O engano é um fenômeno que ocorre nas interações interpessoais, em que criam-se e perpetuam-se mentiras, exageros e deturpações, que são utilizados com diferentes objetivos, como manter bons relacionamentos interpessoais, disfarçar emoções consideradas inadequadas, manter conversas fluindo, assim como parecer confiáveis (Burgoon & Buller, 2004). Cole (2001) afirma que em relacionamentos românticos, dizer a verdade contribui para a proximidade e a intimidade do casal, contudo quando a informação provoca reações adversas, o parceiro pode ocultar e distorcer os fatos. A propósito, no estudo de Gaule (2015), os participantes indicaram que utilizavam mensagens afetivas enganosas para falar da própria família ou da família do parceiro, para aumentar a autoestima do parceiro, para se proteger da verdade, por exemplo, quando seus parceiros tinham uma relação extraconjugal.
Guthrie e Kunkel (2013) realizaram um estudo com 67 pessoas que estavam em um relacionamento romântico e verificaram que, no período de sete dias, os participantes enganavam em média 4,88 vezes. Os autores ainda observaram seis categorias de motivos de utilização do engano: envolver-se em manutenção relacional, gerenciamento de necessidades faciais, negociação de tensões dialéticas, estabelecimento de controle relacional, continuação de engano anterior. A sexta categoria foi denominada “desconhecido” pelo fato de que, em algumas situações, pode ser difícil identificar os motivos do engano. No estudo de Cole (2001), realizado com 128 casais com média de idade de 21 anos, os participantes relataram se envolver em mais mentiras do que percebem que seus parceiros o fazem no decorrer de uma semana.
Gaule (2015) realizou um estudo em que participaram 125 pessoas com idades entre 18 e 51 anos, os quais responderam a instrumentos sobre uso de engano, comunicação pró-social e variáveis de proximidade, comprometimento e satisfação com o relacionamento. Os resultados indicaram que mensagens afetivas enganosas correlacionam-se negativamente com aspectos e manutenção de relacionamentos. Os resultados ainda indicaram que mensagens afetivas enganosas relacionaram-se negativamente com proximidade e satisfação com o relacionamento. Nessa direção, Cole (2001) identificou que o nível de comprometimento com a relação prediz negativamente o uso de engano e que o uso de engano prediz negativamente o nível de intimidade.
Em relacionamentos amorosos, verificam-se diferenças de gênero no uso de engano, sendo que, segundo Stafford (2015), em seu estudo, os homens utilizaram mais o engano que as mulheres, e isso pode se manifestar nas seguintes situações: esconder o nível de compromisso, o que faz no tempo livre, sobre a idade, sobre uso de álcool e outras drogas, sentimentos negativos e história sexual. Por sua vez, Álvarez e Yusti (2015) realizaram uma revisão sistemática sobre traços de personalidade e uso de engano e concluíram que a personalidade pode estar relacionada tanto a forma de enganar, como ao tipo de engano. Nessa direção, destaca-se os traços sombrios da personalidade, os quais apresentam características como falta de empatia e manipulação (Brewer et al., 2018) e que podem auxiliar na compreensão do engano.
A tríade sombria é composta pelos traços maquiavelismo, psicopatia e narcisismo, os quais, apesar de apresentarem origens diferentes, compartilham características que estão relacionadas a um comportamento socialmente malévolo, como autopromoção, frieza emocional, duplicidade e agressividade (Paulhus & Williams, 2002). Contudo, embora apresentem características semelhantes, esses traços diferem em muitos aspectos, assim como apresentam implicações sociais diferentes, como observou Rauthmann (2012). Esse autor buscou verificar como narcisistas, maquiavélicos e psicopatas viam a si, aos outros e como se comunicavam, assim como o modo que os outros os viam e se comunicavam com eles. Por exemplo, os narcisistas apresentaram uma visão positiva de si, diferente de como veem os outros e de como são percebidos pelos outros; os maquiavélicos apresentaram auto avaliações e avaliações dos outros semelhantes, de modo que as pessoas que pontuam alto nesse traço podem projetar sua personalidade no outro ou apresentar tendências evocativas que provocam reações dos outros semelhantes à sua conduta; por sua vez, os psicopatas foram descritos com nível alto de dominância e nível baixo de nutrição, ingenuidade e conscienciosidade, sendo percebidos pelos outros de maneira negativa (Rauthmann, 2012).
Navas (2017) buscou verificar a relação entre desconexão moral, tríade sombria e condutas antissociais em uma amostra de 269 adolescentes, com média de idade de 15,13 anos. Dentre os resultados encontrados, a autora verificou que, dos três traços da tríade sombria, o maquiavelismo, nos meninos, foi o único que apresentou poder preditivo sobre desconexão moral, enquanto, nas meninas, foi o que apresentou maior poder preditivo na desconexão moral, contudo, esse traço não apresentou poder preditivo sobre comportamento antissocial, o que segundo a autora pode estar relacionado à tendência das pessoas que pontuam alto nesse traço de enganar e manipular os outros objetivando um ganho pessoal. Por sua vez, a psicopatia, caracterizada por falta de afeto, remorso e insensibilidade, estava relacionada, nos meninos, a uma maior probabilidade de envolvimento em comportamentos antissociais (Navas, 2017). Acerca da psicopatia, destaca-se o estudo de Savard, Brassard, Lussier e Sabourin (2015), realizado com 140 casais para verificar o papel dos traços de psicopatia no apego romântico. Os resultados desse estudo sustentam que características como desregulação emocional, comportamento antissocial, impulsividade e irresponsabilidade relacionam-se ao desenvolvimento de apego inseguro.
Nesse sentido, é possível verificar na literatura o interesse na compreensão da tríade sombria na área dos relacionamentos interpessoais, como nos relacionamentos amorosos. Por exemplo, Jonason, Lyons, Baughman e Vernon (2014) pesquisaram a relação entre os traços da tríade sombria e medidas de engano de domínio geral e específico. Quanto ao engano em domínio geral, verificaram que os traços de psicopatia e maquiavelismo apresentaram relação positiva com o número de mentiras contadas, o narcisismo apresentou relação positiva com mentiras de auto ganho, maquiavelismo com mentiras leves e psicopatia com contar mentiras sem motivo. No que se refere a mentiras de domínio específico, o traço de maquiavelismo estava relacionado a táticas de engano intersexual, como sinceridade, intenção sexual e envolvimento e, engano intrassexual, como indiferença. O narcisismo estava relacionado a táticas de engano intersexual, como dominância e aparência e, táticas de engano intrassexual, como intensidade e popularidade.
Brewer e Abell (2015), por sua vez, buscaram conhecer a relação entre motivação para se envolver em comportamento sexual, engano sexual e intenção de se envolver em infidelidade. Os resultados demonstraram que o traço de maquiavelismo prediz uma maior propensão a se envolver em comportamentos sexuais, em infidelidade e a utilizarem engano sexual. Quanto ao engano sexual, o maquiavelismo prediz as três formas de engano pesquisadas: mentira flagrante (objetivando envolver-se em comportamento sexual com parceiro atual ou potencial), autosserviço (envolver-se em comportamento sexual para obtenção de ganho específico) e esquiva (comportamentos voltados para evitar conflitos com o parceiro). Nesse sentido, destaca-se que o traço maquiavelismo pode ser caracterizado pela manipulação e desejo de explorar os outros (Brewer et al., 2018).
O traço maquiavelismo pode estar relacionado ainda à percepção de engano pelos seus parceiros, tendo em conta a relação negativa observada com a confiança, como demonstram os resultados de Ináncsi, Pilinszki, Paál e Láng (2018). Esses autores realizaram um estudo com 101 casais heterossexuais com média de idade de 21,7 anos e identificaram que os homens apresentam uma maior pontuação em maquiavelismo que as mulheres. Nessa direção, os homens apresentam uma percepção mais negativa de suas parceiras e seus relacionamentos, buscam autoproteção, são mais abertos a outros relacionamentos e confiam menos em suas parceiras. Mulheres que pontuam alto em maquiavelismo buscam mais objetivos de autoproteção, colocam um maior investimento em seus relacionamentos, apresentam pouca confiança em seus parceiros, percebendo-os como imprevisíveis (Ináncsi et al., 2018).
Nota-se até aqui o impacto das estratégias de engano e engano percebido nos relacionamentos interpessoais, a exemplo dos românticos, além da forte associação com os traços sombrios da personalidade (Brewer & Abel, 2015). Frente a isso, o presente estudo objetivou analisar em que medida tais traços podem auxiliar no entendimento do uso de engano e do engano percebido pelo parceiro nos relacionamentos românticos em uma amostra de brasileiros que estavam em um relacionamento amoroso. Diante disto, buscou-se verificar as seguintes hipóteses: a) Uso de engano se correlacionará positivamente com o maquiavelismo, uma vez que este traço corresponde a insensibilidade afetiva, comportamentos estratégicos e persuasivos que tem por objetivos obter ganhos pessoais (Brewer & Abel, 2015; Jonason et al., 2014), b) Uso de engano se correlacionará com narcisismo, tendo em conta que pessoas com esses traços tendem a apresentar táticas de engano interpessoal, como aparência (Jonason, et al., 2014), e c) Engano percebido pelo parceiro se correlacionará positivamente com a psicopatia e o maquiavelismo, dado que o maquiavelismo parece apresentar relação negativa com confiança (Ináncsi et al., 2018) e psicopatia parece estar relacionada à características como desregulação emocional e impulsividade, além de estar associada ao desenvolvimento de apego inseguro (Savard et al., 2015).
Método
Delineamento
Tratou-se de um estudo quantitativo, não-experimental e transversal, considerando medidas de autorrelato (personalidade sombria, uso de engano e engano percebido pelo parceiro).
Participantes
Participou do estudo uma amostra não probabilística, composta por 300 brasileiros que estavam em um relacionamento amoroso, com idades variando entre 18 e 54 anos (M idade = 25.79, DP = 6.10), sendo a maioria do sexo feminino (75.7%), heterossexual (84.3%), católica (46%), pertencente à classe média (48,3%). Quanto ao status de relacionamento, 61.3% estavam namorando, seguidos por casado/união estável (25%), noivado (3%) e ficando (4%).
Instrumentos
Além de perguntas demográficas (idade, sexo, estado civil, classe social e status de relacionamento), os participantes responderam um questionário composto pelas seguintes medidas:
Uso de Engano (EU). Essa medida foi desenvolvida por Cole (2001) e adaptada para o contexto brasileiro por Silva Neta (2019). Consiste em verificar a frequência que as pessoas se envolvem em engano em seus relacionamentos românticos, sendo composta por nove itens (e.g., procuro esconder de meu (minha) parceiro (a) algumas coisas que fiz), respondidos em uma escala do tipo Likert de sete pontos (1 = discordo totalmente a 7 = concordo totalmente), a qual apresentou no estudo original alfa de Cronbach de .84. No presente estudo, a consistência interna (alfa de Cronbach) da medida foi de .82.
Engano Percebido pelo Parceiro (EPP). Essa medida foi desenvolvida por Cole (2001) e adaptada para o contexto brasileiro por Silva Neta (2019). Busca avaliar o grau em que as pessoas acreditam que seus parceiros se envolvem em comunicação enganosa, sendo composta por quatro itens (e.g. eu penso que meu (minha) parceiro (a) esconde de mim algumas informações importantes), respondidos em uma escala do tipo Likert de sete pontos (1 = discordo totalmente a 7 = concordo totalmente), apresentando no estudo original alfa de Cronbach de .80. No presente estudo, a consistência interna (alfa de Cronbach) da medida foi de .81.
Tríade Sombria (Dark Triad Dirty Dozen-DTDD; Jonason & Webster, 2010). Adaptada para o contexto brasileiro por Gouveia, Monteiro, Gouveia, Athayde e Cavalcanti (2016). A medida é formada por 12 itens, distribuídos equitativamente em três traços: maquiavelismo (e.g., Costumo bajular as pessoas para conseguir o que quero); narcisismo (e.g., Eu tendo a buscar prestígio ou status) e psicopatia (e.g., Eu tendo a ter falta de remorso). A escala de resposta é de cinco pontos, variando de 1 (Discordo totalmente) a 5 (Concordo totalmente). Os coeficientes de consistência interna no estudo de Gouveia et al. (2016) foram os seguintes para cada fator: Maquiavelismo (a = .80), Narcisismo (a = .80) e Psicopatia (a = .66). No presente estudo, os índices de consistência interna (alfa de Cronbach) foram .68 para maquiavelismo, .83 para narcisismo, .69 para psicopatia.
Procedimento
A coleta de dados foi realizada on-line, sendo utilizada a plataforma Limesurvey, a qual gerava um link para a pesquisa e que era divulgado por meio eletrônico (e-mail; facebook). Aos participantes foi dada a instrução de que respondessem aos instrumentos de acordo com o que pensavam, sentiam e se comportavam em seus relacionamentos amorosos. Ademais, eram informados de que não existiam respostas corretas ou erradas, sendo assegurado o caráter voluntário e anônimo da pesquisa, não sendo solicitado que se identificassem. Os participantes que concordaram com o estabelecido no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido prosseguiram na pesquisa. Todos os procedimentos éticos para com pesquisas com seres humanos foram cuidadosamente tomados, tendo em vista a resolução 510/16 do Conselho Nacional de Saúde que estabelece as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas dessa ordem. Ademais, destaca-se que a pesquisa recebeu parecer favorável pelo Comitê de Ética (CAAE: 89533418.0.0000.5188). No geral, os participantes levaram cerca de 10 minutos para o término do estudo.
Análise dos Dados
Para análise dos dados utilizou-se o Software estatístico SPSS (versão 21). Inicialmente realizaram-se estatísticas descritivas (medidas de tendência central, dispersão e frequência) a fim de caracterizar o perfil demográfico da amostra. Posteriormente, efetuou-se teste t de student para verificar se as diferenças de gênero eram significativas estatisticamente, correlações de r de Pearson para verificar a relação entre as variáveis e, análise de regressão múltipla (método de stepwise) para verificar o poder preditivo do sexo e dos traços sombrios da personalidade no uso de engano e engano percebido pelo parceiro.
Resultados
Inicialmente, buscou-se verificar se havia diferenças entre homens e mulheres no uso de engano, engano percebido pelo parceiro, pontuação total da tríade sombria e suas dimensões e se essas diferenças eram significativas estatisticamente. Desse modo, realizou-se teste t de student considerando o sexo (mulher = 1, homem = 2) como variável de comparação, e uso de engano, engano percebido, e as dimensões da tríade sombria como variáveis de saída. Os resultados são descritos na Tabela 1.
Os resultados do teste t de student demonstraram que o gênero apresenta um papel importante apenas no uso de engano (t (291) = - 2.649, p = .00) e no traço psicopatia (t (298) = - 3.302, p = .00).
Em seguida, para testar as hipóteses do estudo, realizaram-se as correlações de r de Pearson entre as variáveis e pôde-se observar que o uso de engano se correlacionou positivamente com maquiavelismo (r = .14, p < .05). Na mesma direção, o engano percebido pelo parceiro se correlacionou positivamente com o traço maquiavelismo (r = .17, p < .01), conforme observado na Tabela 2.
Em razão das análises de correlação, procedeu-se com o último passo, isto é, buscou-se verificar o poder preditivo dos traços sombrios (variáveis critério) na explicação das estratégias de comportamento dos relacionamentos românticos (variáveis explicadoras). Para isto, adotou-se a análise de regressão linear múltipla (método Enter).
Desse modo, realizaram-se duas análises de regressão, as quais mostraram que apenas o sexo e o traço maquiavelismo explicaram o uso de engano (R = .20; R² = .04; F 3,186; p < .05), os coeficientes de predição podem ser observados na Tabela 3. Por sua vez, apenas o traço maquiavelismo explicou engano percebido pelo parceiro (R = .17; R² = .03; F 2,320; p < .05), os coeficientes de predição podem ser observados na Tabela 4.
Pautadas nas análises acima descritas identificou-se então um panorama acerca dos traços sombrios que melhor se relacionam com as estratégias de comportamento presentes nos relacionamentos românticos, permitindo com isso discutir as hipóteses desenvolvidas no presente estudo.
Discussão
Em linha com estudos prévios, os resultados aqui encontrados, quanto às diferenças de gênero, indicou que, quanto ao uso de engano, os homens pontuaram mais que as mulheres, o que é consistente com o estudo de Stafford (2015). Contudo, não foram observadas diferenças significativas entre homens e mulheres no engano percebido pelo parceiro. Ademais, os resultados indicaram que os traços sombrios de personalidade, especificamente o traço maquiavelismo, pode estar relacionado ao uso de engano nos relacionamentos afetivos, confirmando-se assim a hipótese 1. Estes resultados estão em consonância com a literatura, sugerindo que pessoas que pontuam alto em maquiavelismo podem apresentar uma maior propensão para mentir e esforçam-se mais cognitivamente para contar mentiras elaboradas. Associado a tais características, o traço maquiavelismo caracteriza-se pela manipulação, desejo de explorar os outros (Brewer et al., 2018), bem como está associado ao uso de engano em relacionamentos amorosos (Brewer & Abell, 2015; Jonason et al., 2014).
Por sua vez, a hipótese 2, a qual previa que o uso de engano se correlacionaria com narcisismo, não foi corroborada. Tal relação era esperada, tendo em conta à tendência das pessoas que pontuam alto em narcisismo apresentarem táticas de engano interpessoal (Jonason, Lyons, Baughman, & Vernon, 2014). Nessa direção, destaca-se o estudo de Jones & Paulhus (2017), em que apenas os traços psicopatia e maquiavelismo apresentaram relação positiva com o uso de engano interpessoal, enquanto o traço narcisismo estava associado a se auto enganar.
Os achados apontaram uma correlação positiva entre engano percebido pelo parceiro e o traço de maquiavelismo, confirmando assim, parcialmente a hipótese 3. Por exemplo, no estudo de Ináncsi et al. (2018) as pessoas que pontuaram mais em maquiavelismo apresentaram uma menor confiança em seus parceiros(as). Contudo, era esperado que o engano percebido pelo parceiro se correlacionasse também com o traço de psicopatia, tendo em vista que estudos indicam, por exemplo, que mulheres com nível alto de psicopatia secundária são mais propensas a se envolverem em comportamentos de controle do parceiro, a exemplo de vigilância (Brewer et al., 2018). Entretanto, os traços de psicopatia também apresentam como características distanciamento emocional, dificuldade de formar e manter laços fortes (Savard, Brassard, Lussier, & Sabourin, 2015) o que pode explicar, neste estudo, a ausência da relação entre psicopatia e engano percebido pelo parceiro, uma vez que a amostra foi composta por pessoas em um relacionamento amoroso. Além disso, as próprias características que definem esse traço, tal como comportamentos impulsivos podem acarretar em uma menor tendência de perceber mentiras contadas pelo parceiro.
Em contrapartida, estudos indicam que o maquiavelismo está associado em maior medida a produção de enganos interpessoais, sendo considerado mais estratégico e menos impulsivo, o que por sua vez, acarreta em um maior esforço cognitivo para elaborar uma mentira (Wissing & Reinhard, 2019). Convergente a essa discussão, Lyons, Croft, Fairhurst, Varley e Wilson (2017) destacam que o ato de mentir pode assumir duas formas principais, sendo elas a mentira de baixo risco e a de alto risco. A primeira seria caracterizada pelo tipo de mentira que não envolve risco a nível interpessoal e representam uma forma de desonestidade comum nas interações sociais. A segunda, por sua vez, se configuraria em mentiras de alto risco no qual o indivíduo pode ganhar ou perder algo de grande importância, como por exemplo, mentir sobre trapacear em um concurso. Os autores em questão ainda postulam que pessoas com altos níveis de maquiavelismo utilizam de estratégias elaboradas para manipular as relações interpessoais, por meio da mentira e engano.
Frente ao exposto, nota-se que os objetivos do presente estudo foram parcialmente alcançados. É válido destacar que, embora tenha sido verificada relação positiva entre o traço maquiavelismo e uso de engano e engano percebido pelo parceiro em relacionamentos amorosos, apenas 4% do uso de engano pode ser explicado pelo sexo e pelo traço maquiavelismo, enquanto apenas 3% de engano percebido pelo parceiro pode ser explicado pelo maquiavelismo, o que compromete a generalização dos resultados e constitui-se como uma limitação do presente estudo. Destaca-se ainda aspectos referentes à amostra. Por exemplo, o fato de ter sido composta por pessoas que estavam em qualquer tipo de relacionamento amoroso, incluindo o “ficar”, modalidade esta que não apresenta um certo grau de estabilidade. Ademais, destaca-se o fato de a amostra ter sido em sua maioria de pessoas do sexo feminino. Neste sentido, a generalização dos resultados fica restrita.
Ademais, destaca-se como limitação a consistência interna dos traços maquiavelismo e psicopatia, tendo em conta que o alfa de Cronbach foi abaixo do que é considerado aceitável pela literatura (Field, 2009). Outro aspecto a ser ponderado é a natureza das medidas utilizadas no estudo, tendo em conta o fato de que medidas de autorrelato podem apresentar um certo viés de desejabilidade social, logo os participantes podem não ter sido completamente sinceros ao respondê-los. Como forma de dirimir estes vieses, sugere-se o uso de mensurações implícitas, as quais possibilitam uma diminuição da reatividade dos instrumentos, uma vez que mensuram aspectos automáticos e fora do domínio consciente do indivíduo (Gouveia, Athayde, Mendes, & Freire, 2012), bem como controlar o efeito deste viés de resposta (Soares et al., 2016). É importante ressaltar, ainda, que o delineamento da pesquisa não permite afirmações de causa e efeito (Pereira, Sindic, & Camino, 2013), o que impossibilita afirmar, por exemplo, que quem apresenta traços de maquiavelismo endossará o uso de engano. Neste sentido, estudos futuros precisarão replicar os achados aqui descritos, atestando sua adequação.
Por fim, quanto aos novos estudos, considera-se a importância de primar por participantes que estejam em relacionamentos mais estáveis, por exemplo, namorando e/ou casados, afim de se tentar dirimir possíveis vieses que possam estar relacionado à informalidade das relações. Poderá ser também interessante realizar estudos que considerem outras variáveis que possam oferecer maiores contribuições no entendimento da relação existente entre os traços de maquiavelismo e uso de engano, a exemplo de infidelidade e relacionamentos a curto prazo.