Este artigo apresenta narrativas de mulheres brasileiras internadas compulsoriamente devido ao consumo de crack com o objetivo de refletir sobre a (re)construção e (trans)formação de saberes a partir de experiências desta população. Ele deriva de uma pesquisa de mestrado intitulada “Mulheres e consumo de crack: experiências de internação compulsória”, que está inserida em um projeto de nível superior - “PROCUIDADO - O Cuidado que Nós Desejamos: Uso de Crack e Representações em Saúde. Experiências de Internação Compulsória”.
Historicamente, o consumo de drogas serve para diversas finalidades, obtendo diferentes efeitos de consumo, conforme a droga utilizada, o contexto, as normas sociais e os agentes de uso (Dias, 2012). O consumo de uma substância se insere em marcadores de classe social, além de gênero/raça, que interagem com representações sociais relativas ao sujeito que consome drogas e à droga que é consumida.
Desde uma perspectiva relacional sobre o consumo de drogas, consideramos que os saberes e as normas referem à construção social da realidade e do sujeito por meio das relações que este estabelece com o mundo e com a alteridade. Na Teoria das Representações Sociais (TRS), o conhecimento sobre a realidade é construído por meio de representações sociais. Esse conhecimento não é apenas racional, mas sempre “social e subjetivado” (Rey, 2003, p. 130).
Nesta perspectiva, a noção de subjetividade social busca atentar a como cada sujeito concreto expressa e vivencia representações sociais de forma singular conectada a contextos sociais (Rey, 2003). Assim, a TRS nos auxilia a compreender o fenômeno da internação compulsória devido ao consumo de crack a partir de uma perspectiva que considere as relações que os sujeitos estabelecem com as drogas e com os outros (família, profissionais de saúde, por exemplo). Ao mesmo tempo, nos permite considerar a forma singular de cada participante narrar sua internação em determinado contexto, sendo esta forma também continente e (re)produtora de elementos sociais.
A partir da TRS, consideramos as representações sociais como saberes partilhados socialmente através da comunicação a fim de dar sentido à realidade e orientar práticas na vida cotidiana (Jodelet, 2015). Esta noção estaria na origem de um processo que permite que um grupo se aproprie e reconstrua um conhecimento produzido por outro grupo. Tal processo, por sua vez, é permeado por conflitos e tensões, que movimentam as representações sociais (Jovchelovitch, 2011).
No que se refere aos modelos de atenção à saúde de pessoas que fazem uso de drogas, observa-se que são permeados por contradições, pois são compostos por uma diversidade de atores sociais que constituem um campo de disputa política e econômica. Neste âmbito, aspectos do discurso psiquiátrico e midiático podem tornar evidentes a busca por hegemonia de um modelo de atenção à saúde que culmina em judicialização e internações forçadas (Romanini & Roso, 2012), no qual “a internação compulsória acaba sendo uma medida de saúde policialesca” (Valença, 2013, p. 109).
No entanto, pode-se observar a coexistência de formas de atenção às pessoas que fazem uso de drogas. Algumas são pautadas em um modelo biomédico, que visa a hospitalização, internação e judicialização da saúde; enquanto outras defendem a atenção psicossocial, a desospitalização e o cuidado no território e na comunidade por intermédio de serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, como os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS (Macedo & Machado, 2016).
No Brasil, de acordo com a pesquisa nacional sobre o uso de crack (Bastos & Bertoni, 2014), aproximadamente 370 mil pessoas fazem uso de crack ou similares de forma regular; ou seja, consumiram pelo menos 25 dias nos 6 meses que antecederam a pesquisa. Estes correspondiam a 35% dos usuários de drogas ilícitas (exceto maconha). Cerca de 21,3% das pessoas encontradas pela pesquisa nas cenas de uso de crack eram mulheres. Aproximadamente 30% das mulheres relataram ter procurado algum serviço de saúde nos 30 dias precedentes à pesquisa. Oito (8) em cada dez (10) mulheres relataram que gostariam de realizar tratamento para uso de drogas (77,85%). No entanto, apenas 6,55% dos participantes da pesquisa (mulheres e homens) informaram ter usado algum serviço extra-hospitalar nos 30 dias que antecederam à pesquisa a fim de realizar tratamento. Enquanto isso, 10% dos usuários referiram ter estado em algum serviço de internação nos 30 dias anteriores à pesquisa (Bastos & Bertoni, 2014).
Para este estudo, enfocamos as experiências de internação compulsória (IC). Esta se refere a um procedimento amparado na Lei Federal brasileira nº 10.216/2001, realizado por meio de mandados da Justiça. Essa lei preconiza três tipos de internação psiquiátrica: a voluntária, que ocorre com consentimento do usuário; a involuntária, que ocorre sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e a compulsória, que deve ocorrer por determinação da autoridade judicial, quando o usuário oferece risco para si, para sua família ou para a sociedade. No seu artigo 4º, a lei afirma que a IC “só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”, bem como “o tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio” (Art. 4º, Lei 10.216, 2001). Entretanto, o que por vezes podemos observar é a IC sendo usada como recurso inicial, senão único (Roso, 2013).
No caso das mulheres que fazem uso de drogas, existem entraves que as distanciam dos serviços que atendem demanda de consumo de drogas. Isso ocorre devido a uma “masculinização” das demandas e das propostas nesses serviços, pois o consumo de drogas está mais autorizado socialmente para os homens, o que reforça a invisibilidade das mulheres nessa questão (Bolzan, 2016). Em suma, entraves distanciam os serviços de saúde das pessoas que fazem uso de crack em geral, bem como das mulheres de forma específica. Portanto, torna-se relevante a escuta desses sujeitos a fim de pensar o cuidado com essa população.
Método e delineamento da pesquisa
Trata-se de uma pesquisa social crítica, de abordagem qualitativa. Para análises e discussões, recorremos à Psicologia Social Crítica, atentando às contradições (Guareschi, 2012). Buscamos articular a perspectiva teórica e a análise das narrativas atentando à dialética entre subjetividade e sociedade, bem como explorando a construção de representações sociais.
Para participar da pesquisa, foram convidadas mulheres que estiveram internadas compulsoriamente devido ao consumo de crack, via 4ª Coordenadoria Regional de Saúde (CRS) do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Os critérios para inclusão foram: .
a) ser mulher brasileira;
b) ter sido internada compulsoriamente entre 2013 a 2016;
c) ter sido internada em um dos hospitais que a CRS fez a regulação de leitos; d) ter sido internada devido ao consumo de crack;
e) ser maior de 18 anos; e
f) consentir com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
As mulheres foram acessadas para participarem da pesquisa a partir da ordem cronológica dos processos armazenados na 4ª CRS. O período dos processos acessados foi de 2013 a 2016.
As entrevistas foram realizadas após a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), tendo em vista ressaltar o objetivo, método e o anonimato neste estudo. A pesquisa teve a aprovação institucional da 4ª CRS, bem como aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria (CAAE: 31747214.7.0000.5346). As pesquisadoras assumem o compromisso de cumprir integralmente os princípios das resoluções 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde e 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia.
Em um local escolhido por cada participante, foram realizadas entrevistas narrativas (EN) por uma psicóloga e por mais uma integrante da equipe de pesquisa. A EN é uma técnica de entrevista aberta, que visa estimular a entrevistada a contar a história sobre algum acontecimento importante de sua vida (Jovchelovitch & Bauer, 2010).
Na pesquisa, propomos às participantes que nos contassem a sua experiência em relação à internação compulsória e o consumo de crack. Para isso, iniciamos a entrevista com a colocação disparadora: “Gostaríamos que você nos contasse sobre a sua experiência de internação compulsória e o que ela significou no seu cotidiano”. A partir dela, dialogamos com as participantes sobre suas experiências. Os encontros não tinham duração ou número pré-estabelecidos, ocorrendo mais de uma entrevista com a mesma participante. Neles buscamos aprofundar questões colocadas espontaneamente a fim de estimular o relato. Também foi utilizado um diário de campo para anotações de percepções das pesquisadoras para auxiliar na construção das informações.
Realizamos entrevistas narrativas com três mulheres, denominadas ficticiamente de Alice, Bárbara e Cecília. O material empírico (transcrição e notas do diário) foram lidos diversas vezes e discutidos com a equipe de pesquisa, visando refletir sobre seu conteúdo a partir dos objetivos e da TRS.
Resultados e discussões
A pesquisa abordou três mulheres, que receberam os nomes fictícios de Alice, Bárbara e Cecília, a fim de preservar o anonimato. As participantes tinham idades entre 41 e 28 anos, todas eram brancas, se consideravam religiosas (católicas ou evangélicas), possuíam ensino médio incompleto ou ensino superior incompleto e ocupavam-se de atividades domésticas.
Os resultados e discussões estão divididos em dois eixos. O primeiro apresenta o que entendemos por universo reificado e universo consensual. Exploramos o operador teórico “polifasia cognitiva” como uma articulação entre os dois universos, observando a possibilidade de dinamicidade de representações sociais. Essa articulação visa problematizar como diferentes saberes interatuam para produzir e/ou modificar as racionalidades do universo reificado presentes nas experiências de IC.
No segundo eixo, abordamos como as participantes se apropriam e (re)constroem representações sociais. Percebemos que saberes do universo consensual são desvalorizados pelo universo reificado a ponto de incidirem sobre a apropriação subjetiva que as participantes fazem em relação a si mesmas e às drogas. Deste modo, o segundo eixo explora entraves na expressão da diversidade de saberes e nas possibilidades de cuidado, uma vez que a apropriação subjetiva aparece marcada pela internalização de elementos do universo reificado e do individualismo.
Os (des)encontros entre ciência e senso comum: a polifasia cognitiva como um mediador
Os saberes científicos e os saberes do senso comum podem ser ilustrados pelos conceitos “universo reificado” e “universo consensual”, respectivamente. O universo reificado se refere à ciência, objetividade ou a teorizações abstratas. O universo consensual, por sua vez, diz respeito às teorias do senso comum, que estão no cotidiano e que (re)constroem representações sociais (Oliveira & Werba, 2010). Mas, que articulações existem entre esses dois universos?
Moscovici (2012) vislumbrou uma relação de continuidade entre senso comum e ciência. Para tanto, não considerou o senso comum como ideias irracionais, senão como apropriação adequada a necessidades cotidianas. Sendo assim, a relação entre senso comum e ciência também seria de mútua (re)construção.
No contexto da IC devido ao consumo de crack, o universo reificado pode ser visualizado nos saberes médico e jurídico, uma vez que a IC é uma medida de segurança que é cumprida, geralmente, em ala psiquiátrica de hospital-geral. Esses saberes possuem respaldo científico e jurídico para autorizar as internações. Nas entrevistas com as participantes, podemos observar a presença de uma aceitação e apropriação do conhecimento científico; por exemplo, no que se refere ao uso de medicação para o tratamento: “eu sempre tomava medicação, nunca tirei a medicação porque é o que me dá mais segurança” (Cecília).
Ao mesmo tempo, Cecília não recorre apenas à medicação para lidar com as dificuldades, mas busca outros recursos, aparentemente contraditórios: “quando vier qualquer dificuldade, é oração, meditação, medicação” (Cecília). A diversidade de recursos (drogas ilícitas, alopática, oração e meditação) que Cecília utiliza pode expressar a polifasia cognitiva. Esta, segundo Moscovici (2012), ilustra como diferentes lógicas e racionalidades interagem, sendo elas oriundas dos universos reificados - como a medicação - e consensuais - como a oração ou a meditação.
Todavia, a polifasia cognitiva está presente não apenas na acomodação de diferentes saberes, mas principalmente na tensão entre eles, o que pode provocar resistência. Nesta perspectiva, conforme Jovchelovitch (2011), somente através de medidas violentas um saber é substituído por outro ou erradicado; este pode ser o caso da IC.
Observamos que a IC funciona como um dispositivo para silenciamento de saberes:
“As pessoas não conversam contigo, não perguntam se tu quer parar, só te enfiam uma comida ruim, um monte de remédio e deu. Eu acho que pra isso não funciona” (Bárbara).
“É só medicação, tu fica deitada e não tem parte de conversa, não tem nada pra tu focar” (Cecília).
A comunicação e o diálogo são elementos necessários para a polifasia cognitiva e para potencializar a transformação das representações sociais (Jovchelovitch, 2011). A abertura para o outro é justamente condição para acolher a diversidade de saberes (Jovchelovitch, 2008).
Na ausência de diálogo, não surge uma construção coletiva de saberes; antes há a imposição de um saber médico-científico, restando poucas possibilidades para que o sujeito se aproprie dele de forma criativa. Esse saber pode ignorar o universo consensual quando se utiliza de uma medida autoritária, a qual não considera os saberes das pessoas que fazem uso de drogas sobre o seu próprio tratamento, tampouco se dialoga dentro da internação. A ausência de diálogo, por sua vez, leva a práticas pouco efetivas em saúde, haja vista que são hierárquicas e não fazem sentido para os sujeitos nos seus cotidianos.
Na narrativa de Cecília, ela relata uma experiência de medo em relação a pedidos de IC cujo requerente foi seu pai:
chegou o oficial de justiça lá em casa com a compulsória. Eu entrei em pânico, né? Eu já tava limpa (...) o pai tirou a compulsória e, assim, só do fato de tu ver o papel, tu ler o que tá escrito, já te dá um... eu fiquei chateada, fiquei assustada (Cecília).
Apesar de ter sido “tirado”, o pedido de IC serve de ameaça contra Cecília quando a família fica sabendo de suas “recaídas”: “eu tive uma recaída há 6 meses atrás e eu contei pra mãe e ela disse ‘olha, tua compulsória tá lá no fórum, qualquer coisa, né?’”. Assim a IC, por ser uma medida de tratamento demandada por terceiros, também pode servir para infantilizar a pessoa que faz uso de drogas, servindo como um dispositivo de controle - seja pelos pais ou pelos saberes do universo reificado.
Para Bárbara, a internação “não adiantou nenhuma vez”. Ela foi internada cerca de vinte vezes. Algumas vezes de forma compulsória, outras de forma voluntária: “só que eu não queria pará, querer eu até queria, sabe? Mas não conseguia”. Tal fala confirma que tratamentos à força não são eficazes como cuidado em saúde, além de favorecerem violações de direitos humanos (Skromov, 2013).
Segundo Valença (2013), as taxas de recaída após IC podem chegar até 95%. Por ser uma demanda de terceiros e não do próprio sujeito, torna-se compreensível que haja recaídas, visto que o sujeito não foi incluído na decisão sobre seu tratamento. Embora a recaída pudesse demonstrar a ineficácia da IC, ela serve para alimentar uma lógica punitiva que “se potencializa no próprio fracasso” (Souza & Carvalho, 2012, p. 45). A recaída se torna mais um meio de culpabilizar o indivíduo por não se manter abstinente e, com isso, justificar que ele seja internado novamente.
Em suma, a recaída como indicativo de fracasso da IC não implica uma desconsideração pela medida, mas sua intensificação. Essa noção ainda comporta um sentido religioso, de pensar o “recair” como “queda da alma que se deixou levar pelas tentações pecaminosas” (Souza & Carvalho, 2012, p. 46). Articulada com o discurso médico, a noção de recaída se conecta com a de doença ou, articulada a um discurso jurídico-policialesco, o usuário se torna criminoso. Ambos reproduzem a lógica proibicionista, tornando a punição a medida a ser tomada (Souza & Carvalho, 2012).
Pode-se vislumbrar que a IC se torna uma medida de punição no caso de Cecília, servindo para ameaçá-la, ainda que ela deixe de usar drogas por determinado tempo devido ao medo, e não por sua vontade. O filho de Cecília faz uso de maconha e ele acredita que não seja uma droga, pois faz bem a ele. Sobre essa forma de consumo, Cecília diz preferir que ele use em casa. No entanto, ainda o ameaça com internações, repetindo o que seus pais fazem com ela:
eu tô toda hora... ó a compulsória. Ele eu ameaço. (...) qualquer atitude que ele faça, qualquer coisa que eu não goste eu já começo (...), ele não é de beber, mas se eu vejo que ele bebeu, que ele tá fumando demais (Cecília).
Para ilustrar a polifasia cognitiva, Moscovici utiliza um exemplo: “um indivíduo dogmático e rígido, tendo um sistema cognitivo qualificado de fechado nos campos racial e político, possa ser tolerante e aberto como artista, estudante etc. Talvez ainda esse ‘fechamento’ do sistema cognitivo convenha a certo dado objetivo” (Moscovici, 2012, p. 253). No campo das drogas, podemos pensar que uma pessoa que faz ou fez uso de crack pode vir a (re)produzir um discurso de aversão às drogas e pró-internações forçadas; por exemplo, a forma como Cecília fala sobre drogas com o seu filho.
No caso de Bárbara, ela pediu algumas vezes para ser internada porque se percebia magra e fraca: “às vezes ficava nove dias acordada, dormia de pé, daí quando tu ia comer, teu estômago não aceitava mais (...), só queria droga o organismo”. O corpo-organismo de Bárbara aparece na sua fala de forma que ficam apagados aspectos sociais e subjetivos da sua procura pelo consumo de crack. O corpo-organismo parece também desumanizado, desprovido de racionalidade e subjetividade. Existem representações sociais que percebem as pessoas que fazem uso de drogas como irracionais e objetos de um desejo de consumo incontrolável (Romanini & Roso, 2014; Valença, 2013).
As pessoas que fazem uso de crack podem perceber o seu corpo como um corpo-objeto, cuja aparência denunciaria o consumo e estaria sujeito a invasões por autoridades legitimadas pelo universo reificado; por exemplo, por meio de internações (Romanini & Roso, 2014). No entanto, na narrativa de Bárbara, há a coexistência entre um tratamento autoritário e a busca por acessar um atendimento no qual pudesse “dar um tempo” do consumo de crack. Segundo ela, “eu queria parar, só que não tinha, assim, o desejo de parar, o real desejo, o desejo era dá um tempo”. Neste âmbito, o “real desejo” pode se referir a um desejo autêntico, dotado de sentido frente a sua percepção da realidade. Cabe questionar que lugares o desejo de Bárbara poderia encontrar frente ao seu contexto. O impasse entre a demanda de outros e o (não) lugar do seu desejo pode ter levado Bárbara a buscar uma internação mesmo sem o objetivo de acatar à abstinência. Bárbara ainda complementa dizendo: “eu parei quando eu quis parar, não precisou da internação”, indicando que a sua decisão pela abstinência tem relação com o seu desejo e não com a internação.
Assim como Bárbara, Alice relata uma relação ambígua com a internação, pois algumas vezes ela manifestou que queria se internar para se afastar temporariamente do consumo, ainda que não gostasse de estar internada, pois se sentia dopada pela medicação. Deste modo, cabe refletir o que leva a uma pessoa que “não gosta” de estar internada a pedir uma internação? Seria uma lacuna da inserção em outros serviços de saúde? Ou um modo de buscar aprovação da família e, com isso, resgatar vínculos? Nos casos de Alice e de Bárbara, elas não realizavam acompanhamento em serviços de saúde. Ambas já haviam frequentado um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS-AD), mas não permaneceram.
A falta de identificação com serviços abertos para tratamento do consumo de drogas indica uma lacuna no acesso a essa população e pode ter relação com a internalização de uma representação social que indica que só há cura para o consumo de drogas por meio de internação (Valença, 2013). Além disso, entraves distanciam as mulheres de serviços de saúde que atendem demandas de álcool e outras drogas. As mulheres acessam mais serviços de saúde do que os homens, mas para tratar de demandas vinculadas a representações das mulheres como mães, reprodutoras e cuidadoras; por exemplo, “pré-natal, exames ginecológicos, acompanhamento dos filhos” (Bolzan, 2016, p. 126). No que se refere ao consumo de drogas, se percebe uma masculinização da demanda, que reflete nas propostas dos serviços (Bolzan, 2016).
Tais lacunas refletem em internações e medidas emergenciais, que limitam a construção do cuidado em saúde com as mulheres que fazem uso de crack. A ausência de diálogo produz efeitos subjetivos nas formas como as participantes se apropriam de representações sociais. Vamos explorar algumas apropriações subjetivas das experiências de internação e de certas representações sobre drogas a seguir.
Os Efeitos das Representações Sociais na Subjetividade
A polifasia cognitiva possibilita a (re)construção de representações sociais. Mas o que acontece com os saberes destituídos? Como certos saberes são destituídos de valor a ponto de afetarem a constituição da subjetividade? As narrativas indicam que a destituição de saberes das pessoas que fazem uso de drogas permite a ratificação de representações sociais negativas acerca da pessoa que consome drogas e sobre as drogas em si, reforçando a culpabilização individual pelo consumo.
Ao se abordar questões referentes ao consumo de drogas, é frequente a busca por garantia de uma verdade científica, que poderá refletir em autoritarismo e produzir discursos normativos (Henman, 1999). Poderíamos entender esse movimento enquanto uma desvalorização dos saberes experienciais e cotidianos. Nas experiências de IC, percebemos que esta representa uma experiência negativa no atendimento às pessoas que fazem uso de drogas.
No que diz respeito à chegada na IC, Cecília relata: “eu me sentia a pior pessoa do mundo, doente ao extremo (...), eles dopavam muito a gente de remédio que... tu não conseguia raciocinar”. Estar “dopada” no ambiente de internação também diz de uma representação da droga. Há drogas que são permitidas e outras não, tal permissão
se baseia em discursos jurídicos - o que é considerado legal e ilegal; na cultura - o que, onde, como, por quem é permitido usar; e conjuntamente no modelo com ênfase hospitalar, o qual justifica a escolha de determinadas substâncias devido a evidências científicas (Macedo & Machado, 2016, p. 42).
Novamente podemos perceber a articulação entre os saberes médico e jurídico ao pensar sobre a legalidade ou ilegalidade de uma droga. Soma-se a isso os efeitos subjetivos de internalização de uma lógica punitiva ao se sentir a pior pessoa do mundo, doente ao extremo. Considerando que as experiências subjetivas são construídas simultaneamente às representações sociais, o relato de Cecília demonstra efeitos das representações sociais da pessoa que faz uso de drogas enquanto doente, louco, incapaz de raciocinar e se autogovernar. Essas representações já foram apresentadas como (re)produzidas na mídia em outros estudos (Rodrigues, Conceição & Iunes, 2015; Romanini & Roso, 2012; Santos, Acioli Neto & Sousa, 2012). Ao internalizar representações, Cecília as experiencia subjetivamente, e também pode se tornar capaz de modificá-las e/ou reproduzi-las.
Na narrativa de Cecília, ela reproduz o mesmo medo que sentia pela IC com o seu filho, apostando que dessa forma ele evitará o consumo de drogas: “ele diz ‘não, eu jamais vou experimentar outra droga’, (...) esse medo fui eu que causei nele”. A educação, quando utiliza discursos autoritários, “cria a noção e erro e, portanto, o sentimento de culpa” (Orlandi, 1983, p. 11). Neste sentido, podemos pontuar que a lógica punitiva e moralista, sofrida por Cecília nas internações, tem efeitos nas relações que ela constrói. As experiências de internação também resultavam em culpa, em se sentir “a pior pessoa do mundo” e certa anulação da sua subjetividade devido aos entraves para diálogo. O que percebemos na relação de Cecília com o filho é que as relações não são fragmentadas, as experiências subjetivas e sociais se entrelaçam e podemos reproduzir lógicas de contextos violentos.
Para Alice, a internação serve apenas para abstinência da droga por um tempo limitado porque “é fácil não usar onde não tem”. Bárbara compartilha da experiência de retorno ao consumo de crack ao sair das internações: “só tinha que ficar uns 10 dias sem usar, depois voltava”. Esse retorno ao consumo pode acontecer porque a IC é uma intervenção isolada dos contextos que os sujeitos vivenciam nos seus cotidianos e porque não se dialoga sobre o cotidiano para além da internação. Para Cecília, a experiência de sair da internação é marcada por certo desamparo: “eu saía de cada internação assim sem eira nem beira, sem saber o que fazer”.
E por que retornar ao consumo de crack após passar por uma medida tão violenta? Sabemos que a IC desconsidera o desejo das pessoas que fazem uso de drogas. Além disso, Alice acredita que “na internação tu fica numa redoma, o duro é sair e voltar pra realidade”. A fala de Alice ilustra a IC como mecanismo que isola sujeito do seu contexto social, o que já foi pontuado em outros estudos (Souza & Carvalho, 2012; Valença, 2013). Ela nos lembra o quanto a internação retira o sujeito da sua realidade ainda complementa dizendo que o mesmo acontece na igreja; ou seja, trata-se de um lugar onde é possível se distanciar da droga, mas que nem sempre sustenta a abstinência no cotidiano. Embora a igreja não seja uma instituição fechada, ela promove relações sociais que permitem que as pessoas se afastem do consumo de drogas. Algumas igrejas pentecostais que oferecem apoio social para pessoas que fazem uso de drogas, paradoxalmente, culpabilizam o indivíduo como origem do problema e como responsável, quando ele não consegue se manter abstinente (Rocha, Guimarães & Cunha, 2012).
Nesta perspectiva, tanto certos saberes médico-jurídicos quanto os religiosos tendem a culpabilizar individualmente a pessoa que faz uso de drogas. Assim, o usuário é marcado pela representação enquanto indivíduo (Romanini, 2016); o que permite ignorar que o consumo de drogas é uma questão psicossocial. Certamente a representação como indivíduo não se refere apenas às pessoas que fazem uso de drogas, mas atravessa a todos/as à medida que a concepção de ser humano como indivíduo, na cosmovisão liberal-individualista, significa indivíduo separado de todos, que basta para si mesmo (Guareschi, 2012). Todavia, as representações sociais são dinâmicas e, portanto, é possível apostar em outras relações e possibilidades de cuidado com as pessoas que fazem uso de drogas. A dinamicidade é incompatível com o individualismo, pois requer abertura para a alteridade, reconhecendo o outro enquanto pessoa-relação e não de forma isolada da sociedade.
Considerações finais
O estudo abordou três mulheres que foram internadas compulsoriamente devido ao consumo de crack com a intenção de refletir sobre a (re)construção e (trans)formação de saberes a partir das experiências delas. Para atender ao objetivo, utilizamos a TRS como aporte teórico a fim de explorar a dinamicidade e diversidade de saberes expressos nas narrativas. A teoria nos permitiu abordar tanto os saberes compartilhados socialmente quanto os efeitos subjetivos advindos destes.
Percebemos o campo das drogas disputado por diferentes saberes. Tal disputa reflete na internalização de lógicas punitivas e autoritárias pelas participantes, que se tornam reproduzidas em outras relações no cotidiano, para além do contexto de internação. Deste modo, alimenta-se um sistema de saber que não abre espaço para alteridade e amplia-se a visão da pessoa que faz uso de drogas como indivíduo, que é culpabilizado. Neste âmbito, a falta de uma apropriação subjetiva mais criativa de certas representações sociais pode justamente revelar a violência de medidas que não propiciam o diálogo, como é o caso da IC. Em suma, uma experiência subjetiva de violência, como uma internação, tem efeitos nas relações e na sociedade, sobretudo na culpabilização das pessoas que fazem uso de drogas.
As narrativas demonstraram a pouca efetividade da internação no que se refere a manter-se abstinente do consumo de crack, pois o contexto de internação se torna desconexo do cotidiano dessas mulheres. De modo geral, as participantes relatam a IC como uma experiência violenta, que retira o sujeito do seu contexto e que não funciona, pois é uma medida autoritária e demandada por outro, sem diálogo antes, durante ou após a internação. Nesta perspectiva, a interlocução entre o universo reificado e o universo consensual permitiria a (re)construção das representações sociais por meio da sua dinamicidade, assim como permitiria perceber as mulheres que fazem uso de crack como sujeitos que têm desejos e saberes.
Destacamos que a IC é uma medida de tutela pautada em uma lógica punitiva. As participantes indicaram, algumas vezes, a vontade de serem internadas por não se adaptarem ou não acessarem outros serviços de saúde. O acesso a serviços permitiria que não fosse necessário demandar por medidas emergenciais; entretanto, existem lacunas para que esse acesso ocorra. Neste sentido, faz-se necessário, aos serviços que atendem demanda de álcool e outras drogas, considerar e incluir as necessidades e especificidades de mulheres que fazem uso de drogas, a fim de não reforçar a invisibilização dessa população.
Acreditamos ter avançado teoricamente ao explorar a relação entre sujeito e sociedade e ao pensarmos as representações sociais de forma dinâmica, como saberes compartilhados socialmente que os sujeitos não cessam de (re)construir, ainda que medidas como a IC busquem estabilizar ou silenciar alguns desses saberes.
Concluímos que a (re)construção e (trans)formação de saberes se dá de forma limitada, uma vez que é também restrita a abertura para a alteridade no contexto de internação e também na nossa sociedade marcada pelo individualismo. No entanto, apostamos que as necessidades cotidianas permitem a apropriação de saberes à medida que colocam diferentes formas de pensar em disputa.
A pesquisa utilizou a entrevista narrativa para construção das informações, o que foi um desafio para abordar aspectos tão amplos quanto “experiências sobre consumo de crack e IC”. Nesta perspectiva, a diversidade e o detalhamento de informações nos relatos foi uma possibilidade da técnica, adequada aos estudos que atentam à dialética entre sujeito e sociedade.
Este estudo apresenta limitações, estando historicamente e culturalmente situado. Outros estudos sobre a diversidade de saberes que compõe o campo das drogas poderiam ser realizados em outros locais, o que ampliaria as discussões, elucidaria especificidades locais e poderia relatar experiências divergentes.
Sugere-se a futuros estudos que explorem as ambiguidades nas relações que as pessoas estabelecem com as drogas a fim de debater o tema para além da moralidade e desenvolver recursos compatíveis com a complexidade do tema, o que permitiria a construção de estratégias de cuidado pautadas no desejo das pessoas. Ainda, pensar como ocorrem as resistências ao universo reificado, colocando em evidência elementos da subjetividade e de apropriações criativas, é uma questão que merece atenção de novos estudos.
Por fim, indica-se que o diálogo possibilita a escuta do outro e do seu real desejo. Essa escuta é fundamental para desenvolver cuidados compatíveis com as demandas de mulheres que fazem uso de crack e alternativas à IC. Do contrário, reproduziremos medidas desconexas com a realidade dessa população, reforçando a culpabilização do indivíduo.