, ao tse e ao Congresso. O Presidente usa novamente a retórica de que só ele sabe qual é a vontade popular, ao afirmar que «ninguém mais aguenta esse voto que está aí» (Bolsonaro, 2021), e que está disposto a tudo para realizar a vontade popular, sendo que é o próprio ativismo do Presidente a origem dessa desconfiança das urnas eletrônicas, em prol do voto impresso. Na parte final, está a condicionante da ameaça, quando afirma que «se não tiver voto impresso, sinal de que não vai ter a eleição. Acho que o recado está dado» (Bolsonaro, 2021).
O mês de julho de 2021 fora marcado por diversas ameaças referentes ao voto impresso. No dia 22 desse mês, o Estado de São Paulo publicou uma reportagem relatando que o presidente da Câmara recebeu recado do ministro da Defesa, Walter Braga Netto, comunicando quem interessasse que não haveria eleições em 2022 se não houvesse voto impresso.
Esse momento é peculiar no jogo de ameaças e dissuasão. Até então, todas as comunicações referentes às ameaças ocorriam de forma pública, arrastando a opinião pública para os assuntos veiculados. Agora, parece que a ameaça fora feita de forma reservada, particular, só vindo a público após vazamento. Com a publicação da nota, O presidente do Senado, da Câmara, e os ministros do stf reforçaram que o processo eleitoral ocorrerá normalmente em 2022.
Dois dias depois, o Presidente reforça as ameaças feitas, ao dizer: «Eleições limpas, todos nós queremos. Eleições sujas, isso eu não chamo eleições, isso não é democracia. E nós estamos com bastante antecedência falando o que pode acontecer na frente, e o que nós podemos fazer para evitar» (Bolsonaro, 2021). No dia 29.7, Bolsonaro afirma que irá revelar, por meio de transmissão ao vivo, as provas que têm sobre as fraudes na eleição de 2018, algo que propaga e promete fazer desde sua eleição. Durante a transmissão, Bolsonaro afirma:
Os que me acusam de não apresentar provas, eu devolvo a acusação. Apresente provas de que ele não é fraudável (…). Não tem como se comprovar que as eleições não foram ou foram fraudadas (…). Não temos provas, vou deixar bem claro, mas indícios que eleições para senadores e deputados podem ocorrer a mesma coisa. Por que não? (Bolsonaro, 29.7.2021)
Com a confissão de que não havia qualquer prova sobre a fraude na apuração de votos em 2018, Bolsonaro perdeu uma ferramenta de barganha, bem como a força potencial de uma prova concreta que colocasse em dúvida a confiança do brasileiro com as urnas eletrônicas. Dessa forma, o desfecho desta situação de barganha se dá no dia 10.8.21, quando a Câmara dos Deputados vota a pec do Voto Impresso. Para esse mesmo dia, Bolsonaro agendou um desfile de blindados pela praça dos Três Poderes.16 O movimento foi encarado como uma demonstração de força e tentativa de intimidar os deputados. O sentimento criado, porém, fora o de constrangimento. Alguns blindados tiveram falhas mecânicas durante o percurso e a densa fumaça resultante do consumo de diesel virou motivo de chacota nas redes sociais. A pec do Voto Impresso foi rejeitada.
Nesse cenário de derrotas para o stf e para o Congresso, vendo a popularidade do Governo cair e a manutenção do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (pt) como candidato favorito a vencer as eleições de 2022, o Governo Bolsonaro deflagrou, em agosto de 2021, um amplo movimento de tentativa de golpe, marcado para o dia 7 de setembro de 2021, data em que se comemora a Independência do Brasil. Segundo Bolsonaro:
A verdade acima de tudo, ela aparece. Tivemos um prazo de uma semana depois da última live para mostrar mais coisas. Agora, estão se precipitando (…) eu jogo dentro das quatro linhas da Constituição, e jogo, se preciso for, com as armas do outro lado. Nós queremos paz, queremos tranquilidade. (Bolsonaro, 4.8.2021)
Ao ameaçar jogar «fora das quatro linhas da Constituição» se preciso fosse, Bolsonaro demonstra aos outros players que suas ações não serão, obrigatoriamente, restringidas pela Constituição, alterando assim a expectativa dos demais atores sobre qual ação ele poderá ou não tomar. Ao abrir essa possibilidade, Bolsonaro parece querer dissuadir seus adversários a não agir de forma contrária às suas ações.
No dia seguinte, o Presidente repete a ameaça, dessa vez citando um dos ministros do stf na ameaça, quando disse que «a hora dele vai chegar. Porque está jogando fora das quatro linhas da Constituição há muito tempo. Não pretendo sair das quatro linhas para questionar essas autoridades, mas acredito que o momento está chegando».17 Em resposta, o presidente da corte cancela a reunião que teria com o presidente da república, sinalizando a falta de intenção de contato. Novamente, Bolsonaro utiliza da iminência da ação como instrumento de barganha, mas, como já havia feito uso dessa tática sem conseguir dissuadir os demais a agir da forma com que seria melhor para si, o Governo Federal aumenta o teor golpista -e assim o custo da ameaça, para torná-la crível. Esse movimento é notório com os acontecimentos do dia 12, quando Bolsonaro aproxima de si e da tentativa golpista as Forças Armadas. Disse:
O momento é de satisfação e alegria para todo o Brasil. Nas mãos das Forças Armadas o poder moderador, a certeza de garantia da nossa liberdade, da nossa democracia e o apoio total às decisões do presidente para o bem da sua nação. Sempre costumo dizer que, talvez, pela primeira vez, tenhamos no Brasil um governo que acredita em Deus, que respeita seus militares, que defende a família e deve lealdade ao seu povo. Creio eu ser a base para o sucesso de todos nós, 210 milhões de brasileiros (…). Como chefe da nação, a tranquilidade que tenho com o trabalho de vocês me conforta nos momentos difíceis. Obrigada por existirem, obrigado pela tradição e pelo compromisso de dar a vida pela Pátria se preciso for, quer sejam ameaças externas ou internas. Nós sabemos o que é bom e o que é justo para o nosso povo. A nossa liberdade não tem preço. (Bolsonaro, 12.8.2021; grifo nosso)
Além de chamar as Forças Armadas de «poder moderador», Bolsonaro ressalta o «apoio total às decisões do presidente para o bem da sua nação» contra as ameaças «externas ou internas», e que «nós (militares) sabemos o que é bom e o que é justo para o nosso povo». O discurso do presidente é de alto teor golpista, e demonstra a intenção de, simultaneamente, reunir a corporação ao redor de sua figura, e demonstrar aos demais poderes que as Forças Armadas o apoiarão em qualquer investida que julgar necessário.
No dia 15.8, o presidente encaminha de sua conta pessoal do WhatsApp uma mensagem sobre um «provável e necessário contragolpe».18 No dia 20.8, Eduardo Bolsonaro diz que, se continuarmos assim, «Vai chegar uma hora em que essas ordens da mais alta Corte do judiciário nacional não vão ser cumpridas».19 No mesmo dia, seu pai, o presidente, apresentou ao Senado Federal o pedido de impeachment contra o ministro do stf Alexandre de Moraes. Ainda no mesmo dia, para um grupo de apoiadores, o presidente disse: «Perguntam onde estarei no dia 7. Estarei, como sempre, onde o povo estiver. Posso adiantar, pretendo estar na Esplanada dos Ministérios. Pretendo, à tarde, estar na Paulista e convido qualquer político a comparecer ao evento. É a nossa segunda Independência» (Bolsonaro, 20.8.2021).
Uma semana depois, Bolsonaro afirma: «Tenho três alternativas para o meu futuro: estar preso, estar morto ou a vitória. Pode ter certeza que a primeira alternativa não existe. Estou fazendo a coisa certa e não devo nada a ninguém. Sempre onde o povo esteve, eu estive» (Bolsonaro, 28.8.2021). Vale reforçar que o uso da retórica sobre «estarei onde o povo estiver» remete ao discurso populista, e, de forma contrária ao discurso, parece mais direcionar seus aliados a estar onde o presidente gostaria do que o contrário. Essa visão é reforçada com outra declaração dada pelo presidente, em que ameaça descumprir uma decisão judicial do stf sobre o marco temporal, quando diz que «Se aprovado, tenho duas opções, não vou dizer agora, mas já está decidida qual é essa opção, é aquela que interessa ao povo brasileiro» (Bolsonaro, 28.8.2021; grifo nosso), ou, no discurso no interior de Minas Gerais, quando afirmou crer que «chegou a hora, de nós, no dia 7 nos tornarmos independentes para valer. E dizer que não aceitamos que uma ou outra pessoa em Brasília queira impor a sua vontade. A vontade que vale é a vontade de todos vocês» (Bolsonaro, 31.8.2021; grifo nosso).
As ameaças golpistas de Bolsonaro foram levadas a sério por serem críveis. O stf fez uma pausa nos julgamentos referentes ao Governo Federal e se preparou para «todos os cenários possíveis»20 no dia 7.9, no mesmo dia (3.9) em que Bolsonaro afirmou ser o Sete de Setembro um «ultimato» ao stf.21 No dia 4, Bolsonaro faz uso da clássica definição de ameaça de Schelling (1980), no sentido de ameaçar fazer algo que preferia não fazer, quando diz «ruptura essa que eu não quero nem desejo. Tenho certeza, nem o povo brasileiro assim o quer. Mas a responsabilidade cabe a cada poder. Apelo a esse Poder (Judiciário), que reveja a ação dessa pessoa que está prejudicando o destino do Brasil» (Bolsonaro, 4.9.2021).
O dia 7 de setembro de 2021 chega com alto grau de incerteza. Em frente a 150 mil manifestantes, algo em torno de 5 % do público esperado (Brasil de Fato, 7.9.2021), Bolsonaro profere seus ultimatos:
Ou o chefe desse Poder enquadra o seu (ministro) ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos (…). Não podemos continuar aceitando que uma pessoa específica da região dos Três Poderes continue barbarizando a nossa população. Não podemos aceitar mais prisões políticas no nosso Brasil (…). A partir de hoje uma nova história começa a ser escrita no Brasil. Peço a Deus mais que sabedoria, força e coragem para bem decidir (…). Dizer a esse ministro que ele tem tempo ainda para se redimir. Tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos. Sai Alexandre de Moraes, deixa de ser canalha, deixa de oprimir o povo brasileiro. (Bolsonaro, 7.9.2021)
Bolsonaro utiliza, novamente, a mesma fórmula de ameaça em barganhas que utiliza desde 2019. A exploração da iminência da ação, a transformação da força potencial da ameaça na sua derrocada logo após pô-la em prática. Os movimentos golpistas de 7.9 não resultaram frutos para o Governo. Alexandre de Moraes não renunciou ao cargo, nem fora «enquadrado». OS inquéritos não foram arquivados e Bolsonaro não saiu fortalecido desse dia. A posição do stf fora:
Ofender a honra dos ministros, incitar a população a propagar discursos de ódio contra a instituição do Supremo Tribunal Federal e incentivar o descumprimento de decisões judiciais são práticas antidemocráticas, ilícitas e intoleráveis, em respeito ao juramento constitucional que fizemos ao assumirmos uma cadeira na Corte. (fux, 8.9.2021)
Com a perda da ameaça, o Governo Federal viu seu poder de barganha derreter. Incapaz de estabelecer um diálogo com o stf por ter acabado de pôr em prática uma tentativa golpista, o Governo buscou um mediador para negociar os dois lados aparentemente irreconciliáveis. Essa figura foi Michel Temer, ex-presidente do Brasil e antecessor de Bolsonaro. Temer redigiu a carta assinada pelo Presidente, denominada «Declaração a Nação»,22 em que Bolsonaro capitula todas as intenções apresentadas nos últimos meses para o dia 7.9, configurando a promessa como definida por Schelling (1980).
Os apoiadores de Bolsonaro, insuflados a participar da ameaça golpista, desaprovaram fortemente o recuo do Presidente, e o não cumprimento da ameaça fora tomado como sinal de fraqueza. Os aliados políticos viram no recuo a perda de reputação do Governo. Tanto a realização da ameaça quanto a sua tentativa de cumprimento causou efeito negativo no Governo Federal, que viu sua reprovação aumentar drasticamente após os atos de 7.9.21. Gráfico 3.
4. Considerações finais
Para Schelling (1980), na definição de «estratégia», o conflito é garantido, mas também se assume interesses comuns entre os adversários, que a escolha de ação de cada player depende do movimento que espera ser feito pelos demais, e que o comportamento estratégico está relacionado com influenciar a escolha dos outros ao fazer uso da ameaça, uma vez que «é o emprego de ameaças, ou de ameaças e promessas, ou mais geralmente da condição do próprio comportamento de uns sobre o comportamento dos outros que a teoria trata» (Schelling, 1980, p 15; tradução nossa). O autor também aponta que, quando a barganha ocorre na sequência de atos com efeito cumulativo, a ameaça torna-se mais crível quando referente a um incremento específico do que se for direcionado ao processo cumulativo como um todo. Tendo esses elementos em consideração, a resposta para o problema de pesquisa aqui proposto pode ser compreendida como: a ameaça antidemocrática foi utilizada como instrumento de barganha no governo Bolsonaro, no Brasil, entre os anos de 2019 e 2021. O objetivo desse artigo foi alcançado e a hipótese apresentada na introdução confirmada, uma vez que a ameaça antidemocrática foi usada no governo Bolsonaro como instrumento de barganha de forma compatível às formulações propostas por Schelling (1980) de ameaça e promessa.
Parece ser adequado utilizar as formulações de Schelling (1980) para compreender a política de barganha do governo de Jair Bolsonaro. O que pode parecer uma gestão caótica ou desconexa, também pode ser entendida, dessa forma, como uma gestão que utilizou da ameaça como ferramenta de negociação em uma ampla gama de pautas, frequentemente utilizando do artifício de negociar duas ou mais barganhas simultaneamente (agenda restritiva), não necessariamente na intenção de realizar ambas, mas criando um cenário de conflito incessante em que as contingências são constantes: a iminência da ação do Governo Federal para por em prática a «vontade popular», a política do «último aviso», o fechamento dos demais poderes, o caos social, e, mais recentemente, a não realização de eleições e o fim do regime democrático. Quando ocorre a tentativa de realização dessas ameaças e o subsequente gasto da força potencial, o Governo Federal perde suas armas e a validade de suas forças, perde a credibilidade frente aos outros jogadores, apoiadores e rivais, e se vê obrigado a ceder, na forma de compromissos e promessas. Mesmo assim, o cenário de conflito constante pode tornar as ameaças críveis, concretas, e, no limite, que sejam cumpridas. Dessa forma, os resultados poderiam, eventualmente, ser tão definitivos quanto parecia ser a intenção do Governo Federal.