A arte/cultura e suas mediações na saúde mental: aspectos teóricos

Afirma-se que, nesses processos oriundos da Reforma Psiquiátrica, a mediação semiótica sempre desempenhou um papel fundamental, pois possibilita compreender os movimentos de socialização dos sujeitos, sua inserção nos espaços sociais em que passam a circular, produzindo cultura ao mesmo tempo em que comercializam seus produtos (^{Jovchelovitch y Priego-Hernandez, 2013}). A produção artístico-cultural gera artefatos e significados que transformam tanto quem as vê e consome, como quem as produziu, ao encontrarem-se - na ação e no discurso -, para fazer, admirar, comentar ou consumir os produtos. Essa cadeia de mediações tem efeitos, portanto, na construção dos ambientes socioculturais; para psicólogos culturalistas como Lev ^{Vygotsky (1989)}, as mediações dos sistemas de signos constituem o que chamam de “mediação semiótica”, sendo fundamentais ao desenvolvimento e aprendizado humanos. Nesse sentido, os artefatos culturais mediam a relação dos sujeitos consigo próprios e com o mundo.

Para George Yúdice, nas últimas décadas a cultura vem se tornando um valor, algo central nas economias, um recurso. A cultura é utilizada como expediente de melhoramento sociopolítico e econômico, dando margem a vários usos e se afastando das noções de distinção e enaltecimento. Contudo, concede-se à esfera cultural uma importância e popularização talvez nunca dantes vistas, o que caracterizaria um capitalismo cultural. A UNESCO, o Banco Mundial, as Fundações e as ONGs têm transformado o que conhecíamos como “cultura”, tornando-a um aspecto central no desenvolvimento e possibilidade de inversão (^{Yúdice, 2002}, p.23).

Essa legitimação baseada na utilidade da cultura estaria ligada a processos de globalização, de transformação do papel do Estado e da geopolítica mundial, especialmente no período pós-guerra fria. Nos anos de 1990 intensifica-se esse processo que cria uma “economia cultural” ou “economia criativa”, que se globaliza e provoca mudanças significativas em vários países (p.30).

O autor revela sua preocupação a possível cooptação das iniciativas culturais. Por terem de negociar com governos e mercados, os empreendimentos socioculturais correm o risco de somente produzir o que pode ser traduzido em linguagem comercial, que gere valor de troca. Ou, como ele menciona neste trecho a seguir: “(...)responder a mandatos performativos que deixam pouco espaço a uma experiência não traduzível na linguagem do desenvolvimento de valor” (^{Yúdice, 2002}, p. 193). A “conveniência” de usar os produtos culturais para promover fins sociais é analisada pelo autor em sua complexidade, não como algo bom ou ruim em si mesmo, mas como parte constituinte das sociedades contemporâneas, que precisa ser compreendida e, quando necessário, criticada.

No que se refere ao campo da economia solidária em sua intersecção com a saúde mental, essa reflexão é interessante, pois ajuda a pensar reflexivamente na produção e consumo de produtos culturais como modo de promoção de uma subjetividade mais autônoma e também como gerador de valor econômico para os usuários. Nesta relação se mesclam intenções e instâncias sociais variadas e, em certo sentido, díspares; se relacionam artistas outsiders, mercados locais e políticas de Estado. Contudo, os processos de negociação para os quais adverte Yúdice podem chegar a bom termo, uma vez que o ato de produzir cultura já é transformador para o sujeito em sofrimento psíquico. Para ilustrar esse aspecto, transcreve-se o depoimento de um usuário-artista da GeraçAçãoPOA:

O que não posso expressar com palavras, com conceitos, posso fazê-lo através de uma obra de arte. Seja desenhando, pintando, fotografando... tudo o que fazemos aqui são formas de expressão. Viver, simplesmente viver, já é uma atividade criativa quando você vive dessa maneira. (Entrevistado 2, Porto Alegre, julho de 2019).

Uma vez que a economia solidária se baseia em princípios de reprodução da vida e não do capital, gerar ingresso financeiro sem exploração da mão de obra e com apropriação dos resultados pelos próprios trabalhadores é possível, como ficou claro durante a pesquisa de campo. Por enquanto, essa confirmação é válida nesses mercados de pequena escala, para a comercialização dos produtos artístico-culturais, que tem gerado interações muito positivas entre produtores e consumidores, com ganhos mútuos. Pode-se apostar, contudo, no crescimento escalar dessas trocas. Como veremos mais adiante, não é de hoje que ‘loucura’ e arte se interseccionam; mas o capitalismo cultural que menciona Yúdice traz um contexto que é, em certa medida, novo nessa interação.

Esses intercâmbios contribuíram com o modelo de atenção à saúde mental em liberdade, destacando-se na articulação com a economia solidária e os grupos de produção artística. Esta última já estava presente no tratamento dos ‘loucos’ anteriormente, a exemplo do trabalho de Nise da Silveira (^{Frayze-Pereira, 2003}), ou antes ainda, em termos alargados, pois experiências históricas mais antigas antecederam o brilhante e inovador trabalho de Nise no Brasil na promoção da saúde mental.

Conforme ^{Lima e Pelbart (2007}, p.712), em hospitais no mundo árabe - criados por volta do século XII e destinados aos ‘loucos’ -, a música, a dança, os espetáculos e as narrativas de contos eram utilizados como forma de “cura da alma”. Os autores citam ^{Foucault (1995}), que explicou como uma rígida consciência crítica da loucura substituiu essa influência, no ocidente, a partir do século XVII. A loucura passou então a ser concebida como incapacidade para o trabalho, impossibilidade de integrar-se à sociedade moderna e por fim como doença mental a ser segregada. Surge o que Foucault denominou de experiência clássica da loucura, que condenou essa condição ao silêncio e à intervenção violenta. Nesse ponto, a música e demais artes foram varridas das práticas terapêuticas nos hospícios, organizados em torno do tratamento moral; os romances, os espetáculos teatrais e a música passaram a ser vistos como meios de desregramento dos sentidos, que precisariam ser “disciplinados”.

O romantismo, no século XIX, trouxe de volta um alargamento das sensibilidades que revalorizou formas de conhecimento intuitivas e estéticas. Mencionam os autores supracitados que “(…) a arte explorou sua vizinhança com a loucura, tanto no processo de criação do artista quanto no interesse por aquilo que alguns sujeitos, enredados nas malhas de instituições asilares, produziam”, citando como expoentes brasileiros os nomes de Qorpo-Santo e Machado de Assis (^{Lima y Pelbart, 2007}, p. 713). Para eles Nietzsche, Artaud e Van Gogh, ao acolherem a loucura, deram-lhe uma expressão e uma ascendência sobre o mundo ocidental das artes.

A criação iconográfica no campo psicossocial, segundo ^{Silva e Silva (2017}), tem alguns marcos históricos, como os estudos do psiquiatra e historiador de arte Hans Prinzhorn. Ele estudou obras produzidas por pessoas em sofrimento psíquico e reuniu-as, na década de 1920, em uma coleção guardada na Universidade de Heidelberg, Alemanha. O autor já destacava a qualidade artística das produções estéticas dos pacientes de instituições psiquiátricas. Seguem os autores relatando que, em 1940, o artista francês Jean Dubuffet nomeou as produções de pacientes psiquiátricos como arte bruta. Dizia que não há uma arte só de ‘loucos’, assim como não há uma arte dos indivíduos que possuem problemas de saúde no joelho, ou qualquer afecção específica. Na década de 1970, Roger Cardinal cunhou tais produções por outsider art. Essa mescla de referências das artes, contudo, nem sempre teve convivência harmoniosa com as práticas psiquiátricas.

Ora a arte e a psiquiatria estiveram em lados opostos, em função de eletrochoques e lobotomias como práticas ditas ‘científicas’; ora viu-se ressurgir o interesse na potência das artes, principalmente através da difusão da psicanálise e da arte moderna: “Estudos produzidos no campo psiquiátrico sobre as expressões artísticas dos doentes mentais chegaram ao Brasil concomitantemente às primeiras referências ao pensamento psicanalítico e à arte moderna europeia” (^{Lima y Pelbart, 2007}, p. 714).

Nesse ponto, Osório César é citado como precursor no Brasil, ele próprio um músico, além de psiquiatra, com preocupações de caráter clínico e social. O médico chegou a publicar um célebre artigo, em 1924, intitulado “A arte primitiva nos alienados: manifestação escultórica com caráter simbólico fetichista num caso de síndrome paranoide”, no qual escreveu (^{César, 1924/2007}, p. 118):

A arte dos alienados, de um certo tempo para cá, tem sido objeto de muitos trabalhos interessantes por parte dos psiquiatras. A necessidade que certos doentes do espírito têm de realizar os seus sentimentos estéticos representados, ora em escultura, ora em desenhos e pinturas, ora em versos, é constantemente observada nos manicômios. E não se julgue que essas atitudes de arte entre os alienados sejam somente reproduções mecânicas, estereotipadas, trabalhadas sem interesse, sem amor. Puro engano; grande parte desses artistas possui uma verdadeira idolatria por tudo o que fazem.

Os ‘alienados’ eram chamados de artistas pelo autor do artigo, o que indica que uma nova visão da potencialidade deles já emergia, acompanhando o zeitgest que possibilitou a Semana de Arte Moderna e outros eventos do período, profundamente impactantes na cultura e nas artes brasileiras. O arquiteto e artista Flávio de Carvalho foi outro a ser sensibilizado, na época, pela questão da arte dos ‘loucos’ e escreveria também um artigo cujo título “A única arte que presta é a arte anormal”, em 1936, já demarcava uma ruptura em sintonia com a quebra de paradigmas que começara na década anterior. No texto mencionado, o autor escreveu que o problema estético de sua época não remete mais às abstrações líricas, mas sim a uma nova ciência que poderia vir a se chamar psicoetnografia, antecipando uma referência ao que duas décadas depois, na Europa, ficaria conhecido como outsider art: a arte dos insanos, das crianças, a arte visual “primitiva”, “tribal”, não ocidental; também há ligações com a arte “dissidente” ou “maldita” na construção social da outsider art. (^{Zolberg, 2015}).

Ambos, Flavio e Osório, organizaram a exposição “Mês das Crianças e dos Loucos”, em 1933, no Clube dos Artistas Modernos em São Paulo. A exposição constituiu-se de trabalhos artísticos dos internos do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, selecionados e organizados por César, e de trabalhos infantis das escolas públicas de São Paulo. O evento associou a exposição às conferências de artistas, médicos, intelectuais e professores (^{Amin y Reily, 2013}). Esse conjunto de eventos e textos mostra que já havia uma tendência de valorizar a arte dos chamados loucos, reconhecendo-a e legitimando-a como arte, que precedeu as práticas reformistas do final do século XX.

A outsider art, feita por pessoas de fora do “mundo da arte” (mainstream artístico) é considerada como autodidata, a exemplo da arte produzida por pacientes psiquiátricos ou outras pessoas não inseridas na produção de discursos históricos sobre arte (^{Van Heddeghem, 2016}). Também existe a expressão arte naif, utilizada para definir a produção de artistas independentes, sem formação em técnicas artísticas, livre e assistemática.

No Brasil, a partir dos anos de 1940, após um período encarcerada pela ditadura Vargas, Nise da Silveira desenvolveria uma prática inovadora na articulação entre a outsider art dos seus pacientes psiquiátricos com o mundo da exposição e crítica das artes. Segundo ^{Frayze-Pereira (2003}, p.202):

(...)em relação às expressões plásticas dos pacientes de Nise da Silveira, Mário Pedrosa escreveu a favor do que denominou arte virgem, conceito largamente aparentado às ideias de Dubuffet, isto é, uma arte que não leva em conta as convenções acadêmicas estabelecidas, “quaisquer rotinas da visão naturalista e fotográfica” ou ainda as fáceis “receitas de escola” - arte que pertence a todo ser sensível “como estes que além de artistas são alienados” (p. 115). Artistas espontâneos, esses criadores virgens começam a pintar depois de adultos e “doentes”. E nada, no plano da arte, permite distingui-los dos “normais”.

Outro exemplo de como um artista outsider pode ser reconhecido, mesmo que postumamente: Arthur Bispo do Rosário, interno de longo termo (cerca de cinco décadas, não consecutivas) na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, que deixou mais de 800 obras de artes plásticas. Em vida recusava-se a expor o trabalho, mas depois de morto começaram as exposições que o consagraram como “artista genial” (^{Borges, 2019}, p. 13). Bispo, contudo, não desfrutou do “sucesso” como artista nem de possíveis benefícios econômicos do fato. A autora Viviane Borges, no livro que escreveu sobre ele, menciona que a disputa pelo acervo da obra do “homem marginalizado que se tornou artista plástico de renome internacional” (p. 223) levou a uma batalha discursiva entre pessoas e instituições, buscando obter a guarda e colher os louros do seu legado. Sua história ilustra os poderosos signos mediadores de uma obra instigante que liga a loucura à genialidade criativa, sem jamais ter se inserido (em vida), no mainstream artístico.

Enfim, não faltam exemplos históricos da potência do caráter personalizante das artes, das formas de expressão artística como produção de subjetividade - e por que não dizer, de produção da vida - de quem experimenta o que se convencionou chamar de loucura.

A dimensão empírica: metodologia empregada na pesquisa

Metodologicamente, trabalhamos sob inspiração de Octávio ^{Ianni (2004}, p. 11), a respeito da relação entre as narrativas das artes e das ciências sociais:

Em distintas épocas e ocasiões, são evidentes as convergências e as fertilizações recíprocas, além da contemporaneidade. Em suas distintas linguagens, compreendendo metáforas e alegorias, conceitos e categorias, essas narrativas contribuem para o desenvolvimento e a recriação das múltiplas gradações e possibilidades de esclarecimento. Tomadas em conjunto, no curso dos tempos modernos, contribuem decisivamente para o “desencantamento do mundo” e simultâneo “reencantamento do mundo”, em busca de utopias ou de alguma alegria.

Um viés etnográfico orientou as discussões teóricas e as análises bibliográficas. Como referem ^{Nunes e Torrenté (2013}, p. 2861), “uma análise etnográfica crítica tem como intenção desnaturalizar o mundo, evidenciando suas construções sociais, culturais e políticas”. Desde essa concepção, toda a forma de contato com os sujeitos foi transformada em registro narrativo, permitindo uma análise de tipo interpretativo. Trabalhamos os conceitos vinculados ao campo da tríade economia solidária-arte/cultura e saúde mental pensando em termos da potência das artes, realizando trabalho de campo nos moldes etnográficos.

O trabalho mais denso foi realizado no GerAção Poa, em Porto Alegre: um ano e meio de visitas frequentes e várias entrevistas em diferentes contextos, internos e externos ao serviço. As entrevistas foram realizadas com usuários e usuárias, com técnicas do Serviço e com consumidores dos produtos nas feiras e eventos. No Rio de Janeiro foram visitas de campo, participação em eventos e quatro entrevistas. Em Portugal, a interação durou aproximadamente três meses, de visitas e encontros em contextos externos. Duas entrevistas em profundidade foram realizadas.

Por essa razão, neste texto, o destaque da descrição empírica é dado à produção do Gerapoa (como é carinhosamente chamado), que apresenta um rico exemplo de como a arte media relações e subjetiva indivíduos e grupos. Através deste caso, ilustra-se o potencial do binômio arte-cultura para a produção de saúde mental, especialmente quando vem acompanhada de empoderamento político, participação social e ocupação dos espaços públicos.

Também foi feito uso de fotografias para registro das sensíveis realidades das artes produzidas pelos grupos, formando um corpus imagético derivado do trabalho de campo. José de Souza Martins afirma que “Na progressiva relevância da sociologia fenomenológica (...) o visual se torna cada vez mais documento e instrumento indispensáveis na leitura sociológica dos fatos e fenômenos sociais.” (²⁰¹¹, p. 10). O autor afirma que a imagem, sobretudo a fotografia, revela a insuficiência da palavra como registro e matéria prima do conhecimento. Sendo assim, a equipe de pesquisa e os próprios participantes fotografavam seu trabalho, de modo que pudéssemos analisar as imagens paradas e em movimento (^{Penn, 2002}; ^{Loizos, 2002}; ^{Rose, 2002}) como narrativa da criatividade dos sujeitos, discutindo-a com eles. Por que escolheram determinada obra ou performance para ser fotografada ou filmada? O que ela evoca? Tais questionamentos podem desvelar a compreensão dos sujeitos sobre a produção artísticas em suas vidas e como ela potencializa alguma autonomia. A fotografia pode servir, como diz ^{Martins (2011)}, para ser um documento da tensão existente entre o que se revela e se oculta na cotidianidade social. E é no cotidiano que os sujeitos vão construindo as suas condições de desenvolver maior autonomia e capacidade de participação.

O GeraçãoPOA - Oficina de Saúde e Trabalho, é um serviço de média complexidade que compõe a rede de atenção psicossocial municipal de Porto Alegre-RS, cujas ações de promoção da saúde incluem o trabalho como eixo central, como organizador da vida dos usuários, contribuindo para a sua integração sócio laboral. Tem uma sede própria, na Avenida Goethe, em um bairro considerado “nobre” da cidade. Um de seus eixos de atuação é justamente a economia solidária, através das oficinas de geração de trabalho e renda, realizadas em grupo, nos dois turnos, na sede do Serviço. O coletivo de usuários atua em várias frentes de oficinas, como velas artesanais, desenho e pintura, fotografia, costura, bordado, papel reciclado, serigrafia, encadernação, produção textual, poesia.

Ocupam também um espaço comercial na Cinemateca Capitólio, centro cultural que pertence à prefeitura municipal da capital gaúcha. Os trabalhadores-usuários-artistas trabalham na loja própria (motivo de grande orgulho), em alguns turnos da semana, comercializando eles mesmos os variados produtos. Da antiga concepção de ocupar o tempo e afastar o ócio, o papel do trabalho na reabilitação social se desloca para o campo dos direitos, das potências e das capacidades das pessoas que, ao realizá-lo, realizam-se como cidadãos, promovendo, potencialmente, maior autonomia em suas vidas. O processo contém imensos desafios, e justamente por isso as parcerias com instituições públicas e privadas são bem-vindas na perspectiva de técnicas e usuários do GeraçãoPOA, todos muito receptivos em relação à pesquisa.

Em contatos exploratórios de campo, para apresentação do projeto, quando da sua submissão ao comitê de ética da Prefeitura de Porto Alegre (aprovado pelo parecer de número 2.171.365, na Plataforma Brasil), as técnicas (psicóloga, terapeuta ocupacional e assistente social) solicitaram que fôssemos apresentar o projeto ao grupo, que se reúne para tomar decisões, identificar problemas, planejar as estratégias de produção e comercialização, no seu Conselho Local de Saúde. A pesquisa foi acolhida por unanimidade, e a participação dos usuários, cada um/a à sua maneira, foi sempre uma constante. Esses sujeitos se nomeavam em três registros: usuários-artistas-trabalhadores.

Tanto o direito de ser atendido no sistema público (por isso usuário), como o reconhecimento como artista e a condição de trabalhador, ampliavam sua autonomia e sua cidadania, antes tutelada e marcada pela segregação e estigma, constituindo novas possibilidades subjetivas (^{Hespanha, 2010}). As oficinas do Gerapoa eram as mais variadas: mosaico, bordado, desenho, papel reciclado, serigrafia, velas decoradas, poesia, fotografia, costura, encadernação. Os trabalhos mostravam sempre parte de sua visão de mundo e participação no contexto em que (inter)agiam. Seguem algumas figuras 1, 2, 3, 4, 5 e 6 que exemplificam as expressões artísticas observadas.

Figura 1: Rompi com o modelo. Nota. Corpus imagético de pesquisa no GerAção Poa. 

A compreensão crítica da ruptura com o modelo manicomial era construída a partir da experiência de produzir artes e discuti-las em grupo. Na assembleia do Conselho Local de Saúde que constituíram no Gerapoa, uma vez por mês, discutiam o material produzido nas oficinas e quais seriam comercializados. Em caso de desenhos, era pensado em conjunto em quais produtos seriam estampados através de serigrafia, trabalhados com bordados, e qual o local de comercialização mais adequado.

Figura 2:  Amor e respeito Nota. Corpus imagético de pesquisa no GerAção Poa. 

No caso desta última arte, houve uma discussão acalorada e discordância por parte dos usuários mais conservadores, com a confecção e comercialização da arte nos produtos. Afinal, houve votação com vitória da aprovação (as pesquisadoras foram convidadas a votar junto com os demais componentes do grupo), sob o argumento que, se eles sofriam preconceitos, não poderiam reproduzir preconceitos contra outras pessoas que não se encaixavam nas normas convencionais. Destacou-se do episódio uma dimensão política, que acompanha cada ação no Gerapoa.

Além de uma micropolítica do cotidiano, em que a dimensão instituinte dos sujeitos é ativada, há também a participação no Conselho Municipal de Saúde, onde um dos usuários representa os/as colegas, tendo inclusive ganhado um prêmio pela assiduidade e qualidade da participação. A primeira segunda-feira de cada mês é a reunião do conselho local de saúde, ocasião em que os problemas são debatidos internamente, entre os usuários do Gerapoa e fazem-se os destaques a serem levados à reunião do Conselho Municipal. É interessante observar, portanto, que arte e política se entrecruzam o tempo todo, permeando as relações entre os sujeitos.

Segundo ^{Rotelli (2000}), o objeto/artefato artístico media as relações, produzindo subjetividades engajadas num empreendimento de reconstrução cotidiana das identidades. Essa perspectiva ilustra muito bem o que se passa no empreendimento observado; o fenômeno problematizado pelo autor é o da empresa social, que define como uma habilidade, uma capacidade de (re)construção em todas as dimensões institucionais: política, administrativa, técnica, operativa, cultural, artística e afetiva. “Os objetos são fundamentais nas relações e a beleza do objeto qualifica a relação entre as pessoas.” (Rotelli, 2000, p. 374). Parece bastante claro que no Gerapoa a empresa social, como ação política e transformadora, é uma realidade, sempre em construção.

Figura 3: Mulheres de um mundo. Nota. Corpus imagético de pesquisa no GerAção Poa. 

A temática das mulheres, no mês de março, gerou debates sobre a condição das mulheres no mundo, com identificação de figuras significativas para os sujeitos. Apareceram nomes como Marielle Franco, Frida Kahlo, Elza Soares, Malala, Dandara, Rita Lee; escolheram diferentes formas de representá-las, após algumas oficinas de desenhos e serigrafia, ensaiando possíveis representações gráficas dessas mulheres que admiravam. Discutiam, em reunião, os motivos da admiração e o que esses valores significavam para eles/as.

Figura 4: Ensaios gráficos Nota. Corpus imagético de pesquisa no GerAção Poa. 

O relato de campo de uma assistente de pesquisa trouxe um pequeno recorte, ilustrativo da experiência como um todo: “participei da parte de customização das bolsas: as cores, os bordados e formatos que vão ser usados. Cada um/a contribuindo do seu jeito, vão criando bolsas lindas.” As palavras e as imagens têm essa função mediadora, inclusive das emoções compartilhadas pelo grupo, da vibração provocada pela estética produzida, uma força tanto estética quanto retórica, de criação de diálogos a partir dos objetos. Segue a pesquisadora: “Os tecidos são doação, então tem alguns retalhos, partes que ao chegar no GeraPoa vão formar um todo..., acho incrível a vibração que eles sentem quando a tessitura se encaixa!”.

Figura 5: Bolsas. Nota. Publicada no perfil do Facebook do GeraçãoPoa. Recuperado de https://www.facebook.com/geracaopoa. 

O potencial das artes vai muito além da terapia, da ocupação do tempo, de coadjuvante do tratamento. A expressão artística politiza os sujeitos, faz com que ofereçam ao mundo algo de seu que será, depois de confeccionado, admirado e vendido para gerar renda; ou seja, algo extremamente significativo. Já diziam ^{Amarante e Torre (2018}, p. 766):

Entre as maiores inovações nos processos de RP no Brasil nas últimas décadas, está a constituição desse novo campo das experiências artístico-culturais, com tendência à autonomia em relação aos equipamentos de Saúde. São experiências de intervenção cultural na cidade, com produção de bens e valores culturais. São, ainda, estratégias de criação de formas de inclusão social e familiar e participação em espaços de lazer, convivência, trabalho e mobilização coletiva.

O que se destacou, no caso da pesquisa que embasa este texto, foi esse poder de mediação relacional que tinha a produção artístico-cultural nos contextos pesquisados. O debate acerca das artes, a decisão coletiva sobre seus usos, exposição e comercialização capacitam os sujeitos para exercer a fala, a ação e a cidadania. A comercialização propiciava, também, que ocupassem espaços públicos considerados nobres da cidade: teatros, centros culturais e feiras tradicionais. Espaços que, principalmente os mais pobres e periféricos, não acessariam sem a participação naquele grupo, naquele empreendimento.

Figura 6:  Ocupando a cidade. Nota. Corpus imagético de pesquisa no GerAção Poa. 

Considerações finais

A pesquisa mostrou a potência da intersecção arte/cultura com o modelo cooperativo de trabalho. Neste texto, o registro empírico destacado foi o do Geraçãopoa, em Porto Alegre-RS, por ser exemplar em relação ao argumento desenvolvido. A mediação dos artefatos culturais produzidos pelos grupos poderia, ainda, ser potencializada e estrategicamente utilizada no reforço aos vínculos internos e externos ao empreendimento, ampliando seu enraizamento comunitário, que os fortalece e legitima.

Os arranjos que analisamos utilizam a estratégia da cooperação solidária para engajar múltiplos atores sociais (usuários-artistas, consumidores, doadores de matéria prima, visitantes, profissionais em formação) em processos emancipatórios, que democratizam as cidades e as tornam mais disponíveis aos tradicionalmente excluídos dos seus melhores espaços. Isso lembra a proposição política dos autores ^{Dardot e Laval (2017}): os serviços públicos devem ser instituições do comum. Produzir arte, nessa perspectiva, é acessar um direito humano, como trabalhar e ser remunerado, andar livremente pelos espaços públicos, receber um tratamento digno.

A prática da economia solidária - produzir e comercializar em grupo, dividindo os ganhos segundo critérios justos, acordados em assembleia - é outro elemento que certamente expande capacidades que se originam da criação artística e do acesso a bens culturais, além das interações vinculantes (^{Gaiger, 2016}) essenciais à saúde mental. A ocupação da cidade pelos cidadãos antes dela apartados pelo isolamento manicomial é efetivação de direitos de cidadania, da democracia e de uma sociedade mais igualitária. A dimensão política destaca-se como muito importante no processo de promoção da saúde mental, considerando a prática da cidadania como elemento positivo na dinâmica do processo saúde-doença.

Mesmo submetidos a várias limitações de ordem econômica, profissional, institucional e familiar, a recuperação de direitos tão importantes produz novos territórios existenciais para os sujeitos que se nomeiam usuários-trabalhadores-artistas. Essa é uma importante maneira de promover a saúde mental nos serviços reformados, a partir da imensa conquista civilizacional que foram o Sistema Único de Saúde e a Reforma Psiquiátrica.

Como com qualquer outra obtenção de direitos sociais, temos de ficar atentos/as aos riscos de dissolução dessas experiências, seja por desfinanciamento, abandono, ou privatização dos serviços. Jamais se pode encarar as conquistas obtidas como algo definitivo. Estão sempre em risco e a mobilização por conquistas democráticas de redistribuição e reconhecimento precisa ser constante.