Neste artigo, partimos do pressuposto de que as políticas brasileiras sobre drogas estão inscritas em um campo de disputas ideológicas e de pautas para políticas públicas, que nem sempre leva em consideração a perspectiva dos profissionais e usuários do sistema de saúde, em alguns momentos, excluindo-os deliberadamente dos debates e da formulação de políticas públicas, mas que, ao mesmo tempo, individualiza no usuário o problema. Em uma pesquisa, realizada entre os anos de 2014 e 2015, junto à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de Porto Alegre, na região sul do Brasil, apostamos nas reflexões sobre o acolhimento como uma experiência singular, que deve acontecer cotidianamente nos serviços, nos encontros mais corriqueiros e comuns entre profissionais e usuários. Como alguns autores afirmam, trata-se de uma “tecnologia leve”, relacional (Merhy, 1999, 2013), que não tem sido foco de “investimentos”. Um montante significativo de investimento financeiro poderia expandir a rede assistencial, ampliando o número de serviços ofertados à população, mas não implicaria necessariamente em uma escuta qualificada e o acolhimento/cuidado às pessoas. As dificuldades vivenciadas pelos profissionais (por exemplo, falta de investimento nos serviços, excesso de demandas, jornadas cansativas de trabalho, falta de diálogo com os gestores, entre outros) podem ser um importante atravessamento no momento de acolher o usuário que chega ao serviço.
Nessa discussão sobre o acolhimento a pessoas que sofrem com o uso e abuso de drogas, a noção de rede nos é muito cara, e tem sido alvo de debates e disputas conceituais. Iniciamos este debate destacando que, para que a RAPS funcione efetivamente, não basta que a gestão pública disponibilize recursos para a implementação da Rede, pois “a construção de uma rede na saúde implica mais do que ofertas de serviços num mesmo território: implica colocarmos em questão como eles estão se relacionando” (Brasil, 2009, p.13).
Antes de adentrarmos nas discussões teórico-conceituais sobre a rede, destacamos que diferentes modelos de assistência em saúde marcaram e caracterizam até hoje a trajetória da saúde mental no Brasil. As mudanças nas concepções da loucura e do adoecimento mental, transformações nos contextos sociopolítico e econômico, bem como as diversas configurações da organização do sistema de saúde influenciaram as práticas de cuidado e a trajetória das instituições e abordagens no campo da saúde mental e da atenção aos usuários de álcool e outras drogas. Em 2011, a Portaria do Ministério da Saúde de nº 3088 instituiu a RAPS para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A referida Portaria visava, além de garantir os direitos dos usuários com transtornos mentais, já previstos na Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira (Lei 10.216 de 2001), ampliar e articular os pontos de atenção da Rede (Brasil, 2011c), em consonância com os princípios da universalização, da equidade e da integralidade do Sistema Único de Saúde (SUS) - sistema público e universal de saúde brasileiro, promulgado pela Lei nº 8080 de 1990, resultante de um longo processo de redemocratização no país e de Reforma Sanitária.
Na cartilha denominada “Redes de Produção de Saúde” (Brasil, 2009), produzida pela Política Nacional de Humanização da Gestão e da Atenção do SUS (PNH), a rede de saúde é pensada como uma estratégia para qualificar a gestão e a atenção do SUS. Nesse sentido, organizar as políticas públicas em rede é necessário, mas não suficiente, para produzir saúde, e depende da organização do sistema de saúde e da integração das ações intersetoriais em um determinado território. Portanto, a construção de redes se apresenta como uma tarefa complexa, pois exige a implementação de tecnologias leves ou relacionais (Merhy, 1999, 2013) para qualificar os encontros entre diferentes serviços, especialidades e saberes. Ter mais serviços e mais equipamentos é fundamental, entretanto, para que consigamos construir a integralidade na atenção, precisamos também apostar na ampliação da comunicação entre os serviços, com processos de atenção e gestão interligados e comprometidos com a corresponsabilização do cuidado (Brasil, 2009).
Sem a pretensão de esgotar a discussão sobre a noção de rede, vamos, a partir da análise empreendida por Righi (2010), seguir a indicação de dois importantes autores nesse debate: Manuel Castells (2000) e Milton Santos (1996; 1997). Um conceito bastante difundido e fundamental sobre rede é apresentado por Castells (2000, p. 498), que a define como “um conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma curva se entrecorta. Concretamente, o que um nó é depende do tipo de redes concretas de que falamos”. Milton Santos (1996), ampliando esse conceito, desconfia da possibilidade de reduzir tudo a produção de redes, referindo-se a uma certa contradição entre o espaço vivido (território) e a produção de redes. Segundo o autor,
além das redes, antes das redes, apesar das redes, depois das redes, com as redes, há o espaço banal, o espaço de todos, todos os espaços, porque as redes constituem apenas uma parte do espaço e o espaço de alguns (Santos, 1996, p. 17).
A valorização do espaço vivido, proposto por Santos (1996; 1997), nos impede de pensar a rede de saúde como um conjunto de equipamentos projetados sobre um território, correndo o risco de escondê-lo. Como bem adverte Righi (2010, p. 64), “pensar o SUS apenas como uma rede hierarquizada impede que se veja o território sob a rede e induz a visualização e produção de redes homogêneas em níveis hierárquicos”. Por isso que a integração dos serviços é apenas um dos aspectos da produção das redes de saúde, trata-se da malha assistencial, ou, nas palavras de Milton Santos (1997), do entorno funcional. Mas tão importante quanto o entorno funcional é o entorno territorial (Santos, 1997), pois o território não é apenas espaço de demanda da rede assistencial, “o território também se produz na medida em que a localização de pontos da rede assistencial alteram o espaço vivido” (Righi, 2010, p. 65).
Geralmente quando pensamos em redes de saúde, pensamos em redes homogêneas, cujos nós (pontos de atenção) são iguais, conectados a distâncias iguais e com fluxos de igual intensidade. Mas a partir das considerações de Castells (2000), Santos (1996; 1997) e Righi (2010), pensamos a rede como algo heterogêneo, desenvolvida sem a pretensão de que os nós e as distâncias sejam iguais e os fluxos com as mesmas intensidades. O trabalho na produção de redes nunca está pronto, acabado, pois nossas intervenções alteram a rede, criam e organizam os fluxos. Transformar um dos nós da rede significa modificar os outros nós também. Há conexões a produzir, há nós a reforçar. Nessa maneira de conceituar a rede, a provisoriedade, o inacabamento e a indefinição são elementos essenciais para a produção das redes de saúde (Righi, 2010).
Essa noção de rede, portanto, mostra-se diretamente vinculada à noção de acolhimento, pois nos remete aos encontros, à rede viva composta por profissionais e sujeitos que se encontram cotidianamente. Nesse contexto, entendemos que várias são as demandas: prevenção, tratamento, reabilitação psicossocial, reinserção social. Aos profissionais da saúde mental cabe a tarefa de acolher. Mas quem ou o que esses profissionais estão acolhendo? Cabe somente a eles essa tarefa? Como acolher e estar com o outro, que nesse caso é um usuário de drogas? Afinal de contas, o que ou quem estamos acolhendo nos serviços da RAPS? Como oferecer tratamento e reabilitação psicossocial àqueles que são cotidianamente estigmatizados de dependentes químicos, crackeiros, bandidos, por exemplo, pelos discursos públicos e excluídos na/da lógica produtiva de nossas sociedades? Como o profissional de saúde, também pessoa que se enreda nestas relações, acolhe o outro?
Sem intencionar buscar respostas a estas questões, propomos, neste artigo, analisar e refletir sobre o conceito e as práticas de acolhimento especificamente no âmbito do trabalho de uma equipe de apoio técnico em saúde mental da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre/RS junto aos profissionais da Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde. Problematizaremos, ao longo do texto, a relação entre a gestão em saúde e a construção compartilhada de uma “gestão do acolhimento”.
Método
Esta pesquisa está inserida no espectro das pesquisas participativas. Adotaram-se como estratégias metodológicas a observação participante, em três contextos da RAPS da cidade de Porto Alegre (RS) - Área Técnica de Saúde Mental, Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD) e Consultório na Rua (CnR) -, o diário de campo, as entrevistas narrativas (com usuários e profissionais) e os grupos de discussão com os profissionais.
Nessa pesquisa, utilizamos o método da observação participante, acompanhado da ferramenta do diário de campo. Todas as atividades observadas foram definidas com o consentimento da equipe e dos usuários envolvidos. Concebendo o diário de campo como a principal forma de registro das informações coletadas no decorrer das observações (MacRae, 2004), incorporamos essa prática como método (não apenas de registro, mas também de construção e análise de dados) da nossa pesquisa. A prática do diário de campo nos revela que o ato de anotar ou de escrever sobre as observações feitas no local da pesquisa tem uma utilidade que vai além do registro de dados que com o tempo poderiam ser esquecidos; trata-se de um ato que “funciona como maneira de introduzir uma ordenação inicial ao material e ajuda a detonar reflexões mais sistematizadas e aprofundadas” (MacRae, 2004, p.7).
O Fórum Álcool e outras Drogas (Fórum AD), proposto pela Área Técnica de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, tem funcionado como um dispositivo de discussão e deliberação entre profissionais dos diferentes serviços que compõem a RAPS sobre questões e impasses vivenciados no cotidiano das equipes. Nesse espaço, propomos, em um dos encontros, o tema acolhimento para o debate com os profissionais. O grupo de discussão no Fórum AD foi transcrito e analisado a partir de categorias preestabelecidas, tomando como base as dimensões constitutivas do acolhimento (Brasil, 2011a) e o acolhimento como uma diretriz ética, estética e política (Brasil, 2006). Buscamos, nessa análise, compreender como profissionais e usuários significam essas dimensões sobre o acolhimento preconizadas pelo Ministério da Saúde. A análise preliminar do grupo, observações e diário de campo serviram como base para as entrevistas narrativas.
A entrevista narrativa é considerada uma forma de entrevista não estruturada, de profundidade e com características específicas, pois o esquema da narração substitui o esquema pergunta-resposta. O pressuposto subjacente desse método é que “a perspectiva do entrevistado se revela melhor nas histórias onde o informante está usando sua própria linguagem espontânea na narração dos acontecimentos” (Jovchelovitch y Bauer, 2008, p. 95-96). As entrevistas foram gravadas (com o consentimento dos interlocutores) e transcritas para posterior análise. O procedimento analítico aqui adotado foi a proposta de Schütze, descrita por Jovchelovitch e Bauer (2008).
No período de aproximadamente um ano, concluímos 298 horas de observação participante em 86 imersões no campo de estudo. Além das observações, realizamos três grupos de discussão e 34 entrevistas narrativas com usuários e profissionais dos serviços. Em relação ao recorte da pesquisa apresentado nesse manuscrito, a pesquisa de campo iniciou e terminou por meio da Área Técnica de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. A proposta foi apresentada à equipe e acolhida com entusiasmo pelos profissionais. Desde o início, tivemos a sensação de que esses profissionais queriam muito discutir a questão do acolhimento na rede de saúde e viram, nesta pesquisa, uma possibilidade de disparar novas reflexões.
Várias foram as atividades acompanhadas, mas acabaram se concentrando mais nos Fóruns AD e nos Fóruns da RAPS da Gerência Distrital Glória-Cruzeiro-Cristal (GD GCC), enquanto estivemos paralelamente acompanhando as atividades do CAPS AD da GD GCC. À medida em que fomos nos inserindo nas atividades do referido CAPS, ficou mais difícil acompanhar todas as atividades com a Área Técnica. Entretanto, as entrevistas realizadas com três profissionais dessa equipe, bem como o Grupo de Discussão, com oito profissionais da rede presentes no Fórum AD, complementaram os dados construídos nessa interlocução, possibilitando-nos uma rica experiência nesse contexto.
Por fim, uma estratégia adotada foi a utilização de heterônimos. Essa estratégia é, ao mesmo tempo, teórico-metodológica e ética, no que tange à preservação do anonimato dos interlocutores. Assim como o título da tese da qual resulta este manuscrito, o uso dos heterônimos teve como fonte inspiradora o poeta Fernando Pessoa, conhecido, também, por utilizar amplamente heterônimos - entre os mais conhecidos, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Bernardo Soares. Tanto no caso da obra de Fernando Pessoa quanto no deste trabalho, os heterônimos fazem emergir uma concepção de sujeito cujas identidades são múltiplas, um sujeito que é atravessado por diversas e, muitas vezes, paradoxais identificações, resultando no desdobramento do ‘eu’, em seu descentramento em direção ao outro. Os nomes dos heterônimos foram fruto de associações livres e também de pesquisas. Pensou-se em uma série de pessoas, mais ou menos conhecidas publicamente, vinculadas ao mundo das artes, da literatura, do cinema, da saúde, da psicologia, do movimento da reforma psiquiátrica e de movimentos LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Queer, Intersex, Assexuais e outros) e feministas. O heterônimo foi apresentado com o nome e a primeira letra do sobrenome, seguido de ponto final. Em contrapartida, pactuamos com os profissionais e usuários envolvidos na pesquisa, que não ocultaríamos os nomes dos serviços em função de sua vinculação com os territórios. Na escrita deste trabalho era primordial pensarmos na relação dos serviços com os territórios, bem como os demais dispositivos de saúde e assistência social presentes no mesmo. Cabe ainda ressaltar que o projeto de pesquisa foi aprovado nos Comitês de Ética do Instituto de Psicologia da universidade e da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, sendo que todas/os as/os participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido sobre suas participações no processo da pesquisa.
Resultados e Discussão
Parte significativa dos encontros que acompanhamos junto à Área Técnica foram antes da realização da Copa do Mundo de 2014 em Porto Alegre, e o debate contraponto práticas de acolhimento às práticas de recolhimento, essas últimas concebidas como práticas higienistas de recolhimento e internação de pessoas em situação de rua em decorrência do uso de drogas, foi amplamente discutido pelos profissionais da RAPS. Os profissionais da área técnica buscavam construir um posicionamento junto à RAPS que questionasse a ideia corrente de que o acolhimento era tarefa prioritária dos serviços de internação, seja em hospitais, seja em comunidades terapêuticas, recolhendo pessoas em situação de rua, por exemplo.
Em meados do século XX, o modelo de Comunidade Terapêutica (CT) psiquiátrica emerge dentro do contexto da reforma psiquiátrica mundial, preconizando a abordagem da doença mental desde uma perspectiva humanizada, através da qual Maxwell Jones, considerado o pioneiro deste modelo de atenção, visava a maior participação do paciente no seu próprio processo de tratamento. Entretanto, esse movimento das CT Psiquiátricas se desdobrou no trabalho de recuperação de dependentes de álcool e outras drogas e, com o advento da dependência química como problema de saúde pública, as CT se multiplicaram nos últimos 20 anos de forma desregulada no Brasil, transformando-se em alvos de denúncias de práticas desumanas e iatrogênicas que muito se assemelham aos primeiros Hospitais Psiquiátricos (Bolonheis-Ramos y Boarini, 2015). Nesse sentido, as CTs são pautadas no denominado paradigma da abstinência, promovendo um tratamento que preconiza a retirada do usuário do seu espaço de consumo, conferindo-lhe uma rotina disciplinar de trabalho, oração e tratamento com o foco nos aspectos dolorosos das experiências dos usuários e no reconhecimento das perdas em decorrência do uso abusivo ou dependente de drogas.
Nessa perspectiva de tratamento, temos o verbo acolher como sinônimo de internar, isolar, desintoxicar. O objetivo final dessa “prática de acolhimento” é a abstinência. Tal proposta ignora a Redução de Danos (RD), tal como faz a atual política de drogas (Brasil, 2019), pois coloca a abstinência como regra, como uma norma que define a fronteira entre o dentro e o fora do sistema, entre a cura e a doença, entre o normal e o patológico (Souza y Carvalho, 2012). Só que a polarização produzida por essa postura reconhece apenas duas posições ou discursos possíveis aos usuários: o discurso heroico, do sujeito que superou o inferno das drogas, e o discurso desesperado, daquela pessoa que não suporta mais o martírio (Petuco, 2010).
Logo no primeiro Fórum AD do ano, questões importantes foram discutidas, mostrando um pouco da tônica dos debates e por onde esses encontros iriam andar. A reunião ocorreu com a representação de coordenadores dos serviços da rede AD de Porto Alegre. Dentre os informes, destaco aqui a chamada que foi feita para a participação no Encontro de CAPS, evento organizado em parceria com o Ministério da Saúde e Secretaria Estadual de Saúde. Além disso, os profissionais da área técnica atualizaram os participantes em relação às discussões ocorridas no encontro do Programa “Crack é possível vencer”.
O Programa “Crack é possível vencer” foi lançado pelo Governo Federal em 2011 e, em articulação com os estados, municípios e sociedade civil, buscou aumentar a oferta de tratamento de saúde a usuários de drogas, enfrentar o tráfico e as organizações criminosas e ampliar as ações de prevenção ao uso de drogas. O programa surge como um dos efeitos do Decreto 7.179 de 2010, que instituiu o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas (Brasil, 2010), apontado por Guimarães e Rosa (2019) como um marco representativo dos ataques à Reforma Psiquiátrica brasileira. Tanto o referido decreto quanto o programa despontam para a possibilidade de um retorno gradual ao cuidado de usuários de drogas em ambientes asilares (embora nunca tenhamos superado ou transformado totalmente esse modelo), como as CTs, e numa perspectiva oposta àquela preconizada pela RD.
Embora tenhamos uma rede com diversos dispositivos de atenção, a internação ainda é vista por muitos como a única solução. E, embora saibamos que rede é muito mais do que serviços distribuídos num determinado território, existem ainda regiões de Porto Alegre que carecem de CAPS AD, Unidades de Acolhimento, dentre outros dispositivos. À época da pesquisa ainda vivíamos um momento de investimentos na RAPS e em serviços como os CAPS AD. De lá para cá, entretanto, inúmeros foram os retrocessos nas políticas de saúde mental. Para citar um exemplo, a Nota Técnica nº 11/2019 (Ministério da Saúde, 2019) propõe esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. Ao incluir hospital psiquiátrico, hospital-dia, ambulatório multiprofissional e comunidades terapêuticas como pontos de atenção da RAPS, a nota, buscando neutralizar o ataque ao modelo de atenção psicossocial e à luta antimanicomial, utiliza expressões como ‘rede harmônica e complementar’ e a ideia de que todos os serviços são importantes, um não podendo substituir o outro - sendo que, na proposta da Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira, de 2001, seriam criados serviços substitutivos aos hospitais psiquiátrica, visando a construção de uma atenção em saúde mental antimanicomial.
A ideia do CAPS AD exclusivo para jovens, indicada por Nise S. em sua entrevista, vem da constatação da área técnica de que os nossos CAPS não têm conseguido trabalhar efetivamente com jovens usuários de crack, embora se afirme que não se trata apenas de crack. O “buraco” da rede está, principalmente, nessa faixa etária, já que temos uma escassez de outras políticas. Esse jovem não acessa a educação, cultura, trabalho, moradia... a saúde sozinha não consegue acolher esse jovem. Essa ideia de ampliação é uma das propostas apresentadas no Relatório da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre sobre o Programa “Crack é possível vencer” (Área Técnica de Saúde Mental, 2014), vinculado ao Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas (Brasil, 2011b).
O município de Porto Alegre aderiu ao Programa em abril de 2012. A partir da adesão, foram pactuadas ações de ampliação e qualificação da rede de serviços para álcool e outras drogas, priorizando regiões da cidade nas quais havia a inexistência desses serviços ou necessidade de qualificação. Além da área da Saúde, a Assistência Social e a Segurança também pactuaram ações junto ao Ministério da Saúde, Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) e Casa Civil (Área Técnica de Saúde Mental, 2014). As ações pactuadas entre a saúde, assistência social e segurança tinham como foco os territórios da Restinga, Santa Teresa, Rubem Berta, Lomba do Pinheiro e, por fim, a região Centro, que é conhecida por ter uma grande concentração de pessoas em situação de rua.
Apesar de todas essas estratégias, contudo, muitas das ações previstas inicialmente tiveram que ser repactuadas, como, por exemplo: a criação do CAPS AD III Centro; o CAPS AD III Centro Infanto-Juvenil; a consolidação da 2ª equipe do Consultório na Rua Centro Tipo III; Consultório na Rua Restinga; Unidade de Acolhimento Adulto no Centro; dentre outras. Destacamos que os CAPS são serviços criados mediante uma portaria específica (Brasil, 2011c), sendo tipificados conforme a complexidade da equipe, número de profissionais e tamanho da população atendida, sendo divididos entre os tipos I, II e III. Os CAPS do tipo III são considerados de maior complexidade, pois funcionam 24 horas por dia, todos os dias da semana, contando com espaço de internação breve para desintoxicação ou urgências psíquicas e com equipe de profissionais plantonistas. Os CAPS AD, especificamente, possuem, dentre outras, a tarefa de articular os serviços e o fluxo de cuidado a pessoas que usam drogas e que sofrem com esse uso, além de realizar o matriciamento para os demais serviços não especializados.
Em relação às dificuldades enfrentadas na execução do Programa “Crack é possível vencer”, Nise S. faz um balanço das ações e reflete também sobre os avanços dos debates aqui no município:
Pois é, a tentativa porque quando a gente começa a discutir isso, assim muito mais nós em saúde e junto com a assistência que fazem parte desde o início deste comitê e a educação, essas três secretarias, quando a gente começa a problematizar isso justamente nesse raciocínio assim, para além do crack, para além do plano e para além de toda esta pressão do Governo Federal, a gente teria que pensar a cidade como um todo e aí a gente começa a agregar uns atores assim. Então eu acho que, nesse sentido, a gente avançou. Avançou porque no momento que as pessoas se dão conta que aquele usuário que está chegando no CAPS não é usuário de crack e que está previsto lá no plano crack que tem alguma coisa aí que a gente tem que pensar melhor. E aí a gente tem que pensar melhor e dizer o plano de atenção integral aos usuários de drogas nesta cidade. Então a gente colocou isso e oficializou isso, a gente escreveu isso, porque daí fica para além do crack.... (Nise S.).
Isso nos remete à ideia tão discutida nos encontros da RAPS de que o cuidado se dá quando encontramos o sujeito, além da droga ou de qualquer patologia que ele possa ter. Podemos então afirmar que a equipe da área técnica vinha atuando de forma a combater, a enfrentar o que temos chamado de “encolhimento” - quando reduzimos o fenômeno ao químico, encolhemos o sujeito, ele é um dependente químico. Isso não significa negar a doença ou o sofrimento. Significa olhar para esse sujeito que, apesar de sua dependência em relação às drogas, tem uma história singular, uma trajetória, tem seus gostos, suas preferências. Esse “olhar além”, que tanto insistem Franco B., Nina S. e Nise S., é uma tentativa de ir contra esse encolhimento, buscando instaurar fluxos de afetos que aumentem a potência de agir dos profissionais e usuários da RAPS.
No grupo de discussão do Fórum AD, aparece uma noção de que a atividade do acolhimento vai além de um procedimento técnico-especializado ou de uma recepção. A ênfase na importância desse encontro é fundamental, pois evidencia a responsabilidade com o outro, com o usuário, e que o profissional pode causar “coisas boas” ou “coisas não tão boas assim”. Veremos que essas coisas boas e nem tão boas também podem ser sentidas pelos próprios profissionais, pois, como escreveu um dos participantes do grupo de discussão, no ritmo do afeto, o olhar do acolhimento escapa a unilateralidade. Ao olhar intensamente, somos olhados. O acolhimento, dessa maneira, não escapa dos afetos. A intervenção do profissional causa algo no usuário, afeta-o. As histórias, acompanhadas das queixas, dos usuários também afetam o profissional.
O acolhimento também é pensado nesse grupo de discussão como um encontro de saberes, duas histórias, duas trajetórias que se encontram dentro de um serviço. Cada um dos atores envolvidos traz consigo sua bagagem, seus saberes, seus afetos. Através de minhas andanças pela rede e com os profissionais e usuários, percebo que há um grande esforço dos profissionais transformarem esses momentos em encontros dialógicos, através dos quais se reconhece o outro como interlocutor legítimo (Jovchelovitch, 2008), buscando ir além de um acolhimento inicial como uma atividade técnico-especializada e promovendo tentativas de se fazer um acolhimento-dialogado em uma rede de conversações (Teixeira, 2003).
Mais uma vez Franco B. nos traz uma importante contribuição para pensarmos nesses encontros:
A gente tem visto assim que você recebe alguém que está usando drogas e encaminha para internação compulsória e diz para o familiar levar para a internação compulsória. Ele vai confiar em ti, tu é técnico, a imprensa está falando que esse é um recurso, tu vê isso na televisão, as mães acorrentam o cara na cama ou chama a Brigada e leva para o hospital. (Franco B.).
Nesse encontro, como pontuou Franco B., o usuário e o familiar confiam na palavra do profissional, pois ele representa um saber técnico. De outro lado, muitas vezes, os familiares e usuários vêm com o seu saber. O saber é sempre polifásico (Jovchelovitch, 2008), ou seja, nós apresentamos formas heterogêneas e múltiplas de saber que podem coexistir, viver lado a lado e desempenhar diferentes funções. Quando se chega ao serviço com o saber de que a internação compulsória é um recurso eficaz para o tratamento e tal saber é legitimado pelo profissional, acredita-se no potencial terapêutico desse recurso. Mas esse, não necessariamente exclui a crença que o familiar possui ou o saber de que o CAPS AD também pode contribuir nesse processo.
Outro ponto nos parece fundamental nessa contribuição de Franco B. Os saberes veiculados pelas mídias sobre o uso de drogas, por exemplo, são apresentados como certezas absolutas sobre o uso e usuário de crack e se contrapõem ao que Franco B. denominou de “dimensão de incerteza”. Inspirando-nos em Hannah Arendt, refletimos sobre o quanto esse não reconhecimento da incerteza pode diminuir a potência de agir.
A atividade humana da ação condiciona o homem à política, à vida em sociedade, aos debates sobre decisões importantes da vida pública. Portanto, a ação é a atividade que faz o homem escapar de sua condição de animal laborans (prisioneiro do ciclo interminável do processo vital) e de homo faber (que perde os significados das coisas em sua incessante produção de instrumentos e objetos de uso num mundo determinado pela categoria de meios e fins). Através da ação e do discurso as pessoas produzem histórias significativas e trazem consigo duas potencialidades: a irreversibilidade e a imprevisibilidade. Ou seja, quando agimos é impossível desfazer o que se fez (irreversibilidade) e descobrir onde essa ação vai nos levar, a incerteza do futuro (imprevisibilidade). Segundo Arendt (2010), a solução para o primeiro problema é a faculdade de perdoar, enquanto que para o segundo é a faculdade de prometer e cumprir as promessas.
Se a prática do acolhimento acontece no encontro entre profissional e usuário, temos a pluralidade, a ação arendtiana. Essa ação é irreversível, pois no encontro, no fluxo de afetos, profissional e usuário se transformam. Ela é imprevisível, porque por mais que o profissional esteja ancorado em um arcabouço técnico-teórico ou em determinados pressupostos, não sabemos o que nossa ação de fato irá provocar no outro. Essa dimensão da incerteza pode, então, tanto aumentar a potência de agir quanto diminuí-la. Reconhecer essa dimensão é fundamental para resgatar a faculdade de prometer, não a certeza absoluta de “cura”, mas a promessa do cuidado, da continuidade do cuidado. A promessa aumenta a potência de agir. Mas a incerteza pode também paralisar e transformar a potencialidade do acolhimento em uma atividade técnico-especializada, que pode ser bem executada. Dessa forma, ao falarmos do acolhimento como um encontro de saberes, necessariamente estamos falando do acolhimento como uma postura ou tecnologia do cuidado.
O acolhimento vai se produzindo, então, no plano dos encontros, nos fluxos de afetos construídos a cada encontro e através destes. Se a lei da vida é a lei dos encontros, “a vida é pensada como potência que se ativa entre os sujeitos, nas relações e vínculos que constroem (e os constroem); como potência de afetar e ser afetado” (Neves y Heckert, 2010, p.162). É o que os profissionais disseram no grupo de discussão - a alegria quando se encontra o sujeito que está por trás doença, que está além daquela trajetória de sofrimento. Por isso, ainda conforme Neves e Heckert (2010, p. 153),
a construção de práticas de acolhimento que possam fazer da existência uma arte de viver sustenta-se no cultivo de uma prática ética em que o cuidado consigo, com o outro e com o mundo, se faz quando cuidamos da dimensão coletiva e relacional de nossa existência.
O acolhimento como uma postura ética, como uma tecnologia do cuidado. A partir das observações, entrevistas e grupo de discussão realizados, entendemos ser fundamental tecer algumas reflexões sobre o lugar da área técnica na RAPS. Um lugar ocupado entre o grupo de profissionais e aqueles que ocupam os altos cargos da gestão municipal. Um lugar, como pudemos observar, de mediação. Será que o lugar da área técnica é também um espaço de construção de uma “gestão do acolhimento”? Conforme Franco B., esse lugar da área técnica é “sempre e essencialmente um lugar de mediação” e que busca a construção compartilhada de uma gestão do acolhimento.
Planejar, gerir e avaliar as práticas exige contínua consideração dos processos, tendo em vista as especificidades dos territórios e as concepções de saúde que sustentam as práticas dos profissionais. A complexidade dos processos de gestão no campo da saúde, assumida nesse lugar da área técnica de saúde mental, envolve um processo ininterrupto de avaliação e planejamento, buscando o favorecimento da formulação de estratégias em contexto que contemplem a desfragmentação das práticas, a definição de fluxos e a educação permanente. Nesse sentido, a gestão requer outras práticas que não somente as de caráter normativo (Bedin, Scarparo, y Martinez, 2013). A área técnica, através dos Fóruns AD e Fóruns da RAPS, busca consolidar práticas mais dialógicas, efetivando relações mais democráticas e participativas, conforme observado nos fóruns e nas entrevistas com os profissionais.
Conforme Cecílio (2001), nas práticas efetivadas através das políticas públicas podemos vislumbrar três espaços gestores, com diferentes graus de governabilidade: o geral, o particular e o singular. O geral está atrelado à macropolítica desempenhada, principalmente, pelo Ministério da Saúde, através do planejamento e implementação de políticas, portarias, programas. O particular se refere às práticas dos trabalhadores das secretarias estaduais e municipais de saúde. E o singular nos remete aos trabalhadores que estão na ponta, atuando nos serviços de saúde da rede. Por isso não podemos considerar que os sujeitos implicados na gestão são apenas aqueles nomeados formalmente como gestores, mas qualquer cidadão implicado com o SUS, especialmente os trabalhadores (Bedin et al., 2013).
Os espaços gestores têm como principal função visibilizar as necessidades de saúde de populações específicas. De um lado, nos espaços geral e particular, é possível identificar indicadores epidemiológicos, necessidades e tensionamentos políticos. De outro, no espaço singular, é que se constroem as possibilidades efetivas da integralidade, da equidade e da universalidade. Na construção desse espaço singular é que os trabalhadores do SUS identificam as necessidades singulares dos sujeitos, que devem ser incluídas nas políticas de saúde (Cecílio, 2001). Dessa forma, os espaços criados pela área técnica de saúde mental, como o Fórum AD e o Fórum da RAPS, são fundamentais nessa construção, pois estes profissionais acabam fazendo um trabalho de mediação entre a micro e a macropolítica de saúde mental.
Nesta tentativa de consolidar um cuidado em rede nas dimensões micro e macropolítica, esses fóruns constituem-se em espaços potentes para religar os saberes dessas três dimensões - o geral, o particular e o singular. Um dos grandes desafios da área técnica é a coexistência de diferentes modelos de atenção aos usuários de drogas - o paradigma da abstinência e a perspectiva da Redução de Danos, representados, respectivamente, pelas Comunidades Terapêuticas e pelas Equipes de Consultório na Rua, por exemplo - que implica esforços na desconstrução de ideias ou representações que associam o usuário de drogas à noção de perigo/periculosidade. Esses tensionamentos entre diferentes perspectivas de atenção e entre os diversos espaços (geral, particular e singular) ao mesmo tempo em que são considerados obstáculos, também podem ser vistos como possibilidade de uma gestão baseada em alianças e consensos mínimos, que busquem a afirmação da vida e da autonomia dos usuários. Por isso, “as estratégias de efetivação do cuidado em saúde mental são objeto de permanente construção pelo diálogo, pela pactuação e corresponsabilidade entre todos os envolvidos nesse processo” (Leite, Scarparo, y Oliveira, 2013, p.132).
Temos, então, no território de Porto Alegre, disputas políticas, tensionamentos que, muitas vezes, comprometem ou ao menos dificultam o diálogo nas relações de poder. Merhy (1999) nos ajuda a pensar em possibilidades de enfrentamento dessas tensões políticas e dos processos de trabalho que demarcam esse campo. Segundo o autor, é fundamental reconhecer que “a saúde é um território de práticas em permanente estruturação, ontologicamente conflitivo, conforme os sujeitos em cena” (Merhy, 1999, p. 313) e, portanto, não contempla práticas definidas a priori, com receitas prontas, como é o caso da urgência do aumento de leitos em comunidades terapêuticas.
Além da gestão política, a gestão da clínica e dos processos de trabalho aposta no protagonismo dos sujeitos em sua capacidade de divergir e de encontrar pontos em comum em prol de uma política construída coletivamente. No campo da saúde mental, “a gestão é acrescida desse aspecto de produção de identidade/sentido e zona comum, entre trabalhadores, gestores e usuários” (Leite et al., 2013, p. 137). Criação de zonas comuns, zonas de acolhimento entre usuários, profissionais e gestores, tal como ocorre na proposta de acolhimento dialogado (Teixeira, 2003). Vemos produzir-se, então, uma proposta de gestão do acolhimento.
Nessa perspectiva, a gestão trabalha no plano comum de produção, cujo pressuposto fundamental é que as práticas de saúde são fabricadas, as práticas de produção de saberes e de si, produção de subjetividade e os exercícios de poder estão intimamente imbricados. A gestão, nesse sentido, é um conector, é um elemento-passagem ou um elemento que possibilita a passagem entre fluxos de trabalho e saberes, fluxos de subjetivação e construção de sujeitos, fluxos de relações de poder, fluxos de afetos. Dessa forma, tomar a gestão do acolhimento como elemento-passagem, “implica interrogar como os processos de gestão têm regulado a vida nos processos de trabalho e nos encontros de produção de saúde” (Neves y Heckert, 2010, p. 160).
Portanto, com Cecílio (2001), Neves e Heckert (2010), Leite et al. (2013) e Bedin et al. (2013), vemos a importância de conceber a gestão do acolhimento como uma incessante articulação entre a micro e a macropolítica. Trata-se, sobretudo, de uma articulação complexa, “visto que os movimentos micropolíticos recursivamente influenciam e são influenciados pelas ações macropolíticas” e que as ações dos profissionais e das equipes de saúde, ao integrar uma rede de cuidados, “dialogicamente complementam a rede ao mesmo tempo em que a questionam e a modificam constantemente” (Bedin et al., 2013, p.126). A complexidade dessa articulação entre macro e micropolítica são vividas também como tensões no cotidiano dos profissionais, pois, como nos disse Nise S.,
então assim fica muito personalizado porque é a Nise S. que está ali na política e não tem que ser assim, a gente tem trabalhado assim, mas as pessoas ainda insistem e essa coisa projetiva mesmo que é a gestão que tem que ter a resposta.
Ponderamos, contudo, que essa gestão do acolhimento se torna ainda mais complexa se considerarmos o atual momento das políticas de drogas e de saúde mental no Brasil. Diante de um cenário de tantas incertezas e retrocessos nos campos das Políticas de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, numa arena constituída por disputas e explícitos interesses econômicos, políticos e ideológicos (Doniec, Dall'Alba y King, 2018; Guimarães y Rosa, 2019; Onocko-Campos, 2019), assistimos às disputas por modelos de atenção e recursos públicos, cujo movimento de remanicomialização da Política Nacional de Saúde Mental, como ponderam Doniec et al. (2018), está inscrito no desmonte geral do SUS. Esse desmonte vem seguindo tendências neoliberais baseadas no trinômio austeridade-privatização-desregulamentação, acentuadas pela crise econômica e avanço de movimentos conservadores aos espaços de poder. As conquistas até então alcançadas pelos movimentos sociais, especialmente pelo Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA) e Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira (MRPB), parecem pouco sólidas diante dessa conjuntura política e econômica, que cria ainda mais obstáculos à lógica do cuidado em rede, territorial, comunitário, intersetorial e pautado na RD (Guimarães y Rosa, 2019; Onocko-Campos, 2019). Mas os retrocessos trazem consigo movimentos de resistência, que buscam assegurar a lógica universal e equitativa do SUS, os princípios estabelecidos pela lei da Reforma Psiquiátrica brasileira, o cuidado em liberdade e a garantia dos direitos humanos.
Outro debate contemporâneo à pesquisa realizada por nós junto à RAPS de Porto Alegre se inscreve no âmbito político e epistemológico, num movimento de revisitar os fundamentos de nossa reforma psiquiátrica à luz dos movimentos antirracistas e em perspectivas interseccionais. Em textos como os de Passos e Pereira (2017), Passos (2018) e David e Vicentin (2020), encontramos a noção de que a violência racial institucionalizada, processo que desumaniza as vidas negras, é reproduzida por políticas e intervenções estatais, como a “medicalização e patologização da vida, pela internação compulsória, pela esterilização coercitiva, pela higienização urbana e demais fenômenos, ou seja, o manicômio é social, uma vez que ele está introjetado e reproduzido nas relações sociais” (Passos, 2018, p. 13). A naturalização dessa violência racial, interseccionada pelas relações de gênero e de classe, faz com que ações de limpeza urbana, como as que aconteceram às vésperas da Copa do Mundo em 2014, sejam concebidas como um fenômeno paralelo e desconexo com a manicomialização do cuidado e suas formas de reprodução de opressões e desigualdades raciais, de gênero e de classe.
Considerações Finais
Discutimos, no decorrer deste manuscrito, as diversas formas como o acolhimento é pensado, concebido e sentido pelos profissionais da RAPS e da Área Técnica de Saúde Mental. Se olharmos com mais atenção, perceberemos que, em um primeiro momento, os profissionais não trazem nas palavras e expressões associadas ao acolhimento nada de negativo. Mas quando seguimos na discussão sobre o acolhimento, vamos, aos poucos, percebendo afetos como raiva e impotência estando associados às práticas de acolhimento. Por que tememos pensar e falar sobre esses afetos? Que o acolhimento é vínculo, compreensão, escuta, co-responsabilidade, diálogo, singularidade, todos sabemos. Encontramos essas palavras e definições na letra da legislação e das políticas de saúde mental. Mas, ao acompanhar e viver o cotidiano dos profissionais, usuários e demais atores, outros sentimentos, afetos, outras formas de conceber e praticar o acolhimento emergem. E o não esperado? E aquilo que de fato é vivenciado e experimentado? Aquilo que nos toca? É justamente isso que nos desassossega.
A gestão do acolhimento em oposição ao recolhimento. Os embates político-ideológicos, dentro dos quais vai se construindo esse espaço de intermediação da área técnica, individualizam o problema e colocam o indivíduo, “dependente químico”, no centro das ações. Individualizando o problema das drogas, abrimos o flanco para ações de higienização e recolhimento, justamente o que se temia com a aproximação da Copa do Mundo. E, como discutimos brevemente na seção anterior, tais processos precisam hoje, ainda mais diante dos atuais retrocessos nas políticas de saúde mental em nosso país, ser refundados política e epistemologicamente a partir de leituras interseccionais que tomam a violência racial institucionalizada como base para uma luta antirracista e antimanicomial.
Esse foi o mote de parte significativa dos encontros nos quais participamos durante a pesquisa. Num lugar de mediação entre a secretaria municipal de saúde e os serviços da RAPS, a equipe técnica de saúde mental buscava, através de estratégias coletivas e dialógicas, construir um acolhimento na e através da rede. Como disse Franco B., “um serviço sozinho, isolado, não dá conta de acolher” (SIC). Mas os diálogos são sempre marcados por tensões, porque essa equipe, de alguma forma, ‘encarna’ a gestão central, atuando, aos olhos dos profissionais, como representante do então secretário municipal de saúde. As frustrações dos profissionais com as dificuldades do cotidiano dos serviços acabavam sendo acolhidas pela equipe técnica. Os profissionais da equipe técnica, por sua vez, também demonstravam um sentimento de impotência, nessa função mediadora.
O que se percebe ao longo da pesquisa e desse manuscrito é a incessante construção de estratégias coletivas para a superação desses impasses. Mais do que isso, buscava-se construir uma noção compartilhada de acolhimento: os serviços deveriam ser portas abertas a todo e qualquer usuário do Sistema Único de Saúde, sempre na perspectiva da atenção psicossocial e antimanicomial. Esse movimento, tão caro nos dias atuais, tinha como objetivo produzir acolhimento em rede, através da responsabilidade compartilhada e comprometimento ético-político com o SUS. Por isso, torna-se impossível falar em práticas de acolhimento sem nos referirmos às redes de produção de saúde.
Da gestão central à micropolítica da gestão dos serviços de saúde, nesse espaço intercessor e produtor do comum dos fóruns e espaços coletivos, vemos a necessidade de pensarmos numa gestão do acolhimento: um dispositivo clínico-político constituído por todos os atores envolvidos no árduo processo de encontrar, escutar e acolher o outro, em sua integralidade, pautado na construção de estratégias coletivas e de redes de produção de saúde. Lembrando sempre de uma reflexão que surgiu no grupo de discussão do Fórum AD, que é impossível acolher o outro sem cuidar de si. Repensar o acolhimento enquanto uma prática de gestão nos parece fundamental para resistirmos aos desmontes nas políticas de saúde mental em nosso país.