Em março de 2020, em função da pandemia causada pelo novo coronavírus, a sociedade mundial se viu na necessidade de isolamento social e no Brasil não foi diferente. A Escola, enquanto espaço que tem em sua base a atuação coletiva, migrou sua ação para as redes de conexão de internet e gestores escolares e professores tiveram que procurar caminhos possíveis que garantissem acesso às aulas e atividades escolares de forma remota.
No que se refere a Educação Especial da perspectiva da Educação Inclusiva, estudos já indicavam os desafios em promover uma educação democrática e acessível a todos em tempos de ensino presencial. (Mori, 2016; Rocha, 2017; Correia, 2016; Ribeiro, 2016; Maia, 2017). Considerando que nestas condições, os recursos já eram escassos, o cenário pandêmico indicava o aumento significativo das barreiras e da desigualdade de acesso à educação para as Pessoas com Deficiência e Transtornos Globais de Aprendizagem.
Um estudo realizado pela Fundação Carlos Chagas em Julho de 2020 contou com 1.594 respondentes, sendo eles professores da Educação Básica atuantes em classes comuns com alunos público-alvo da educação especial; atendimento educacional especializado (AEE); escola ou classe bilíngue para surdos; e escola ou classe especial, indicou que 92,7% dos respondentes informaram estar realizando atividades remotas com os alunos público-alvo da Educação Especial, sendo que as maiores dificuldades relatadas pelos docentes foram: a) trabalhar com esse grupo a distância, e b) estimular a participação deles no grupo. (Pagaime et al, 2020)
A reivindicação pela formação adequada para lidar com as demandas da inclusão escolar e da educação especial também surge na atuação do psicólogo escolar. Ao buscar entender a contribuição da Psicologia para o desenvolvimento daqueles que fazem parte do espaço escolar e, consequentemente, dos processos de transformação, nos colocamos frente ao desafio de pensar em práticas que promovam o desenvolvimento de todos os sujeitos que o frequentam.
Pela perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural é importante ressaltar que limitações ou comprometimento do desenvolvimento não significa incapacidade, uma vez que qualquer sujeito possui suas particularidades no processo de desenvolvimento e com relação à pessoa com deficiência intelectual não é diferente (Vigotski, 1983/2012). O que queremos dizer é que ao fato que uma pessoa apresente este quadro, o enfoque não deve ser a superação de suas dificuldades, mas sim o investimento em uma atuação mais próxima do sujeito de acordo com suas possibilidades.
Mediante o contexto pandêmico, nos questionamos: como se promove desenvolvimento de pessoas com deficiência intelectual via trabalho remoto? Qual a contribuição da contação de histórias neste processo? Para promover a inclusão, se faz necessário lançar mão de instrumentos psicológicos que viabilizem à pessoa com deficiência o acesso à cultura nas suas diferentes formas (Friedrich, 2012). A exemplo podemos citar pranchas de comunicação alternativa que fazem uso de figuras para apoio às pessoas com alguma deficiência de fala, possibilitando que elas se apropriem da cultura, atribuam-lhe significado e também produzam cultura ao se inserirem socialmente pelo seu próprio modo de ser, pensar e agir no mundo.
Encontra-se aqui uma das grandes oportunidades de contribuição da contação de histórias, uma vez que por ela o sujeito ouve, se apropria da cultura e apreende mais sobre sua comunicação, oportunizando ainda a ampliação de suas capacidades expressivas ao se dispor de espaços para que este possa expressar suas significações elaboradas a partir da história via reconto da mesma, seja pela oralidade, escrita ou outra expressão plástica (desenho, pintura, etc.). Neste processo, mobiliza nossa imaginação de forma que possamos vivenciar diferentes experiências, que confrontam nosso modo de pensar.
Ao vivenciarmos essas experiências, aprendemos com a situação experienciada, reconstruímos o que já conhecemos possibilitando elaborar novas significações (Vigotski, 1930/2012). É nesse sentido que propomos a contação de histórias como ação que pode favorecer a superação das barreiras que tendem se embasar puramente nas questões orgânicas das demandas das pessoas com deficiência intelectual.
Ao nos propormos utilizar a contação de histórias como instrumento psicológico que favorece o acesso às produções e experiências da cultura como estratégia para a promoção do desenvolvimento de pessoas com deficiência intelectual, compreendemos que o sujeito é afetado pela narrativa da história e defendemos que esta afecção viabiliza a vivência de emoções e de novas experiências, favorecendo a compreensão de situações da vida cotidiana de modo mais ampliado (Jesus, 2020).
Diante do exposto, este estudo tem como objetivo geral refletir sobre as dificuldades e facilidades do trabalho remoto com pessoas com deficiência intelectual e específicos, identificar as dificuldades dos participantes com as ferramentas de tecnologia; analisar recursos que favorecem manter a atenção dos participantes ao longo do encontro; identificar e analisar o movimento de fala e escuta dos participantes; e analisar os ajustes necessários à atividade de contar histórias via remota para participantes com deficiência intelectual.
Método
Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa de iniciação científica, que foi submetida ao Comitê de Ética e Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, e aprovada sob o parecer no. 3.778.613, de 17/12/2019.
Caracteriza-se como pesquisa-intervenção, pois prevê atividades a serem realizadas por meio de ações previamente planejadas e intencionais que interferem no contexto a ser investigado, de maneira comprometida em transformar a realidade daqueles que nele estão inseridos.
Foram realizados encontros com um grupo de pessoas com deficiência intelectual, onde utilizamos a contação/produção de histórias como um instrumento mediador para mobilizar o sistema psíquico, possibilitar ressignificações sobre o vivido e potencializar o desenvolvimento dos participantes. Para tal, evidenciamos a promoção e reconfiguração dos significados e sentidos na criação de situações sociais de desenvolvimento que preconizem a comunicação e a socialização de experiências.
Ancorados nos pressupostos teórico-metodológicos da Psicologia Histórico-Cultural, sobretudo os de Vigotski (1935/2010), compreendemos que o meio é fonte de desenvolvimento e que é a partir da apropriação da cultura, resultado das produções humanas, que o sujeito atribui significado a este meio, constituindo seu psiquismo e viabilizando o estabelecimento de novas significações a partir de suas relações sociais. Nesse sentido, o desenvolvimento é um fenômeno em processo permanente, histórico e multifatorial que, dialeticamente é interno/externo, retroalimentando-se das condições materiais (Souza & Arinelli, 2019).
Contexto e Procedimentos
As informações para análise foram construídas a partir de cinco encontros com um grupo de pessoas com deficiência que frequentam uma Organização da Sociedade Civil que presta serviço de Apoio à Vida Adulta, descrito pela instituição como programas que buscam apoiar a inclusão social por meio de estratégias de acesso a recursos culturais, tecnológicos, de lazer e de turismo, que viabilizam vivências e experiências para que os participantes desenvolvam comportamentos adequados às suas idades cronológicas, em parceria com o Sistema Único de Saúde - SUS e Secretaria de Educação do município de Campinas/SP. Nesta instituição, todos os usuários do serviço possuem diagnóstico de deficiência intelectual.
Em um primeiro momento, realizamos a apresentação dos objetivos deste estudo à gestão da instituição e, após o aceite, a equipe gestora indicou um grupo de usuários identificados pela instituição com dificuldades de comunicação e autonomia. A partir desta indicação, foi realizada uma reunião com uma profissional técnica responsável pelo grupo para apresentação dos objetivos da pesquisa e um cronograma de encontros a serem realizados a partir das demandas reveladas pela profissional técnica.
A profissional ainda nos sinalizou a dificuldade do grupo em expressar e identificar emoções. Nesse sentido, propusemos que em um primeiro momento fosse realizado um encontro para os conhecermos e apresentar a proposta de intervenção para avaliação dos participantes quanto a sua participação. Contudo, a profissional sugeriu ainda um primeiro contato com as famílias para apresentar a proposta e validar a autorização destes, mesmo sendo todos os participantes adultos com mais de 18 anos de idade.
Após o contato com todos os familiares, aprovação destes e encaminhamento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foi agendado o primeiro contato com os participantes.
Foram realizados cinco encontros, com a participação de seis adultos, em uma sala online via plataforma Google Meet, escolhida por já ser de uso dos participantes nos encontros realizados pela instituição que estão vinculados. Os encontros tiveram duração média de 60 minutos e foram registrados diários de campo pela estudante-pesquisadora. Apresentamos abaixo, com nomes fictícios, o perfil dos participantes:
Carlos, 21 anos, é uma pessoa com síndrome de Down;
Assis, 20 anos, é uma pessoa com síndrome de Down;
Cecília, 20 anos, é uma pessoa com diagnóstico de hidrocefalia;
Mario, 20 anos, é uma pessoa com síndrome de Down;
Alencar, 28 anos, é uma pessoa com síndrome de Down;
Clarice, 19 anos, sem diagnóstico complementar.
Nos encontros, utilizamos como materialidade mediadora a história “A terra dos meninos pelados'', de Graciliano Ramos (2014), bem como a produção de desenhos por parte dos participantes. Escolhemos esta história devido ao tema abordado as semelhanças e diferenças entre as pessoas e a construção/reconhecimento de características próprias, assuntos tão presentes na vida cotidiana de pessoas atípicas, como o público participante. Dada as demandas adaptativas das pessoas com deficiência intelectual, a leitura do livro não foi realizada de forma integral, sendo utilizada a técnica de linguagem simples para promover acessibilidade comunicacional com os participantes.
Processo de construção de dados
Foram realizadas diversas leituras dos diários de campo com o intuito de evidenciar os indicadores das significações dos participantes em relação a construção de sua identidade. Conforme pontuado por Gonzalez Rey (2002), os indicadores são “elementos que adquirem significação graças à interpretação do pesquisador, ou seja, sua significação não é acessível de forma direta à experiência, nem aparece em sistemas de correlação” (p. 122). Compreendemos que essa estratégia está alinhada com o materialismo histórico-dialético uma vez que possibilita abordar as partes a partir do todo em um movimento de tese, antítese e síntese, evidenciando as contradições e as singularidades dos sujeitos, possibilitando uma maior aproximação dos sentidos dos fenômenos investigados.
Para tal, realizamos leituras dos diários de campo, buscando identificar expressões evidenciassem indicadores das dificuldades e facilidades do trabalho remoto com pessoas com deficiência intelectual, deminados pré-indicadores. Posteriormente realizamos o agrupamento dos pré-indicadores por complementariedade ou oposição, resultando nos indicadores. Uma nova imersão nos indicadores possibilitou uma reorganização dos mesmos, em duas grandes categorias de análise: “As incertezas do processo inclusivo” na qual se discute as dificuldades e demandas da inclusão no contexto pandêmico e “Psicologia Escolar e inclusão: caminhos possíveis”, que evidencia de que forma a Psicologia Escolar pode contribuir na promoção do desenvolvimento de pessoas com deficiência intelectual.
A seguir, apresentamos os resultados, seguido da discussão e conclusões.
Resultados
O resultado que se apresenta abaixo foi construído a partir do contato com todos os responsáveis para apresentar a proposta de intervenção, recebendo inicialmente o aval de todos. Neste primeiro contato, e em virtude do isolamento social provocado pela pandemia, nos deparamos com a primeira dificuldade de acesso a estas pessoas, uma vez que se faz necessária a autorização de seus pais para que seja ofertada a participação no encontro em um grupo. Neste cenário, ressaltamos a possibilidade de ruídos de comunicação e não compartilhamento de significação, uma vez que o convite foi realizado pela Instituição.
O contato com os pais para autorização da participação de seus filhos no grupo revelou o sentimento de insegurança e desconhecimento sobre as possibilidades de criação de uma abertura ao desenvolvimento de seus filhos, conforme expresso abaixo: “Me chamou a atenção a fala da mãe de Assis. Assim que apresentei o objetivo das intervenções, ela me disse "Vamos tentar né? O Assis tem muita dificuldade para falar, não sei se vai te ajudar” (Diário de Campo 1 - 13/05/021).
Ao passo que se revela o descrédito, é possível perceber a potencialidade destes usuários no processo, uma vez que os demais pais revelam em sua fala sentimento de confiança quanto a autonomia de seus filhos: “Os demais responsáveis indicaram que os filhos fazem o acesso sozinhos e por isso eu poderia encaminhar o link diretamente para eles” (Diário de Campo 1 - 13/05/021).
Ao realizar o primeiro contato com o grupo de jovens, foi possível perceber como segundo obstáculo, a dificuldade de compartilhamento de significados no que diz respeito a fala e escuta, conforme abaixo:
Perguntei sobre saberem o que é contar histórias, todos negaram saber. Expliquei o que era contar histórias e perguntei se alguém já havia lido histórias para eles, todos acenaram que sim. Carlos. disse: “Marcelo, martelo e marmelo”. (...) Perguntei se era sobre o livro “Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias'', de Ruth Rocha, e do que era/fala a história, ele confirmou e contou que Marcelo dava nome às coisas. (Diário de Campo 1 - 13/05/021).
Durante o encontro, a adaptação da linguagem se revelou enquanto necessidade, conforme fragmento abaixo:
Perguntei se o personagem era diferente de seus amigos. Todos acenaram que sim. Perguntei se entre nós também éramos diferentes. Todos acenaram que não. Peguei duas canetas de cores diferentes e mostrei perguntando se elas eram iguais ou diferentes. Responderam “iguais”. Ao perguntar em que eram iguais, silêncio. Pensei que talvez desconheça o significado de igual e diferente, já que a profissional que acompanha o grupo havia relatado uma grande dificuldade em trabalhar com eles as diferenças entre dois traços, sendo necessário que ela sempre faça primeiro e mostre, antes de pedir que façam. (Diário de Campo 1 - 13/05/021)
Além da adaptação à linguagem, foi possível identificar ainda a necessidade de adaptação ao ritmo dos participantes, bem como do envolvimento deles no processo de tomada de decisão, conforme se revela no trecho abaixo:
Já estávamos há uma hora ali, Clarice debruçada sobre os braços, Assis apoiado na cadeira, Alencar quase deitado no sofá. Me lembrei que estão habituados com encontros de 30 min. Imaginei que estivessem cansados, mas pedi para fazerem um auto desenho. Não percebi animação e perguntei se gostariam de fazer ao longo da semana para apresentar na semana seguinte. Clarice e ajeitou na cadeira e respondeu: “melhor”. Os demais acenaram com a cabeça. Perguntei se tinham material para esta atividade e responderam que sim. Por fim, combinamos de nos encontrar na próxima semana. (Diário de Campo 1 - 13/05/021).
O terceiro obstáculo percebido foi em relação ao uso de ferramentas tecnológicas:
Assim que iniciei a história, ouvi Carlos gritar: (nome da mãe) onde você está? Saiu aqui!”. Perguntei se ele estava procurando pela mãe e ele confirmou, explicando que não estava me vendo mais. É comum que ao receber uma ligação, a tela do Google Meet saia do acesso principal, mesmo que você recuse a chamada. Não havia como ele silenciar o microfone enquanto ele procurava pela mãe, pois não via a tela do Google Meet. Não encontrei uma maneira de ensiná-lo a retornar à chamada, então aguardei que ele a encontrasse para poder continuar a contação da história. (Diário de Campo 1 - 13/05/021).
O sentimento de insegurança também pode ser percebido, conforme abaixo:
Ao encerrar o grupo me senti muito cansada e em dúvida sobre os limites e necessidades de direcionar a discussão. Me questionei sobre o quanto sei o que estou fazendo. Me convenci que não há como ter certezas em um campo que estou me aproximando, ainda mais em um formato remoto. Os pais de Alencar e Assis ficaram ao lado de seus filhos durante o tempo todo do encontro, sendo que Alencar estava na sala com o pai assistindo TV. Foi difícil por diversas vezes ouvi-lo. Os pais não são brasileiros e Alencar carrega além de uma aparente dificuldade de fala típica da síndrome de Down, o sotaque castelhano. Clarice estava na cozinha, a todo momento alguém passava atrás dela para acessar a geladeira. Carlos poucas vezes conseguiu aparecer na câmera, pois a todo momento batia o dedo no botão que a desativava. (Diário de Campo 1 - 13/05/021).
Considerando a realidade que caracteriza a inclusão da pessoa com deficiência, como já citado, é necessário empregar instrumentos psicológicos que viabilizem o seu acesso à cultura, mas de diferentes formas. A exemplo podemos citar o uso do sistema comunicação suplementar e alternativa, que torna possível o acesso à cultura para pessoas com alguma deficiência da fala. Por meio do uso de novas formas de acesso à cultura, é possibilitado à pessoa com deficiência a oportunidade de se apropriar da cultura, atribuindo-lhe significado e, por sua vez, produzindo cultura, ao se inserir nela pelo seu próprio modo de funcionar, o que se pode perceber no trecho abaixo:
Clarice me respondeu às 12h43 com uma mensagem escrita “Muito obrigada 3 horas né tá bom então muito obrigada”. No contato da semana anterior, ela havia me enviado uma mensagem de áudio perguntando meu nome para salvar meu número. Respondi também com uma chamada de áudio e ela pediu para que eu escrevesse, assim ela copiaria para salvar, pois não é alfabetizada. Ao me enviar a mensagem escrita, imaginei que tivesse feito uso do recurso “ditado” do WhatsApp. Às 13h31 me enviou outra mensagem “Já tá na hora de eu entrar já no limite ainda não já tá na hora de entrar no Google meet”, informei que o horário era às 15h e perguntei se ela gostaria que enviasse uma mensagem quando chegasse o horário, ela confirmou. Assim o fiz. (Diário de Campo 2 - 20/05/021).
A complexidade em criar novas formas para dispor do acesso à cultura ultrapassa questões de conhecimento escolarizado ou de uso de linguagem simplificada. É importante considerar a singularidade de cada sujeito, bem como seu modo de agir e pensar nos diversos espaços que frequenta:
Ao fazer algumas perguntas sobre a história, somente Cecília respondia. Mesmo quando direcionava a pergunta a outra pessoa. Pedi para que ela aguardasse quando eu perguntasse diretamente a ela, para que todos pudessem falar. Ela concordou, mas seguiu respondendo o lugar dos demais. Decidi propor um jogo a ela: primeiro perguntaria a outra pessoa e caso esta pessoa não respondesse, seria a vez dela. Cecília respondeu que adora jogos e que esta era uma ótima ideia. Funcionou. (Diário de Campo 2 - 20/05/021).
Lançar mão de estratégias efetivadas na promoção da inclusão de pessoas com deficiência intelectual implica estabelecer um diálogo com elementos concretos e/ou melhor direcionados, que estejam presentes em sua realidade:
Perguntei sobre as características do personagem, mas somente quando dava opções, me respondiam. Por exemplo: “Raimundo era cabeludo ou careca?” “Ele tinha um olho de cada cor?”, caso perguntasse de forma mais aberta, como “Quais as cores dos olhos de Raimundo”, recebia silêncio. Percebi ainda que precisava ser específica ao falar com ambos. Se dissesse apenas o primeiro nome dele, nenhum me respondia. Era preciso dizer o nome com sobrenome, para obter as respectivas respostas. (Diário de Campo 2 - 20/05/021). Questionei sobre terem feito o desenho que pedi no encontro anterior. Apenas Clarice relatou ter feito. Perguntei se gostariam de fazer naquele momento ou depois, Cecília pediu para fazer depois e os demais a acompanharam. Convidei Clarice a apresentar seu desenho. Após mostrar na câmera, pedi que ela descrevesse. No início ela demonstrou dificuldade, mas comecei a fazer perguntas “Como é seu cabelo”, ela respondeu “Preto, cacheado”. “E a cor da pele?”, ela ficou em dúvida. Silenciou por um tempo e perguntei qual a cor do lápis que ela pintou a pele: “Preto”. Ao perguntar o que mais ela desenhou, citou “ouvido, boca, nariz, olhos”. (Diário de Campo 2 - 20/05/021).
De igual modo, quando se trata de dialogar sobre as atividades que realizaram, inicialmente os participantes pareciam não lembrar, mas, com a mediação do conteúdo em que elementos concretos vão sendo destacados das produções, o envolvimento revelou-se potente à ampliação da percepção do realizado, como se apresenta abaixo:
Questionei se alguém se recordava do encontro anterior. Todos foram indicando partes da história que se lembravam, com mais apontamentos quanto às características físicas do personagem e a agressão sofrida por parte dos colegas. Pedi que mostrassem o desenho realizado no encontro anterior. Após todos mostrarem o desenho, pedi se podiam contar sobre o desenho. De imediato houve silêncio, então um a um, comecei a fazer perguntas sobre os desenhos. (Diário de Campo 4 - 10/06/021).
Discussão
As incertezas do processo inclusivo
Durante os encontros, foi possível perceber que a dificuldade de comunicação produz um descrédito no que a pessoa com deficiência pode fazer, bem como seu desconhecimento sobre possibilidades de linguagem para além da verbalização de palavras. É importante ressaltar que percepção, dentre outras que se revelam nesta análise, não se trata de indicar um processo de culpabilização, mas de evidenciar a primeira barreira encontrada no processo de inclusão e na realização de um trabalho com este público.
Da perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, sobretudo nos pressupostos de Vigotski, é mediante o convívio social que irão surgir as necessidades e dificuldades do sujeito e sua superação (Vigotski, 1983/2012). Isso porque o autor considera o sujeito como um agente ativo em seu processo de desenvolvimento, produzindo significados e se apropriando dessas significações, de forma a estabelecer novas significações a partir de suas relações sociais (Souza & Arinelli, 2019).
Nesse sentido, o autor observa que o desafio “não é tanto a educação de crianças cegas (ou que apresente qualquer outra deficiência) e sim a reeducação dos que enxergam. Estes devem mudar sua atitude em relação à cegueira e aos cegos (em relação às deficiências). A reeducação do vidente representa uma tarefa pedagógica social de enorme importância” (Vigotski, 1983/2012, p. 86). Esta pontuação nos faz refletir sobre a importância da mudança do social quanto a sua maneira de lidar com a pessoa com deficiência e a necessidade de um envolvimento dos familiares no processo de inclusão. Isto porque os familiares de pessoas com alguma deficiência parecem evitar o envolvimento delas em qualquer atividade, por um lado visando protegê-las, e por outro por não conseguirem imaginar quão favorecedora a interação com outras pessoas, iguais e diferentes, pode promover o desenvolvimento de todos os participantes.
Em um primeiro momento com o grupo, todos os participantes indicaram desconhecer o que era contação de histórias, contudo, ao fazer uso de uma linguagem mais simples e de elementos concretos como mediadores da relação, foi possível construir um diálogo que viabilizou aos participantes estabelecer relação entre o que fazíamos na prática e o nome da atividade que realizávamos, apropriando-se do significado de contação de histórias ao relacionar com uma história que conheciam.
A linguagem simplificada é uma técnica de apresentação de informações visando possibilitar a compreensão de seu conteúdo de forma democrática, ou seja, acessível a todos. O primeiro material publicado sobre a temática é de 1968, na Suécia, e apesar de visar a acessibilidade comunicacional de todos, tem enfoque no atendimento de pessoas com deficiência intelectual, cognitiva ou de aprendizagem, surdas, surdocegas, com demência, dislexia, afasia, déficit de atenção e de memória, e ainda pessoas não alfabetizadas, imigrantes, analfabetos funcionais, com baixo letramento ou dificuldade de leitura (Almeida, 2020).
Para Vigotski (1925/2004), a linguagem com seu significado e sentido, é o meio de acesso aos produtos culturais e, consequentemente, ao outro presente na relação. Ao nos comunicarmos, compreendemos mais o outro, o mundo e a nós mesmos, construindo, assim, a nossa identidade e nossa consciência enquanto seres atuantes no mundo. Nesse sentido, a linguagem (falada, escrita, gestual) mobiliza nosso sistema psicológico e favorece a estruturação dos pensamentos, os reorganizando e promovendo saltos no desenvolvimento do sujeito (Souza; Andrada, 2013).
Atuar com linguagem simples é um desafio, pois requer mudar a maneira como o locutor se faz compreender, de modo a garantir que o outro acesse a informação reproduzida. Para tal, demanda do mediador lançar mão de novas formas de se comunicar, que estão para além de questões de vocabulário. A exemplo da profissional que conduzia o grupo anteriormente a esta intervenção, revela-se a necessidade de trazer para o concreto a informação, ou seja, dar materialidade, partindo da realidade dos participantes, seja apresentando visualmente os objetos ou situações em questão, ou dando exemplos que estejam presentes em seu dia a dia.
Envolver os participantes no processo de decisão quanto à manutenção ou mudança do que se está propondo como atividade, é também uma maneira de investir no desenvolvimento da autonomia desses sujeitos. Apesar de não terem indicado por suas falas que estavam cansados e/ou que a atividade não os estava interessando naquele momento, a comunicação não-verbal era clara a todos. É necessário evidenciar, desta forma, que o trabalho realizado na perspectiva da Educação Inclusiva, deve se pautar na linguagem não verbal, sobretudo, na identificação do envolvimento, participação e entendimento do público ao qual a atividade se dirige.
Foi possível perceber, ainda, que a dificuldade em não saber manusear a ferramenta Google Meet, revela a necessidade de uma rede de apoio para viabilizar o acesso a determinados recursos, ao passo que os participantes lançaram mão de novas formas para superar a dificuldade e, assim, poderem voltar a participar do encontro quando, por algum motivo, não visualizavam a tela da sala de reunião. Além disso, foi possível perceber o sentimento de impotência por parte da mediadora, uma vez que esta aguarda que o participante encontre sua mãe ou um terceiro para auxiliar a retornar a chamada, por desconhecer como atuar e dispor de apoio a ele. Logo, um investimento na apropriação dos modos de funcionar desses recursos tecnológicos nos parece urgente, dada sua importância no acesso a símbolos da cultura, inclusive não verbal.
O que nos faz refletir em relação às experiências dos professores em sala de aula e o que estariam experienciando no modelo remoto e nos questionar quanto às possibilidades de ação mediante a esta demanda. É sobre estas implicações que discutiremos abaixo.
Psicologia Escolar e inclusão: caminhos possíveis
A ação de Clarice ao usar a função de ditado da ferramenta WhatsApp para se comunicar com a mediadora demonstra sua capacidade de organização e autonomia ao fazer uso de diferentes recursos para lidar com aquilo que não conhece ou domina. Vigotski (1983/2012) desenvolve o conceito de compensação ao descartar as questões orgânicas da deficiência, dando enfoque a uma perspectiva mais ampla, distanciando-se de um olhar biologizante e limitador. Para o autor, há um processo de compensação no funcionamento do psiquismo humano, ou seja, ao passo que existe algum tipo de deficiência, o próprio sistema psíquico elabora novas formas de compensar esse “funcionamento falho”. Desta forma, a própria deficiência origina uma força motriz para a formação da compensação.
Desta perspectiva, na ação de Clarice fica evidente uma compensação para sua autonomia ao passo que também revela demandas de uma rede de apoio, dado seu desconhecimento das horas. Diante deste obstáculo e do sentimento de medo de perder o horário do encontro, a participante encontra caminhos estratégicos que possam viabilizar sua participação no encontro, enviando de tempos em tempos, uma mensagem a mediadora questionando sobre o horário.
Os encontros revelam ainda a evidente participação ativa de Cecília em relação às atividades propostas, contudo isto também implica limitar as possibilidades de participação dos outros que não apresentam uma postura como a dela. Este momento nos faz refletir sobre o maior risco de sentimento de frustração da mediadora, uma vez que o contexto demanda uma aproximação maior da singularidade da participante, a ponto de lançar mão de estratégias que estejam mais alinhadas com seu funcionamento, no caso, o jogo.
Foi possível perceber, dessa forma, que as dificuldades de comunicação com os participantes não estão no campo de baixo repertório de vocabulário ou ainda do desconhecimento dos mesmos, mas sim na necessidade de aproximação daquilo que eles conhecem e partir disso para a promoção do processo de aprendizagem. Clarice trouxe com clareza a cor de seu cabelo e seu formato, contudo, ao ser questionada quando a cor da pele, na dúvida, silenciou. É este o espaço para ampliar as possibilidades de significação, aproximando as informações a partir de sua realidade concreta. Se a pergunta “E a cor da pele?” é abstrata demais, a concretude vem pelo questionamento da cor do lápis utilizado para colorir.
Por meio do uso de novas formas de acesso à cultura, é possibilitado à pessoa com deficiência a oportunidade de se apropriar da cultura, atribuindo-lhe significado e também que esta produza cultura, ao se inserir nesta pelo seu próprio modo de funcionar. Estes são pontos cruciais para a promoção da inclusão, a ressignificação das práticas pedagógicas e do processo de ensino-aprendizagem, uma vez que estas demandam buscar diferentes instrumentos mediadores para a promoção do ensino. Ao utilizar o personagem Raimundo como um exemplo, damos concretude e potencializa-se a apropriação e elaboração das formas de pensar, favorecendo, assim, o processo de identidade e de compreensão do mundo.
Para promover uma educação democrática, é necessário compreender o modo como cada um aprende/realiza a atividade, as significações realizadas, fortalecendo a memorização não através de um treino, mas pela significação mediada pela linguagem.
Do concreto a uma construção conjunta significada, apontamos a potencialidade de um início de novas formas de pensar e estar nas atividades por parte dos participantes. Se, no primeiro momento, havia o esquecimento, dificuldades de diálogo e/ou de compreensão das propostas, revelou-se ainda os diferentes modos de agir e envolvimento, sobretudo, no compartilhamento de significados e sentidos das atividades.
Considerações finais
Ao longo dos encontros, mediados pela contação de histórias, buscamos analisar a potência desta materialidade na promoção do desenvolvimento de alunos com necessidades educacionais especiais. De forma dialética, percebemos a necessidade de mudança constante, não apenas de um encontro para o encontro, mas muitas vezes de uma fala para outra, de forma ampliar a compreensão dos participantes, assim como acessar as significações daqueles que ali estavam.
Atrelado a este ponto, o distanciamento social e a atividade mediada pela tecnologia emperraram a construção de significações e revelou quão pífias estavam as situações sociais que potencializariam este público durante todo o período pandêmico. Ressaltamos os impactos ao desenvolvimento do sistema psíquico, uma vez que se compreendemos que é do meio que os conteúdos se derivam e qualificam o desenvolvimento humano, ao longo da pandemia, estes sujeitos foram alijados do acesso à experiências diversas que os favoreceriam.
Ao longo das interações, as perguntas iniciais desta pesquisa se transformaram em questionamentos sobre habilidades e capacidade do profissional que promove a intervenção, evidenciando que a complexidade da promoção da inclusão demanda compreender o desenvolvimento de todos que estão envolvidos no contexto e não somente daqueles que, a priori, possuem alguma demanda orgânica adaptativa.
Inicialmente, conforme pontuado pela profissional que acompanhava este grupo, tratavam-se de pessoas com dificuldade em se expressar. Contudo, os encontros revelaram uma dificuldade real por parte do mediador em se fazer compreender e em lançar mão de novas formas de pensar e agir diante das demandas e do insucesso muitas vezes presentes na promoção da inclusão.
Foi possível perceber que a atividade de contar e ouvir histórias potencializou as habilidades de expressão de todos os envolvidos, contribuindo para o estabelecimento de um espaço de partilha de sentidos e significados, sem negação das diferenças e necessidades adaptativas, mas enquanto possibilidade de construção conjunta de caminhos possíveis para uma inclusão efetiva.
Acreditamos que os resultados aqui discutidos podem abrir caminhos para reflexões, sobre o uso da contação de história por parte de professores e psicólogos escolares como instrumento na promoção do desenvolvimento de alunos com necessidades educacionais especiais, sem reduzir as demandas da inclusão a fenômenos puramente orgânicos.